sábado, 14 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Francisco Sobreira

Francisco de Paula Sobreira Bezerra (Canindé, 1942) fez o antigo Ginasial e o Científico, incompleto, em Fortaleza. Concursado no Banco do Brasil, foi trabalhar no interior do Estado, depois fixou residência em Natal, Rio Grande do Norte. Publicou os livros de histórias curtas A Morte Trágica de Alain Delon (1972), A Noite Mágica (1979), Não Enterrarei os Meus Mortos (1980), Um Dia... os Mesmos Dias (1983), O Tempo Está Dentro de Nós (1989), Clarita (1993), Grandes Amizades (1995) e Crônica do Amor e do Ódio (1997); os romances Palavras Manchadas de Sangue (1991), A Venda Retirada (1999) e Infância do Coração (2002). Cinéfilo, foi presidente do Cineclube Tirol, de Natal, e do Clube de Cinema, de Fortaleza. Ganhador de vários prêmios literários, como o da Fundação José Augusto de Ficção, de 1879 e 1981. Também venceu o Prêmio Aurélio Pinheiro de Ficção, de 1985, e o Concurso Literário “5 Contistas Potiguares”; além do Concurso Literário Câmara Cascudo, de 1987, dentre outros. Participa de várias antologias.

A maioria das peças ficcionais de Sobreira se situa na estante das chamadas narrativas lineares, com um episódio central, poucos personagens, desfecho, narração, diálogos e alguma descrição. Em “Operação coroada de êxito”, do primeiro volume, o narrador, internado num hospital, monologa por alguns minutos, no presente, e vez ou outra “repete” falas, de pouco interesse, de seres fictícios insignificantes, ao seu redor. No entanto, a obra de título igual ao da coleção tem arquitetura mais moderna: uma notícia de jornal (a morte do cachorrinho Alain Delon), uma crônica, outras notícias menores relativas ao cão, duas entrevistas e, finalmente, a notícia do julgamento do assassino.

Seu segundo livro, A Noite Mágica, nada tem de revolucionário, de vanguardista, de inovador. Muito pelo contrário, é tecnicamente conservador. Francisco Sobreira não faz nenhuma alquimia de estilo, não cria nenhuma nova linguagem. No entanto, esta aparente acomodação não indica seja ele um simples contador de histórias.

Sendo conservador na forma, o livro de Sobreira segue a trilha da prosa de ficção de pós-1964. Perpassa por quase todas as composições um vento forte de paranoia, caudaloso na literatura urbana brasileira dos últimos anos do século XX. Histórias de medo, terror, alucinação. Medo de ser preso, de perder o emprego, de morrer de fome, medo disso e daquilo. As pessoas se sentem caçadas como bichos, ameaçadas, perseguidas. Os amigos e os parentes são delatores ou espiões a serviço do Poder. A própria sombra de cada ser humano é um dedo-duro em potencial. Esse horror kafkiano é notório em contos como “O Caçado”, “Enquanto o Diabo Esfrega o Olho”, “O Falso Álibi”, “A Promissória” e “O Caçador de Nostálgicos”. O narrador, sempre perseguido, sempre paranoico, torna-se perseguidor, delator, comparsa da polícia (representação do direito de perseguir), como em “A Voz do Vizinho”. O protagonista, sem nome explícito (“o homem que vinha denunciar”, “senhor” ou “denunciante”), comparece a uma delegacia para denunciar o seu vizinho, pelo crime de não falar, embora não seja mudo. Os outros seres fictícios são “o soldado” e “o Delegado”. Constituído basicamente de diálogos, a história tem um quê de non-sens ou, se quiserem, de parábola. E isto é visto em outras peças, como “A Fábrica”, a lembrar José J. Veiga, especialmente “A Usina Atrás do Morro”. Entretanto, a notícia da fábrica, da sua inauguração perde importância logo, para dar lugar à presença de “estranhos”, isto é, os construtores ou trabalhadores da fábrica, na cidade. E somente um personagem adquire significância: o palhaço Arrelia. Por que este e não o professor, o padeiro, o padre? Perfeito desvario, o que não deixa de ser valioso.

O absurdo é, assim, o ingrediente principal da iguaria narrada. Às vezes um absurdo que, de tão cotidiano, perde o sabor de coisa literária. Em “A Lâmina”, por exemplo. Porque ninguém é mais dono de nada. Outras vezes, a situação anormal se apresenta como se o ser fictício fosse apenas um deficiente mental, incapaz de perceber a vida e a morte ao seu redor, manejado por tentáculos tão torturantes quanto os fantasmas dos pesadelos. A realidade narrada aproxima-se, então, do sonho. Os protagonistas e os espectadores são meros joguetes nas malhas de seres todo-poderosos que inventam a vida ou o fato. Por isto, em alguns contos a presença do elemento onírico é perfeitamente perceptível ou mesmo preponderante. Os atos e as imagens se sucedem de forma incoerente, deixando o personagem simplesmente perplexo, espantado diante da estranha realidade de que tenta desesperadamente fugir. Assim, reduz à condição de ficção, de brincadeira de mau gosto, de encenação, quando muito de logro, a peça que lhe pregam. Não acredita ser possível tão absurda realidade. Por fim se convence e tenta fugir. Porém, já é tarde demais.

Essa cosmovisão, esse sentimento de inferioridade, de pequenez, essa crença nos super-homens, nos homens de milhões de dólares, nos seres biônicos, nos deuses e entes mitológicos do mundo moderno, possibilitaram a ascensão do nazi-fascismo e possibilitam, ainda, um mundo de tantos disparates.

“A Pedra” é belíssima composição e tem dimensão diferente das demais. No entanto, o mesmo clima de perseguição, de repressão, na pessoa de um pobre sertanejo virado pagador de promessas.

A linguagem nas narrativas de Sobreira é coloquial, popular, recheada de gírias e modismos (“meu chapa”, “abonado”), expressões de uso comum (“era a última coisa que faria naquele momento”; “ajuda de que tanto necessitava”; “tocava na sua ferida”; “pele de uma alvura imaculada”), observações desnecessárias (“Lá bem distante o mar glaucíssimo oferecia-se à admiração das pessoas”; “Mas os jornalistas parecem sofrer do mesmo tipo de amnésia que afeta os eleitores e os torcedores”; “É preciso que se diga que”). O narrador de “Aquele casal” (pode ser o próprio autor também) observa: “A rotina, seria dispensável dizê-lo, gruda-se na vida de todos nós de uma tal maneira...” Apesar disso, esta peça é magnífica até no desenlace. Sobreira inverteu os papéis dos personagens: o narrador, Ernani, é mero espectador, e é o único com nome explícito. Os protagonistas são “o homem” ou “o gigante” e “a mulher” ou “a mulherzinha”, ou, como se fossem um só, “o casal”. O narrador e os seres fictícios que gravitam ao seu redor falam, gritam, ouvem, veem, discutem, se relacionam. Exercem seus papéis no palco da rua. Por outro lado, os protagonistas simplesmente passam diante deles, em permanente discussão, como se o mundo além deles não existisse.

Em Sobreira a narração é minuciosa, o narrador se perde em detalhes. Há explicações em demasia: “A submissão aos maridos, naquela época, era como que uma cláusula no contrato de casamento, que as esposas tinham que cumprir, e ainda vigora na maioria das uniões existentes no Nordeste do Brasil”. A linguagem da crônica, do ensaio, da matéria jornalística não pode ser a do conto, salvo se o propósito do contista for o de imitar ou parodiar uma ou outra.

Personagens sem nenhuma influência na trama surgem de repente e logo desaparecem, como em “Lastênia”. Algumas obras parecem capítulos de romance, com vários episódios e personagens secundários que poderiam se apresentar sem nomes, como Jofre Colares, Celso Meireles, Benito, Policarpo, Hermógenes, Zeca Marcolino, de “Soldadinhos de chumbo”.

O Francisco Sobreira das histórias insólitas, das parábolas, dos contos fantásticos é, sem dúvida, muito superior ao narrador das pequenas cenas domésticas, das narrativas do cotidiano das pessoas. Entretanto, se depurasse a linguagem, se transgredisse as normas do conto, mesmo os episódios ordinários poderiam alcançar degraus mais altos da arte literária. E, ainda, se buscasse sobrepor ao objetivo um pouco de sugestivo, ou seja, se transitasse da movimentação episódica externa para a ação interior.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Djalma Filho (Poemas Avulsos)

A foto da gaveta

havia uma foto antiga na gaveta.

Por mais que jurasse de nada saber,
ela chorava o mais calado dos cantos tristes
- ao meu lado -
como se quisesse desmanchar, com seu chover,
o contorno da imagem à mostra, ali, cheia de espanto...

havia uma foto antiga na gaveta usada.

Eu, desconhecedor de todas as lembranças,
- novas ou antigas -
entre seus braços fui morrendo de passado
e nascendo a cada instante de silêncio
ouvi, sem surpresa, seu choro:
- Rasga?...

havia uma foto antiga na gaveta emperrada,
tão escondidinha que parecia até ter sido guardada...

havia uma foto na gaveta,
- só mesmo a foto -
pois a essência da alma que vivo
está ao meu lado fingindo-se de morta
silenciosa e quase triste
por ter me achado numa imagem do passado.

Havia uma foto na gaveta,
só uma foto:
- Coisa boba, não é?
Havia. Não há mais!

Reforma

tua forma feminina
ainda anda pela casa.

Com ela,
chegaste comigo
qual cabra-cega:
com os olhos fechados por minhas mãos
e com os dedos soltos no ar. Parecias despencar!...

seguiste-me,
corredor adentro,
atrás do caminho que meu cheiro te provocava,
qual um abre-alas.

Apresentei-te à flor de plástico no vaso sobre a mesa,
disseste-me que nela havia cheiro de campo;
enquanto, flutuando sobre o tapete barato da sala,
andavas mercando liberdade
como se em tua volta não existissem paredes, rodapés, portas nem vidraças,
enfim, nada mais que pudesse silenciar
o exercício pleno do amor.

Participei-te a cama
só para não topares os dedos,
- dos pés! -
pois, ainda vendada,
sentes o cheiro da minha espera sobre o lençol de linho. E deitas!...
não há mais nada para mostrar-te:
Toca-me?...

O noivado
ou Frejat e Vinicius não compareceram


conseguiste achar a quinquagésima nona gravação de “Luiza”.
Compraste-a de olhos fechados!

sabes, há muito,
da minha paixão pelo Jobim, o Brasileiro,
e da admiração por casamentos quase eternos,

consegui encontrar a oitava gravação de “Codinome Beija-Flor”.
Adquiri-a sem duas vezes pensar!

sei, há muito,
do teu espanto pelos Cazuzas, poesia-alta,
e do desejo suave por relacionamentos estáveis.

Saímos,
cada qual para seu canto,
em busca de uma aliança bem bonita
- com nosso jeito e cara -
para tocar nossos dedos no dia do noivado.

Encontramo-nos,
com os dedos ainda vazios,
na porta de saída de uma loja qualquer
pensando, inevitavelmente, um no gosto do outro.

E trocamo-nos presentes:
dei-te o Cazuza,
deste-me o Jobim;
estávamos noivados!

Amigos antigos, velhos namorados

invadi teu abraço
até sentir-me guardado
na paz que mora em ti.

Quando, feridos de passado,
éramos os mesmos ou
- até outros -
inseparáveis fingindo-nos de amigos
carimbados por tanta identidade;
e, quando o beijo engravidava,
preferíamos o silêncio,
que faz falta aos cinemas mesmo com pipocas nos fins-de-tarde,
até desapercebermos que a mão da ausência pesa muito
a cada toque desarrumando por um carinho não feito.

Invadi teu abraço o mais que pude,
só então percebi quão infantil-homem fui:
por mais que usasse calça desde pequeno,
por mais que abusasse da barba e do bigode,
por mais que fingisse a mais adulta das posturas.

Depois de invadir
tantos e quase todos teus abraços,
- enquanto pude -
senti, inteira, a arquitetura do teu corpo
nos querendo mais adultos
até acriançarmo-nos e adormecemo-nos!
Ninado pelo acalanto silencioso dos teus bons-dias,
senti-me morador nos teus abraços invadidos,
enquanto, tarde da noite, a paz regride
envelhecida pelo teu pôr-do-sol.

Silêncio de cinco pontas

há um vago silenciar...

entrei na noite dos teus braços,
adiei o dia
- o mais que pude -
de lábios mordidos
economizando claridade.

tênue, o silêncio é vago.

dois respiros em hiatos
na mansidão mais abstrata da mudez,
- quase mudez -
ditas pelas mãos contornando a alma em forma,
respiro teus ais suados de amor em resguardo
na penumbra de muito silêncio, o absoluto,
enquanto o grito do sol não arde
vago pela noite
em busca das cinco pontas
do brilho silencioso desta estrela.

Os últimos primeiros

Conheci Deus.
Estaria louco?

Era Deus, sim,
- há pouco -
com dedos paz-amor, insistindo sono às pálpebras,
pressionando-as para o sul, querendo-as fechar.

Com Ele falei o mais humanamente, enquanto pude;
em fração de segundos, tornei-me Dele íntimo:
desenvergonhamo-nos
- Um ao Outro -
nossos segredos.

Deixou-me escapar
- quase sem querer -
que jamais fora brasileiro,
mas tem uma vontade louca de passar férias na Bahia.
(os curiosos, espantados, descerram a janela na minha cara sã)

Há pouco, conheci Deus!
(os amigos lúcidos ainda dizem que pirei de vez)

Falou-me das Suas angústias,
enquanto era eu quem deveria estar deitado no divã
falando mais que a matraca da quarta-feira-de-cinzas.
Deixou-me escapar
- sem nenhum estereótipo -
que fora Um sem-lugar, Um sem-grana,
Um sem-paciência, Um sem-medo
e Um sem-espelho
- principalmente -
só para não constatar a desgraça das semelhanças.

Diverti-me muito com Deus,
- em poucos segundos -
até sentir-me, confesso, necessitado,
tornar-me Dele analista, vigia e confessor.

Nos breves poucos segundos,
- talvez os últimos -
saímos para falar a última bobagem dita entre goles de chope;
até que um amigo
- um daqueles preocupadíssimos com meu surto -
com a língua tropeçando no excesso de álcool e na falta dos óculos,
leu duas laudas e meia de páginas
provocando cochilos aos que não Nos viam;
enquanto Dele me despedia ao som de um blues-azul,
em noite de puro jazz.

Agora, menos cansado,
só, então, um pouco mais eterno,
descobri porquê Deus pressionou
minhas pálpebras:
Ele tentou fechá-las, sem querer.

Fonte:
Goulart Gomes (organ.). Antologia do Pórtico.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Cláudio de Cápua

O dia oito de março marca a data do nascimento de Cláudio de Cápua, que é natural de São Paulo, e que em 1960 mudou-se para Araraquara, tendo mais tarde ingressado na Escola Superior de Agrimensura. Paralelamente aos estudos, Cláudio começou a colaborar no jornal semanário “A Cidade” onde respondia pela edição da “Coluna do Estudante”. A partir deste momento, Cláudio não parou mais de escrever. Escrever tornou-se a forma de comunicação marcante em sua existência. Foi escrevendo que Cláudio de Cápua passou a escrever em jornais paulistanos como a antiga “A Gazeta”, “Diário da Noite”, “A Tribuna Italiana”, “Diário Popular”; colaborou também na revista “Destaque”, de Santos, além de outras assim como ainda em cerca de 30 jornais de bairro, do interior de São Paulo e até de outros estados.

Em sua volta a São Paulo, Cláudio de Cápua teve de abandonar em definitivo os estudos de Agrimensura, uma vez que não existia este curso em nível superior na Capital. Foi nesta época que começou a conviver com poetas como Guilherme de Almeida, Paulo Bomfim, Judas Isgorogota. Bernardo Pedroso, Orlando Brito, Oswaldo de Barros, Antônio Lafayette, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Laurindo de Brito, Ibrahim Nobre, só para mencionar os mais conhecidos. Para aperfeiçoar sua vocação natural e satisfazer seu desejo de ampliar os conhecimentos e adquirir um maior lastro profissional, Cláudio ingressou num curso de jornalismo. A partir daí, o jornalismo constituiu-se a base de todas as variadas atividades nas quais Cláudio de Cápua se envolveu e nas quais deixou sempre a marca de sua integridade e força de trabalho. Ainda no jornalismo, tornou-se professor de jornalismo eletrônico, na Universidade Mackenzie, na década de 80.

Cláudio de Cápua fez ainda algumas incursões pelas artes dramáticas, tendo participado como ator no filme “A Marcha” baseado no romance de Afonso Schmidt. Na televisão, foi ator coadjuvante na telenovela “Hospital” da extinta TV Tupi, isso em 1971, e na TV record trabalhou como assistente de produção de externas na telenovela “O Leopardo”.

Cláudio de Cápua atuou sempre de forma marcante na vida literária paulista, tendo participado ativamente de diversas eleições da União Brasileira de Escritores. Nesta entidade deixou marcas de sua defesa intransigente dos direitos do escritor, e tem lutado pela divulgação de suas obras e do pensamento do escritor paulista. Nenhum movimento sugnificativo que tivesse por objetivo a valorização e a divulgação dos escritores e suas obras deixou de contar com o apoio e iniciativa decisiva de Cláudio de Cápua. Da mesma forma teve ainda atuação destacada junto ao Sindicato dos Escritores do Estado De São Paulo e Centro de estudos Euclides da Cunha de São Paulo.

Como escritor, Cláudio de Cápua publicou livros que não foram brindados com edições fantásticas, mas que foram procurados avidamente pelos conhecedores das obras de qualidade, esgotando rapidamente suas edições. Estão nessa categoria, a começar por 1980, a biografia do escritor e político Plínio Salgado, livro que alcançou 4 edições e vendeu 11 mil exemplares mantendo-se durante 9 semanas entre os livros mais vendidos. (…) Em 1981, Cláudio de Cápua lançou o livro “Meu Caderno de Trovas”, editado por Mestre das Artes; anos depois publicou em co-autoria com sua esposa, Carolina Ramos, o livro “Paulo Setúbal – Uma Vida – Uma Obra”, que teve sua primeira edição esgotada em apenas 90 dias. Entre os projetos de Cláudio de Cápua está a publicação de um ensaio sobre a revolução de 1924, obra que demandou muita pesquisa e anos de trabalho.

Nas palavras de Carolina Ramos, “Ninguém passa pela Trova saindo impune. Rendido aos seus encantos, sempre deixa com ela um pedaço do coração, quando não o coração inteiro. No passado, grandes poetas como Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Bilac, Colombina e outros, passaram por ela, ainda que de raspão. Naquele tempo, a Trova não tinha a força nem o prestígio que hoje tem. Mas, convém lembrar que o santista Ribeiro Couto conquistou Prêmio Internacional com o livro “Jeux de l’apprenti animalier”, com suas fábulas consideradas superiores às de La Fontaine pela concisão com que eram apresentadas, ou seja, sob o formato de Trovas.”

Cláudio de Cápua não seria uma exceção.

Biógrafo, prosador e poeta, esbarrou na Trova e deixou-se cativar por ela. Em 1969, foi um dos fundadores da “União Brasileira de Trovadores”, Seção de São Paulo e, desde 1980, faz parte do quadro associativo da Seção de Santos.

Embora concorrente bissexto, Cláudio de Cápua conquistou vários prêmios em Concursos de Trovas realizados em território nacional.

Seu trabalho em prol da Trova, sincero e despretensioso, merece o respeito daqueles que cultuam o gênero e fazem do Movimento Trovadoresco Nacional, uma das mais ativas e populares facções da literatura do nosso país.”

Fontes:
Trechos extraídos do Discurso de Saudação de Henrique Novak em recepção a Cláudio de Cápua. 31 de outubro de 1998 . Disponível em http://www.de-capua.com/biografia.html
Excerto da Introdução por Carolina Ramos ao livro “Canto que eu Canto”, de Cápua.

Nilton Manoel (São Paulo é Esperança Todos os Dias)

450 ANOS DE SÃO PAULO
-
O sonho da vida está na vida do sonho.
(Nilton Manoel, em Grilos na ponta do lápis)

Estação da Luz (SP)
1
No meu antigo toca discos,
ouço com muita atenção,
lindas canções de outrora:
- “São Paulo  Quatrocentão”,
da “Rapaziada do  Brás”…
O “Trem das Onze me traz”,
saudade e muita emoção.
2
O trem pelos velhos trilhos,
a história do povo escreve!
e a cidade em seu cenário
sempre arrojada se atreve
a plantar modernidade;
sofra a gente com a saudade,
o progresso não é breve.
3
São Paulo, não perde tempo,
inova, protege, acolhe,
quer sua gente contente
não há garoa que molhe,
o entusiasmo dessa sina;
quem vence sua rotina
dá vida aos sonhos que escolhe.
4
O povo quer movimento,
quer cenário, quer ação,
quer futuro e conforto
pela glória da nação…
Todo mundo quer ter paz,
como é bom sonhar no Brás,
há poesia nesse chão!
5
Sou paulista do interior
e passo a vida na estrada,
quem gosta de movimento
quer vida facilitada:
- ao modernismo dou fé,
por todo lado dá pé,
se a cidade é bem cuidada…
6
Quando estou na capital
tenho eficiente o transporte;
seguro, rápido, alegre,
em toda estação o bom porte
que, nem posso imaginar
sem metrô pra trabalhar…
Ser pontual é ser forte!
7
A inspiração não me falta
e até me lembro que, a gente,
há trinta e cinco anos tem,
esse serviço excelente
que movimenta a cidade
e dá ao povo a vontade,
de viver mais… felizmente!
8
São estações variadas
espalhadas pela cidade,
elevados, com plataformas
e na sua versatilidade,
põe no cenário, poesia,
integra-se com a ferrovia,
caminho de prosperidade.
9
Entre fixas e rolantes,
gente que faz movimento
no ganha pão habitual…
paro, olho e  meu pensamento
cola imagens que, resumo
para as falas de consumo…
Reportagens do momento!
10
Quem tem vida solidária
dá valor à cortesia:
por favor… muito obrigado…
dá licença… que poesia,
nas convenções sociais;
todos nós somos serviçais,
pelo pão de cada dia.
11
Jânio Quadros fez história
melhorou a imagem do Brás.
com novas edificações
e o povo cheio de paz,
se orgulha a todo o instante,
por ser sempre o Bandeirante,
de eras que não voltam mais…
12
Nossa vida que é cíclica,
deve a Anchieta, o jesuíta,
que nem sabia, Senhor!
a vida rica e catita
que sua instalação
da história da fundação,
seria plena e bonita.
13
Na sequência do transporte
o tempo não segue à toa
e o cenário num instante
de São Paulo da garoa
vai e volta com o metrô
rápido como um alô
de celular… Coisa boa!
14
Na integração, a saudade
que traz Maria Fumaça
é recompensa gostosa
é vida cheia de graça
é tempo cheio de glória
é povo que faz a história
nas estações em que passa.
15
Sertanejo, deslumbrado,
da capital do Interior,
Paro e olho como poeta
e fotografo com amor,
a cidade velha e a nova…
Faço haicai, cordel e trova,
São Paulo em tudo tem cor.
16
Fora e dentro da paisagem
do metrô, pelas estações,
a moda que inventa moda
tem espaço de emoções,
nos projetos culturais,
além de artes visuais
concertos e belas canções
17
Viajando, cheio de sonhos,
o usuário com vigor,
faz a vida mais contente,
tem no metrô, o esplendor,
do minuto brasileiro.
Sabe que tempo é dinheiro
e dinheiro é vida e valor.
18
Nestes bons trinta e cinco anos
dos quais dez Companhia
de Trens Metropolitanos.
São Paulo que é poesia.
tem seus pontos cardeais
movimentos cordiais,
na vida do dia a dia…
19
Entre túneis e superfícies.
neste cenário bacana,
paz pelas quatro estações
com as vitrines de Ikebana…
Esculturas e poesia…
O jornal de todo o dia…
É obra que de Deus emana.
20
Nesse progresso incomum
de terra quatrocentona
dos cafezais à indústria
ao comércio em maratona
o povo que se desdobra…
O imigrante tudo cobra
da cidade que emociona.
21
Cenário amigo é o Metrô!
solidário,  nada esconde…
Relembre através da história
a vida dura do bonde,
no meu relógio de ponto…
Todo mês quanto desconto!
A rapidez corresponde.
22
“São Paulo dos meus amores”
treze listras das bandeiras
progressista a todo o instante
de vida gentil de ordeira
cidade que se desdobra,
urbanidade que sobra
pela pátria brasileira.
23
Nesta vida, coisa boa,
meu trem das onze, é fulgor,
corre até a meia-noite;
é transporte de valor
é segurança de fé
é sorriso que dá pé
é verso de cantador…
24
Vai-e-volta, gente bonita,
da pátria do bom cidadão
em sua faina diária,
carteira assinada ou não
que, São Paulo que é formiga
também é cigarra e abriga
a saga da Educação.
25
Neste  mundo transversal
temas escolares tantos,
em seu cenário tem vida…
Num programa, com encantos
comunitários, o fascínio,
dá a todos tirocínio
da grandeza em todos cantos.
26
No “Ação Escolar” projeta
a influência, positiva,
do metrô pela cidade…
Movimento que motiva,
no urbanismo, novos lares,
é nos bancos escolares,
consagra-se em voz ativa.
27
Os conceitos cidadãos
são plenos em toda parte
faz da cultura de então
dar vivas a vida com arte
que o visual é fartura
que encanta, fascina e apura,
É saber que se reparte…
28
Como patrimônio público
paisagístico e de transporte
Metrô é riqueza da história,
trouxe à vida a melhor porte,
é tudo que o povo queria…
Foguete de todo o dia
do meu trabalho, o suporte.
29
São Paulo é renovação,
canteiro da arquitetura,
pátria de nossos estados
onde se sonha fartura…
Ambição a luz do dia
de noite sonho e poesia…
Vive-se bem… A vida é dura!
30
Por todas as linhas que passo,
por todos sonhos que planto
a trabalho ou a passeio
O metrô tem seu encanto
viajo em paz, sossegado,
feliz e cheio de agrado
e meus limites suplanto.
31
Recordo dos velhos tempos
do transporte e nossa história…
Museu Gaetano Ferolla
têm muito da trajetória…
O bondinho da novela
se à saudade dá trela?
Metrô é conforto e glória!
32
Salve os metroviários. Viva!
gente amiga e de paz!
quem trabalha por São Paulo,
é ordeiro em tudo que faz.
Viva minha gente de fé,
em Sampa tudo da pé!…
Viva o Metrô!  Viva o Brás!
-
Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 6 – 28 de novembro de 1886.

“Tu és Cólera, e sobre esta
Doença amiga edifico
A minha igreja, e uma sesta
Perpétua, em ficando rico”.

Assim me dizia o Bento
Da Silva Luz, boticário,
Inventor de um cozimento,
Inócuo e pecuniário.

E, vendo que eu o escutara,
Cheio de alegria e riso,
Como alguém que se prepara
A ter igual paraíso,

Quis saber qual fosse a causa
Daquela expressão ridente;
Eu, depois de certa pausa,
Disse-lhe naturalmente:

— “Quando cogito em que a peste
Pode entrar por nossa casa,
Cuido no favor celeste
Que trará pendente na asa.

Deu ela entre alienados
De Buenos-Aires, matando
Metade dos atacados,
E nova gente atacando.

Cada telegrama conta
Dois, três, cinco, oito, dez loucos,
Que ficam de mala pronta
E vão deixando isto aos poucos.

Não tarda que o derradeiro
Hóspede saia do asilo
E fique o edifício inteiro
Despovoado e tranqüilo.

E calcule agora a soma
De palácios encantados,
Feitos de nácar e goma,
Telhados e destelhados;

Calcule os pássaros feios
De asas longas, longas pernas,
Que enchem por todos os meios
As frias noites eternas;

Calcule as meias idéias
Feitas de meias lembranças,
E a meia luz das candeias,
E a meia flor de esperanças;

E as gargalhadas sem boca,
Ouvidas perpetuamente,
Ora claras, ora roucas,
E as conversações sem gente.

Farrapos de consciência,
Cozidos pelo delírio,
E uma enorme concorrência
De patuscada e martírio;

Calcule agora essa vida
De doidos enclausurados,
De repente interrompida,
E os corpos amortalhados.

Nem sempre a peste é moléstia,
Sacramentos e ataúde;
Aos doidos vale uma réstia
De inesperada saúde.

Por isso é que, quando penso
Naquele monstro terrível,
Acho um beneficio imenso,
Que o torna bom e aprazível.

E digo: Oh! abençoado
Destino que tal prescreve!
Que haja ao pé do alienado
A epidemia que o leve!”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Barros Pinho (Mundica, Mulata do Cais)

Depois de mim corre um rio. Já ouvi falar nele. Chico do Gonçalo pôs os pés nessa aguazona da cor de barro vermelho. Dona Dolores vem lá dessas bandas, no cheiro da irmã casada com seu Zuza do Flor do Tempo. É visita de fins d'água. O povo da cidade às vezes se lembra dos viventes aqui do mato. A tudo ela inspeciona com o olho do ausente. O cercado, sabe Deus, como anda em pé. O engenho renova o ofício de muitos janeiros, soltando gemidos da moenda de madeira. O boi sabonete, impassível, de canga no pescoço. Na casa grande a menina cheirando a moça, de flor no cabelo, carrega no ventre o cio da terra viçosa. Dona Dolores chega a observar uma beleza de aurora nos olhinhos da cabocla, ligeiros como relâmpagos, a apanhar no canto a cabaça pra labuta da fonte.

Mundica, do Flor do Tempo, se não era esse o nome de batismo, foi apelido que lhe deram depois dos nove meses e três dias do encontro da negra Nazaré com o Polinário no baixão de dentro. O mundo da moleca nova era uma roleta. Ora circunscrito à história de sua origem, relembrada pela malícia ferina dos cambiteiros, ora, nos adjutórios domésticos, à dona Dica esposa do seu Zuza, bom de moagem e de gatilho na espera.

O rio era a obstinação da mulata. A esteira d'água do conversar fanhoso do Chico do Gonçalo não lhe saia do coco, desde o domingo da desbulha. Até dormindo, a voz lhe estava presente, como a descaroçar um sonho. O mercado da cidade, uma coisa de encher a vista. Uns homens de paletó com uns enlinhados no pescoço, donde vinha uma zoada com a história do pavão misterioso e o namoro de Toinho com Mariquinha.

Naquela manhã – o sol todo de fora.

Já de noite, na beira do rio, depois da rampa, estava o gaiola com farol na popa alumiando a força do motor. E o paredão chamado cais, com tanta mulher assim, entre nua e vestida que a gente do engenho, com esse vício de fêmea, até se espanta.

Dona Dolores se abanca e dá de espiar nos passos da Mundica, olhando fundo as intenções que formigam no juízo da donzela. É obsessão de bonina – o rio com seus mistérios e a cidade com seus segredos. Por cima da ribanceira de sonhar, os modos de dona Dolores, mulher de capital, metida num vestido de seda e brincos penduro-cai, pulseiras de miçanga, uma senhora de boas medidas. Até lembra a cigana dos tempos das vacas gordas, que passara pelo engenho com um brilho de sol das manhãs abertas. Não mais vivia a preta Nazaré, que, se viva fosse, talvez afastasse esse rio grandão, do Chico das ventas, da filha que tanto leite lhe mamara.

Na casa do sem-jeito tudo foi arranjado. Dona Dolores conseguiu a permissão da irmã exigente e intransigente com a virgindade da mulata. Grelo esperando prenda de casamento: véu e grinalda de flor de laranjeira, com homem dotado, de agrado de família.

O Dico da Tiquara, que, entre uma lua e um sol, deu de aparecer no Flor do Tempo descobrindo festa nos dentes de Mundica, fora esquecido. Antes, tinha sofrido do mal do desamparo o João, baralho da desobriga do Padre Delfino. O Olho d'água do tempo das eleições e dos festejos na cape-la de São Jorge, aquela que tem um espigado galo de barro na torre, sempre em posição de cantador continuo das madrugadas. Os banhos da vertente nuinha como a lua com essa cara de verão. A chapada do pequi. A matinha das guabirabas. A moagem e o atrevimento respeitoso dos cambiteiros. Tudo era carta que sobrava no baralho da Mundica, cheiinho na tampa de valete e de viagem pra Teresina.

A Josefa, com olho de ciência, a mexer nos bilros, no orgulho de dispensar o uso do pince-nez , cochichava: – esta bichinha só tando com o diabo nos couros. Formiga quando quer se perder cria asas.

Da parte dos cambiteiros, seu Zuza quase recebeu carta de muita respeitação pra esfriar o fogo da cabrocha. A viagem espalhou tristeza no verde das canas. Quem botaria pau doce do palheiro pra boca do engenho, sem maus pensamentos? As cheias ancas da Mundica eram uma ilusão de boa safra. Os mamões verdes da Maria Paula bem que ajudavam a remoer o cansaço do trabalho. Refrigério dos mais necessitados, na palma da mão sacrificando a espécie.

Numa madrugada rasa, o sol quase de fora pelas encostas, o carro-de-boi toma o caminho de Parnarama. Quando por lá chegaram, na hora em que o feijão é mais gostoso – dona Dolores e Mundica vão direitinho à balsa que as espera para o destino. Léguas d'água nos olhos da mulata, buscando beleza e saudade nas palmeiras de babaçu que ficam para trás. Viagem mansa como o passo do boi sabonete, parceiro de canga do boi mimoso.

Fez-se a última volta do rio pra alcançar Teresina. Todos apontaram a capital. Os mais curiosos distinguiram a torre da igreja de Nossa Senhora do Amparo. A mulata espichou o corpo como se acordasse dum sonho de encantamento. Passa em revista a paisagem. Não usa o indicador. Seu olhar demora espreguiçando-se na torre da igreja e não enxerga o galo da capelinha de São Jorge, que se habituara a ver. Espanta-se. Sente um mundão a engolir-lhe os pés.

Num fechar de olho, entra na cidade com o pé esquerdo. Vive na proteção de dona Dolores numa venda de secos e molhados. Faz vida de mulher adulta. Dispõe das noites nos bares como cheiro de creolina. Entra em muitos carnavais. À sombra de uma quarta-feira de cinzas, volta ao cais. O céu era grave. Nenhuma estrela de quebra. No outro dia, as manchetes dos jornais receberam a sorte da mulata.

Fonte:
José Maria de Barros Pinho.
A Viúva do Vestido Encarnado.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Anos 1970/1980 – Barros Pinho

Seguindo informações de alguns historiadores ou cronistas da Literatura Brasileira, 1975 é o marco de uma nova era. No Ceará, entretanto, e em outros Estados talvez, esse marco não é bem nítido, eis que bem antes daquele ano se publicaram importantes livros de contos de escritores cearenses.

A revista O Saco começou a nascer em 1975 e foi em volta dela que, no Ceará, os novos contistas se tornaram mais ou menos conhecidos no resto do Brasil, iniciando-se um período de edição de seus livros no Rio de Janeiro e em São Paulo e de contos esparsos em jornais e revistas de todo o país. O nº 1 saiu em abril de 1976 e o sétimo em fevereiro do ano seguinte.

O Saco se constituía de quatro cadernos: “Prosa” (leia-se conto), “Verso”, “Imagem” e “Anexo” (artigos, ensaios, entrevistas, etc). Publicaram contos nos sete números os cearenses Airton Monte, Antonio Girão Barroso, Antonio Papi Júnior (ou Papi Júnior, nascido no Rio de Janeiro, em 1854, escreveu toda a sua obra no Ceará, onde faleceu em 1934), Araripe Júnior, Barros Pinho, Carlos Emílio Barreto Corrêa Lima, Fernanda Gurgel do Amaral, Fran Martins, Francisco Sobreira (assinado como Sobreira Bezerra), Gilmar de Carvalho, Heloneida Studart, Hugo Barros, João Teixeira, José Alcides Pinto, José Jackson Coelho Sampaio, José Domingos Alcântara, José Hélder de Souza, Joyce Cavalcante, Manuel de Oliveira Paiva, Marcondes Rosa, Moreira Campos, Nilto Maciel, Paulo Veras, Renato Saldanha, Roberto Aurélio e Yehudi Bezerra. Ou seja, gente do passado e do presente. Destes, poucos tinham livro editado.

Em 1976 Glauco Mattoso e Nilto Maciel organizaram uma antologia de contos dos novos escritores brasileiros, intitulada Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal, publicada no ano seguinte.

A seguir viria o Grupo Siriará de Literatura, que continuaria, de certa forma, o trabalho desenvolvido pelo pessoal de O Saco, aglutinando os escritores cearenses em torno de um programa e de uma revista.

Surgiram diversos grupos, com jornais e revistas, como é o caso de Seara – Revista de Literatura, criada em 1986, como órgão do Grupo Seara. Porém, nem todos os contistas desse período estiveram filiados a grupos. Alguns já tiveram livros publicados, quer no gênero conto, quer em outros. A maioria, no entanto, tem editadas peças de ficção apenas em coletâneas e revistas, sobretudo em Seara e Espiral. O mais veterano deles foi Alberto Santiago Galeno, nascido em 1917.

Alguns desses contistas só viriam a publicar livro de contos muito depois. Outros desapareceram do cenário das letras impressas.

Os escritores que se dedicaram ao conto nesse período, alguns com livros publicados, foram Audifax Rios, Cláudio Aguiar, Eugênio Leandro, Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral, Fernando Câncio de Araújo, Gerardo Cristiano de Sousa, Glória Martins, Holdemar Menezes (que se radicou no Paraná), Hugo Barros da Costa, João Bosco Sobreira Bezerra, João Teixeira, Joaquim José da Silva Neto, José Jackson Coelho Sampaio, José Mapurunga, Joyce Cavalcante, Marcondes Rosa, Marly Vasconcelos, Mino (Hermínio Macedo Castelo Branco), Nilze Costa e Silva (nascida em Natal, RN), Nirton Venâncio, Nonato Lima, Renato Saldanha, Roberto Aurélio Lustosa da Costa, Rosemberg Cariry e Victor Cintra.               

Àquele grupo de contistas surgidos ao redor da revista O Saco e do Grupo Siriará vieram se unir Aíla Sampaio, Ângela Barros Leal, Antonio Mourão Cavalcante, Antônio Weimar, Beth Moreira Lima, Christina Cabral, Durval Aires Filho, Erika Ommundsen-Pessoa, Eurico Bivar, Fernanda Luz Benevides, Fernanda Quinderé, Francisco Carlos Bezerra e Silva, Francisco Nóbrega Teixeira, Francisco Paceli Vasconcelos, Francisco Roberto Bezerra Leite, Furtado Neto, Glícia Rodrigues, Heloísa Barros Leal, Inez Figueredo, Isa Magalhães (Leonisa Maria Magalhães), José de Anchieta França Mendes, José Leite de Oliveira Júnior, José Maria Leitão (pouco conhecido no Ceará, por ter se radicado em Brasília desde cedo), José Ribamar Leite Miranda, Lena Ommundsen, Luiz Gonzaga de Medeiros Nóbrega, Lydia Maria Brito Teles (nascida no Rio de Janeiro), Manoel César, Maria Cristina de Castro Martins, Maria Elizabeth de Oliveira, Maria Ilma de Lira, Maria Tereza Barros, Marisa Biasoli, Mary Ann Leitão Karan, Nathanael da Silveira Britto Neto, Ocilma Ribeiro Lima, Odélio Alves Lima, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Paurilo Barroso Júnior, Pedro Wilson Rocha, Pery Augusto Bezerra, Raimundo Batista Aragão, Raimundo Nonato de Lima, Reginaldo Dutra, Regine Limaverde, Ribamar Lopes (ou José de Ribamar Lopes), Rosa Maria Matos Nogueira, Rosa Virgínia Carneiro de Oliveira, Simone Gadelha, Teoberto Landim, Valdemir de Castro Pacheco e Waldy Sombra.

Alguns escritores deste período são nascidos cerca de dez anos antes da maioria, o que cronologicamente os juntaria aos do capítulo anterior, como é o caso de José Costa Matos (1927), Geraldo Markan (1929), José Hélder de Souza (1931), Mario Pontes (1932), Natércia Campos (1938), Barros Pinho (1939), poeta com livro editado desde 1969 e que somente em 2002 apresentou um conjunto de histórias curtas, A Viúva do Vestido Encarnado. entretanto, já em 1971 seu nome aparecia na Antologia de Contistas Novos, organizada por Moacir C. Lopes.

Entretanto, editaram seus primeiros livros, participaram de antologias ou publicaram em jornais e revistas somente depois de 1970. Outros, porém, não poderiam estar aqui estudados por este mesmo motivo, como é o caso de Gerardo Mello Mourão, José Alcides Pinto e Moacir C. Lopes, porque, embora tenham estreado com livro de contos depois de 1970 (ou mesmo no século XXI), publicaram livros antes dessa data. Seria uma mistura inaceitável para o leitor e o pesquisador.  Ora, escritores nascidos nos anos 1920/30 e que escrevem e publicam desde os anos 1960 não podem ser considerados novos, embora tenham editado livros de contos depois de 1990. Assim, como pôr lado a lado, neste livro, Gerardo Melo Mourão (nascido em 1917, tendo publicado o primeiro livro em 1938) e Carlos Emílio Corrêa Lima (nascido em 1955), somente pelo fato de ambos terem editado coleções de contos depois de 1970?            

Tudo isso, porém, não tem muita importância, a não ser para tornar este livro mais didático.

Entretanto, a apresentação desses contistas não obedecerá a ordem cronológica de nascimento, mas a de publicação em antologias, revistas, livros, etc.
=====================

Barros Pinho

José Maria Barros Pinho (Teresina, Piauí, 1939) poderia ser incluído no período iniciado nos anos 1970. Mas antes disso já participava de movimentos literários e publicava livros. Poderia também ser arrolado entre os novos, eis que seu primeiro livro de contos é de 2002. Mas muitos outros nascidos nos anos 1920 e 1930 também publicaram livro de contos nos anos 1990.

Cedo se mudou para Fortaleza, onde se formou, foi vereador, deputado estadual (três legislaturas) e prefeito de capital (1985); também exerceu a presidência do Instituto de Previdência do Município e da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo desta mesma cidade. Professor, poeta e contista. Participou da Antologia de contistas novos (1971), organizada por Moacir C. Lopes. Membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Cearense de Retórica e da Academia Fortalezense de Letras. Publicou os livros de poesia Planisfério (1ª. Edição, Fortaleza: Imprensa Universitária, 1969. 2ª. edição, Teresina: Corisco Editora, 2001); Natal de Barro Lunar e Quatro Figuras no Céu (Fortaleza: Edições Projeto, 1970); Circo encantado (Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense, 1980); Natal do castelo azul, 1986; e Pedras do arco-íris ou a invenção do azul no edital do Rio (Fortaleza: Programa Editorial Casa de José de Alencar/UFC, 1998); além do livro de contos A Viúva do Vestido Encarnado (Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002).

O título é muito sugestivo. Encarnado é o mesmo que vermelho, vermelho da cor da carne. Seguindo a tradição da literatura brasileira, Barros deveria ter escrito “vestido vermelho” e não “vestido encarnado”. No entanto, ele faz questão de se apresentar como representante de um neo-regionalismo, de resgate do linguajar nordestino, dos costumes e das tradições. A par disso, as viúvas vestem vestidos pretos, sobretudo nos primeiros tempos de luto. Ao usar um vestido encarnado, a viúva do conto que dá título ao livro cumpriu a promessa feita ao marido, manchando de vermelho o negro do luto.

                Os dramas vividos pelos personagens de A Viúva do Vestido Encarnado são dramas universais, embora localizados no sertão do Nordeste brasileiro ou, mais precisamente, às margens do rio Parnaíba, no Piauí. O tempo histórico desses dramas poderia ser o do início da segunda metade do século XX, quando da substituição das moendas de madeira pelos engenhos de ferro, na fabricação de rapadura e outros produtos derivados da cana de açúcar. Tempo dos alambiques, dos coronéis donos de tudo, dos cambiteiros, dos vaqueiros, dos currais. No entanto, como está no conto da viúva, “O tempo, como lagarta, vai comendo o destino das pessoas”.

“Araçás do Mestre Rosa” é um drama de amor e morte, como tantos e tantos outros da literatura. O triângulo amoroso é formado por Eugênio, mestre Rosa e Amália. O primeiro vive a viajar, “a trato de negócio de arroz e babaçu”. E aí está dado sinal para o início do conflito: o dono da casa vive viajando, enquanto sua mulher observa outro homem, dentro de casa “na caiação da casa e no preparo da capela branca-azul ao lado”. Em a “Faceirice da Burra Sabiá nos Alegres do Zeca do Bonário” a desilusão amorosa do homem se dá logo nos primeiros dias do casamento. E aí se inicia o conflito. Conviver ou não conviver com a mulher desvirginada por outro?

Os contos de Barros Pinho têm uma estrutura definida: primeiro ele pinta o espaço em que se desenrolará o drama, em seguida desenha o protagonista e logo o leitor se percebe no meio do redemoinho do conflito. Como bem vislumbrou José Alcides Pinto, em “Barros Pinho: as teias da escritura” (Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 27/10/2002), “A paisagem geográfica vai se delineando como na montagem de um filme” (...).

Em “Araçás do Mestre Rosa” a ação se dá num sítio localizado na ribanceira do Parnaíba. Como em muitos outros contos do livro, Barros Pinho localiza suas histórias às margens do grande rio do Piauí. No entanto, no conto de Zeca do Bonário o espaço, ou a geografia, cede lugar aos personagens, à história propriamente dita. Em “Mundica, Mulata do Cais” é mais acentuada a presença do rio Parnaíba na prosa de ficção de Barros Pinho: “o paredão chamado cais”, as balsas, as águas. Mas há também o sertão com suas palmeiras de babaçu, seus brejos.

No conto dos araçás apenas três personagens participam diretamente do conflito, o que é óbvio, por se tratar de um triângulo amoroso. Amália, a filha do coronel Gaspar, “espiadeira dos viajantes das lanchas que subiam as águas do rio”, seu marido Eugênio e o mestre Rosa, que tenta fugir da tentação de trair o amigo.

Na história de Zeca do Bonário são também apenas três os personagens principais: Maria, no dia do casamento, se apresenta triste, acabrunhada, porque já não seria virgem. Leia-se esta frase: “Ela vem com o olhar fixo na perna da mesa”. E esta: (...) “Maria esconde afogado de tristeza no canto dos olhos” (...) Zeca é o marido “traído” antes do tempo: “Se bem contado, quase um ano e um dia esperando sangue de virgem pra molhar minha macheza de homem”. Até decidir levar a esposa de volta à casa dos pais: “Aqui tá Maria, do jeitinho que me entregaram”. O pai, Vicente, “Apanhou o mal dos tristes”.

No entanto, nem só de homens enganados são construídas as histórias de Barros Pinho. Há também os heróis, os valentes, como Zeca Gois, com suas constantes aventuras. “O Zeca, se rezava, rezava com o punhal na mão”. Ou como Bené Gavião (“Os 10 Limites de Bené Gavião”), virado herói depois de levar nove surras. Ao receber umas relhadas do soldado Beradão, aplica-lhe algumas facadas, matando-o. “Sou mais do que homem, sou gavião que não tem medo de voar”. Outros, como Abdon (“Josefa da Neblina na Roça de Abdon”), viviam em razão das mulheres: “Quem tiver mulher esconda dele”.

Quando quer fazer galhofa, o contista utiliza a caricatura, a lembrar Rabelais. Aliás, há também muito de Molière e Cervantes nas “novelas” de Barros Pinho. Sim, porque os contos de A Viúva do Vestido Encarnado têm muito das novelas daqueles gênios, pelo pitoresco, pelo fescenino, pelo humour, pelo caricaturesco. Veja-se o retrato da senhora Tranquilina Pereira, cujo corpo “parecia um saco cheio de carnaúba; o rosto com as pontas dos ossos salientes; os olhos trocados num caraolho esquisito; a boca agamelada com uma dentadura a se mexer e a estalar, ver guaxinim chupando cana; os peitos tais jenipapos maduros à procura dos joelhos; as pernas, cambitos secos, carga de bagaço; as orelhas, cego passava chuva embaixo delas esperando o sol; os cabelos duros como de porco-espinho; e os braços compridos lembrando vereda de peba; e as mãos grandes como o abano do diabo chegando no inferno. (...) Não era gente, era bicho com parecença de mulher”.

Em todo o livro observa-se o emprego de frases curtas e enxutas, inclusive com a supressão de artigos e verbos. A par disso, a linguagem poética é uma constante. Metáforas e mais metáforas são encontradas no decorrer das narrações e nas falas dos personagens, tal como em José de Alencar. “Espanto de Zeferino no Dilúvio de Santa Bárbara” tem por desfecho este belo verso: “A Terra é uma asa de anum escuro voando pro céu!” Em “O Zeca do Tiro no Bode da Nazária” encontra-se esta outra preciosidade: “Viver pelo absurdo no buraco dos abismos até alcançar as linhas da aurora”. Às vezes, as frases são construídas com a mesma poesia do sertanejo: “Homem e mulher foram feitos para o mesmo caçuá da vida”. Dimas Macedo, no artigo “Recriação da linguagem” (Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 27/10/2002), já se referia a este aspecto na obra de Barros Pinho: “Mas poesia, na sua ficção, como no poema, se infiltra, às vezes, quase absoluta, e reina, absoluta, de maneira quase provocante, desafiando jargões, anunciando formas, propondo universos linguísticos, restabelecendo vernizes populares e códigos de unidade semântica”.

Barros Pinho não se vale das técnicas tradicionais, em especial no caso do foco narrativo. Em “Araçás do Mestre Rosa” faz uso frequente do monólogo interior e do diálogo interno. O narrador, no caso em foco, não pode ser confundido com o escritor nem com o clássico narrador onisciente. Veja-se este trecho: “Seu Eugênio da Varginha era conhecido como folha de pau-das-extremas, homem de comércio sem fazer mistério. No vai-vém da troca, nada escapava que não fosse objeto de mimo e mulher, semente da família. Opa, seu Eugênio, não segure em rabo de cotia. Era a vez do Tonho do Sérgio, juiz de paz dos araçás: meça as palavras debaixo do céu”.

Com A Viúva do Vestido Encarnado Barros Pinho se afirma como uma das revelações da ficção curta não somente no Ceará, mas no Nordeste brasileiro, empunhando a bandeira de um novo regionalismo – poético nas frases e nas falas dos personagens, de elaborada feitura e sem os cacoetes do velho regionalismo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) IV

O PEREGRINO VI

Deixe-me colher um sorriso
No Teu rosto cheio de dor
Preciso meu Senhor preciso
Dessa delicada flor

Nascida entre as puras lágrimas do Teu olhar
Que resplandecentemente belo
Resume todo o segredo
No perdão e no doar.

LUNAR

Sentado
Na fria escuridão
Deste miserável pedaço de pedra
Contemplo à minha frente
Esse paraíso
Resplandecentemente
Azul
E penso:
Como somos tolos, meu Deus!
Não percebemos o privilégio,
A felicidade e o verdadeiro milagre
Que é viver nesse maravilhoso
Oásis suspenso
Em teu bonito deserto e
Infinito universo.

CONSELHO VINICIANO

Ao escrever, seja leve, não vago.
Íntimo, não intimista;
Seja claro e preciso, nunca pessimista.
Tenha uma linguagem positiva,
Concreta e abreviada.
Dispense os adornos inúteis.
Fique discretamente por trás daquilo que escreve,
Sem medo ou angústia
Mas com a íntima certeza de estar fazendo
O melhor para fortalecer e iluminar
Os espíritos mais humildes
De nossa frágil sociedade.

PEQUENA GAIVOTA

Você
É um pássaro
Ainda pequeno e desajeitado.
Mas nenhum pássaro voa sem deixar o ninho, se atirar no abismo.
Tente o vôo! Se cair levante-se e tente novamente! Nunca despreze
A técnica! Nunca despreze quem pode ajudá-lo a voar mais alto! Nunca se despreze!
Voe livre ainda que sozinho e não se preocupe com opiniões pejorativas e
Invejosas de pássaros alquebrados pelo peso da desesperança
E do medo. Voe o mais alto que puder para alcançar
Seus objetivos. Só assim você poderá ser
Mais confiante, mais amigo,
Mais humano,
Vitorioso.
Ser
V
O
C
Ê
.

USURA

Todo governo
Vive às dispensas do povo
Mas nenhum sobrevive
Taxando-o de burro.

ANTÍTESE

Prefiro
Uma mentira que me faça rir
A uma mão cheia
De verdades lacrimejantes.

INVERNO
Vago ruas solitárias
De frio névoa garoa
Vago só mente à toa
Nesse dia que esqueceu
Do sol do céu das pessoas
E numa persistência tola
Tentou teimou amanheceu.

LIBERDADE CATIVA

Voei alto nas asas da imaginação
Procurando pela liberdade
A passos lentos me alcançou a solidão
Jogando-me nos braços da saudade.

MEU JEITO

Ando não corro
Não paro jamais
Por vezes passos à frente
Por outras, passos atrás
Sigo contido
Correndo perigo
Por todo lugar
Mas sigo contente
Pois sei que há gente
Há sempre um amigo
A se preocupar.
Em mim vive um homem
Um Deus um menino
Andando caminhos
De pontas arestas
De portas e frestas
Ansiando chegar
Chegar não sei onde
Aonde chegar sei lá
Ando não corro
Não paro jamais...

ALVORADA

O clarinete chora
Madrugada afora
Sob a luz da lua
A falta que faz você
Na algazarra do alvorecer
completamente nua.

ALBATROZ

Tenho as asas abertas
Tamanhas abrangem tudo
Voo por áreas desertas
Onde as cores falam
E o som fica mudo
Não participo de nada
Tudo fico a observar
Tenho a boca selada
E um discurso no olhar
Sou um pássaro grande
Desajeitado e louco
Louco para pousar
Fazer morada num ninho
Descansar um pouco
Ser um albatroz
Livre da solidão
Continuar meu caminho
Dentro de um coração.

NOITE

Chove é verão
Cheira terra
A úmida boca da noite
Embriagada
De prazer pela lua
Que insinua
Caminhos solidários
A dizer
Que nada é impossível
Enquanto luz.

MANTO

Vai-se o sol
Fim do dia
Na flauta (de Gounot)
Ave Maria
Passa a noite a cair
Feito manto ajeitado
Sobre os ombros
Do poeta.

OS PODEROSOS E AS POMBAS
(para John Lennon)

Olhem no alto
Abaixo do azul
Ao nível das nuvens
Acima de nós
Algo supremo silencioso pairando no ar...
Não!!!
Não manchem esse branco
Gracioso e puro
Com um vermelho encarnado e duro
Simplesmente olhem
Com olhos de poetas
Sentidos de profetas
Reverenciem chorem
Por fim
Desengatilhem suas armas
E dêem mais uma chance à paz
E dêem mais uma chance à paz
Se dêem mais.

OLHOS POÉTICOS

Os olhos que acompanham
O vôo de uma ave
- Câmera lenta aero- espaçonave -
São olhos que voam pra’lém do que vêem
Olhando pra’lém do que podem voar
São olhos científicos poéticos e finitos
A olhar infinitos
A olhar infinitos
A olhar...

OLHAR CRISTALINO

Olhos visão de um coração que bate
Em cada célula
Vivificada pela ilusão de harmonia no caos.

Olhos prismas dos colores cósmicos
Derramados sobre formas
Transformadas flores.

Olhos Ray Wonder que brilham na escuridão
Com o cristalino incrustado
Dentro do coração.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Folclore Brasileiro (Lenda do Negro D’água)

O negro d’água faz parte da vida de todos os pescadores do Centro Oeste. Crendo ou não crendo, todos eles já experimentaram um sustozinho, certa vez que um boto apareceu com a sua cabeça de porco a soprar bem pertinho de onde estava a sua vara de anzol. Em certa pescaria no curso baixo do rio Vermelho, uma vez, acompanhou-nos um "chauffer" chamado João, de sobressalência, para ajudar-nos a remendar câmara de ar no caminho, ou consertar as avarias dos pontilhões. Sempre ia por conta de serviços prováveis, sem pagar a contribuição para a cobertura das despesas. Era, pois, um companheiro para tudo.

Uma noite, quando já estávamos em boas redes, contando anedotas uns para os outros, e esperando chegar os últimos companheiros que subiram e desceram o rio, para dormirmos sossegados, escutamos um ruído do lado do rio, como se animal espantado tivesse corrido para nosso lado, derrubando mato. Era o João. Chegou sem poder falar, e horrorizado com o que vira naquele poço escuro que fica na curva do rio. Todos nos levantamos para socorrê-lo.

Que foi isso rapaz, perguntamos a um só tempo. Foi o negro d’água que brotou mesmo em baixo do meu pesqueiro, fazendo um rebojo e um barulhão, antes de erguer a metade do corpo fora d’água. E dizendo isto olhava para todos os lados, assombrado.

Você viu negro d’água coisa nenhuma, o que você viu foi um boto, que nós também vimos hoje à tarde, na curva do poço da piratinga. Os bolos do Araguaia sobem até aqui e gostam de se mostrar para os pescadores. E para provar que era isso mesmo, o nosso comparsa se meteu pelo caminho do poço indicado. Meia hora depois voltou confirmando que era boto mesmo, e se quiséssemos ver iríamos todos apreciar as evoluções que eles fazem quando vêem o homem.

Alguém "pediu a palavra" para contar um caso que havia acontecido há tempos, e dava o seu testemunho de homem de fé, qualidade que ninguém lhe negava. Todos aproximaram-se para ouvir a narrativa. Tratava-se do Tenente Pacheco, um excelente companheiro de pescaria e de caçada, profundo conhecedor daquela região e também do Estado todo.

— Uma noite, começou o oficial, estávamos pescando no rio Tapirapés, tributário do Araguaia, muito piscoso e com excelente caça; por essa razão preferido para as excursões dos que vão à Ilha, quando se formou, em baixo do nosso pesqueiro, um enorme rebôjo. Logo a seguir algo emergiu espadanando água, e fazendo um estranho barulho. Julguei que se tratasse de enorme sucuri, e pus de jeito minha espingarda de caça. Há, naquela região, muitas lagoas que são viveiros de sucuris. São elas que formam a cabeceira do rio. Não atirei no rumo; nunca fiz isso. Meti a lanterna elétrica em cima do rebôjo e avistei uma cara horrorosa, meio macaco, meio homem, cabelos lisos e bem pretos, cobrindo todo o rosto.

Os dentes eram alvos e pontiagudos, rindo para mim com ar de mofa. Os olhos, refulgindo pelo efeito da luz do farolete, eram duas tochas acesas. Nunca mais vi coisa igual. O índio Carajá que estava comigo já havia corrido espavorido. Gritou em português que não atirasse nele que ganharia maldição para o resto da minha vida.

Quando o bicho mergulhou, aproveitamos para dar o fora, e o índio pediu que fossemos embora, a seguir, porque não haveria mais um único peixe para nós. Este, é o sapo grande, que governa o rio e aparece para quem fala mal do Araguaia. Não fizemos objeção e até hoje nos recordamos daqueles olhos que pareciam farol de automóvel aumentados pela luz da lanterna.

Cada um, então, contou um caso de negro d’água e João nunca mais quis saber de participar de nossas pescarias, apesar de convidado com insistência, porque no pior servia para ajudar a empurrar o fordinho e remendar câmaras de ar.

Fontes:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.sohistoria.com.br

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Oswald de Andrade (Redondo)


Machado de Assis (Gazeta de Holanda) – N.° 5 – 21 de novembro de 1886.

Com franqueza, esta Bulgária
Vai-me esgotando a paciência;
Lembra a ilha Baratária,
Onde, após uma audiência,

Sancho, que naquele dia
Começara a governá-la,
Foi, com muita cortesia,
Levado a uma grande sala.

Tinha uma fome de rato
O governador recente,
E viu prato, e prato, e prato,
Prato de atolar o dente.

Quanto manjar, quanto molho,
Não direi, por mais que diga;
Só a vista enchia o olho...
Restava encher a barriga.

Mas tão depressa acudia
Algum servo respeitoso,
Trazendo-lhe uma iguaria
De cheirinho apetitoso,

Um doutor, que se postara
Ao lado, sem mais demora
Fazia um gesto co’a vara,
E ia-se a iguaria embora.

Afinal, pergunta o Sancho
Que era aquela caçoada.
Responde o doutor, mui ancho,
Que nada, não era nada.

Que, como ele tinha a cargo
A sua saúde e vida,
Cabia-lhe pôr embargo
A uma ou outra comida.

— “Bem, então dê-me essas belas,
Maravilhosas perdizes”.
— “Livre-o Deus de tocar nelas,
Nem de chegar-lhe os narizes”.

— “Mas, aquele gordo coelho
Espero que me não negue”.
— “Senhor, o melhor conselho
É que nem sequer lhe pegue”.

— “Naquele prato travesso
Cuido que há olha-podrida”.
— “Não coma, por Deus lh'o peço!
Aquilo espatifa a vida.

“Deixe Vossa Senhoria
A cônegos e a reitores
Essa péssima iguaria
Que tanto estraga os humores”.

E o pobre Sancho com fome,
Por mais que lhe dê na gana,
Tudo pede e nada come,
Até que se desengana.

Assim anda a tal Bulgária;
Elege, mas não elege,
Pois, como na Baratária,
Há um doutor que a protege.

“Este príncipe!” — “Não presta;
Faz-lhe mal aos intestinos”.
— “Est'outro?” — “Escolha funesta”.
— “Aquel'outro?” — “Um valdevinos.

“Para os seus humores basta
Este da Mingrélia; é moço,
Boa cara e boa casta;
Demais, pertence ao colosso”.

E a Bulgária, se há de os braços
Estender e recebê-lo,
Fazendo assim com abraços,
Em vez de a murros fazê-lo,

Timeos Danaos, et dona
Ferentes, pensa consigo;
E com ar de valentona,
Recusa o presente amigo.

Bulgária dos meus pecados,
Imita o meu pobre Sancho,
Que, vendo os pratos negados,
Agarrou um pão a gancho.

Um pão seco e frescas uvas,
Acaba essas longas bodas.
Já tens véu, grinalda e luvas,
Escolhe uma vez por todas.

E, tomando a liberdade
De te chamar D. Amélia
(Ó rima! Ó necessidade!)
Bulgária, escolhe o Mingrélia!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Juarez Barroso (Joaquim Bralhador)

Agradecido, doutor, agradecido, quero mais não. Quando eu ando assim de bicicleta, não sou muito amigo de beber, não senhor, os meus camaradas aqui presentes sabem disso. Bebida e bicicleta não se casam.

                Mas como é que o senhor estava perguntando? Ah, sim. Pois é isso que eu já disse, doutor. Isto aqui é um sertão pouco, acanhado. Uma terra sovina, pra gente, pra bicho, pra tudo. Quando escuto dizerem que naqueles centros do sertão, Santa Quitéria, Quixeramobim, os Inhamuns, tem fazendeiro com mil e tantas cabeças de gado, eu fico até sem acreditar. Como é possível? Aqui, nem jumento se dá bem.

                Sertão infeliz, este. Bem verdade que nem toda vida foi assim. Eu ainda alcancei melhor tempo. A gente nunca foi rico, mas o finado meu pai tinha algum recurso, pelo menos para criar os oito filhos de barriga cheia. Passava-se o verão na serra, o inverno aqui. Quando se descia para o sertão, trazia-se de um tudo nas cargas dos animais: rapadura, sacas de café, fruta muita. De quinze em quinze dias, a finada minha mãe mandava um cargueiro na serra ver banana, rapadura, o que tivesse precisão. De dois em dois dias, eu saía pelas moitas, na saia da finada minha mãe, com um alguidar, caçando ninho de capota. Era de cento de ovos. Quando lhe dava na vontade, o finado meu pai pegava a espingarda, fazia ponto num capote, no terreiro, engordava a nossa janta. Capote demais, a gritaria nos ouvidos da gente, tó-fraco, tó-fraco, tó-fraco. No inverno, tinha fazendeiro de fazer queijo de cinco quilos, todo santo dia. Muito feijão, muito milho, muito tudo. Bem verdade que dinheiro nunca se teve. Mas se tinha cavalo gordo, cavalo de sela, cavalo de campo, cada animal de fazer gosto.

                Sei não, doutor. Hoje em dia, eu moro na mesma terra, no pedaço que herdei, mas é tudo diverso. Café, nem se fala, é comprado, ninguém tem mais sítio na serra. Os capotes se sumiram, se vê um aqui, outro acolá. Galinha? Quando a finada minha mãe paria, quarenta galinhas gordas já estavam no chiqueiro, uma para cada dia de resguardo. Hoje? Quando surge menino novo na minha fazendinha, a mulher tem que se arremediar com o que existe. Às vezes aparece gente lá em casa para comprar ovo, doutor. A finada minha mãe nunca ia acreditar numa história dessas. Já teve ano ruim, aqui, doutor, de eu comprar feijão e farinha para comer. Onde já se viu? Bem verdade que algodão agora vale mais dinheiro. Mas do que adianta? Aqui, ou não chove, ou chove demais. Se a safra é boa, a gente tem que implorar pelo amor de Deus a um caboclo desses para apanhar uma arroba de algodão. E pagando bem. No fim, cadê o ganho?

                Sabe, eu vou tomar sempre o diabo desta outra cana. Afinal de contas, ainda estou com o juízo sentado, ainda domino o diabo de uma bicicleta.

                Coisa engraçada, doutor, que eu já reparei. Sertão minguante, as distâncias encurtaram também. Antigamente, se a gente ia daqui para o sítio que foi do meu povo, lá perto de Palmácia, na serra, era dia e meio de viagem, saía-se de madrugada, dormia-se no Rato, para fazer o restante do caminho na madrugada seguinte. Com carga de burro, eram dois dias. Hoje, nos mesmos cavalos, nos mesmos burros, a gente sai de madrugada e vai jantar na Palmácia. As mesmas onze léguas. O senhor tem explicação?

                Bem, vocês, querendo, bebam. Eu não quero mais. Minha bicicleta está lá fora, me esperando, não quero maltratar ela. Está de fazer gosto. Botei dois espelhos novos, botei um farol de pilha, clareia que nem farol de caminhão. Uma burra de sela, a bichinha. Vantagem da burra é dar mais certo com cana, beba-se o tanto que se beber, a gente monta e ela sabe o caminho de casa, deixa a gente no alpendre, ninguém sabe nem como chegou. Já tive muita burra de sela. Para cabra novo e sem respeito ainda existe outra serventia. O cabra volta de um samba, de madrugada, os possuídos vêm doendo de tanto esfregado nas danças. Diabo daquela dor cansada, respondendo no pé da barriga, as boas lembranças agravando a dor. Aí, é só encostar a burrinha no pé de uma cerca, subir uns três lances de pau e fazer o serviço. Tem umas tão aviciadas que já levantam o rabo, na ocasião. Burra é bicho quente. Eu prefiro a minha bicicletinha. É ligeira, não come e nem bebe, não se acoa, não tem cisma e está livre de sem-vergonhice. Uma burra, se a gente manda um caboclo lhe dar de beber, banhar na cacimba, já o indivíduo quer passá-la nas armas. Já botei um para fora da minha terra por via disso, caboclo mais confiado. Peguei no flagrante, a minha burra de sela, estimada. A Mocinha não é rapariga de ninguém não, seu fiduaégua. Animal mimoso, a Mocinha, burra de qualquer passo, de galope, de marcha, de estrada. Mansa, bem mansa, e da maior inocência.

                Mas eu acho que se eu bebesse só outra não fazia mal não, n’era? O diabo é que a natureza de bicicleta não se dá com cana, com cachaceiro. Dá não, doutor. Bicicleta também tem a sua natureza, a sua ciência, que é a de se equilibrar em duas rodas fininhas, sem se saber como. Carece o indivíduo casar-se a esta natureza, sem brigar com ela, respeitando a ciência da bicicleta, como deve respeitar a do rádio, do avião. No referente aos bichos, é da mesma forma, e até mais. O indivíduo pode ser muito sabido, pode ser um Camões na adivinhação, um Aderaldo no repente, que qualquer cachorro magro tem mais faro do que ele, acha tudo pelo cheiro. Em questão de ligeireza, tem que tomar bença à ema e ao veado capoeiro. E não chega onde chega o burro, o cavalo, o jumento, muito principalmente se andar nos escuros da noite. Doutor, se o senhor anoitecer em cima da sela, se lembre sempre que a ciência é do burro, do jumento, do cavalo, e a ignorância é do senhor. Dê o rumo ao animal, porém não lhe ensine onde pisar, que nisso ele lhe dá lição. É da natureza deles, assim como andar dez léguas num dia, e no outro fazer a viagem de volta, estradando, bralhando ou galopando. A natureza do cristão não se mistura com a desses bichos, não adianta teimar, tem que ser cada um do seu jeito. E por falar em cavalo, só houve um vivente, neste mundo que misturou as duas naturezas, foi homem e cavalo a um tempo só, da cintura pra cima um cidadão de respeito, da mais boa educação, da cintura pra baixo o mais fino animal de sela que já pisou nestas paragens, conforme contam os antigos, que esta história do finado Joaquim Bralhador se passou há muito tempo.

                Quer que eu conte? Então, o senhor, por seu favor, mande me ver outra cana, que eu agora já estou começando e desgraça só quer um começo. Bem, o finado meu pai ainda alcançou ele. O finado meu pai ainda menino, e ele homem refeito, já bem passado dos trinta, dono de sua fama esquisita. De princípio, meu pai também só sabia de ouvir contar. O tal Joaquim Bralhador era nascido e criado no Saco do Santo Antonio, coisa de seis léguas daqui, terras da Dona Libânia, a pessoa mais rica destas paragens, dona de três sítios de café na serra, não sei quantas fazendas de gado no sertão. Diss’que até os oito anos de idade, o Bralhador foi um menino sem diferença dos outros, cumprindo as danações de menino, brincando de baladeira, ajudando o pai no roçado. Nessa idade, ao que parece, sucedeu o desacato, bateu-lhe a doença-de-menino, doença infeliz, pois se às vezes o indivíduo escapa com vida, não escapa com juízo. Um mês ele passou no fundo da rede, um febrão, tresvaliando, esperando só a hora da morte. E melhor mesmo que Deus tivesse feito dele um anjinho. Mas estava disposto o contrário. Passado aquele tempo, principiou a melhora, o febrão abrandou, o menino abriu os olhos, pediu caldo, daí a uns dias já caminhava pela casa, a canela fina, os ossos aparecendo, branco da cor de um lençol, mas vivo. Estaria bom do juízo? Com o correr dos dias, acharam que sim. Não falava heresia, respondia tudo com acerto. Ficou até mais quieto, bem mandado para todo serviço, nem mais gostava de acompanhar os irmãos nas vadiações de menino.

                E a tal doença já estava no esquecimento quando começaram a perceber um costume esquisito nele. O diabo do menino, em certas horas, se sumia de casa. Joaquim, Joaquim, a mãe dele chamava, o pai chamava. Nada. Onde tu andava menino? Em canto nenhum não, minha mãe. Mas o pai descobriu que ele se tocava para a manga, ficava feito abestado diante dos burros e dos cavalos. O pai danou-se. Diabo de cabrinha sem-vergonho, se eu te pego fazendo o que não presta com uma burra ou uma jumenta destas, te dou uma pisa de tirar o couro, eu te mato, diabo. Mas o menino olhava para o pai com tais olhos de inocência que o velho se desarmava. Coitado do meu filho, é a doença-de-menino.

                O sem jeito, sem jeito está. Se Deus mandou um padecer a um cristão, é porque assim foi servido. O povo acabou se acostumando com aquela doidice, tanto mais por ser uma doidice ajuizada.

                O Joaquim não refugava serviço, enchia os potes da casa de manhã cedo, era disposto na foice e na enxada. De esquisito, só a moda de ficar bestando no meio dos animais. Depois de um certo tempo, perceberam até mais serventia nele, como a sua ligeireza em cumprir mandado, ia e voltava de pés, como se bem montado estivesse. Menino, tu já voltou? Voltei, sim senhora. Era o que mais gostava de fazer, varando os caminhos numa carreira pulada, trocando as passadas, de dois em dois, a moda de um galope, pototoco, pototoco, pototoco.

                Passou-se. E perceberam que, com a natureza de gente, ele tinha também uma natureza de cavalo. E já não corria mais daquele jeito somente no cumprimento de algum mandado. Findo o serviço na fazenda, galopava pelo terreiro, ganhava os caminhos. E ia se apurando. Primeiro, o galope, depois a estrada, por fim a bralha, o passo mais macio e difícil para um cavalo, passo de animal de sela, apreciado. Executava em dois pés o que um cavalo executa nos quatro. Saía naquele ciscado miúdo e ligeiro, o corpo erguido como o de um cavaleiro na sela, porém a cabeça encurvada, meio pendendo, os olhos no chão, no feitio de um cavalo marchador. E os dois braços colados no corpo, ao comprido, as palmas das mãos batendo um baião nos lagartos das coxas, tatataco-taco-taco-taco-taco, tal baião se combinando com o ciscado dos pés, e tudo junto era mesmo que escutar um cavalo bralhando. Mas, se encontrava alguém pelos caminhos, dizia bom-dia, boa-tarde, tudo na boa educação, que ele não deixava de ser gente. Eram as duas naturezas, a natureza de cristão montando a natureza de cavalo. Depois de muito bralhar e muito suar, riscava no terreiro, a natureza de gente desapeava da outra, entrava em casa sozinha, e ele era um rapazote igual aos irmãos, sem sinal algum de doidice.

                E na medida em que se punha homem, acharam nele outra arte esquisita, que era a de pegar qualquer animal, por mais velhaco que fosse, sem auxílio de um cabresto, de uma cuia de milho. Isto ficou provado no caso do burro Capoeiro, que mais de vinte vaqueiros não conseguiram agarrar. Um burro velho de nada, animal de carga, pertencente ao finado Antonio Barroso, situado lá perto. O Seu Barroso também passava o verão no sítio dele na serra, cuidando do café e da moagem, os burros na cambitagem da cana. Choveu, ele descia para a sua fazenda no sertão, mais a família e os burros. Os animais se refaziam no pasto verde, em fins d’água estavam descansados e gordos, subiam outra vez a serra, tornavam à cangalha. Pois bem, houve um fins d’água em que pegaram todos os burros, tirante o Capoeiro, que inventou de não voltar. Não quero mais saber de serviço, quero descanso. Quem viu passarem o cabresto no burro? Os caboclos pelejaram, e nada. Homem, uma coisa desta é possível?, espantou-se o Seu Barroso, que mandou chamar o Antonio Preto, vaqueiro. Compadre Antonio, vista as mangas do gibão e me pegue aquele burro, por seu favor. O senhor pegou? Pois da mesma forma o vaqueiro. Seu Barroso, não sei que diabo é aquilo não, faz até vergonha eu dizer, mas o cavalo não encosta no desgraçado do burro. E veja que o Capoeiro não se achava em campo aberto, mas sim dentro do cercado. Foi justamente o que causou a galhofada dos vaqueiros de redor. Antonio Preto, que diabo é isso, você perdendo a fama diante de um burro? Vieram então o Zé Dias, o Zeca Ricardo, vizinhos, botaram os cavalos no burro, auxiliando o camarada deles, correram dois dias, de manhã e de tarde. Pegaram o burro? O senhor já viu que não. Para encurtar a história, numa semana tinha para vinte vaqueiros arranchados na fazenda, vaqueiros de sete léguas de distância, tudo gente de respeito e bem montada: Joaquim Joça mais dois irmãos dele, Luís Pascoal, toda a vaqueirada da Elva-Moura, do Feijão, da Providência, de toda esta beira do Rio Capitão-Mor. Cada um que chegava dizia, aqui não tem mais vaqueiro não? Pois experimente pegar, homem. O vaqueiro vestia as mangas do gibão, se tocava para o cercado, os outros só acompanhavam, no sentido de apreciar a derrota. O vaqueiro enxergava o burro amoitado, tocava-lhe o cavalo em cima, vais conhecer, burro desgraçado. Corria meia hora, uma hora, voltava de cara feia ante a risada dos outros. A gente não lhe dizia, Seu Joaquim? Cadê a sua fama?

                Se burro é ligeiro? Olhe, doutor, não é questão de ligeireza. É questão de arte na corrida, que certos burros possuem. Uma rês corre linheira, uma corrida num rumo só. Não tem rês ligeira para vaqueiro bom e bem montado. Mas o burro tem outro sistema, corre entortado. Espera o vaqueiro chegar perto, e quando o indivíduo vai se abaixando para pegar-lhe o rabo ele quebra de banda, muda o rumo da carreira, engabela o cavalo e o vaqueiro. O vaqueiro retoma a perseguição, e lá o burro procede da mesma forma, no momento certo. O bicho parece até que tem um olho no cu, com licença da palavra. E lhe digo mais, burro às vezes é tão ladino que entorta a carreira justamente para cima da perseguição. Se o cavaleiro está na esquerda, ele entorta para a esquerda, fechando, o vaqueiro tem que riscar o cavalo, mais que depressa, se não se esbagaça tudo, embolam na queda cavalo, vaqueiro e burro. Assim procedia o burro Capoeiro.

                Porém, já estava ficando demais. Afinal de contas, era dentro de um cercado. Às vezes, dois, três vaqueiros encantoavam o bicho num pé de cerca, peguei-te, Capoeiro. Que nada. O bicho se escorregava por entre eles, lá vai tudo principiar de novo. Os vaqueiros já envergonhados, com acanhamento uns dos outros. Até que alguém alertou, este burro tem é padrinho. Tem padrinho? Só pode ser. Alguém apadrinhou ele, e bicho que tem padrinho vaqueiro nenhum pega. Só se o padrinho der licença. E quem pode ser o padrinho deste burro? Deve ser um rapaz dacolá do Santo Antonio, por nome Joaquim, que bralha feito um cavalo e conversa mais os bichos. Nesse mesmo dia mandaram chamar o Joaquim Bralhador, que chegou de tarde. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado. É verdade, menino, que tu é o padrinho desse burro? Padrinho eu não sou, não, Seu Barroso, que eu nunca apadrinhei animal nenhum nesta vida. Mas se quiserem que eu pegue ele, eu pego. Pois então pegue. E lá se foi ele, de pés, caminhando na frente, sem um cabresto, sem uma corda na mão, os vaqueiros atrás, no passo dos cavalos. Lá no meio do cercado divisaram o burro pastando junto a uma moita de mufumbo. Foi o Capoeiro enxergar os homens encourados e murchar as orelhas, aprontando a carreira. Mas aí o Bralhador determinou, vosmicês fiquem aí, senão atrapalha. E marchou no rumo do burro, na calma, como se marchasse no rumo de uma pessoa, o burro espiando, esperando. O rapaz passou-lhe a mão pela crina, alisou-lhe o lombo, o bicho mansinho, esfregando a cabeça no peito dele. E manso ficou quando um vaqueiro entregou um cabresto ao rapaz. Vambora para casa, Capoeiro. Já vou indo, meu amigo Bralhador. Foi um assombro. Este rapaz tem parte com o Cão, alguém disse. Não, Senhor, é que ele teve doença-de-menino e adquiriu a ciência dos bichos.

                E continuou o referido Joaquim com as duas naturezas, a de gente e a de cavalo. Só que, no passar do tempo, mais era presente a segunda natureza. Xerexexeco-xeco-xeco-xeco-xeco, o arrastado das apragatas pelos caminhos, tatatataco-taco-taco-taco-taco, as mãos batendo nas coxas, o povo acordava de noite. Tu escutou, marido? Nada não, mulher, é o Joaquim Bralhador bralhando.

                Foi deixando de ajudar o pai, os irmãos. Só uma vez ou outra ia com eles ao roçado. Preferia bralhar. O povo tinha pena. Coitado, não faz mal a ninguém, é a doença-de-menino. E descobriam aquele proveito nele, que era a sua ligeireza para mandados. Durante o verão, ia não sei quantas vezes à serra, com recado do finado Zé Dias, o vaqueiro, para a patroa dele, a Dona Libânia. Ia num dia, voltava no outro, dez léguas de ida e volta. E levava e trazia tudo no certo, sem sobrar e nem faltar nenhuma palavra, que a memória era boa, de gente.

                Muitas façanhas contavam do finado Joaquim Bralhador.

                Certa feita, iam daqui deste sertão para a Cruz do Lagedo, hoje Itapebuçu, o Capitão Teófilo e a mulher dele, Dona Nazinha, casal de muito dinheiro e fama. Viajavam em seus cavalos de sela, a Dona Nazinha montando o pedrês, o cavalo de mais nome que já pisou nestas bandas, animal de bralhar solto ou no cabresto, sem precisão de rédea, cavalo de tal competência que chegou a ser chamado de encantado. A certa altura da viagem se depararam com o Bralhador. Adeus, Capitão, como passa vossa excelência? Adeus, Dona Nazinha, como vai a sua saúde? Adeus, Joaquim, para onde se bota? Me boto para a Cruz do Lagedo. Pois então vambora juntos, que é lá também o nosso destino.

                Agora, eu quero ver se este tal Bralhador vai mesmo à viagem, imaginou o finado Capitão Teófilo. E subiu a altura da marcha do seu cavalo, no que o pedrês da finada Nazinha acompanhou, sem ser mandado. O Bralhador ali, do lado, emparelhado todo tempo. Aí foi a Dona Nazinha que imaginou, não é um ente de dois pés que vai bralhar com o meu cavalo pedrês. Subiu-lhe a marcha, o castanho acompanhou, cumprindo as ordens do Capitão, subiram, subiram, foi a bralha mais doida deste mundo, aquele baião ligeiro batido no chão do caminho, coisa que outro cavalo, em galope alto, ia sofrer para acompanhar. Pois no mesmo rojão dos cavalos bralhou Joaquim Bralhador, sua parte de cavalo acertada com o passo dos animais, sua parte de gente palestrando com o rico casal, receitando remédio dos matos para os achaques da finada Nazinha. Assim por mais de três léguas, e desse jeito entraram os três na rua da Cruz do Lagedo, sendo que o Bralhador não chegou mais suado do que os dois animais.

                De outra vez foi o dito Seu Barroso que precisou mandar uma carta missiva para o irmão dele, o finado João Barroso, no sertão do Caxitoré, coisa de vinte léguas distante. Chamou pelo Bralhador, que num dia foi e no outro já voltava com a esperada resposta, bralhando quarenta léguas em dois dias. Um feito de fazer inveja a qualquer cavalo bom, de antigamente.

                E assim foi até ele cumprir a casa dos trinta, entrar na casa quarenta, metade gente, metade cavalo, pois aí, conforme contavam, as duas naturezas começaram a se estranhar, a se cansar uma da outra. Em certas horas, e mais durante o dia, a natureza de gente reinava, montava o cavalo quando queria, o Bralhador galopava nos seus mandados, que disso vivia e sustentava a mãe dele. Em outras horas, e mais no forte da noite, o cavalo se soltava, desconhecia o cavaleiro, corria pelos cercados. O povo acordava de noite, uns rinchos distantes, um atropelo de bichos. As mulheres com medo, marido, valha-me Nossa Senhora, aquilo é o Bralhador com sem-vergonhice. Besteira, mulher, aquilo é o cavalo de lote de Dona Libânia, com sentido nas éguas. Verdade ou não, o Bralhador era desinfluído por mulher, passou da idade de casar sem nunca ao menos demorar a vista em qualquer moça daqueles recantos. Isto é vício do Satanás, as mulheres se benziam.

                Também contavam que, com o passar do tempo, ele deu de se espojar, no chão, feito animal, coçando as costas na areia, braços e pernas erguidas, o homem rinchando de contentamento. E até a obra dele já não era mais de gente, e sim de animal, aquelas bolotas nem verdes e nem amarelas, conforme jurava um caboclo depois de ver o finado Bralhador fazendo uma precisão.

                O homem montando o cavalo, o dia todo. Quando imaginava desmontar, para o descanso, o cavalo disparava com ele, atrás das éguas, ou corria pelo gosto de correr, cavalo inteiro. De modo que não tinham um sossego, nem o homem e nem o cavalo, sendo ainda que, na peleja, o homem perdia, que cavalo carece de menor descanso e dorme em pé. O povo percebia o finado Bralhador minguante, as feições magras, o homem calado de cansaço. Aí, que eu quero minha rede, uma pestana, ando enfadado de tanta viagem, quantas léguas naveguei. Se esqueça do seu descanso, meu patrão, já tem estrela no céu, meus camaradas me esperam, se for homem desamonte, sou o cavalo Bralhador, nada respeito neste mundo, minha rédea só eu tenho. E disparava o cavalo, Joaquim grudado na sela, fiduaégua, tu me paga, tu me paga. Pois então me segure, se é capaz.

                Marido, que diabo é isso? São os cavalos de lote de Dona Libânia, mulher. Cavalo de lote o quê, marido, vou acender uma vela para Nossa Senhora do Desterro desterrar esta fantasma, este ente lobisomem. Pois, se quer acender, acenda.

                Tudo por dizerem que a natureza de animal, depois de uns tempos, já não se contentava de bralhar e galopar na forma de cristão de dois pés e que o finado Bralhador de noite se encantava num cavalo, virava um lazão fogoso, correndo solto, chupando as forças do homem, que amanhecia mais morto do que vivo, gemendo na rede. Seu Bralhador, tem um mandado para o senhor fazer no Campos Belos. Pois bem, já vou. Mas o homem não tinha a mesma disposição de montar a natureza de animal, não tinha nervo para ela, pegava o caminho em estrada baixa, medroso de aferventar o cavalo, feito um velho, receio do bicho desembestar. De quando em vez, a raiva, diabo, bicho nenhum me sujiga, o cavalo disparava, e começada a carreira o Bralhador encontrava seus nervos, vais conhecer, se deparavam com ele nos caminhos, riscando em cima dos pés de pau, em cima das cercas, pinotando, as naturezas brigando, o bucho do Bralhador todo cortado de unha, esporas dele, o sangue manchando a blusa. Te esconjuro, dizia o povo. Coitado do meu filhinho, dizia a mãe dele.

                Até o dia em que o pobre anoiteceu fora de casa e não amanheceu. Como não amanheceu no dia seguinte e nem no outro, a mãe chorando, sucedeu uma desgraça com o meu filho, e o povo, é castigo, é castigo. Foi achado com três dias, pelos urubus, e o vaqueiro que achou se benzia, eu nunca vi coisa tão feia na minha vida. E devia ser mesmo. O senhor já ouviu contar de cavalo de lote que morre estrepado? Assim foi. Uma estaca de cerca, da ponta fina, madeira cortada de novo, ele espetado pela barriga, a ponta quase lhe saindo pelas costas.

                Nunca se tinha visto aquele cavalo por lá, um lazão grande, estrela na testa. O Bralhador, morto na natureza de cavalo, com sentido nas éguas, latejando de vontade. Pulou a cerca atrás de uma, para voar-lhe nas ancas, cavalo inteiro, estrepou-se na vontade. Te esconjuro, dizia o povo. Se enterra ou não se enterra? Acabaram enterrando no mato, o povo se benzia, rezando para Nossa Senhora desterrar a alma do homem.

                O fato é que não se pode misturar as naturezas, doutor. O homem tem o seu sistema, cada bicho tem o seu. Se o Bralhador permanecesse gente, botava um cabresto na égua, marrava a bicha junto de uma cerca, botava ela na posição devida, fazia o serviço, bem escondido no seu canto, sem risco de morte excomungado. É assim que se procede.

                Agora, se me dão licença, eu vou chegando, enquanto não fico bêbado, vou ver se a minha bicicleta ainda me aceita. Lá está a bichinha esperando por mim, toda equipada. Tem jeito de moça, é a minha burra de sela, burrinha de estimação.

(Juarez Barroso, Joaquinho Gato, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, Coleção Vera Cruz, volume 225)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.