sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) V

RIMBAUD

Após oito anos luz
Pelos caminhos do inferno
Entro num cabaré
Faminto de olhos tetas e bocados
Regados a sossego.
No chope gelado
Uma réstia de sol ilumina
Ainda que tardiamente
Meu pensamento.

CÂNDIDO

Pintura milagre da luz
Transformada em nuanças coloridas
pela mente mãos cálidas
De um pintor completamente genial
Desses iluminados
Na loucura refinados
Saborosos como o sal da vida
Parida na cor dolorida do amor.

SEGUINDO A LINHA

Deixei meu passado entulhado
Num canto qualquer da memória
Não vim de ontem sou de hoje
Não tenho história.
Experiência?
É o ar que respiro na brisa do agora.
É reaprender cada minuto que morre
Sem envelhecer
No tempo que corre.

DOR ESQUECIDA

No torpor vermelho vinho
As canções são mais sentidas
Estranhamente coloridas
Feito quadros de Dali.
Uma lágrima traiçoeira
Desgarrada incontida
Revela uma ferida
De não cicatrizar.

RIMBAUD II

Escarros vermelhos ecoam no infinito azul
Batalhões tombam aos pés do rei
Que os xinga...
Enquanto pequenos deuses
Do alto de seus altares
E suas taças de ouro
Embalados por preces e cantos adormecem.
Só despertam
Quando mãos estendidas calejadas
Sofridas subjugadas
Entregam-lhes tudo o que têm:
O último vintém.

FERNANDA
(UMA ROSA AZUL)


Eu vim e vou caminhar
A estranha estrada de terra
Vermelho é o sol que se põe
No azul de uma rosa que nasce
Aos olhos infantis que adormecem.

MECKINHO

A imobilidade
Do grande mestre
Contrasta
Com a fúria de seu raciocínio.
Na aparência
Um monge tibetano,
Na determinação mental
Um moderno
Gladiador.

MIRACLE

Rimo a rima que rimar
Escrevo a fala do cantar
Sonho pensamento futuro
Sinto o que sinto sei lá.

Estranho é estranhar minha palavra
Pois ela não cura ou agrava
Um estado de coisas suaviza
Sendo assim só faz melhorar

Esse espaço esse ar essa lida
Colorida poesia bonita
Que inútil seria explicar
O milagre singular dessa vida.

CANDELÁRIA

A polícia reza missa
Com a voz da metralha
Mata um
Mata dois
Mata oito
Na candelária.
Tenta cortar
O mal pela raiz
Podando apenas
As folhas da violência,
Que demência!

VOLPI

Enfim
Cansado de colorir
Suas bandeirinhas
O garoto escolheu
A mais bela estrela
E cobrindo-se de azul
Adormeceu.

GUERREIROS

Soldados valentes
Crédulos e cansados
De carregarem
Sobre os ombros doentes
A cabeça de um rei
Eternamente embriagado.

QUINTANA

Tenho nas mãos uma jóia
Lapidada por um menino
Franzino de 87 anos
Que solitário segura o céu
Como uma bela e imponente
Coluna grega.

2001

Virei com o século
Venci o pesadelo
E neste segundo sono
Escolherei meu sonho
Com maior desvelo.

ÓCIO

Uma garrafa vazia
Um copo pela metade
Pablo Neruda na mão
Na mente uma canção
De liberdade.

SEM PALAVRAS

O poeta necessita
De palavras em seu poema
Mas a poesia
Dispensa
Palavras e poetas.

CALEIDOSCÓPIOS
 

Olhe-me veja
Remexa já não sou
Vire
Lá estará outro eu
Outro lugar
Somos assim
Caleidoscópios a girar
Se transmutar
Explicar isso não dá
Mas ainda podemos cantar
Aquela canção do sorrir e caminhar...
Caminhar por este chão
Comum camaleão.

LOUCOS ALEIJADOS

Quantas vezes
Usamos as muletas
Da religião da moral da sanidade
Por não confiarmos
Em nossas convicções
Sentimentos idéias e ideais...
Por não confiarmos
Em nossa própria loucura.

CONSELHO

Sabe de uma coisa colega
A vida está difícil demais
Mas um poeta não se entrega
E não desanima meu rapaz.

Ser poeta, meu amigo.
É ser criança forte e frágil
Humano, fera, rocha e abrigo.
É trazer na alma a chama indecifrável...

Não deixar morrer em seu olhar
Aquele espanto primordial
De menino puro ao amar

Nem deixar viver em seu ser
Aquele medo primordial
De homem imaturo pra morrer.

CIRANDA

Acordo de manhã
E aí está o mundo
Barulhento, traquinas
Saudável criança.
Fazer o quê?
Senão entrar nesta ciranda
E brincar de crescer.

HIPOCRISIA

Procuramos ter
Pensamentos puros e elevados
Enquanto emporcalhamos
Nossos rios mais sagrados.

NO HORIZONTE UM SOL SEMPRE

No horizonte
Vermelho
Brilhante
Morre
Naturalmente
Um sol
No ocidente

No mesmo instante
No oriente
Um sol
Naturalmente
Nasce
Brilhante
Vermelho
No horizonte.

ESTAÇÃO LIBERDADE

Sobram bancos e mármores
Nessa estação de metrô
O trem é rápido
As pessoas apressadas
Devagar vomito
Numa lixeira próxima
Impecavelmente
Limpa.

MEDO

Minha sensibilidade
Escondeu-se atrás do medo
Minha inteligência
Atrás do muro
O coração não vê presente
A cabeça não vê futuro
Silencioso tateio meu caminho
Zigue - zagueando poesia.

IDADES

Meu corpo
Tem a idade de um homem
Minha mente
A de um ancião
A idade de uma criança
Tem meu coração.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Nilto Maciel (Punhalzinho Cravado de Ódio)

Caminha Ana pelo beco esburacado, perninhas de embuá, doida para alcançar a esquina. Saltita, feito catita, de ilha em ilha, com medo de se afogar nas poças de lama. Cachorros sonolentos abrem os olhos para sua figura miúda e se espreguiçam e expõem as indecências encarnadas de entre as pernas. Voltam a sonhar, sérios, acanhados, magros.

– Cambada de vagabundos!

O sol assa a areia, os pesinhos gordos da anã, racha a taipa dos casebres, os lábios da mulher, reluz nos cacos de vidro expostos no meio da rua, nos olhos da caminhante.

– Arre égua!

Abertas as portas da bodega de Bodinho, anunciada por placas de Coca-Cola. Dentro, moscas fartas, catinga de cachaça, salpicada de escarros, sortida de mil mantimentos para gentes e bichos.

Venta para todas las bandas e tudo se mexe, remexe, rebola, remoinha. Os vira-latas acordam raivosos, voa poeira entre as casas, papéis de embrulho viram arraias bicós e o bodegueiro pragueja.

E vão embora gritos, pules de jogo do bicho, esperanças, tudo em fuga pelos becos. Do lado de dentro do balcão, Bodinho arruma jornais de ontem e inventa pragas contra o diabo da ventania. Sunga as calças e a pança balança, fofa, mole, cheia. Zunem moscas alvoroçadas. Pousam nos braços curtos da freguesa, pegajosas. Fazem cócegas na pele grossa de Ana.

– Desgruda, desgraçada!

Pela porta atrás da anã entra Pêu, arreganha os dentes podres. Estica as pernas, pula para um caixão de sabão, quase a roçar nos cabelos de Ana. Atrás do balcão, Bodinho assobia e ri.

Solta na buraqueira desde os tempos de chupeta, Anazinha meteu-se cedo nos becos da molecagem. Anãzinha praqui, Aninha pracá, conheceu um a um os moleques do Pirambu. Com Pêu experimentou as primeiras dores.

– Casar? Nunquinha.

Também nunca pegou barriga de nenhum cabra safado, muito menos de Pêu.

– Ainda bem.

E não teve a sorte de conhecer um de seu tamanho, de feitio anão, do jeito de seu agrado.

Mãosinhas postas sobre o cocô das moscas, pede a anã o milho de suas galinhas. Depressa, enquanto o cão esfregasse o olho.

Todo santo dia, quer chovesse, quer fizesse sol, ia Ana comprar a janta de suas criações. Bodinho nem precisava perguntar o que queria ela. Precisasse de querosene para as lamparinas, voltava noutra hora ou dormia no escuro. Carecesse de alimento para si, passava fome ou dava outra viagem, embora os cachorros da rua vivessem a espiá-la do rés do chão.

– Cambada de vagabundos!

Como não se vissem frente a frente desde os tempos das sacanagens, Pêu coçou o queixo, lambeu os bigodes sujos, futricou os ovos e não pediu cachaça: se Aninha comia milho.

Toda a raça do Pirambu sabia de sua predileção por galinhas. Na bodega de Bodinho só ela comprava milho. Todo dia, tarde cedo. Criava as bichinhas com fartura e amor, sem sovinice de nada. Muitas. E só não possuía o maior galinheiro do mundo porque precisava vender sempre uma para dar de comer às outras. A preço de banana, mais baratas do que bolo em fim de festa. Não, nunca comeu sequer o pé de uma.

– Deus me livre!

Ri Pêu da sabedoria da anã e pede uma talagada. Desapeia do caixão e encosta-se à antiga companheira de sacanagens detrás dos morros de areia. O bodegueiro demora-se a ver os olhos reluzentes de Ana, aquele fogo a queimar seus jornais velhos, aquela pua a furar o outro freguês.

Já ida pela casa dos trinta, a anã não rompia as fronteiras do metro, mas a cada dia se alargava, feito um saco de algodão. Sua boca armazenava todos os ódios do Pirambu e, quando não suportava mais contê-los, não escolhia as caras e cuspia insultos até contra os vira-latas.

– Perdeu alguém parecido comigo, baitola?

Entrega Bodinho o embrulho de milho, apanha a garrafa, sem despregar da anã os olhos, derrama veneno no copo e levanta a taça de vencedor.

Nenhuma palavra sobe do porão de Ana, que agarra sua ração, agacha-se e a deposita ao pé do balcão. Pêu despeja goela a dentro toda sua vida e solta um grito de terror.

Em sua virilha, um punhalzinho enferrujado e cheio de ódio acabava de se cravar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Nilto Maciel

Nilto Fernando Maciel (Baturité, 1945) ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77. Regressou a Fortaleza em 2002. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais: “Brasília de Literatura”, 90, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, com A Rosa Gótica, todos na categoria romance nacional, além de prêmios no gênero conto. Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes, 2006, e 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilíngue español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo. Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007. Publicou novelas, romances, poesias, ensaios literários, além dos livros de contos Itinerário (1974), Tempos de Mula Preta (1981), Punhalzinho Cravado de Ódio (1986), As Insolentes Patas do Cão (1991), Babel (1997), Vasto Abismo (1998), Pescoço de Girafa na Poeira (1999) e A Leste da Morte (2006).

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

José Inácio Vieira de Melo (Poesias Escolhidas)

CARAMUJOS

Os caramujos da Ribeira do Traipu
mugem em um tempo que se foi.

Os caramujos eram os bois da minha boiada.
Quando os invocava era prontamente atendido,
mas eles tinham lá seus nomes e seus matizes
(e ali já estava o poeta batizando as coisas):

e vinham Manjerona, Paixão, Diamantina,
Fachada, Chuvisco, Carnaval, Meia-Noite,
e vinha toda a vacaria de caramujos
encantar aqueles dias com seu leite de sonhos.

De repente, dava um redemoinho
na minha cabeça de vento
e já era outra história:

Ivaldo, numa atitude inaugural,
– possível apenas para quem goza
da sabedoria dos cinco anos –
bradava para que fossemos
ouvir o mar nos caramujos.

[A terceira romaria – livro inédito]

DESERTO

Nem o deserto do Saara mais todo o Sertão
são desertos quanto o eu deserto.

E segue o peregrino na aridez dessa demência:
deserto dia – noite deserta: a mesma intensidade.

E de repente vejo o que não vejo,
o voo que sempre levanto e nunca voei,
e assomam os meus fantasmas:
anjos e demônios e poetas e vampiros,
putas e bruxas e santas e fadas,
deus e deuses e musas e a mulher,
vaqueiro e cavalo e gado e cachorro,
música toada, música embolada, música zoada.
E Moisés Vieira de Melo – meu avô –
tangendo esses bichos todos
dentro do deserto do romeiro de mim.

E os desertos cantam na imensidão do nada,
e canto este canto meu (porque de dentro):
eu não sabia do caos do eu,
eu não sabia da miragem que tudo é,
eu não sabia da angústia,
eu não sabia do gozo.
Eu, sabiá...

O deserto de mim diante de todos os olhos.

E assim segue o peregrino
– nessa romaria que o sufoca e o deleita –
em busca de oásis,
abrigo de mim.

O peregrino – deserto a buscar.

[Decifração de Abismos]

ESPELHO

Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles

Que ninguém se engane:
os caminhos são tortos

E no sertão do ser
– deserto e mar
nossos de cada dia –
o outro nome do nome:
HOMEM

E no oráculo antolhar:
a imagem é a dor escarlate
de um labirinto
onde vago vago

E indaga o oráculo:
– Qual a tua graça?

Como o quem? Saber como?
Tal Torquato com fé ficciono
e confecciono a palavra

Poeta há de ser a graça
E indaga o oráculo:
– O que fazes de teus passos?

O que dizer dos rastros
conquanto já não são meus?
Como aquele Minotauro cego
sigo pela noite
guiado pela menina poesia

E o oráculo:
– Não haverá mais tempo
apenas a poesia:
Mãe e Manhã

[Códigos do Silêncio]

MATURI
para Cássia

A primeira vez não tinha paredes,
havia um voyeur: a Lua.

Um cajueiro frondoso
abençoava aquela descoberta
farfalhando suas folhas,
e das folhas secas
que buscavam a terra: o colchão.

E tudo conspirava para o êxtase:
os olores dos cajus,
o agridoce gosto da deusa morena:
musa canora que entoava gemidos
– cantigas sopradas pelos deuses.

Na primeira vez,
senti, pela primeira vez,
o mistério das estrelas.

E as vacas pastavam
na mansidão dos campos,
na imensidão da noite.

[A terceira romaria – livro inédito]

EPITÁFIO PARA GUINEVERE

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem.
Domingos Carvalho da Silva


Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.
Não mais invadirei o vento montado no teu galope.

Que fique inscrito na tua lápide
o verso de lágrimas dos meus cavalos.

Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,
o relinchar da paixão pagã
dos cavalos que trago dentro de mim.

[Decifração de Abismos]
MÃE FILHA

Ela não oferecia pão a um carnívoro,
ela era a carne e a caridade,
era a ovelha dos desgarrados.

A cruz recebia entre as pernas,
o seu sino era no meio das pernas,
ela era a sua própria igreja.

Ela tinha a ferida e a cura,
e todos os homens salivaram ali,
e todos ganiram o lamento do sino.

Era a vida d'A Casa das Primas,
ninguém jamais saiu daquele templo
seco em seus apetites.

Para uma sede, outra sede maior;
para a solidão, os sentidos de Mãe Filha
e de todas as suas discípulas – as primas.

[A terceira romaria – livro inédito]

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico.

Nelly Novaes Coelho (Conto de Fadas & Conto Maravilhoso)

Tela de Salvador Dali
Desse imenso caudal narrativo (hoje transformado ou simplificado em literatura folclórica ou literatura infantil), duas formas destacam-se, não só pela divulgação que alcançaram através dos séculos, mas principalmente pela identificação feita entre uma e outra, como se ambas tivessem a mesma natureza. O que não é verdade.

Trata-se do Conto de Fadas e do Conto Maravilhoso, formas de narrativa maravilhosa surgidas de fontes bem distintas, dando expressão a problemáticas bem diferentes, mas que, pelo fato de pertencer ao mundo maravilhoso, acabaram identificadas entre si como formas iguais.

Nosso propósito, aqui, será portanto deslindar os possíveis fios que se emaranharam em torno delas e tonar visíveis as duas atitudes humanas por elas expressas, atitudes que se vêm sucedendo na vida e na Literatura, desde o princípio dos tempos em nossos dias. Referimo-nos à luta do eu, empenhado em sua realização interior profunda, ao nível do existencial, ou em sua realização exterior, ao nível do social.

Embora uma não anule a outra (muito pelo contrário, ambas devem completar-se em uma realização integral), não podemos esquecer que, por temperamento ou personalidade, cada indivíduo, consciente ou inconscientemente, privilegia uma delas, e é essa escolha que orienta sua luta pela vida. Daí a atualidade visível no conto de fadas e no conto maravilhoso e a importância de os redescobrirmos desde as raízes.

Entretanto, por um simples confronto entre a Bela Adormecida, a Bela e a Fera ou Rapunzel, de um lado, e O Gato de Botas, o Pescador e o Gênio o Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, de outro, nota-se que há uma diferença essencial. Diferença quase inexistente ao nível da forma (pois todos pertencem ao universo do maravilhoso), mas que pode ser facilmente percebida ao nível da problemática matriz de cada conto. Indo direto a essas «diferenças«, temos:

As narrativas do primeiro grupo são contos de fadas. Com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial...

...No segundo grupo, temos os contos maravilhosos. São narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares, objetos mágicos, gênios, duendes, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática social (ou ligada à vida prática, concreta). Ou melhor, trata-se sempre do desejo de autorealização do herói (ou anti-herói) no âmbito socioeconômico, através de conquista de bens, riqueza, poder material, etc.

Enfim, os contos de fadas e os contos maravilhosos expressam atitudes humanas bem diferentes diante da vida. Optar por uma ou outra é questão do quê? Destino? Personalidade? Circunstâncias de vida? Meio social? Influências culturais? Quem o pode responder com exatidão? A verdade é que através dos milênios as duas atitudes vêm tendo expressão na Literatura, porque vêm sendo vividas na vida.

Fonte:
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. SP, Ática, 1991.

Adelmo Oliveira (Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas) III

ESTRELA DE NATAL
-
Quero ficar em silêncio
Na correnteza da tarde
Vendo a lágrima do tempo
Vertendo na minha face

– É um rio escuro e miúdo
Que em mim profundo deságua
Só meu lábio seco e mudo
Ouve o gemido que passa

Passa. E cada gota líquida
Em cristal se petrifica
Transparente como a vida
Que na morte se eterniza

Mas, dentro do lago, o poço
Dentro do céu, a medida
Espalha tições de fogo
Em teias de fantasia

Veste seu manto de chamas
– De penas bem coloridas
Faz de seu brilho esperança
De um pouco de cada dia

Põe labaredas nos olhos
Sai pelo mundo e caminha
E longe, já sol posto
Desaparece sozinha

MEU NATAL DE SEMPRE
-
Ficou na sombra a casa onde morei
As árvores do quintal, a ventania
E eu, pequeno ainda, me recordo
Quanto chorei, quando cantar devia.

Ficou no céu o tempo que sonhei:
Sapato de verniz dependurado
Num saco bem vazio de esperanças
Qual pacote amarrado pelo vento.

Não finjo o sonho em que me sustentei
No portal da janela de meu quarto:
As bolas de borracha coloridas
(Revólver de brincar de detetive).

Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas,
Meus amigos, também, o que não tive.
A vida dá presente todo dia:
A dor que sinto agora, não sentia.

Ficou no rosto o traço que não tinha:
A solidão que sopra lá de fora.
Multiplico os minutos pelas horas
E tenho as mesmas horas repartidas.

Ganho, então, meu presente de lembranças:
Uma flor na lapela e meu cansaço.
Costuro mágoas e as transformo em ânsias
E corto a fantasia em mil pedaços.

O MENINO E OS PÁSSAROS
Para Tude Celestino
-
Certo que eu fosse menino
Vinha no sopro do vento
Pegar esses passarinhos
Nos quintais desse convento

Pulava o muro do canto
Pé descalço de mansinho
– Atrás do tamarindeiro
Vinha de corpo escondido

Pisava na grama verde
E olhava os galhos e os ninhos
– O coração sacudia
No céu que a tarde continha

Nunca vi tanto assanhaço
Bem-te-vi papo amarelo
Rolinhas gordas de pena
E os canarinhos da terra

(Minha capanga de balas
Meu bodogue de borracha
Meus olhos cheios de sonho
Minha alma cheia de nada)

Certo que eu fosse menino
Certo a saudade matava
Numa cova tão profunda
Pra não me banhar de lágrimas

POEMA ANTIGO
-
A lua no meu quarto invade
Branca, molhada de sereno
Entra na memória um caminho
Que termina onde fui pequeno

Vaga, de luz opala verde
Entra devagar pela rua
Do menino de calça curta
– Que idade eternamente nua

A vida, a vida passa mesmo
Nem sei quando isto aconteceu
Só sei que a lua vem bonita
Dizer que a infância já morreu

SEGUNDA CANÇÃO DA BEIRA D’ÁGUA
-
Cada poema tem seu dia
Na claridade da manhã
Na face lírica das águas
Na casca loura da maçã

Cada poema tem seu dia
No prisma, no sinal da cruz
Na estrela do mistério vago
Na vida das cores azuis

FRAGMENTOS DE UM SONHO
-
Sou itinerante
Não vou de encontro às distâncias
Minha alma é um vestir-se de quatro paredes

Se mudo de roupa todo dia
Ela se renova
Todas às vezes que miro o espelho

Sou um rio caminhando dentro de mim
Varado de peixe e moluscos
Líquido: olho-me de cima para baixo
Parado: beijo as flores do lago
Corrente: pinto as cores da manhã

TRAVESSIA
-
A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– Meu amor descansa sobre os ombros
– A montanha descansa sobre os vales
A própria natureza se imagina
Uma visita na véspera da primavera

O campo aberto não esconde as amapolas
E ninguém espia o vigia na estrada
– O rio manso é uma longa espada de sol

(Não compro ilusões
Nem vendo alegrias
Não piso em flores
Nem espalho fantasias
Geradas pela máquina do tempo)

A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– A noite chega na arquitetura das serras
E desenha potros de asa e cavalos de sombra

Dentro da noite
A madrugada espera
Dentro da madrugada
Os frisos vermelhos da aurora

CONFISSÃO
-
Tua palavra é um código
Que sai
de tua boca
E queima os meus ouvidos

Teu gesto é um crucifixo de sinais
Que me converte
A uma seita antiga
Para o culto de deuses invisíveis

Não me toques
Te peço
Não me toques

Meu violino está surdo
E nada do que há em suas cordas
Poderá ser para sempre revelado

Vês? (Não te espantes)
Meus olhos estão secos
De tanto navegar
Por lugares desconhecidos

Minhas mãos estão crespas
e apalpam
Os muros de silêncio
Que me perseguem
Com inscrições hierográficas

E eu te digo
O raio
que tanto fere
me ilumina

Até a flor
que não tem espinho
me crucifixa

Mas teu corpo é uma ânfora dourada
Que não se parte
E brilha nos arabescos
De ritmos orientais

Aproxima-te
Mas não me toques
Deixa que eu me vingue de olhar para o infinito

VARIAÇÕES DO DIA
-
Antes de dormir, eu sonho
Antes de acordar, eu rio
Antes de dançar, eu tombo
Antes de fingir, eu crio

Antes de esperar, avanço
Antes de correr, tropeço
Antes de morrer, descanso
Antes de passar, trafego

Antes de partir, não fico
Antes de chorar, não quero
Antes de pensar, não minto
Mas, depois de amar, desperto

AMARALINA
-
Venho cortando o vento da avenida
A estrela assim não veio e a ventania
Sacode as ondas contra o rosto e a fria
Madrugada se esconde indefinida

Neste mar não existe maresia
Neste mar não há mito nem segredo
Não era a aurora a luz que pressentia
Entre as dobras da espuma no rochedo

Era a face que via contra o espelho
Era o perfil azul dos teus cabelos
Gravados na memória da retina

Venho cortando o vento da avenida
No silêncio dos passos e da vida
– A flor que fui buscar na Amaralina

A FLOR, A FLAUTA E O BANDOLIM
Para Raimundo Barros e Pedro Figueroa, Filhos de Orfeu-
Saio com uma flor pela varanda
E digo num sorriso de criança
– Se finjo num suspiro de alma pura
Que sou feito de corpo e de esperança

Se eu sinto, digo ao sol e digo à lua
E digo ao mar que azula este verão
Mas logo a melodia se desata
E solta ao vento as letras da canção

A flor, ora crisântemo, ora lírio
É flauta. É margarida do delírio
Ou ciúme das cordas da paixão

Esta czarda é louca e enluarada
Pinta com um bandolim a madrugada
– O amor de mais eterna perfeição

Fonte:
Adelmo Oliveira. Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas. 1987. http://br.geocities.com/rsuttana/adelmo_cantico.pdf

Lucia Helena L.Santos Silva e Sueli Rocha (Contar histórias para promover leitura)

Era uma vez um menino que adorava ouvir histórias antes de dormir. A cada noite, um criado enchia sua imaginação de fadas, bruxas, dragões etc. O pequeno dormia feliz, exausto por vivenciar tantas aventuras, nas quais com certeza era sempre ele o herói, o vencedor. O menino era egoísta e, por mais que os amigos pedissem, não recontava a eles as histórias ouvidas. O tempo passou,o criado envelheceu, o menino cresceu e não quis mais saber de histórias. Eram outros os seus interesses, então. Já rapaz, apaixonou-se e quis casar. Um dia antes do casamento, o velho empregado foi ao quarto do noivo, ajudá-lo nos preparativos. Com surpresa, ouviu ruídos estranhos que vinham de um saco há muito esquecido atrás da porta. Veio-lhe à memória que aquele era o saco onde ficavam guardados os espíritos de todas as histórias que ele contava ao garoto, agora rapaz. Prestou atenção e ouviu que os espíritos das personagens que eram más planejavam uma vingança mortal àquele que, por egoísmo, manteve-os presos por tanto tempo. Os espíritos das personagens boas, por medo, mantinham-se calados. Usando de toda a sua experiência e sabedoria, o velho destruiu cada uma das armadilhas preparadas para o rapaz, matando até uma cobra escondida no quarto do jovem casal. A cobra foi o último recurso usado pelos espíritos maus em sua vingança contra o egoísta que os prendera durante tanto tempo. O criado contou então a todos sobre a vingança dos espíritos das histórias, esquecidos presos na velha sacola. Agradecido por ter sido salvo, o rapaz prontamente acreditou no que ouvira e, arrependido, prometeu que, de ora em diante, contaria muitas histórias. A cada história contada, os espíritos presos eram libertados para, felizes, povoarem a imaginação de outras pessoas.

Essa história (resumo do conto coreano "A sacola de couro", recontado por Zette Bonaventure, no livro "O que conta o conto?", publicado pelas Editoras Paulinas) nos faz refletir sobre quantos contos já não se perderam por falta de alguém que os contasse. Quem ainda se lembra de Pele de Asno, de A Moura Torta e das façanhas de Mata Sete? Esses e tantos outros estão à espera de serem servidos como um banquete a crianças ávidas de aventuras e emoções.

Esse conto nos remete também a uma outra reflexão: mudaram os tempos, mudam os costumes. À hora de dormir, o sono infantil era embalado por alguém de voz carinhosa que contava, contava e recontava mil e uma aventuras, abrindo as portas para o mundo da ficção. É evidente que poucos tinham criados contadores de histórias. Mas sempre havia uma avó, um pai, mãe ou tia a fazer, através da oralidade, o primeiro contato da criança com o mundo da fantasia. E era essa fantasia que possibilitava à criança, sem sair do lugar, descobrir outros lugares e outros tempos, vivenciar as mais diferentes emoções (o riso, o choro,a raiva, a tranquilidade), descobrir soluções para os próprios conflitos, viver outros papéis, identificar-se com personagens, enfim abrir os olhos para a vida e ver a vida com outros olhos.

Mudaram os tempos, mudam os costumes. Hoje, poucas famílias conservam o antigo hábito de contar histórias para as crianças à hora de dormir. Para quem ficou a função de provocar a imaginação infantil? Não queremos entrar na polêmica sobre o papel da televisão, nesse aspecto. A nossa preocupação é que a escola, que também deveria suscitar o imaginário infantil, dedica a essa tarefa um tempo insuficiente para obter algum resultado minimamente satisfatório.

Acreditamos que o professor, enquanto verdadeiro agente da ação educativa, deve tomar para si a função de estimular a imaginação dos alunos contando histórias de maneira natural, e sempre, não apenas na restrita "hora do conto". Vários são os momentos propícios para isso: um fato é melhor entendido se acompanhado de sua história: a história das grandes descobertas e invenções, as lendas, a história dos vencidos, a história da matemática, da mitologia greco-romana, por exemplo, podem servir como elementos instigadores da imaginação do aluno, levando-os a questionar, a formular hipóteses, a inventar outras histórias.

Ao contar histórias, o professor estabelece com o aluno um clima de cumplicidade que os remete à época dos antigos contadores que, em volta do fogo, contavam a uma platéia atenta as histórias de seu povo, as origens das coisas, os costumes, os valores etc. Para que não precisemos inventar a roda a cada dia, é necessário que o patrimônio cultural que a humanidade acumulou durante séculos seja conhecido pelas novas gerações. E nada melhor do que contar histórias, para fazer reviver o que existe na memória coletiva. A esse respeito o escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu em A paixão de dizer/2:

"Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória, coletiva, está todo brotado de pessoinhas" (O livro dos abraços, L&PM).

É que, ao narrar um conto da memória coletiva, o professor/contador reativa uma cadeia de contadores de histórias que vem do início das civilizações até os nossos dias. É difícil imaginar, por exemplo, por quantas bocas passou o conto "Festa no Céu" (cujos registros em cerâmica e tapeçaria datam do século IV A.C., como relata Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque, em Kayuá - o dom da palavra, monografia não editada, 1998) para chegar aos nossos dias, contando uma história tão atual como a das artimanhas de alguém que quer entrar numa festa como "penetra", por não ter sido convidado. A voz do contador de história perpetuou esse e outros contos da tradição oral. Nas sociedades primitivas africanas, ainda não abrangidas pela escrita sistematizada, os contadores de histórias (os "griots"), considerados verdadeiras bibliotecas vivas, são poupados até das guerras "paraque continuem narrando as proezas dos povos africanos" (Barbosa, R. A., Bichos da África 2, editora Melhoramentos). A importância desses contadores de histórias é tal que, segundo Alex Haley, em Negras Raízes (editora do Círculo do Livro), "quando um griot morre é como se toda uma biblioteca tivesse sido arrasada pelo fogo".

Mudaram os tempos, mudam os costumes. A platéia não se reúne mais em volta do fogo, mas numa escola: as histórias saídas da boca do velho contador foram parar dentro dos livros. Os contadores de histórias, no entanto, continuam sendo cada vez mais necessários. Por quê? É preciso lembrar que os livros só são úteis se existissem leitores. A escola, preocupada com a ação de ensinar a ler, relegou a um último plano a formação de leitores, assunto complexo, mas que certamente passa pelo estímulo à leitura pelo simples prazer de ler. Ler pelo gosto de ler, sem cobrança maior que a de deixar a imaginação correr solta para criar outros mundos. Então os contadores de histórias, os professores contadores de histórias são necessários, sim. São eles o elo entre a criança e o livro. Enquanto ouve uma história, o aluno transforma-se em produtor de texto, em co-autor da história que lhe é contada, pois com as pistas que a voz do contador lhe oferece, desenha na cabeça épocas, lugares, personagens. E a voz do contador, atenta à reação da platéia, alteia-se, sussurra, faz pausas, treme, transforma a leitura do conto num mágico momento de cumplicidade. Terminada a história, o ouvinte quer prolongar seu prazer de ouvir. É a hora em que o professor contador deve promover o encontro entre o aluno e o livro onde está a história contada; é a hora de ler o registro escrito e a ilustração, é a hora de confirmar/negar as hipóteses levantadas enquanto a história era ouvida. É também a hora em que o ouvinte/leitor percebe que pode reler os trechos de que mais gostou, pular páginas, ler uma frase aqui, outra ali, enfim, pode escolher o rumo de sua leitura e ir em busca de outras histórias do mesmo autor ou de outras histórias do mesmo gênero, trilhando os caminhos para a sua formação de leitor crítico, constatando, cotejando, transformando, como diz o Prof. Dr. Ezequiel T. Silva, em O ato de ler (editora Cortez: Autores Associados).

O que temos comprovado na prática é que, depois de ouvir uma história bem contada, a reação imediata do aluno é pedir o livro para ler. O professor que se preocupa com a promoção da leitura deve disponibilizar para os alunos livros dos mais variados gêneros e autores, gibis, jornais e revistas, de forma a possibilitar-lhes a ampliação do repertório enquanto leitores.

O ser humano é, por natureza, contador de histórias. Algumas técnicas e vivências podem ajudar o professor a utilizar bem essa característica que lhe é própria. Dessa forma, a atividade de contar histórias pode se transformar num importantíssimo recurso de formação do leitor para toda a vida e não apenas para a escola.

Fontes:
Leia Brasil
Imagem = http://aycorrea.blogspot.com

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Edmar Japiassú Maia (Barafundas Natalinas)

A minha casa é uma baderna só,
por conta do Natal que se aproxima.
Um penico – de estilo rococó –
“ornando” a sala, atesta o intenso clima...

Exalando um aroma de dar dó,
a íntima peça, lá da mesa em cima,
por sua higiene e o porte do “fiofó”,
a dona denuncia: a gorda prima!

Junto às travessas para as rabanadas,
as tigelas dos gatos são lavadas,
escorridas e envoltas num filó...

Já pinguço, entre frascos e risoles,
vovô nota o sumiço, em meio aos goles,
de um material pra exame...de vovó!
- - - - - - - - - - - - -

É um desejo que me abrasa
no Natal que se avizinha:
de que a festa em sua casa
não seja a cópia da minha!

Feliz Natal!   
-
Fonte:
O Autor

Francisco Pessoa (Caderno de Trovas)

-
A cobiça sendo um vício
e a renúncia salutar,
nosso menor sacrifício
é saber renunciar.

Aconteça o que aconteça
eu nunca vou desistir…
por trás da nuvem espessa,
tem sempre um sol a sorrir!

À minha mulher confesso:
- Na atual encarnação,
para apressar teu progresso
sou a tua expiação!.

Aquele pé de carvalho
plantado em minha lembrança,
cintila gotas de orvalho
quando me vejo criança.

À tardinha, todo dia,
assisto o chegar do trem,
esperando por Maria
só que Maria não vem.

A poça d’água na rua
de repente se prateia…
espelho tosco da lua
em noite de lua cheia.

As estrelas não fenecem
perante à luz que encandeia,
mas docemente adormecem
se a noite é de lua cheia.

Com mais acerto que erro
sem querer ser um vestal,
só mesmo em convite-enterro
sou notícia de jornal!

De forma vil, ilusória,
o falaz aos ventos, berra,
cantando sua vitória
sem ter terminado a guerra!

Eis o grande desafio
para quem se diz cristão:
ter que dizer, renuncio,
em favor de um outro irmão!

É quando a noite se enluta
envolta num intenso véu,
que a estrelinha diminuta
empresta luz para o céu.

Esplendor tens, de tal monta,
quando passeias na praça,
que a lua se esconde, tonta,
atrás da nuvem que passa.

Esta vidinha da gente
tal a serra é mesmo assim…
ora subida ou vertente
num sobe e desce sem fim.

Faça-se a luz! E ao fazê-la
com muito amor e carinho,
Deus colocou uma estrela
a clarear meu caminho.

Feliz da vida se logra
o Zeca exibe o caneco,
que ele trocou pela sogra
na feira de cacareco.

Homem com muitos trejeitos,
mulher com muita feiúra
para mim são dois defeitos
que nem com reza tem cura!

Já que não posso mantê-las
ao alcance do meu braço,
eu canto minhas estrelas
em cada verso que faço.

Mãe é palavra seleta
por si só uma obra prima,
pois mesmo o maior poeta
procura e não acha rima!

Mesmo que lhe desagrade,
dentre os sabores prefira
o amargo de uma verdade
ao doce de uma mentira.

Minha mãe, quanta lembrança,
quem me dera tal jaez…
eu voltar a ser criança
começar tudo outra vez.

Minhas lágrimas vertidas
por entre dobras de rugas,
são saudades incontidas
do meu passado... são fugas!

Na avenida do fracasso
onde a humanidade avança,
em cada esquina que passo
eu planto um pé de esperança.

Não há placa de chegada
na minha estrada da vida…
faço de cada parada
novo ponto de partida.

Na solidão com frequência
escutamos uma voz…
deve ser nossa consciência
querendo falar por nós!

Nas veredas tortuosas
dessa vida em desalinhos,
nas retas eu colho as rosas
nas curvas tiro os espinhos.

Noel Rosa, quem diria,
sem cigarro e sem chapéu,
chegou só, sem parceria,
pra fazer samba no céu.

Noitinha volto da roça
e Rosa com seu pudor,
apaga a luz da palhoça
pra gente fazer amor.

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!

Nossas faces, pergaminho,
rastro do tempo que, algoz,
não apagou o carinho
que ainda existe entre nós!

Nossa vida não tem prazo
e tal o dia, é assim:
um surgimento, um ocaso,
que por acaso é sem fim!

Nos trigais do sentimento
que contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.

O amor seria fecundo
como tal se espalharia,
se toda mãe que há no mundo
tivesse um nome…Maria!

O intenso amor que nos une
e nos completa, querida,
faz a nossa vida imune
às incertezas da vida.

O inverno se me avizinha
e, no espelho, a contragosto,
vejo que o tempo caminha
deixando o rastro em meu rosto.

O meu amor quis safar-se
de mim, então me escondi;
de rosa era seu disfarce…
fui, sorrateiro, e a colhi!

O nosso amor passageiro
tal orvalho evaporou…
nasceu e morreu ligeiro,
que nem saudade deixou.

O pó que emana do giz
e o salário sem valor,
tornam bem mais infeliz
a vida do professor!

O sentimento de culpa
se esconde na consciencia
de quem fere e se desculpa
a suplicar inocência.

Os gritos de liberdade
abafados por censuras,
viram ecos de piedade
nos porões das ditaduras.

O sol, gigante centelha,
torna-se mais colossal,
quando nascendo se espelha
nas águas do pantanal.

Por mais que em ti não pensasse
uma lágrima escorria,
irrigando a minha face,
onde eu plantei nostalgia.

Por sofrer tantos açoites
nos meus momentos tristonhos,
pus redoma em minhas noites
para prender-te em meus sonhos

Quando o sol arquiva o dia
e o expediente se encerra,
ecoa a Ave-Maria
nos escritórios da serra!

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão…
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!

Quem diz ter brilho e alardeia
desdenhando o semelhante,
esquece que a lua cheia
tem seus dias de minguante!

Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se
mas não engana a si mesmo!

Quem não quer vencer a estrada
como faz o peregrino,
dobra sempre a esquina errada
na contramão do destino.

Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
Nó que se dá, no passado,
e se desfaz no presente.

Sem usar pincel ou tinta
apenas com seu clarão,
a lua cheia repinta
as veredas do sertão.

Soluça vazia, a rede,
o armador emudeceu,
marcas de pé, na parede,
choram tanto quanto eu!…

Subo às nuvens… fantasia…
e para o amor espalhar,
solto minha poesia
com rimas soltas ao ar.

Todo indivíduo que é tolo
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo…
só tem a casca por fora!

Vai estudante, buscar
conhecimento fecundo
pois, és a pedra angular
na construção do teu mundo!

Ferdinando Fernandes (Caderno de Trovas)

-
A boa fada da sorte
Te pôs um dia a meu lado;
Dizendo que só a morte,
Faz este amor acabado.

A chorar vivi cantando
Cantando vivo a chorar,
Se eu a cantar vou chorando
A chorar quero cantar…

Alma de corpo franzino
Anjo ridente dos céus,
Sofres já de pequenino
Como sofrera teu Deus.

Andorinha que partiste
Pra terras de mais calor;
Leva minha alma triste,
Que anda à procura de amor.

Ao ver-te bailar contente
Com um filho no braçado,
Eu recordo docemente
Loucuras de ano passado…

Arranjei-te sem saber
Pensando a sorte encontrar;
Hoje mesmo sem te ver,
Fico cheio de te olhar.

A saudade é lenço branco
Que nos chama sem parar,
O sentimento mais franco
Que muito diz sem falar.

A sonhar juntos, Maria
Fizemos o arraial,
E nos folguedos do dia
Fizemos fogueira igual.

Caminhemos mão em mão
Fulcro de amor e alegria;
Só assim no coração,
Há Natal em cada dia!!

Cobrir crianças despidas
Tornar o mundo igual,
Cativar almas perdidas
Seria o meu ideal…

Conta lá os teus segredos
Loucuras… horas a fio;
A água sai dos rochedos,
E vai cantando até ao rio.

Cravos vermelhos à porta
Mangericos na sacada,
Mas se a fogueira está morta
Que vale a cinza apagada.

Criança, anjo sagrado
Sem rua sem lar nem pais,
Serve pro homem malvado
Em seus fins materiais.

De pequeno desconheço
Maldades que a vida tem;
Agora que a conheço,
Vivo nela com desdém.

Deves ouvir meu conselho
Quando te julgas um santo;
Olha-te bem ao espelho,
E depois despe o teu manto.

Dizes ser rico e nobre…
Esquece lá a fantasia,
Pois a fogueira do pobre
Dá mais calor e alegria.

Dizes te julgas perdida
Pra mim tens tanto valor,
Pois quem aquece outra vida
Tem que ter muito calor!

Em cada dia que passa
Mais vergonha tenho eu,
De ser fruto desta massa
Que em mim encarneceu.

É melhor comer o pão
Embora duro que seja,
Que ser na vida ladrão
E deitar fora o que sobeja.

Em quatro linhas ficou
Tantos sonhos e magias;
Que no teu peito moldou,
Aquilo que não sabias…

Esse beijo ainda gritante
Em quatro lábios ficado;
Ainda lembra constante,
As loucuras do passado…

Esta dor que atormenta
Este meu peito em saudade.
É choro que se lamenta
Dos tempos da mocidade…

Eu nascera só pra ti
Na vida que me foi dada!
Fogueira que eu revivi,
Com cinza quase apagada.

Eu vivi triste na vida
Destino que Deus me deu,
Foi de uma alma sentida
Que a alegria nasceu!

Foi nas urzes do caminho
Que eu vira o trevo feliz,
Não o quis, fiquei sozinho
A sorte só eu a fiz…

Fui à fonte para te ver
E quando lá te encontrei,
Depois de tanto beber
Com outra sede fiquei…

Fui primavera ridente
E hoje que não sou nada;
Sou pobre que ri contente,
Na vida que me foi dada.

Hoje estás abandonada
Só por loucuras de amor.
Mas a rosa por cheirada,
Nunca perde o seu valor!

Já basta o que tem por sina
A vida do pobrezinho…
O homem ainda lhe ensina
A ser trapo do caminho!

Lágrima caída no rosto
Dos teus olhos cor do mar;
Lembra a vida em sol posto,
Saudade sempre a chamar…

Mentiras que o outro diz
Não acredites amor;
Pois planta sem raíz,
Não alimenta a flor.

Meu amor de mim tem dó
Sou coração enjeitado…
Por fraca que seja a mó
Dá sempre o milho ralado.

Meu amor olha pra mim
Preciso do teu sorrir,
Como a rosa no jardim
Do sol para florir.

Morena que vais pra fonte
De cantarinha na mão;
Choras tristezas pelo monte,
Das saudades que lá vão.

Nada há que determine
Os traços que a vida tem;
Nem há sol que ilumine,
O negrume do desdém.

Na farsa da ilusão
Tudo anseias com fervor;
Podes comprar a razão
Mas não compras o amor.

Não dês esmola por vaidade
Inda que seja um vintém,
Podes ferir sem maldade
Aquele que nada tem…

Não escrevo para entreter
Mas escrevendo a dor acalma.
Nunca se pode esconder,
Tristezas que vem da alma.

Não me olhes descontente
Pelos meus loucos folguedos;
O rio corre contente,
Sem dar contas aos rochedos.

Não penses que não te amo
Porque te não presenteio,
Pois o amor é um ramo
Que vive no nosso meio.

Não posso gostar de alguém
Só porque gosta de mim.
A primavera não vem
Só porque existe um jardim.

Não procures viver só
Faz do pobre companheiro,
Pois que seria da mó
Se não tivesse o moleiro…

Não te julgues desgraçada
Se a má sorte te persegue;
Existe pior calçada,
Que aquela que agente segue.

Não venhas flores um dia
À minha campa depôr,
Pois tudo foi fantasia
Que me falava de Amor.

Nessa noite de ilusão
A dançar te conheci,
E ao sentir teu coração
Logo fogueira acendi.

Nesta dor feita alegria
Algo de estranho acontece,
Ante meus olhos é dia
Dentro em meu peito anoitece.

No altar desse teu peito
É minha prisão de amor,
É capelinha que enfeito
Com somente uma flor.

No choro do meu olhar
Há risos em gargalhadas;
É a saudade a mostrar,
As saudosas madrugadas.

No mundo vivi sonhando
E a sonhar envelheci,
E a sonhar vou ficando
Pequeno como nasci.

No parlamento da vida
É só mísera ilusão…
Depois da lista escolhida,
Ainda é maior o ladrão!

No parlamento da vida
Todos querem mandar mais…
Pois a seara perdida,
Faz tentar mais os pardais.

No teu regaço dormi…
Como em cama de jasmim
Foi no teu sonho que eu vi,
O quanto gostas de mim!

Nunca odeies meu amigo
Mesmo que tenhas razão;
Pois não é só o mendigo,
Que necessita de pão.

Nunca sonhei ilusões
Riquezas…luxos sem fim;
Pois os mais belos brasões,
São os teus olhos pra mim.

Nunca te esqueço meu bem
Como mais terna donzela.
Primavera vai e vem,
E a rosa espera por ela!

Nunca te julgues vencida
És um anjo aos olhos meus.
Mesmo uma filha perdida,
É sempre filha de Deus.

Ó belo trevo da sorte
Quem foi que te semeou?…
Talvez alma de má porte
E nunca mais te encontrou.

O choro que existe em mim
Nem sempre é feito de dor,
Nem sempre a vida tem fim
Quando acaba um grande amor.

O homem tanto promete
E nunca cumpre o que diz,
E dos erros que comete
Não quer ser ele o juiz.

Olhei pra ti com desejo
E com desejo fiquei;
Pois nesse rosto que vejo,
Está o sonho que sonhei.

Olhei-te de olhos fechados
De olhos abertos fiquei;
Nesses teus lábios rosados,
Ficou o que desejei.

Olho na vida o passante
Meu irmão de cada hora,
Meu companheiro errante
Ferido com a mesma espora.

O manjerico velhinho
Outra vez reverdeceu,
Mas está morto o teu carinho
Esse pra sempre morreu.

Ó meu amor, teu dançar
Tem graça tem alegria,
Pode a roda cheia estar
Mas sem ti está vazia.

O pobre que nada tem
Que na vida não tem norte,
Não dá contas a ninguém
Quando lhe chegar a morte.

O poeta é mensageiro
Na luta pela igualdade…
Luta sempre companheiro
Em abraço de amizade.

Ó rio de água serena
Que vais chorando pro mar;
Ao chorares a tua pena,
Chora também meu penar.

O trevo nasce no prado
Sem ninguém o semear,
A sorte não é mercado
Que se consiga comprar.

Porque nasci afinal…
Neste monturo sem vida,
Só vi choros, só vi mal
Só vi peitos sem guarida.

Por ti chorei, e afinal
Meu pranto nada valeu,
Que importa um amor leal
Se outro amor nunca nasceu.

Possuir a felicidade
É um sonho tão profundo…
Que até penso com saudade
Que não existe no mundo.

Primavera é sempre igual
Todos anos traz flores,
Mas a vida tem final
Leva consigo os amores.

Proibir a mendicidade…
Faz o homem sem pensar,
Mas não proíbe a caridade
Nem a vontade de dar.

Prometes-te e não cumpris-te
Sofre alguém esse teu porte;
O coração que feris-te,
Te pede contas na morte.

Quando eu um dia me for…
Não me chores, minha querida;
Pois quem morre por amor
Fica sempre nesta vida!

Quem me dera ser a lua
Num vaivém sempre a rodar,
Iluminar tua rua…
E no teu quarto espreitar.

Quero levar a saudade
Quando desta vida for…
É sonho da mocidade
Que sempre falou de amor.

Repara bem ao dançares
Que não te calquem os pés,
E se de par tu trocares
Podem te dar pontapés.

Risonhos dias vivi
Na vida que me foi dada,
Mas hoje já tudo esqueci
Desse sonho que foi nada.

Rosa branca que venero
Neste jardim de saudade;
És o amor mais sincero,
Que ficou da mocidade.

Se a desgraça fosse pão
Que a todos fome mata-se,
Eu não teria um irmão
Que na vida mendigasse.

Se a fogueira se apagou
Não te importes meu amor,
Outro fogo começou
Que dá muito mais calor.

Se a lei tudo castiga
Eu não sei porque razão…
Ou tudo é canto ou cantiga
Pra todos comer o pão.

Se algo sofri não sei quanto
E não sei quando nasci…
Pois tudo hoje é só pranto
Da mentira em que vivi.

Se a saudade é letra morta
Não o posso afirmar…
Só sei que me bate à porta
Mesmo sem eu a chamar!

Se a sorte nasce no prado
Sem ninguém a semear;
Triste sina este meu fado
Não consigo encontrar.

Se na vida não fui nada
Nada me deram pra ser,
Nasci de uma vida errada
Culpa teve o meu nascer.

Se o Sol tudo aquece
Só o comparo então;
Ao amor que se merece,
E aquece o coração.

Ser bem pobre e não ter nada
É dom que Deus nos legou;
Quando a vida terminada,
Vai cantar o que chorou.

Sonhando pela vida afora
Saudades feitas por mim…
Mas só me apercebo agora
Que este sonho está no fim.

Sonhei contigo, e a sonhar
Corri distâncias sem fim…
Pois só sei que ao acordar,
Estavas pertinho de mim.

Sou filho que por desgraça
Nada tenho pra comer,
Se ás vezes riu por graça
Sou hipócrita sem querer.

Tempo que passa é saudade
De algo que fica chorando.
São sonhos da mocidade
Que ficam por nós chamando.

Tudo lembro com saudade
Dos tempos que já lá vão,
Mas só vejo a bondade
Distante do coração.

Tu me deste a luz da alma
De um sonho quase acabado;
Hoje te oferto a vida calma,
Que abraçamos lado a lado.

Um português a cantar
Faz de uma trova canção,
Depois do verde provar
Canta por uma Nação.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Nemésio Prata (A Seca no Sertão em Trovas) 2


Folclore Africano – Tribo Bantu (O Taumaturgo das Planícies)

A tribo bantu habita os distritos de Lourenço Marques, Gaza e Sofala, em Moçambique, cujos membros têm o nome de Ba-Rongas. Sua língua é o xironga, vulgarmente chamada landim.
Era uma vez um homem e uma mulher que tiveram primeiro um filho, depois uma filha. Quando foi pago pela jovem o resgate da esposa, e ela casou-se, os progenitores disseram ao filho:

— Temos um rebanho, do qual poderias dispor. Agora já é tempo de que te cases. Escolheremos para ti uma esposa agradável, que seja filha de gente de bem.

Mas o filho recusou redondamente.

— Não — disse ele — não vos ocupeis de tal coisa. Não me agrada nenhuma das moças que aqui vivem. Se é preciso que me case, escolherei sozinho aquela que desejo.

— Faze como quiseres — disseram os pais — mas se fores infeliz, mais tarde, não teremos culpa disso.

Então, o moço partiu, deixou sua terra, e foi para muito, muito longe, para uma região desconhecida. Finalmente, chegou a uma aldeia onde viu um grupo de jovens, algumas que moiam o grão, outras que cozinhavam. Fèz secretamente sua escolha, e disse consigo:

— Aquela é a que me agrada.

Então, aproximou-se dos homens da aldeia, e disse:

— Bom dia, mestres.

—  Bom dia, jovenzinho — responderam eles. — Que desejas?

— Quero contemplar vossas filhas, pois desejo casar-me.

— Muito bem, muito bem — disseram os homens — vamos mostrar-tas, e assim poderás escolher.

Dito isto, fizeram desfilar diante dele todas as suas filhas, e ele indicou a que desejava. A moça consentiu imediatamente.

— Os teus pais, pensamos, virão visitar-nos e trazer o resgate da esposa, não é isso? — perguntaram os pais da moça.

— Não, nada disso — respondeu o jovenzinho. — O resgate trago eu comigo. Tomai: aqui está.

— Então — continuaram eles — virão mais tarde, esperamos, para acompanhar tua mulher à tua casa?

— Não, não, tenho medo de que venham apenas para angustiar-vos com suas duras advertências à jovem. Deixai que eu a leve agora mesmo.

Os pais da jovem acederam ao pedido, mas ainda uma vez chamaram a filha de parte, na cabana, para aconselhar-lhe como devia comportar-se.

— Sê boa para com teus sogros e cuida bastante de teu marido!

Depois, ofereceram ao jovem casal uma moça, que seria de auxílio nos serviços domésticos. Mas a noiva recusou. Duas, dez, vinte moças lhe foram oferecidas, para que escolhesse. Antes de oferecer-lhas examinavam cuidadosamente todas as jovens.

— Não — insistia ela — não quero. Em vez disso, dai-me o búfalo da região, nosso búfalo, o Taumaturgo das Planícies. Deixai que êle me sirva.

— Como podes pedir tal coisa? — disseram-lhe. — Sabes que nossa vida depende dele. Aqui cuidamos dele, mas como

te arranjarias com ele, numa terra estranha? Ficaria em jejum, morreria, e, então, todos morreríamos com êle.

Antes de deixar os pais, ela apanhou um alguidar onde havia um embrulho de ervas medicinais, um chifre de sangria, uma faquinha para fazer incisões e uma cabaça cheia de gordura.

Depois, partiu com o marido. O búfalo seguia a jovem, mas apenas ela podia vê-lo. O homem não o via. Não suspeitava que o Taumaturgo das Planícies era o servo que acompanhava sua mulher.

Assim que chegaram à aldeia do marido, foram recebidos com gritos jubilosos: "Hoyo! Hoyo!"

— Olhem para êle! — disseram os velhos. — Eis que, afinal, encontrou esposa! Não quis as que aqui tínhamos sugerido, mas isso não importa. Assim está bem. Agiu segundo sua própria vontade. Se, porém, acontecer-lhe arranjar inimigos, não terá direito de se queixar.

O homem levou sua mulher para o campo e mostrou-lhe quais eram os dela e quais eram os de sua mãe. A moça observou cuidadosamente tudo e voltou com êle para a aldeia. No caminho, disse:

— Perdi minhas pérolas no campo, e preciso ir agora mesmo procurá-las.

O que ela queria, entretanto, era apenas ver o búfalo, ao qual disse:

— Aqui é o limite dos campos. Fica aqui! E ali está a floresta, onde podes esconder-te.

— Tens razão — respondeu-lhe êle.

Ora, todas as vezes que a mulher queria água, ia apenas até os campos cultivados e pousava a bilha diante do búfalo. Êle corria ao lago com a bilha, enchia-a e trazia-a para a patroa. Todas as vezes que ela queria lenha, êle corria ao bosque, rebentava as árvores com os cornos, e trazia-lhe quanta lenha a moça quisesse.

A gente da aldeia maravilhava-se com aquilo tudo.

— Como é forte, a moça! — diziam. — Volta sempre do poço, mal para lá seguiu, e num bater de pálpebras apanha braçadas de lenha seca.

Ninguém, contudo, suspeitava que o búfalo a servia.

A mulher, porém, nada levava de comer ao búfalo, porque ela e o marido tinham apenas um prato para os dois. Na casa paterna, naturalmente, os pais dela tinham um prato especial para o Taumaturgo, e alimentavam-no com todo o cuidado. Por isso, o búfalo tinha fome, ali. Ela trazia-lhe sua bilha e mandava-o buscar água. Êle ia, de boa vontade, mas a fome causava-lhe grandes ansiedades.

Um dia ela lhe mostrou um ângulo do silvado para arrotear. Durante a noite o búfalo agarrou uma enxada e tratou de grande parte da área. Todos comentavam:

— Como é esforçada! E como faz depressa o seu trabalho! Uma noite o búfalo disse à patroa:

— Tenho fome, e nada me dás para comer. Logo não conseguirei mais trabalhar.

— Aie! — disse ela. — Que posso fazer? Em casa temos apenas um prato. Os meus tinham razão quando diziam que devias ter começado a roubar. Rouba, então! Vai ao meu campo e come um pouco de favas, aqui e ali. Depois, passa para o outro. Mas não as comas todas no mesmo ponto, pois assim os proprietários poderiam ficar muito preocupados e viriam a cair de pernas para o ar, aterrorizados.

Aquela noite o búfalo foi ao campo. Devorou uma fava aqui, outra acolá, andou de um canto a outro, e por fim foi meter-se de novo em seu esconderijo. Quando pela manhã as mulheres vieram para o campo, não podiam acreditar em seus olhos.

— Ei! Ei! que está acontecendo por aqui? Nunca vimos uma coisa assim! Uma fera destruiu nossas plantas! Nem ao menos podemos seguir-lhe as pegadas. Oh! a pobre terra!

Assim, voltaram correndo e contaram o caso na aldeia.

À noite, a jovem mulher disse ao búfalo:

— Assustaram-se muito, mas não demasiado. Não tombaram de pernas para o ar. Portanto, rouba ainda esta noite!

E êle roubou. As proprietárias dos campos devastados gritaram fortemente, depois foram ter com os homens e pediram-lhes que chamassem os vigilantes, com seus fuzis.

Ora, o marido da jovem era excelente atirador. Portanto, colocou-se no campo e esperou. Mas o búfalo pensou que alguém deveria estar a espera dele onde roubara na noite da

véspera, e assim foi ter às favas de sua patroa, o lugar onde tinha roubado da primeira vez.

— Mas olhem! — gritou o homem. — Aquilo é um búfalo! Jamais vi nenhum como este. É, realmente, um animal estranho.

Disparou. A bala entrou na têmpora do búfalo, perto da orelha, e saiu diretamente pelo outro lado. O Taumaturgo das Planícies fêz uma cabriola e caiu, morto.

— Que belo tiro! — exclamou o caçador. E foi para a aldeia contar o que se passara.

No mesmo momento, porém, a mulher dele começou a gritar de dor, e a contorcer-se.

— Ai, que me dói o estômago! Ai! Ai!

— Acalma-te — disseram-lhe.

Ela parecia doente, mas apenas queria justificar o fato de chorar daquela maneira, e a razão de ter se assustado tanto ao ouvir contar que o búfalo estava morto. Deram-lhe um remédio, mas quando ninguém estava mais prestando atenção, escapuliu dali.

Ora, todos puseram-se a caminho, as mulheres com seus cestos e os homens com as armas, para esquartejar o búfalo. Na aldeia ficou apenas a jovem esposa. Mas, de repente, também ela seguiu os outros, segurando o ventre, choramingando e gritando.

— Por que vens? — disse o marido. — Se estás doente, fica em casa!

— Não, não quero ficar sozinha na aldeia.

A sogra ralhou com ela, dizendo que não compreendia aquelas suas maneiras, e que assim acabaria por matar-se. Quando encheram o cesto de carne, disse ela:

— Deixa-me levá-lo na cabeça.

— Não! Estás doente e pesa demais para ti.

— Não — teimou ela — deixa-me levá-lo!

Assim, carregou-o às costas e levou-o.

Mas quando chegavam à aldeia, em vez de entrar em casa, ela foi para uma barraca onde estavam as panelas, e pôs lá dentro a cabeça do búfalo. Recusou, teimosamente, sair dali. O marido veio procurá-la, a fim de levá-la para a cabana, dizendo-lhe que lá estaria muito melhor, mas ela respondeu, duramente:

te. Convidei-o a vir aqui à aldeia, mas êle recusou, dizendo: "Iriam oferecer-me comida, e isso só faria com que eu me atrasassa". Foi embora no mesmo momento e pediu-me que não me demorasse, se não quiser que minha mãe morra antes da minha chegada. Portanto, adeus, eu me vou!

Naturalmente, tudo aquilo era mentira. Viera-lhe aquela idéia de ir ao lago para poder inventar a tal história e ter uma desculpa para ir informar sua gente sobre a morte do búfalo.

Assim, lá se foi, levando o cesto na cabeça e cantando pela estrada toda o fim da canção do Taumaturgo das Planícies. Onde quer que passasse gente ia se reunindo a ela, acompanhando-a para sua aldeia. Quando ali chegou, anunciou-lhes que o búfalo já não tinha vida.

Então, mandaram mensageiros por toda a parte, a fim de convocar os habitantes da região. Reprovaram violentamente o comportamento da jovem, dizendo:

— Estás vendo? Bem te havíamos prevenido. Mas recusaste todas as moças e quiseste a todo o custo o búfalo. Agora, mataste-nos a todos!

As coisas estavam neste ponto quando o homem, que tinha seguido a mulher até a aldeia, por sua vez chegou. Apoiou o fuzil contra o tronco de uma árvore e sentou-se. Todos o acolheram, gritando:

— Cumprimentos, criminoso, cumprimentos. Mataste todos nós!

Êle não compreendia, e perguntava por que o chamavam assassino e criminoso.

— A verdade é que matei um búfalo, — disse, — mas isso foi tudo.

— Sim, mas aquele búfalo era o servo de tua esposa. Ia buscar água para ela, cortava a lenha, trabalhava no campo.

Estupefato, o homem disse:

— Por que não me disseram isso? Eu não o teria matado.

— Assim estão as coisas — declararam os outros. — A vida de todos nós dependia dele.

Então, começaram todos a cortar o próprio pescoço. A primeira foi a jovem, que, ao fazê-lo, gritou:

— Ah! Meu pai! Taumaturgo das Planícies!

Depois, vieram seus pais, irmãos, irmãs, um depois do outro.

O primeiro disse:

— Deves ir para as trevas! O outro, depois:

— Deves tatear na noite em todas as direções! O que se seguiu:

— És a árvore jovem do milagre que morre antes do tempo!

O seguinte:

— Fazias com que flores e frutos caíssem sobre a tua estrada!

Todos cortaram os próprios pescoços e mataram até as crianças que ainda carregavam às costas, em seus abrigos de pele.

— Para que deixá-las vivas, — diziam, — já que irão perder a razão!

O homem voltou para a sua casa e contou à sua gente de que maneira, disparando sobre o búfalo, êle matara todos. Os pais disseram-lhe:

— Estás vendo? Não te havíamos dito que tombarias em desgraça? Quando te oferecemos uma jovem sensata, que fizesse tudo para ti, quiseste seguir tua cabeça. Agora, perdeste as tuas riquezas. Quem te devolverá o dinheiro que deste pela tua mulher, agora que todos os parentes dela morreram?

Fonte:
http://www.consciencia.org/o-taumaturgo-das-planicies-fabulas-da-africa

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 9 – 21 de dezembro de 1886.

À Carmen Silva, à rainha
Da Rumânia, à delicada,
Egrégia colega minha,
Pelas musas laureada,

Pobre trovador do Rio,
Cantor da pálida lua,
Esta breve carta envio,
E aguardo a resposta sua.

Note bem que lhe não falo
Das suas lindas novelas,
Nem do plácido regalo
Que nos dá com todas elas.

Não, augusta e bela moça,
Não é prosa nem poesia
O meu assunto ...     Ouça, ouça,
Verá que é sensaboria.

Cá se soube que um partido,
Que há muito não dava cacho,
Após combate renhido,
Tomou ao outro o penacho.

Fez-se isso eleitoralmente;
A gente que não queria
O partido então vigente,
Mudou de cenografia.

Se fez bem ou mal, lá isso
É com ela; a culpa inteira
Pertence-lhe de o feitiço
Virar contra a feiticeira.

Mas, como aqui neste canto,
Não há tal eleitorado,
Que faça nunca outro tanto,
E pense em cousas do Estado;

E também porque isto, às vezes,
Está em qualquer cousa (adágio,
Que herdamos dos portugueses,
E tem o nosso sufrágio),

Lembrou-me que poderia
Obter, por seu intermédio,
Para uma tal embolia
O apropriado remédio.

Serão pastilhas? xarope?
Pílulas de qualquer cousa?
Um cozimento de hissope?
Fricções de madeira e lousa?

Seja isto ou seja aquilo,
Peço a Vossa Majestade
Uma amostra, um frasco, um quilo
Para ensaiar na cidade.

Porque, como ora se trata
De uma operação sabida,
Que a gente que se maltrata
Torna a pôr amada e unida,

Operação que dissolve
Os grupos mais separados,
E rapidamente absolve
Todos os ódios passados;

Quisera, logo que esteja
Toda a obra recomposta,
E esta liberal igreja
De novo aos fiéis exposta,

Quisera ver se, tomando
A droga rumaica um dia,
Chegaríamos ao mando
Pela mesma e larga via.

De outro modo ficaremos
Nestas náuticas singelas
De largar o leme e os remos
E abrir à fortuna as velas.

Eia, pois, augusta musa,
Mande-me o remédio santo,
E não vos concedo escusa;
Quero tirar o quebranto.

Quero ver se, finalmente,
Depois de tão larga espera,
A nossa eleitoral gente
É gente, não é quimera.

Para que depois se queixe
De si e das culpas suas,
E por uma vez se deixe
De murmurar pelas ruas.

Vede, flor das maravilhas,
Como esta alma pede e roga:
Mandai-me as vossas pastilhas,
Pílulas ou qualquer droga.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Gilmar de Carvalho (Composição)

Em off-set os jornais que eu engoli. Esteira em sangue sobre a calçada. As manchetes que eu não consigo decifrar em código morse.

                O espaço vazio e as manchas de uma diagramação estética. Letras que se dilatam num contracampo de centeio e se contraem entre os matizes de ferrugem. No claro escuro os logotipos genéticos de uma explosão erótica e  relojoaria. Tipos móbiles: mãos.

                Os arabescos do portão de ferro gravados em teu rosto como maquilagem fantástica ou longos caminhos percorridos por unhas em carnavais passados.

                Teu sorriso em quatro colunas do templo. As folhas murchas de outono cinzas em camadas ou confetti e o chão das ruas.

                O quarteirão vira folhinha de ano bissexto. O papel parede se descola como cascas de feridas remotas. O  sangue dos crimes lava as almas e expia as nossas fraudes eleitorais. Procuro um amor: você, nos classificados dos tabloides especializados.

                Quero teu dente partido e os eixos cromados da rotação da terra em torno de si mesma ou a presença pendular em ampulhetas mágicas. Os raios e diâmetros de círculos concêntricos como discos ou tampas de panelas. Teus cabelos, all those flowers, e a alternância dos pés no fio de pedra da história.

(Gilmar de Carvalho, Pluralia Tantum)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Gilmar de Carvalho

Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho (Sobral, 1949) é Professor da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Autor de Publicidade em Cordel (São Paulo: Maltese, 1994); Madeira Matriz (São Paulo: Annablume, 1999); Patativa do Assaré (Fortaleza: FDR, 2000); Patativa Poeta Pássaro do Assaré (Fortaleza: Omni, 2002), e Desenho Gráfico Popular (São Paulo: IEB/USP, 2000); dentre outros trabalhos acadêmicos. Tem artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. Como ficcionista, publicou Pluralia Tantum (Fortaleza: GRECEL, 1973); Parabelum (Fortaleza: GREEL, 1977); Queima de Arquivo (Fortaleza: SECULT, 1983); Resto de Munição (Fortaleza: SECULT, 1984): Buick Frenesi (Fortaleza: SECULT, 1985); e Pequenas Histórias de Crueldade (Fortaleza: SECULT, 1987).

Entre os que acreditaram ter concluído sua obra de contista está Gilmar de Carvalho. No entanto, pela singularidade de suas narrativas, não pode ser comparado a nenhum prosador de ficção do Ceará. Não somente porque seus contos são fundados na erudição, seja no latim, no inglês, na História, na Filosofia, na mitologia, na Bíblia etc. Também porque ora escreve como poeta, ora como salmista, ora como ninguém. Juarez Barroso, nas dobras de Pluralia Tantum, diz que a literatura de Gilmar é “uma afirmação de liberdade. Mas ele não fica junto à turma do sereno, ao bloco da contracultura. Formalmente, rejeita o marginalismo artístico, os vanguardismos escandalizantes. Seu estilo é clássico, sua narração, fabular, levemente borgiana. A partir daí ele constrói, ou destrói, ri dos deuses, mais perto de Lúcifer que do Arcanjo São Miguel (afinal de contas, uma figura do establishment), simpatizante dos exus, louvador da pomba-gira, Vênus mestiça e mais sensual, naturalmente”. A seguir se nega chamar de contos os textos de Gilmar. Na verdade, não são contos tradicionais. Em comum com estes apenas o terem títulos, alguns personagens, alguma narração. O resto é bem diferente. Afirma Juarez: “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais de vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão, que tanto trabalho deu ao Senhor com sua rebeldia e sua mania de amor. Amante da vestal romana, consagrada em virgindade ao deus maior, Gilmar, libertário e libertador sofre agora o mesmo castigo de Prometeu. Zeus acorrentou-o ao relógio da Praça do Ferreira, à Coluna da Hora. Que, aliás, não existe mais”.

Publicado em 1973, Pluralia Tantum, de Gilmar de Carvalho, é provavelmente o livro de prosa de ficção mais singular da literatura cearense. Constituída de 41 textos – que poderão ser denominados narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos – a obra inaugural do romancista de Parabelum pareceria alienígena (lato sensu) se posta ao lado dos livros de contos de outros escritores cearenses. Em “composição”, como o título indica, tudo se volta para o compor: “em off-set os jornais”, “manchetes”, “diagramação”, “letras”, “logotipos genéticos”, “tipos móbiles”, “quatro colunas”, “folhinha”, “papel parede”, “sangue dos crimes” (nos jornais), “classificados dos tabloides”. Um dos textos é intitulado “um conto”, como a deixar bem claro que os outros não são contos. Nele há diálogos (com travessão), narração e personagens, embora não identificados. No entanto, “trajetória” é uma narrativa quase linear. Há um enredo, uma cadeia de pequenos fatos, uma história, que podem ser percebidos claramente nos seguintes trechos de frases: “proferem um palavrão”, “uma freada brusca”, “anúncio de Coca-Cola”, “andou”, “apressou o passo”, “cruzou com um desconhecido”, “um bar”, “um velho desenrolava um embrulho”, “precisava chegar logo”, “viu pessoas”, “subiu o primeiro degrau”.

Busque-se em Pluralia Tantum o drama e o leitor encontrará algo entre o conflito e o não-conflito. O tempo é medido como numa roda-gigante, estonteante. O espaço da ação é poucas vezes mencionado ou não tem nenhuma importância: “Já vi e revi os lugares santos e os comuns” (“hollywood”). E os personagens onde estão, quem são? Em algumas composições apenas um “narrador” se mostra, fala: “O rapaz morto sou eu” (...), como se vê em “laudatio”.

Em alguns “contos” de Gilmar não se percebe um enredo claro, mas somente fiapos (frases) de um enredo esgarçado, de um tecido rasgado, esticado, esfiapado (“memory”). Pode-se falar também em enredo diluído (“hermenêutica”).

O latim e a Bíblia são fontes permanentes de enredo nesta obra de Gilmar. O estudo “plvralia tantvm”, que dá título ao volume (com o “v” latino transformado em “u”), é nada mais do que uma explicação de alguns plurais: exéquias, férias, núpcias, alvíssaras, primícias, anais (subtítulos), e a decodificação de uma oração latina. Na parte intitulada “teodiceia”, composta de sete escrituras, os temas bíblicos estão muito presentes. Em “teodisseia” a eles se juntam os mitos de Ulysses, Penélope, Zeus, Posseidon, isto é, a mitologia grega. Contudo, em “genesis” e “exodos” se podem ler reescrituras desses livros.   Em “o jardineiro cego” se conta a reinvenção do pecado original, sendo o jardineiro personagem simbólico. Embora não ligado diretamente a temas bíblicos, “gaia scientia” também se constrói sobre a ideologia cristã: o tribunal da inquisição.

Crônicas ou crônicas-poemas podem ser vistas na parte intitulada “minas”. A primeira, “entradas e bandeiras”, é crônica histórica; “minas novas”, “minas novas: porões”, “doroteia” e “o inconfidente” são crônicas-poemas. Outras composições podem ser designadas como verbetes, à falta de outro termo, como na parte “orixás do ceará”. Pois não são contos nem crônicas nem poemas. Nelas há como que um misto de alguns gêneros da prosa de ficção. Em “nanã”, por exemplo, leem-se definições como nos verbetes: “Nanã é dama de antigas cortes” (...); “Nanã é senhora de todas as cachoeiras” (...); “Nanã é força a mover antigas moendas” (...) Entretanto, há um personagem, um narrador: “Nanã me contou histórias” (...). Em “oxossi” aparece a figura de Dom Sebastião, o iluminado. Em “omulu” se pode ler uma lenda ou como narrar uma lenda. “yemanjá” seria uma narração (não uma narrativa). Em “iansã” se vê um narrador (“Uma Iansã me saudou: eparrê”) e a protagonista, com tratamento na segunda pessoa.

Os personagens de Gilmar de Carvalho são quase todos distorcidos, como se vistos de um espelho quebrado ou opaco. Além disso, são pequenos, quase microscópicos, sem muita importância no contexto. Um ou outro se sobressai, como Patrícia Chantal. Talvez porque personagem de uma história ou, mais do que isso, protagonista. Em “memory” Luzia é tão pequena que parece personagem secundária de uma historinha. Dividido em três segmentos, o conto teria começo (ludus), meio (parábola) e fim (conclusão), o que não é real. Luzia aparece no segundo segmento e logo desaparece, para dar lugar ao narrador, que não se refere a ela, a não ser no plural: “a gente ouvia sempre”, “ao nosso alcance”, “Nós estamos gastos”, “Somos estátuas”, “Nossa vista”. E esse plural pode até se referir ao todo, à humanidade.

                Na parte intitulada “legendas”, que comporta “gesta”, “legenda”, “hollywood”, “as aventuras de carmem miranda” e “sweet hunters”, Gilmar se volta para a História ou para personagens históricos. Na primeira encontram-se Roland, El Cid, Rei Artur, Charlemagne, Ricardo Coração de Leão, Luís IX, a camponesa de Domrémy e outros. É como se o escritor escrevesse legendas de gravuras clássicas, descrevesse fisionomias, indumentárias, espíritos, cenários e compusesse ou narrasse cada uma das “histórias” à sua maneira. Em “legenda” (“Legenda é substantivo abstrato: a revivificação da fantasia”) não há personagem, a não ser o narrador e o outro, o tu: “A fada bondosa me prometeu te conhecer e seduzir.” Em “hollywood” personagens como Marylin Monroe, Carmem Miranda, Darryl Zanuck, Shirley Temple, Jean Harlow, Teda Bara, Carlitos passeiam pelo tempo e o espaço, como simples imagens de “álbuns de colagens”. A cantora reaparece na legenda seguinte: personagem (“servidor federal lotado na farmácia do INPS”) se fantasia de Carmem Miranda, para logo desaparecer de cena e dar lugar à própria artista, sua trajetória, suas relações com Getúlio Vargas etc. Por último os gentis caçadores de “sweet hunters”, as cenas de caça, a pontaria, “morte é passatempo e ludus”, trombetas, alçapões, e um duelo: “Tu escolheste as armas e este lugar”, a cerimônia, o ideal romântico, o ajuste de antigas contas, os padrinhos que verificam as armas. Descrição de um quadro e narração de outra caçada (“Tento te laçar enquanto te refugias em becos e esquinas”), outra busca de posse ou morte (caçador e caça, fera e presa, homem e mulher): “Imagino te possuir, estupro, em qualquer calçada ou em terrenos baldios de subúrbios.”

Talvez a principal característica de Gilmar seja a própria linguagem ou a sua manipulação. Pode-se falar até num jogo de palavras: “mosteiro da paciência”, “confeitado de glacê e conchas”, “A primeira sexta-feira, o segundo sábado, o terceiro domingo, a quarta-feira têxtil agrícola” (“a vida pregressa de patrícia chantal”). Percebe-se o uso do lugar-comum, porém retorcido, reinventado: “clássico (das multidões) da língua vernácula”, “cotação de ações e omissões”, “poema processo civil”, “cores pastéis e sanduíches”, “amor enfim achado e perdido”, “dentes e presas de guerra” (“monástica”). Às vezes o escritor se vale de expressões tornadas clássicas para lhes dar outro significado: “No princípio era o ponto e a perspectiva de retas”, “a luz negra do quinto dos infernos”, “nexo de causa e efeito” (“laudatio”). Observa-se, ainda, o corte incisivo da frase, da oração, com a supressão de verbos: “As línguas de fogo lançadas pelos dragões incontidos pelos jatos d’água sulfurosa” (idem). Ou “McCartney na sala cortinas fechadas” (“gymnástica”).

                Descrição de personagem se pode ver com frequência em Pluralia Tantum, como em “a vida pregressa de patrícia chantal”: “Loura celebrada, imaculada de homens em todas as portas” (...); “Vamp/vampiresca e suburbana criatura, pontifica nos anais da polícia e nos bastidores dos teatros de revista marrons amenos.”

                Raros são os diálogos neste livro de Gilmar. Mais se assemelham a falas teatrais, como se lê na primeira história (uma das poucas do livro): “Médico – o vento varre as ruas” (...) “Mãe – o rio deve seguir para leste.” Em outro trecho Sogra e Chantal (nora) conversam. As falas são antecedidas de travessões. No entanto, os nomes das personagens só aparecem na primeira fala de cada uma. Os personagens são identificados ou nominados como em peças de teatro.

Muitas vezes o narrador de Gilmar não é propriamente narrador, mas espécie de salmista (“philarmónica”). Outras vezes o narrador fala a outro personagem (oculto), que pode ser visto como protagonista (“termas”). O tratamento dado a este é sempre na segunda pessoa, sem citar nome: “tua virgindade”, “tua solidão”, “teu cansaço”, “tua veste branca”, “tuas formas”, “tua loucura” (idem). O mesmo modo de narrar pode ser encontrado em “dez anos depois”, que tem no desfecho esta fala: “Tu és meu personagem preferido” (...) Em “teodisseia” (teo + odisseia) personagem faz perguntas curtas a um deus ou a uma pitonisa. As respostas soam como narrações, com alguns jogos de palavras e expressões: “O peso argentino líquido e certo”, “rendas per capita tecidas por bilros e fusos horários”.

                Como observou Juarez Barroso, nas abas do livro, “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão” (...). Pois fiquemos com esta definição: Gilmar de Carvalho é um compositor de cantos em prosa, de narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos. Um escritor singularíssimo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.