terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Expressões e suas Origens IV

O PÃO QUE O DIABO AMASSOU

O pão que o diabo amassou ou "comeu o pão que o diabo amassou" é uma expressão popular que significa passar por um grande sofrimento ou por grandes dificuldades. É usada para descrever o grau de desespero que a pessoa foi submetida. Ex: O cortador de cana sofreu, em seu trabalho, o pão que o diabo amassou.

A expressão foi criada no sentido de representar através de um pão amassado por uma entidade sobrenatural da maldade, todas as consequências malignas passadas pelo indivíduo, em algum momento de sua vida.

ONDE JUDAS PERDEU AS BOTAS

Onde Judas perdeu as botas é uma expressão popular da língua portuguesa que é usada para descrever um lugar muito distante, difícil de alcançar ou mesmo inacessível.

Existem várias expressões equivalentes a "onde Judas perdeu as botas", tais como "onde o vento faz a curva", "no fim do mundo", "no cafundó de Judas", "no meio do nada", entre outras. - Não sei se vou poder ir na festa do João porque ele mora lá onde Judas perdeu as botas!

Em inglês, "onde Judas perdeu as botas" pode ser traduzido como "in the back of beyond" (expressão típicamente britânica que significa "na parte de trás do além"), "in the boondocks" (expressão mais usada nos Estados Unidos, que descreve uma zona pouco habitada), "in the middle of nowhere" (no meio do nada).

He lives in the boondocks / in the back of beyond / in the middle of nowhere - Ele mora onde Judas perdeu as botas!

É difícil saber a origem exata da expressão "Onde Judas perdeu as botas". Muitos autores acreditam que a expressão surgiu com a história de Judas Iscariotes, o discípulo que traiu Jesus. É certo que a Bíblia não menciona o hábito de Judas de calçar botas, mas uma crença popular afirma que Judas teria escondido num par de botas as trinta moedas que recebeu dos sacerdotes judeus, como pagamento por trair Jesus. Quando encontraram o corpo de Judas (depois de ter se enforcado), este estava descalço, e a lenda conta que muitos tentaram encontrar as botas para ficar com o dinheiro, mas sem sucesso. Por esse motivo, "onde Judas perdeu as botas" serve para descrever um lugar difícil de encontrar, um terreno longínquo.

No entanto, a Bíblia refere que Judas, movido por arrependimento, devolveu as moedas aos sacerdotes judeus antes de se suicidar. Por esse motivo, onde quer que estivessem as suas botas, elas não iriam conter as trinta moedas. Posteriormente a Bíblia menciona que os sacerdotes usaram as 30 moedas de prata para comprar o Campo do Oleiro, que ficou conhecido como o "Campo de Sangue".

ADVOGADO DO DIABO

Advogado do diabo (em latim advocatus diaboli) é uma expressão originalmente utilizada pela Igreja Católica para designar o advogado que tinha por missão apresentar provas impeditivas da admissão de um candidato a santo ou beato. Sua função era averiguar todos os fatos apresentados em favor do candidato., procurando falhas nas provas de milagres do candidato a santo. Nesses processos de canonização e beatificação, também havia o promotor da fé, encarregado de argumentar a favor do candidato.

Popularmente, a expressão passou a designar o indivíduo que apresenta muitas objeções a uma determinada tese, criando dificuldades para a defesa. Por vezes, o advogado do diabo defende um argumento contrário ao da maioria apenas com o intuito de testar a qualidade do argumento.

No sentido figurado, o advogado do diabo é apresentado como um indivíduo que defende um cliente ou uma causa que, moralmente, não há defesa.

CHATO DE GALOCHAS


Chato de galochas é uma expressão idiomática da língua portuguesa e significa alguém extremamente chato ou com comportamento socialmente desagradável. É o caso de um chato especial, um upgrade do chato habitual.

O meu dia estava correndo bem até aquele chato de galochas aparecer.

A expressão "chato de galochas", muito popular no Brasil, surgiu graças à galocha. Uma galocha é um acessório que se calça por cima do calçado, evitando que este fique estragado pela água. As galochas eram muito usadas nos anos 50 e 60 no interior do Brasil, onde em muitos lugares ainda não havia calçadas. No entanto, ainda hoje, algumas profissões requerem calçado do estilo da galocha.

Alguns autores acreditam que um "chato de galochas" é um chato resistente, característica da própria galocha. Deste modo, mesmo com condições climatéricas adversas, o chato calçava as suas galochas para importunar outras pessoas. Muitas vezes, o chato entrava na casa das pessoas de galochas, molhando e sujando toda a casa do anfitrião, que com certeza ficava desagradado com tal demonstração de desconsideração. Nos dias de hoje, os chatos de galochas não estão necessariamente calçados com galochas, mas a expressão continua sendo usada para descrever pessoas com atitudes desagradáveis.

Fonte:
http://www.significados.com.br/expressoes-populares/

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 30 – 4 de outubro de 1887

Há muito inglês já defunto,
Canning, Peel e consortes,
Que são o perpétuo assunto
Da eloquência e seus transportes.

Cada ano que passa, deixa
Nos anais parlamentares,
Entre um ataque e uma queixa,
Esses nomes singulares.

Assim, posto que vivamos
À moda francesa, é certo
Que todos imaginamos
Estar dos ingleses perto.

Vede, por exemplo, os nomes
Dos que escrevem de política;
Não são Barros, não são Gomes,
Nomes de fama somítica.

Entre um Guizot e um Horácio,
Quantos Walpoles fecundos!
Pobre Gália! Pobre Lácio!
Britânia é mundo entre mundos.

E, na verdade, a Inglaterra
Tem de sobra exemplos grandes
Para ensinar toda a terra,
Do Cáucaso até os Andes.

Hão de dizer, com justiça,
Que até aqui tenho usado
O latim da velha missa,
Já sabido e decorado.

Que sou vulgar como um bule
De botequim, — como um homem
Que, perdendo ontem na pule,
Narra as dores que o consomem;

Vulgar como um par de botas
Rotas e desengraxadas,
Vulgar como as quatro sotas,
Copas, ouro, paus e espadas.

Muito bem; mas, tendo em vista
Embora a vulgaridade
Procurar alguma pista,
Por onde ache a realidade,

Li agora um documento,
Circular de candidato,
Feita com discernimento,
Bom estilo, ameno e grato.

Tão grato, que pede o voto
Como um favor, e confessa
Que, vencido o terremoto,
Fará que jamais o esqueça.

Que seja novo não digo,
Nem novo, nem menos raro;
É costume um pouco antigo,
Vulgar, sem ofensa e caro.

Pois o eleitor, de outro lado,
Não faz favores à toa,
Quer ser mui cumprimentado
Em palavras e em pessoa.

Há tal que o votinho nega
A gente que o não visite,
Não que queira ver se emprega
Bem a cédula que emite,

Perguntando ao candidato
Qual a escola que mais usa,
Se a de um governo barato,
Se a do que gaste e produza;

Não, senhor; mas tão somente
Para ouvir cousinhas finas,
E mostrar a sua gente,
A esposa, a sogra e as meninas.

Ouvir que a filha terceira
Há de ser uma figura
Como a segunda e a primeira,
Modelos de formosura,

Ouvir um bom elogio
À laranjinha da casa;
Dar notícia de algum tio,
Que perdeu na ilha Rasa.

Ver que o candidato mira
De quando em quando a poltrona,
Em que se alarga e se estira,
Gesto de louvor que a abona.

Se há tais entre os eleitores,
E pedes, ó candidato,
Como o favor dos favores,
O voto, e lhes ficas grato,

Para que tantos ingleses,
Que dormem nas sepulturas,
Virem bailar tantas vezes
Nas nossas legislaturas?

Nacionalizemos isto.
Queres citar? Cita, cita
Nome cá nascido e visto.
Deixe o Pitt; cita o Pitta!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Astolfo Lima Sandy (Sistema de Roldanas)

No começo eu não entendia aquela insistência de minha mulher em deixar o frasco de
sedativos sobre o meu colo e não no armário da cozinha, como sempre fazia ao sair, perfumada, com a desculpa de que levaria as crianças ao shopping. Os meninos ficavam mesmo sob as vistas da avó, enquanto ela seguia ao encontro de alguém – nunca duvidei. Fosse outra a sua forma de agir, talvez a compreendesse. Prostrado aqui nesta infame cadeira de rodas, partilhando o sofrimento de vê-la sedenta de carinho na solidão do quarto, eu tinha o dever moral de aceitar com naturalidade essas escapulidas. Em troca de simples afeto de mãe, teria fechado os olhos a tudo.

Sei, meu olhar estúpido, a boca quase sempre entreaberta, os lábios murchos sem desprenderem qualquer ruído podem ter inibido uma reaproximação. Se eu não podia mais corresponder aos seus afagos – ela por certo supôs – seria por haver perdido a capacidade de sonhar... sofrer. E eu só desejava sua presença novamente ali perto, me transmitindo um pouco de calor e lendo para mim os versos de Baudelaire.

                Antes de sair, me servia sopa, acendia a luz, fechava a porta, colocando em minhas pernas as coisas que seriam úteis na sua ausência: garrafa d'água com canudinho, controle remoto e, ultimamente, o maldito vidro de remédio – que tomava o cuidado de deixar fora da caixa. De volta a casa, depois de recolher os meninos no quarto, vinha de mansinho até o cubículo, me observava da janela, e eu logo percebia a frustração no seu olhar. Por vezes se aproximava, conferia se a tampa do vidrinho saía com facilidade e depois fixava em mim um olhar de Gioconda; sem me tocar, dando a impressão de sentir nojo.

                Nessas horas a minha mente fervilhava, imaginando frases jamais articuladas. Fantoche, eu sequer conseguia franzir o cenho, expelir lágrimas, esboçar um gesto qualquer de sentimento. A única forma de expressão ainda possível era girar vagarosamente aquela abominável cadeira, riscando a cerâmica com suas rodas, feito quisesse cunhar no mármore as palavras presas na garganta. Ela logo aparecia e, com leve toque na alavancazinha, também paralisava esses meus devaneios. Depois, furtiva, sumia sem nada falar, para reaparecer apenas na hora de servir novamente a sopa e me colocar na cama, com auxílio de nosso filho mais velho. E eu ficava ali, chumbo, olhos fitos no teto, esperando o sol surgir através da claraboia. A mim nada mais seria permitido a não ser sufocar a angústia e curtir sozinho a minha solidão. Sei, certamente que sei dos meus pecados e deles nunca procurei me eximir. Esses, porém, já estavam muito bem pagos, creio.

Se ela tivesse acabado comigo de uma vez, teria sido melhor. Uma injeção e pronto, tudo se resolveria. Não quis. Preferiu minar-me lentamente, explicitar ao máximo a minha fragilidade. Em certos momentos, confesso, tive ímpetos de fazer seu jogo e engolir todo o conteúdo daquele pequeno frasco teimosamente sobre meu colo. Depois raciocinei que agir assim seria lhe permitir gargalhar em liberdade, na companhia do outro. Não. Ela haveria de experimentar do próprio fel, saldar sua parcela de culpa pelo desastre que me aprisionou neste cubículo; redimir-se do ciúme doentio, pagar bem caro pelas intermináveis discussões que sempre acabavam em minhas enlouquecidas fugas noturnas, até aquela última, quando bati o carro.  

                Em certos momentos, tentando afastar da cabeça os maus presságios, cheguei a supor que o fato de minha esposa deixar os comprimidos ao meu alcance fosse apenas por zelo, aquele receio de me ver amargar outra vez as dores antigas. Engano. Ela sabia que, devido à falta de sensibilidade física, isso já não mais poderia acontecer. Eu vivia naturalmente anestesiado. Somente as mãos ainda se mexiam de forma precária, conservando um pouco de tato, se bem que quase todo meu cérebro funcionasse com perfeição. Ela só não sabia – e disto agora tenho certeza – das habilidades desenvolvidas por mim na solidão do quarto.

Com auxílio da arcada dentária aprendi a segurar a ponta de um barbante, atá-la a meu pulso, enquanto enlaçava a outra extremidade à maçaneta da porta, de modo a prendê-la novamente com os dentes e construir um rudimentar sistema de roldanas, em que, puxando o cordel, meu braço se erguia e posicionava a mão um pouco acima da cabeça. Igualmente ela não suspeitava do brinquedo que eu mantinha oculto sob o forro da cadeira.

                Naquela tarde, ao arrumar as coisas sobre meu colo, deixando pela primeira vez sem a tampa o vidro de comprimidos, notei malícia no seu olhar. Com esse gesto aparentemente tão banal, ela apenas precipitaria o desfecho da situação. Antes de sair para o costumeiro passeio, serviu-me o caldo de ervilhas com toda delicadeza, ajustou a posição da TV e disse em voz mansa que as crianças ficariam o fim de semana na casa de sua mãe. Achei providencial.

Ela estava linda nesse dia, não posso negar: vestia um curto cetim, decotado; calçava sandálias de salto e tinha os longos cabelos presos por graciosa fivela de prata. O brilho dos olhos se acentuava na face rosada, no batom dos lábios, e pela primeira vez em muitos meses a desejei de uma forma absurda, louca, em que a reação física era nula, só o cérebro formigava, projetando imagens obscenas, fazendo exalar os odores da volúpia, aquela vontade incontrolável de tocá-la, sentir o seu corpo resvalar no meu. De repente, ao ouvir o barulhinho de pingos escorrendo do meu assento para o ladrilho, percebi que estava todo molhado. Nesse instante senti ódio de mim, do mundo e logo me curvei à realidade mais atroz. Após tanto tempo de vida em comum, eu testemunhava pela primeira vez a imagem de minha mulher em trajes tão sensuais. Fosse outra a circunstância, jamais lhe teria permitido semelhante comportamento, e ela sabia disso. Ainda assim, deu voltas ao meu redor antes de fechar a porta.

Permaneci o resto da tarde com o olhar idiota fixo na parede, aguardando seu regresso; uma mosca zunindo incessantemente ao meu ouvido, o suor escorrendo pelo rosto – sem que pudesse enxugá-lo. Nunca as horas demoraram tanto a passar. Hoje chego à conclusão de que teria sido melhor se o tempo houvesse estacionado ali, ainda que eu ficasse o resto de meus dias com aquele tormentoso inseto me roçando o nariz.

logo que anoiteceu escutei barulho de carro em frente ao portão. Era ela. Minha esposa não dirigia, mas eu tinha certeza: era ela. Comecei a mastigar a cordinha – já em volta da maçaneta – e esperei a cabeça dela apontar na janela. Estranhamente isso demorou muito para acontecer. Nesse instante escutei o ruído de crianças na calçada e os acordes de suave canção no interior da casa. E ouvi risos abafados por ligeiro tilintar de copos, cochichos; novamente o grito dos meninos lá fora, a música aumentando de intensidade, diminuindo, se misturando ao som da TV, ao latido do cachorro, distante; todas essas coisas comprimindo minha nuca, me impossibilitando diferenciar os rumores da rua, daqueles escutados dentro de casa. Risos, acordes musicais, gritos, tudo martelando o meu juízo – o suor incessante percorrendo a face.

Depois veio o silêncio, quebrado levemente pelo atrito de galhos da figueira sobre o telhado. Foi quando a minha mulher abriu a cortina. A postura de minha cabeça, inclinada, a boca parcialmente fechada – engolindo com dificuldade o barbante, para fazer o braço mirar a janela – me causavam enorme aflição, algo impossível de externar. Em qualquer circunstância nunca modifiquei essa aparência inexpressiva, silenciosa, nem perdi o jeito parvo, se bem não deixasse de alimentar mil demônios dentro de mim. Ao olhar discretamente na minha direção, não mais captei em sua face aquele desapontamento exibido em outras ocasiões. O sorriso dela tanto poderia configurar a satisfação de uma mulher plenamente realizada, como... como. Mas já era tarde, infelizmente. Muito tarde para desativar o sistema de roldanas, que funcionou de forma perfeita, mesmo com o peso da arma empunhada por mim naquele instante e sob o impacto causado por ela tão logo acionei o gatilho...

 (Astolfo Lima Sandy, A Grande Fábrica de Brinquedos)


Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Astolfo Lima Sandy

Astolfo Lima Sandy (Sobral, 1952) é autor do livro Mão de Martelo e outros contos (Fortaleza: Programas Editoriais Casa de José de Alencar/Coleção Alagadiço Novo – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1998). Participou do Almanaque do conto cearense (Recife: Ed. Bagaço, 1997), da Antologia do Conto Nordestino ano 2000 (Recife: Ed. Micro, 2000) e da revista Caos Portátil: um almanaque de contos (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Em 2002 recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos, inédito em 2007. Tem contos em suplementos literários e sites na internet. Vencedor de vários prêmios literários. Concluiu em 2007 o romance Exuberante pós-nada (vencedor do Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULT, em 2007).

Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.

Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.

O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.

O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.

            Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.

Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que  o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).

                O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.

Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 17


Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Saia de Esquilhas

Recolhido no Algarve

Um homem rico tinha três filhas, e costumava ir passar o verão com elas para o campo; ao voltar para a corte ficou a filha mais velha, que era muito esperta, encarregada de arranjar a bagagem. Depois de ter tudo arrumado e pronto para partir, foi ter com a caseira da quinta, que andava no arranjo da sua casa. Em cima de uma caixa estava uma roca com estopa, e a menina pegou nela para se entreter:

– Menina, não pegue nessa roca; pode meter alguma pua pelas unhas, e olhe que faz grandes dores.

A velha continuou a governar a sua casa, quando sentiu um grito; veio ver o que era. Era a menina que tinha caído desmaiada, sem sentidos. Deu-lhe a cheirar alecrim, alfazema, mas ela não voltava a si. Apoquentada com aquela desgraça, escondeu a menina, e logo que anoiteceu foi deitá-la na tapada real; pôs-lhe uma almofada para recostar a cabeça e cobriu-a com uma manta, fingindo que estava ali a dormir. Passado outro dia foi lá ver se a menina teria dado acordo de si. Nada. Calou-se muito calada e voltou para sua casa.

O príncipe costumava sempre andar à caça, e num dia recolheu-se àquela tapada, porque lhe anoiteceu depressa; mas foi grande o seu espanto quando descobriu ali uma menina muito formosa, a dormir, sozinha. Esteve primeiro a olhar para ela muito tempo; já se sentia apaixonado, e quis acordá-la; ela estava corada e risonha, mas não se movia. O príncipe quis acordá-la porque bem conhecia que não estava morta, queria-lhe falar. Foi tudo impossível. Ali ficou junto dela, e todas as vezes que podia, fingia que ia para a caça, mas não fazia senão vir sentar-se para o pé da menina que ele já amava com loucura. Só o criado que o acompanhava é que sabia do segredo. O príncipe vinha à corte de fugida só quando era preciso, e tornava para a tapada, onde guardava a menina adormecida, que ainda assim veio a ter três filhos.

As crianças foram crescendo, e cada vez se tornavam mais encantadoras; mas o príncipe tinha uma grande pena da mãe estar naquele estado. Um dia andando um dos pequeninos a brincar em cima da cama, começou a pegar nas unhas da mãe, e por acaso, sem saber como, fez-lhe saltar da unha a pua que causara aquela doença. O príncipe, que estava ali, ficou maravilhado por vê-la mexer-se logo e começar a falar e a beijar os filhos, como se tivesse voltado à vida. O príncipe contou-lhe tudo como se tinha passado até ali, e disse-lhe que os seus três filhos se chamavam Cravo, Rosa e Jasmim. A rainha já andava desconfiada daquelas ausências do filho, e tratava de ver se descobria alguma coisa.

Uma ocasião o príncipe teve de ir a uma grande feira, e perguntou à sua namorada se queria que lhe trouxesse de lá alguma coisa; depois de muitas instâncias sempre disse:

– Pois traz-me de lá uma saia de esquilhas.
   
Não havia lá isso, mas o príncipe mandou-a fazer de propósito; era uma saia cheia de guizos, que tilintavam. A menina ficou muito contente com a lembrança. Mas a rainha que maquinava a sua vingança, e que pelo pajem que acompanhava o filho já sabia tudo, fez com que o príncipe se demorasse muitos dias na corte. O filho com medo do génio ruim da rainha não dizia nada, mas andava cheio de saudades; foi de uma vez que ela lhe ouviu um suspiro:

– Ai de mim

Cravo, Rosa e Jasmim.

Isto lhe confirmou a verdade; a rainha chamou o pajem e disse-lhe:

– Vai já, quando não mando-te matar, e traz-me aqui o menino Cravo. Diz lá à minha nora que é ordem do príncipe, que me contou tudo.

O pajem trouxe o menino; mas a velha rainha entregou-o à criada dizendo:

– Ensopa-me esse menino para o jantar.

Quando o filho estava jantando, e com fastio, porque andava muito triste, a mãe disse-lhe:

– Come, come, que teu é.

Passados dias a rainha deu ordem ao pajem para ir buscar a menina Rosa. Seguiram-se as mesmas coisas. Depois deu ordem para lhe trazer o menino Jasmim. O príncipe já andava doente, e a velha rainha, dizia-lhe sempre à mesa:

– Come, come, que teu é.

Por fim não contente ainda desta vingança, mandou dizer à nora, que viesse à corte, porque a queria casar com o seu filho. A menina que já andava morta de saudades, por se ver sem os seus filhos, vestiu-se à pressa com sua saia de esquilhas, e partiu para a corte. A rainha estava à espera dela e assim que a viu, deixou-a entrar para um corredor, e lançou-lhe as unhas furiosa para a afogar. A menina lutou para ver se lhe escapava, e quanto mais lutava, mais barulho fazia a saia de esquilhas.

O príncipe, que estava de cama, assim que ouviu aquele som lembrou-se de sua mulher e levantou-se para ir ver o que era. Viu a rainha querendo estrangular a nora. Chamou gente; e foi então que se soube das ordens que a rainha tinha dado para matarem os netos. O príncipe ainda ficou mais aflito e começou a gritar:

– Ai de mim
Cravo, Rosa e Jasmim!

Foi então que a criada da cozinha disse que não tinha cumprido as ordens da rainha, e que tinha escondido os meninos. A rainha foi condenada, e o pajem sentenciado à morte, e a cozinheira em paga foi feita dama da nova rainha.
=========================
Notas Comparativas

O vestido com escamas de ouro com que a menina escapa à ferocidade da sogra é a Aurora depois que brilha vencendo a escuridade maligna da Noite. É um tipo geral deste ciclo novelesco.

No conto hindu intitulado Surya Bai, da coleção Old Deccan Days, de M.Frere, a menina fica com um sono letárgico por causa de um espinho, e é lançada num poço por outra mulher que a vê amada por um príncipe.

Sobre o caráter mítico deste conto pode aplicar-se a consideração de Husson sobre o citado conto hindu: «Temos nesta narrativa o novo exemplo do mito da mulher picada por um espinho ou por uma ponta aguda, e caindo em um sono letárgico de que é tirada por um príncipe amoroso.

Um outro mito se lhe sobrepõe, o de uma rival ou irmã ciosa, que personifica a hostilidade da escuridão contra a luz da primavera contra o inverno; e nesta fase de desenvolvimento novas peripécias se manifestam entre uma morte aparente e um regresso persistente à vida». (La chaine traditionnelle, p. 109).

Nos Contos populares portugueses, Lisboa, 1879, o conto XXXV, Os Sapatinhos Encantados versa sobre um sono letárgico com algumas relações no fim com o nosso.


Fonte:
Wikisource

Sonetos Satíricos I

Libreria Fogola Pisa
ÁLVARO ARMANDO 
Helena Ferraz de Abreu (Rio de Janeiro RJ 1906-1979) .

Herbert Moses

-
Pequenino. Apelidam-no "mosquito".
Não perde coquetel ou festa de arte.
Anda aos pulinhos, como periquito,
E pula, ao mesmo tempo, em toda parte!

Não há banquete em que, com qualquer fito
Ou sem nenhum, não diga o seu aparte.
E discursos faria, ao infinito,
Se um turista chegasse, lá de Marte!

Aos jornalistas tudo acerta, ajeita.
Se da ABI na doce presidência
Hábil e sutilmente se grudou,

A própria oposição bem o respeita,
Pois tem que se curvar ante a evidência:
Até o Getúlio foi e... ele ficou.

(Obs: ABI – Associação Brasileira de Imprensa)

ARTUR AZEVEDO 
(Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (São Luís MA 1855-1908)

Tertuliano, o paspalhão
 

-
Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!

PADRE CORREIA DE ALMEIDA

A Dança dos Partidos

 -
Os dous estragadíssimos partidos
Ocupam a seu turno a governança;
E nós imos vivendo da esperança
De ver os nossos males combatidos.

Os quinhões são de novo repartidos,
Toda vez que se dá qualquer mudança,
Se aquele outrora encheu, este enche a pança
E os clamores do povo são latidos.

Se as velhas leis têm sido violadas,
Estando nossas crenças abaladas,
Novas leis não darão melhores normas.

Palavras eu não sei se adubam sopa,
Mas a fala do trono é que não poupa
Reformas e reformas e reformas.

FRANCO DE SÁ
Joaquim Mariano Franco de Sá (Alcântara/MA – 1807 – 1851)

A Esbelta

-
A "Esbelta", o alvo dos suspiros nossos,
É fada vaporosa, é flor das flores;
Em vez de carne, vestem-na vapores,
É leve a rapariga, só tem ossos.

Os caniços do lago são mais grossos
Que as canelas gentis dos meus amores;
Tem nas lindas bochechas menos cores
Que a seca múmia quando sai dos fossos.

Ah! ditoso mancebo, eu te prometo
Que se hoje, noivo, trêmulo, desmaias,
Beijando a anágua que lhe encobre o espeto,

Talvez, quando marido, morto caias
Vendo surgir o pálido esqueleto
Da espessa nuvem de umas oito saias.

JOINVILE BARCELOS (RS)

Benedito Salgado

-
Vai às aulas e às feiras, lê, patina,
Namora, odeia os militares. Tersos
Os seus sonetos, nos jornais dispersos,
João dos Anzóis "pomposamente" assina.

Ama o truco, o bilhar, jogos diversos.
Ah! Viver no "xadrez" (que bela sina!!),
Tendo ao lado uma cândida menina,
Bons patins, bons autores e bons versos.

Vive alheio aos jurídicos assuntos.
Provas de exame nós "colamos" juntos,
Eis por que ainda não levamos pau.

Prega aos caloiros tímidos na Escola:
"Não tenham medo, aqui tudo se 'cola',
'Cola-se' até solenemente — o grau!"

MOACYR PIZA
Moacyr Toledo Piza (São Paulo, 1891 – 1923)

O Cartola

(a Cardoso de Almeida)

Pança, asneira, bazófia, parolice;
Parolice, bazófia, asneira, pança:
— Eis o que revelou desde criança,
E o que há de revelar até a velhice.

É um realejo, que jamais descansa,
A remoer sempre o que Leroy já disse.
Ninguém, a um tempo, faz tanta tolice;
Ninguém tanta tolice a um tempo avança!

Pingue de enxúndias mas de miolos pecos,
Lembra, na linha, o Conselheiro Acácio,
Superando, em idéias, cem Pachecos!

Nunca um raio de luz lhe entrou na bola.
Pensa o leitor que pinto algum pascácio?
— Engana-se, leitor, pinto o Cartola.

MÚCIO TEIXEIRA
Múcio Scevola Lopes Teixeira (Porto Alegre/RS, 1857 — 1926)

O Girafa

-
Borrar papel, Girafa!, é teu fadário,
Contra a honra de toda a gente séria;
Oh! alma pustulenta e deletéria...
Oh! ente nauseabundo e salafrário!

Ontem... entre os rebeldes, mercenário,
Hoje... parece mesmo uma pilhéria!
Qual vende o leito crapulosa Impéria,
A pena alugas por qualquer salário.

Jornaleiro metido a jornalista,
Dos vícios teus a criminosa lista
Verás aqui... e para além te empurro!

Por andares na berra, estás na barra;
Pois hoje a Musa em teu focinho escarra,
"Doutor na asneira, na ciência burro!"

ROCHA PITA
Sebastião da Rocha Pita (Salvador/BA, 1660 —1738)

Soneto da Desdentada

-
Pondero a emudecida formosura
De Fílis sem temer que impertinente
Possa no meu soneto meter dente
Pois carece de toda a dentadura.

Se por cobrir a falta esta escultura
Tão muda está que não parece gente,
Estátua de jardim será somente
Se de pano de rás não for figura.

O senhor secretário quer que a creia
Bela sem dentes, eu lho não concedo;
Desdentada é pior do que ser feia;

E em silêncio só pode causar medo,
Ser relógio de sol para uma aldeia,
Para um povo estafermo de segredo.

RUBENS PEDROSO (RS)

Toda e Qualquer Semelhança...


Descomunal, vastíssima senhora,
Imensamente gorda. Ela é feliz
Chacoalhando essa banha a toda hora,
Metendo em toda parte o seu nariz.

Mesmo gorda, é uma "fina" salafrária:
Sabe mentir como poucas ante um juiz.
E é cínica, é safada e ordinária,
E mais coisas, talvez... que não se diz.

Monumento de enxúndia e de rancor,
De veneno e maldade inchada está.
Não é mulher, é um monstro, é um horror.

E na cova, onde um dia ficará,
Até o mais faminto verme roedor
Sua gordura com nojo deixará.

TAPAJÓS GOMES
Manoel Tapajós Gomes (Belém/PA, 1884 – ?)

Amador Cobra

-
Este "enorme colega" (assim define-o
Outro colega, espirituosamente),
Não garanto, mas deve ser parente
Dalgum poste da Light, consangüíneo.

É professor e aluno juntamente,
Tem prática, traquejo, raciocínio,
E onde quer que ele esteja tem domínio
Só pela altura... que faz medo à gente.

É muito alto, demais, o nosso Cobra
E embora assim comprido, ele não dobra
Apesar, meus leitores, dos pesares...

Isto de altura é coisa que acontece,
Mas o Cobra, palavra que parece
Um sobrado de três ou quatro andares!

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/satirico.htm

Irmãos Grimm (A Parceria do Gato e o Rato)

Um gato tinha feito o conhecimento de um rato, e tinha dito que ele fez amor e amizade, enfim o rato concordou em casar com ele e viver juntos.

"Mas temos que pensar sobre o inverno, porque senão passam fome," disse o gato. "Tu, ratinho, não pode se aventurar em todos os lugares, finalmente pego em uma armadilha."

Seguindo, então, esse conselho pró-ativa, comprou um pote de manteiga. Mas então ele introduziu o problema de onde ele iria manter até que, após longa reflexão, o gato disse:

– "Olha, o melhor lugar é a igreja. Aqui ninguém se atreve a roubar nada. É sob o altar e não tocá-lo até que seja necessário.”

Então, o pote foi armazenado de forma segura. Mas o tempo não tinha passado muito quando, um dia, o gato parecia tentar o doce e disse ao rato

"Alô, Rato! Um primo meu me fez padrinho de seu filho que nasceu. Apenas um garotinho com manchas de pele branca marrom, e quer-me para levá-lo à pia batismal. Então, hoje eu tenho que sair, você cuida da casa.”

-" Muito bem", respondeu o rato, "Vai-te em nome de Deus, e se você receber algo bom para comer, lembre-se de mim. Eu também gostaria de beber um pouco de vinho do partido.”

Mas foi tudo mentira, é que o gato não tinha primo que lhe pediu para ser o padrinho. Ele foi direto para a igreja, rastejou até o pote de gordura, começou a lamber e lamber até a camada externa.

Em seguida, aproveitou a oportunidade para dar um passeio sobre os telhados da cidade, em seguida, colocar no sol, lambendo os bigodes sempre que ele se lembrava da panela de gordura. Não ia voltar para casa até escurecer.

– "Bem, você está de volta," disse o rato," certamente deve ter tido um bom dia."

- "Nada mal", respondeu o gato.

– "Qual o nome que eles deram à criança?," perguntou o rato.

— Em cima já era! disse o gato bem tranquilamente.

— Em cima já era?, gritou o rato, — esse é um nome muito original e incomum, ele é comum na sua família?

— O que significa isso? disse o gato, — não é pior do que Ladrão de migalhas, como chamam os seus afilhados.

Não passou muito tempo e o gato foi tomado por um outro acesso de saudade. Ele disse para o rato:

— Você precisa me fazer um favor, e mais uma vez administrar a casa sozinho por um dia. Fui novamente convidado para ser padrinho, e, como a criança tem um anel branco ao redor do pescoço, não posso recusar. O bom rato concordou, mas o gato subiu por trás das paredes da cidade e foi até a igreja, e devorou metade do pote de banha.

— Não há nada melhor do que algo que se guarda para si mesmo, disse ele, e estava muito satisfeito pelo seu dia de trabalho.

Quando ele chegou em casa o rato perguntou:

— E com que nome a criança foi batizada?

— Metade já foi, responde o gato.

— Metade já foi? O que você está dizendo? Nunca ouvi esse nome em minha vida, aposto qualquer coisa que ele não está no calendário!

A boca do gato logo começou a verter água por mais algumas lambidas.

— Todas as coisas boas acontecem três vezes, disse ele, — fui convidado para ser novamente padrinho. A criança é bem negra, tem apenas as patas branquinhas, mas só essa diferença, ela não tem um único pelo branco em todo o corpo, e isso acontece apenas uma vez todos os anos, você vai me deixar ir, não vai?

— Em cima já era!, Metade já foi! Respondeu o rato, — esses são nomes estranhos, e me fazem ficar preocupado.

— Você fica em casa, disse o gato, — com seu fraque de pele cinza escuro e de cauda longa, e fica imaginando coisas, é por isso que você não sai durante o dia. Durante a ausência do gato o rato limpou a casa, e colocou tudo em ordem, mas o gato guloso esvaziou totalmente o pote de banha.
   
— Quando tudo tiver acabado eu vou conseguir sossegar um pouco, disse para si mesmo, e bem alimentado e gordo ele não voltou para casa até o anoitecer. O rato de imediato perguntou qual era o nome que haviam dado para a terceira criança.

— Ele não vai lhe agradar mais do que os outros, disse o gato.

— Ele se chama Acabou tudo.

— Acabou tudo? gritou o rato, — esse é o nome mais bizarro que eu já vi! Nunca vi esse nome nem impresso. Acabou tudo, o que isso pode significar? E ele balançou a cabeça, se enrolou todo, e deitou para dormir.

Desse dia em diante ninguém convidou o gato para ser padrinho, mas quando o inverno chegou e não havia mais comida fora para comer, o rato se lembrou do que tinham guardado, e disse:

— Venha aqui, gatinho, iremos até o nosso pote de banha que nós guardamos em caso de emergência — e vamos nos deliciar com ele.

— Sim, respondeu o gato, — você irá se deliciar assim como você se delicia colocando a sua língua delicada para fora da janela. Saíram em seguida, mas quando chegaram, o pote de banha certamente ainda estava no lugar, mas estava vazio.

— Meu Deus, disse o rato, — agora estou vendo o que aconteceu, agora tudo ficou bem claro! Você sim é um verdadeiro amigo! Você devorou todo ele quando você foi convidado para ser padrinho. Em cima já era, depois Metade já foi e depois...

— Quer segurar a sua língua, gritou o gato, — nem mais uma palavra, ou eu comerei você também.

- "Foi," já estava na boca do rato pobre. Ele não podia suportar a palavra, e não foi mal lançado, o gato saltou sobre ele, agarrou-o, engoliu todinho.

Assim são as coisas deste mundo.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/O_gato_e_o_rato

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 29 – 27 de setembro de 1887

A semana que há passado...
Deixe leitor que me escuse,
E de um falar tão usado
Abuse também, abuse.

Há passado, hão carcomido...
Hão, hão, hão, hão posto em tudo,
Hão, hão, hão, hão recolhido...
Estilo de tartamudo.

Ai, gosto! ai, cultura! ai, gosto!
Demos um jeito e outro jeito:
Venha dispor e há disposto
Venha dispor e há desfeito.

Mas usar de uma maneira
Até reduzi-la ao fio,
Não é estilo, é canseira;
Não dá sabor, dá fastio.

Porém... Já me não recordo
Do que ia dizer. Diabo!
Naveguei para bombordo,
E fui esbarrar a um cabo.

Outro rumo... Ah! sim; falava
Da outra semana. Cheia
Esteve de gente escrava,
Desde o almoço até a ceia.

Projetos e mais projetos,
Planos atrás de outros planos,
Indiretos e diretos,
Dois anos ou cinco anos.

Fundo, depreciamento,
Liberdade nua e crua;
Era o assunto do momento,
No bond, em casa, na rua.

Pois se os próprios advogados
(E quem mais que eles?) tiveram
Debates acalorados
No Instituto, em que nos deram

Uma questão — se, fundado
Este regime presente,
Pode ser considerado
O escravo inda escravo ou gente.

Digo mal: — inda é cativo
Ou statu liber? Qual seja
Correu lá debate vivo,
Melhor dizemos peleja.

Mas peleja de armas finas,
Sem deixar ninguém molesto:
Nem facas, nem colubrinas,
Digesto contra Digesto.

Uns acham que é este o caso
Do statu liber. Havendo
Condição marcada ou prazo,
Não há mais o nome horrendo.

Outros, que não são sujeitos
Ferozes nem sanguinários,
Combatem esses efeitos
Com argumentos contrários.

Eu, que suponho acertado,
Sempre nos casos como esses,
Indagar do interessado
Onde acha os seus interesses,

Chamei cá do meu poleiro
Um preto que ia passando,
Carregando um tabuleiro,
Carregando e apregoando.

E disse-lhe: “Pai Silvério,
Guarda as alfaces e as couves;
Tenho negócio mais sério,
Quero que m'o expliques. Ouves?”

Contei-lhe em palavras lisas,
Quais as teses do Instituto,
Opiniões e divisas.
Que há de responder-me o bruto?

— “Meu senhor, eu, entra ano,
Sai ano, trabalho nisto;
Há muito senhor humano,
Mas o meu é nunca visto.

“Pancada, quando não vendo,
Pancada que dói, que arde;
Se vendo o que ando vendendo,
Pancada, por chegar tarde.

“Dia santo nem domingo
Não tenho. Comida pouca:
Pires de feijão, e um pingo
De café, que molha a boca.

“Por isso, digo ao perfeito
Instituto, grande e bravo:
Tu falou muito direito,
Tu tá livre, eu fico escravo “.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Pedro Salgueiro (Aleine)

O caso se deu na época em que eu buscava desesperadamente Aleine. Desde o início da tarde haviam me expulsado, pois cometi a imprudência de perguntar por ela. Fui abandonado numa passagem de nível, quando o trem diminui a marcha, logo após aquele aguaceiro de fins de maio. Vaguei pela linha férrea, na esperança de escutar algum apito ou sentir qualquer chacoalhar nos trilhos; enfim desisti e tomei certo caminho secundário que descia rumo a um imenso vale — bem ao longe uma cordilheira azulzinha quase se confundia com a linha do horizonte. Demorei a encontrar sinal de vida, apurando o ouvido ao mínimo indício de vento; de vez em quando, esfriava a cabeça com água de um córrego ou subia numa pedra para buscar qualquer povoação.

Já no final da tarde distingui, de cima de um carvalho, a fumaça de uma chaminé — andei mais alguns quilômetros para avistar a torre de uma igreja. Apressei o passo, querendo chegar no começo da noite — planejava misturar-me com algumas vacas que seguiam na direção do vilarejo. Encontrava-me na entrada quando notei a placa de advertência: “Estamos de mudança”. Tudo tinha sido tão estranho — desde que fui obrigado a descer daquele trem — que não me dei conta do absurdo da situação: eu, procurando minha mulher que havia sumido misteriosamente, fui me deparar com um lugarejo perdido, e logo na entrada era recebido por tal advertência.

Esqueci pela primeira vez Aleine e perambulei por ruas escuras, apenas iluminadas com raros lampiões dependurados em árvores no meio da rua. Esgueirava-me pelas sombras dos muros, evitando assim a claridade — com medo de ser reconhecido (o que, hoje lembrando, seria mais um absurdo em meio a tantos: pois como poderiam me reconhecer se nunca eu havia andado por aquelas paragens, tão ermas e distantes da cidade em que nasci!?). Pareciam não me notar, apenas ficavam mais sérios — cerravam os olhos e carregavam o semblante, como certos pais ainda hoje fazem para repreender os filhos pequenos quando eles cometem qualquer danação. Paravam a conversa no meio, interrompiam jogos de cartas, mudavam de calçada ao ter de cruzar comigo — não se dirigiam a mim, é verdade, mas eu sentia neles um certo medo, um vago receio da minha presença. Subi em uma grande árvore para passar a noite — não me arriscava a dormir desprotegido em qualquer banco da praça. Não conseguia pregar olhos, o medo e a excitação dos últimos dias mexeram com meus nervos — e as noites não me permitiam um minuto de descanso. Aproveitei a calma da madrugada para pensar em Aleine, e já sonhava com um novo encontro quando ouvi vozes distantes: confabulavam, discutindo não sei que assunto, pois o vento de vez em quando mudava de direção para em seguida trazer novamente os sussurros; trepei num galho mais alto da árvore e então pude avistar ao longe uma pequena assembleia. Juntavam galhos, acendiam tochas (em quase todas as casas, sinais de mudança: malas nas calçadas, carroças sendo cobertas, mulheres ajeitando as crianças) — formavam uma enorme fogueira, enquanto discutiam apontando em várias direções.

De repente um medo tomou conta de mim, as pernas tremiam, o suor cobrindo meu corpo inteirinho: pensei rápido, um desespero invadindo meus pensamentos; saltei ligeiro da árvore e disparei na mais apressada carreira de que minhas pernas foram capazes, no rumo oposto ao da claridade. Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada — sempre me afastando.

Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que — enquanto eu a procuro — muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela.

(Pedro Salgueiro, Inimigos)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.