domingo, 29 de dezembro de 2013

Irmãos Grimm (O Fiel João)

Houve uma vez, um velho rei que, sentindo-se muito doente pensou:

"Este será o meu leito de morte!" – disse então aos que o cercavam:

- Chamem o meu fiel João.

O fiel João era o seu criado predileto, assim chamado porque durante toda a vida, fora-lhe extremamente fiel. Portanto, quando se aproximou do leito onde estava o rei, este lhe disse:

- Meu fidelíssimo João, sinto que estou me aproximando do fim; nada me preocupa, a não ser o futuro do meu filho; é um rapaz ainda inexperiente e, se não me prometeres ensinar-lhe tudo e orientá-lo no que deve saber, assim como ser para ele um pai adotivo, não poderei fechar os olhos em paz.

- Não o abandonarei nunca – respondeu o fiel João – e prometo servi-lo com toda a lealdade, mesmo que isso me custe a vida.

- Agora morro contente e em paz – exclamou o velho rei, e acrescentou: - depois da minha morte, deves mostrar-lhe todo o castelo, os aposentos, as salas e os subterrâneos todos, com os tesouros que encerram. Exceto, porém, o ultimo quarto do corredor comprido, onde está escondido o retrato da princesa do Telhado de Ouro; pois, se vir aquele retrato ficara ardentemente apaixonado por ela, cairá um longo desmaio e, por sua causa, correra grandes perigos dos quais eu te peço que o livres e o preserve.

Assim que o fiel João acabou de apertar, ainda uma vez, a mão do velho rei, este silenciou, reclinou a cabeça no travesseiro e morreu.

O velho rei foi enterrado e, passados alguns dias, o fiel João expôs ao príncipe o que lhe havia prometido pouco antes de sua morte, acrescentando:

- Cumprirei minha promessa. Ser-te-ei fiel como o fui para com ele mesmo, mesmo que isso me custe a vida.

Transcorrido o período de luto, o fiel João disse-lhe:

- Já é tempo que tomes conhecimento das riquezas que herdaste; vamos, vou mostrar-te o castelo de teu pai.

Conduziu-o por toda parte, de cima até embaixo, mostrando-lhe os aposentos com o imenso tesouro, evitando, porém uma determinada porta: a do quarto onde se achava o retrato perigoso. Este estava colocado de maneira que ao abrir a porta, era logo visto; e era tão maravilhoso que parecia vivo, tão lindo, tão delicado que nada no mundo lhe podia comparar. O jovem rei notou que o fiel João passava sempre sem parar diante daquela única porta e, curiosamente perguntou:

- E essa porta, porque não abres nunca?

- Não abro porque há lá dentro algo que te assustaria – respondeu o criado.

O jovem rei, porém insistiu:

- Já visitei todo o castelo, agora quero saber o que há lá dentro – E foi se encaminhando, decidido a forçar a porta. O fiel João deteve-o, suplicando:

- Prometi a teu pai, momentos antes de sua morte, que jamais verias o que lá se encontra, porque isso seria causa de grandes desventuras para ti e para mim.

- Não, não – replicou o jovem – a minha desventura será ignorar o que há lá dentro, pois não mais terei sossego, enquanto não conseguir ver com meus próprios olhos. Não sarei daqui enquanto não abrires essa porta.

Vendo que nada adiantava opor-se, o fiel João, com o coração apertado de angustia, procurou no grande molho a chave indicada. Tendo aberto a porta, entrou em primeiro lugar, pensando assim, encobrir com seu corpo a tela, a fim de que o rei não a visse. Nada adiantou, porém, porque o rei erguendo-se nas pontas dos pés, olhou por cima de seu ombro e conseguiu vê-la.

Mal avistou o retrato da belíssima jovem, resplandecente de ouro e pedrarias, caiu por terra desmaiado. O fiel João precipitou-se logo e carregou-o para a cama, enquanto pensava, cheio de aflição: "A desgraça verificou-se; Senhor Deus, que acontecerá agora?" Procurou reanimá-lo, dando-lhe uns goles de vinho, e assim que o rei recuperou os sentidos, suas primeiras palavras foram:

-Ah! De quem é aquele retrato maravilhoso?

-É da princesa do Telhado de Ouro – respondeu o fiel João.

- Meu amor por ela, - acrescentou o rei, - é tão grande que, se todas as folhas das árvores fossem línguas, ainda não bastariam para exprimi-lo; arriscarei, sem hesitar, minha vida para conquistá-la; e tu, meu fidelíssimo João, deves ajudar-me.

O podre criado meditou, longamente, na maneira conveniente de agir; porquanto, era muito difícil chegar à presença da princesa. Após muito refletir, descobriu um meio que lhe pareceu bom e comunicou ao rei.

- Tudo o que a circunda é de ouro: mesas, cadeiras, baixelas, copos, vasilhas, enfim, todos os utensílios de uso doméstico são de ouro. Em teu tesouro há cinco toneladas de ouro; reúne os ourives da corte e manda cinzelar esse ouro; que o transformem em toda espécie de vasos e objetos ornamentais: pássaros, feras e animais exóticos; isso agradará a princesa; apresentar-nos-emos a ela, oferecendo essas coisas todas e tentaremos a sorte.

O rei convocou todos os ourives e estes passaram a trabalhar dia e noite até aprontar aqueles esplêndidos objetos. Uma vez tudo pronto, foi carregado para um navio; o fiel João disfarçou-se em mercador e o rei teve de fazer o mesmo para não ser reconhecido. Em seguida zarparam, navegando longos dias até chegarem à cidade onde morava a princesa do Telhado de Ouro.

O fiel João aconselhou o rei a que permanecesse no navio esperando.

- Talvez eu traga comigo a princesa, - disse ele; portanto, portanto, providencia para que tudo esteja em ordem; manda expor todos os objetos de ouro e adornar caprichosamente o navio.

Juntou, depois, diversos objetos de ouro no avental, desceu à terra e dirigiu-se diretamente ao palácio real. Chegando ao pátio do palácio, avistou uma linda moça tirando água da fonte com dois baldes de ouro. Quando ela se voltou, carregando a água cristalina, deparou com o desconhecido; perguntou-lhe quem era.

- Sou um mercador, - respondeu ele, abrindo o avental e mostrando o que trazia.

- Ah! Que lindos objetos de ouro! – exclamou a moça.

Descansou os baldes no chão e pôs-se a examiná-los um por um.

- A princesa deve vê-los, - disse ela; gosta tanto de objetos de ouro que, certamente, os comprará todos.

Tomando-lhe a mão, conduziu-o até aos aposentos superiores, que eram os da princesa. Quando esta viu a esplêndida mercadoria disse encantada;

- Está tudo tão bem cinzelado que desejo comprar todos os objetos.

O fiel João, porém, disse-lhe:

- Eu sou apenas o criado de um rico mercador; o que tenho aqui nada é em comparação ao que meu amo tem no seu navio; o que de mais artístico e precioso se tenha já feito em ouro, ele tem lá.

Ele pediu que lhe trouxessem tudo, mas o fiel João retrucou:

- Para isso seriam necessários muitos dias, tal a quantidade de objetos. Seriam necessárias também muitas salas de expô-los, e este palácio, parecem-me, não tem espaço suficiente.

Espicaçou-lhe assim a curiosidade e o desejo; então ela concordou em ir até ao navio.

- Leva-me, quero ver pessoalmente os tesouros que teu amo tem a bordo.

Radiante de felicidade, o fiel João conduziu-a a bordo do navio e quando o rei a viu achou que era ainda mais bela do que no retrato; seu coração ameaçava saltar-lhe do peito de tanta alegria. O rei recebeu-a e a acompanhou-a ao interior do navio. O fiel João, porém, ficou junto ao timoneiro, ordenando-lhe que zarpasse depressa.

- A toda vela, faça com que voe como um pássaro no ar, - dizia ele

Entretanto, o rei ia mostrando à princesa, um por um, os maravilhosos objetos de ouro: pratos, copos, vasilhas, pássaros, feras e monstros, exaltando-lhes as formas e o fino cinzelamento. Passaram, assim, muitas horas na contemplação daquelas obras de arte; em sua alegria ela nem sequer percebera que o navio estava navegando. Tendo examinado o último objeto, agradeceu ao mercador, dispondo-se a voltar para casa; mas chegando ao tombadilho, viu que o navio corria a toda vela rumo ao mar alto, distante da costa.

- Ah, - gritou apavorada, - enganaram-me! Fui raptada, estou à mercê de um vulgar mercador, prefiro morrer!

O rei, então, pegando-lhe a mãozinha disse:

- Não sou um vulgo mercador; sou um rei de nascimento não inferior ao teu. Se usei de astúcia para te raptar, fi-lo por excesso de amor. Quando vi pela primeira vez teu retrato, a emoção prostou-me desmaiado.

Ouvindo essas palavras, a princesa do Telhado de ouro sentiu-se confortada e de tal maneira seu coração se prendeu ao jovem, que consentiu em se tornar sua esposa.

O navio continuava em mar alto e os noivos extasiavam-se a contemplar aqueles objetos todos; enquanto isso, o fiel João; sentado à proa, divertia-se a tocar o seu instrumento; viu, de repente, três corvos esvoaçando, que pousaram ao seu lado. Parou de tocar, a fim de ouvir o que grasnavam, pois tinha o dom de entender a sua linguagem. Um deles grasnou:

- Ei-lo que vai levando para casa a princesa do Telhado de Ouro?

- Sim, - respondeu o segundo, - mas ela ainda não lhe pertence!

- Pertence, sim, - replicou o terceiro, - ela está aqui no navio com ele.

Então o primeiro corvo tornou a grasnar:

- Que adianta? Quando desembarcarem, sairá a seu encontro um cavalo alazão, o rei tentará montá-lo; se o conseguir, o cavalo fugirá com ele, alcançando-se em voo pelo espaço, e nunca mais ele voltará a ver a sua princesa.

- E não há salvação? – perguntou o segundo corvo.

- Sim, se um outro se lhe antecipar e montar rapidamente no cavalo; pegar o arcabuz que está no coldre e conseguir com o mesmo matar o cavalo; só assim o rei estará salvo. Mas quem é que está a par disso? Se, por acaso, alguém o soubesse o prevenisse o rei, suas pernas, dos pés aos joelhos, se transformariam em pedra, quando falasse.

O segundo corvo falou:

- eu sei mais coisas. Mesmo que matem o cavalo, o jovem rei não conservará a noiva, pois, ao chegarem ao castelo, encontrarão numa sala um manto nupcial que lhes parecerá tecido de ouro e prata, ao invés disso é tecido de enxofre e de pez. Se o rei o vestir, queimar-se-á até a medula dos ossos.

O terceiro corvo perguntou:

- E não há salvação?

- Oh, sim, - respondeu o segundo, - se alguém tendo calçado luvas, agarrar depressa o manto e o atirar ao fogo para que se queime, o jovem rei estará salvo. Mas que adianta se ninguém sabe disso? E se soubesse e prevenisse o rei, se transformaria em pedra desde os joelhos até o coração.

O terceiro corvo, por sua vez, falou:

- Eu ainda sei mais: mesmo que queimem o manto, ainda assim o jovem rei não terá a noiva; pois, após as núpcias, quando começar o baile e a jovem rainha for dançar, ficará repentinamente pálida e cairá no chão como morta. E se alguém não a acudir depressa e não sugar três gotas de sangue de seu seio direito, cuspindo-o em seguida, ela morrerá. Mas se alguém souber disso e o revelar ao rei, ficará inteiramente de pedra desde a cabeça até as pontas dos pés.

Finda essa conversa, os corvos levantaram voo e sumiram. O fiel João, que tudo ouvira e entendera, tornou-se, desde então, tristonho e taciturno. Se não contasse o que sabia ao seu amo, este iria de encontro à própria infelicidade; por outro lado, porém, se lhe revelasse tudo, seria a própria vida que sacrificaria. Por fim resolveu-se: "Devo saldar meu amo, mesmo que isso me custe a vida."

Quando, portanto, desembarcaram, sucedeu exatamente o que havia predito o corvo: saiu-lhes ao encontro um belo cavalo alazão.

- Muito bem – exclamou o rei, - este cavalo me levará ao castelo, e fez menção de montá-lo.

O fiel João, porém, antecipou-se-lhe, saltou na sela, tirou o arcabuz do coldre e, num instante, abateu o cavalo. Os outros acompanhantes do rei, que não simpatizavam com o fiel João, exclamaram indignados:

- Que absurdo! Matar um animal tão belo! Tão apropriado para levar nosso rei ao castelo!

- Calem-se, deixem-no fazer o que achar conveniente; sendo meu fidelíssimo João, deve ter motivos razoáveis para agir assim.

Encaminharam-se todos para o castelo; na sala depararam com o manto nupcial, que parecia tecido de ouro e prata, sobre uma salva. O jovem rei logo quis vesti-lo, mas o fiel João, com gesto rápido afastou-o e, de mais enluvadas, agarrou o manto e o lançou ao fogo, que o consumiu imediatamente.

Os acompanhantes do rei tornaram a protestar contra esse atrevimento:

- Vejam só! Ousa queimar até o manto nupcial do rei!

Mas o rei tornou a interrompê-los:

- Calem-se! Deve haver um sério motivo para isso; deixem que faça o que deseja, ele é meu fidelíssimo João.

Tiveram inicio as bodas, com grandes festejos. Chegando a hora do baile, também a noiva quis dançar; o fiel João, atento às menores coisas, não deixava de observar-lhe o rosto; de súbito, viu-a empalidecer e cair como morta. De um salto, aproximou-se dela, tomou-a nos braços e carregou-a para o quarto, reclinando-se em seu leito; ajoelhando-se ao lado da cama, sugou-lhe do seio direito três gotas de sangue e cuspiu-as. Com isso ela imediatamente recuperou os sentidos e voltou a respirar normalmente.

Orei, porém, que a tudo assistia sem comprometer as atitudes do fiel João, ficou furioso e ordenou:

- Prendam-no já! Levem-no para o cárcere.

Na manhã seguinte, o fiel João foi julgado e condenado a morte. Levaram-no ao patíbulo, mas, no momento de ser executado, de pé sobre o estrado, resolveu falar.

- Antes de morrer, todos os condenados têm direito de falar; terei eu também esse direito?

- Sim, sim – anuiu o rei

Então o fiel João revelou a verdade

- Estou sendo injustamente condenado; sempre te fui fiel.

E narrou, detalhadamente, a conversa dos corvos, que ouvira quando estavam a bordo em alto mar. Fizera o que fizera só para salvar o rei, seu amo. Então, muito comovido, o rei exclamou:

- Oh, meu fidelíssimo João, perdoa-me! Perdoa-me! Soltem-no imediatamente.

Porém, assim que acabara de pronunciar as ultimas palavras, o fiel João caiu inanimado, transformado em uma estátua de pedra.

A rainha e o rei entristeceram-se profundamente, e este ultimo em prantos, lamentava-se:

- Ah! Quão mal recompensei tamanha fidelidade!

Deu ordens para que a estátua fosse colocada em seu próprio quarto, ao lado da cama. Cada vez que seu olhar caía sobre ela, desatava a chorar, lamuriando-se:

- Ah! Se me fosse possível restituir-te vida, meu caro, meu fiel João.

Decorrido algum tempo, a rainha deu a luz dois meninos gêmeos, os quais cresceram viçosos e bonitos e constituíam a sua maior alegria. Uma ocasião, enquanto a rainha se encontrava na igreja e os dois meninos brincavam junto do pai, este volveu-se entristecido para a estátua suspirando:

- Se pudesse restituir-te a vida, meu fiel João!

Então viu a pedra animar-se e falar:

- Sim – disse ela – está em seu poder restituir-me a vida, a custa, porém do que te é mais caro.

Assombrado com essa revelação, o rei exclamou:

- Por ti darei o que me seja mais caro nesse mundo!

A pedra então continuou:

- Pois bem; se, com tuas próprias mãos, cortares a cabeça teus dois filhinhos e me friccionares com seu sangue, eu recuperarei a vida.

O rei ficou horrorizado à ideia de ter que matar seus filhos estremecidos; mas lembrou-se daquela fidelidade sem par que lhe dedicara o fiel João, a ponto de morrer para salvá-lo e não hesitou mais: sacou a espada e decepou a cabeça dos filhos. Depois friccionou com o sangue deles a estátua de pedra e esta logo se reanimou aparecendo-lhe vivo e são o seu fiel João.

- A tua lealdade – disse-lhe ele, não pode ficar sem recompensa.

Então apanhando as cabeças dos meninos, recolocou-as sobre os troncos; untou-lhes o corte com o sangue deles e, imediatamente, os garotos voltaram a saltar e a brincar como se nada houvesse acontecido.

O rei ficou radiante de alegria; quando viu a rainha que vinha voltando da igreja, escondeu o fiel João e os meninos dentro de um armário. Assim que ela entrou, perguntou-lhe:

- Foi a igreja rezar?

- Sim, respondeu ela – mas não cessei de pensar no fiel João; por nossa causa ele foi tão desventurado!

Então o rei insinuou:

- Minha querida mulher, nós poderíamos restituir-lhe a vida; mas custa a vida de nossos filhinhos. Acha que devemos sacrificá-los?

A rainha empalideceu, sentindo o sangue gelar-se-lhe nas veias; contudo animou-se e disse:

- Pela incomparável fidelidade que nos dedicou acho que devemos.

Felicíssimo por ver que a rainha concordava com ele, o rei abriu o armário e fez sair as crianças e o fiel João.

- Graças a Deus – disse – aqui está ele desencantado e temos os nossos filhinhos.

Depois contou-lhe detalhadamente o ocorrido. E, a partir de então, viveram todos juntos, alegres e felizes, até o fim da vida.

Francisca Júlia (Cristais Poéticos 2)

ADAMAH
(a Júlia Lopes d'Almeida)

Homem, sábio produto, epítome fecundo
Do supremo saber, forma recém-nascida,
Pelos mandos do céu, divinos, impelida,
Para povoar a terra e dominar o mundo;

Homem, filho de Deus, imagem foragida,
Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,
Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,
Para ser o primeiro a conhecer a vida;

Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada
Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas
De pássaros saudando a primeira alvorada,

Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas
O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada
No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...

CARLOS GOMES

Essa que plange, que soluça e pensa,
Amorosa e febril, tímida e casta,
Lira que raiva, lira que devasta,
E que dos próprios sons vive suspensa,

Guarda nas cordas uma escala imensa,
Que, quando rompe, espaço fora arrasta
Ora do mar as queixas, ora a vasta
Sussurração de uma floresta densa.

Ei-la muda; mas tal intensidade
Teve a música enorme do seu choro,
O dilúvio orquestral dos seus lamentos,

Que, muda assim, rotas as cordas, há de
Para sempre vibrar o eco sonoro
Que su'alma lançou aos quatro ventos.

NATUREZA

Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
Agita os ares de um rumor de asas medrosas;
A Natureza ri pelas bocas vermelhas
Tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
O grito dos chacais e o pranto das ovelhas,
Brados de desespero e frases amorosas
Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
Na longa sucessão das noites e dos dias,
Tanto aborto, que se transforma e se renova,

Quando meu pobre corpo estiver sepultado,
Mãe! transforma-o também num chorão recurvado
Para dar sombra fresca à minha própria cova.

A FONTE DE JACÓ

Na velha Samaria era Sicar situada;
Ora, em Sicar, Jacó, filho de Isac, um dia,
Velho já, tarda a mão, à sua gente amada
Uma fonte rasgou d'água límpida e fria.

O Mestre, certa vez, a essa borda abençoada,
(No tempo de Jesus a fonte inda existia)
À hora sexta quedou-se, a fronte angustiada
De dor, a ver passar gentes de Samaria.

Uma Samaritana, acaso, à fonte veio;
E ao passar por Jesus, com seu cântaro cheio,
O alto busto ondulou numa graça lasciva...

— Água! pediu Jesus, mata-me a sede e a mágoa!
Do cântaro, que tens, dá-me uma pouca d'água
Que, em troca, eu te darei da fonte d'água viva.

A UMA SANTA

Foge, sem ódio, ao mal; o bem pratica;
Se a dor lhe dói, cuida-a gostosa e boa,
Ou faz então com que ela lhe não doa;
Na pobreza em que está julga-se rica;

O mal, sabe que passa, o bem, que fica;
Por isso o bem acolhe e o mal perdoa.
Quanto mais vive, mais se aperfeiçoa,
Quanto mais sofre, mais se glorifica.

Por essa alta moral os atos regra;
Em nenhum outro esforço em vão se cansa,
Por nenhum outro ideal se bate em vão.

E é feliz, mais feliz porque se alegra
Não com o muito que a sua mão alcança,
Porém com o pouco que já tem na mão.

A UM VELHO

Por suas próprias mãos armado cavaleiro,
Na cruzada em que entrou, com fé e mão segura,
Fez um cerco tenaz ao redor do Dinheiro,
E o colheu, a cuidar que colhia a Ventura.

Moço, no seu viver errante e aventureiro,
O peito abroquelou dentro de uma armadura;
Velho, a paz vê chegar do dia derradeiro
Entre a abundância do ouro e o tédio da fartura.

No amor, de que é rodeado, adivinha e pressente
O interesse que o move, o anima e o faz ardente;
Foge por isso ao mundo e busca a solidão.

O passado feliz o presente lhe invade,
E vive de gozar a pungente saudade
Das noites sem abrigo e dos dias sem pão.

DE VOLTA

Mais encanto que a mais populosa cidade,
Dentre tantas que viu, a sua aldeia encerra,
— Uma nesga de gleba e socalcos de serra
Sob um céu sempre azul, de ampla serenidade.

Por tudo o olhar derrama ungido de saudade,
E, evocando o passado, os tristes olhos cerra.
Neste instante feliz, nada há que mais lhe agrade
Que sentir-se entre os seus em sua própria terra.

Chega. O primeiro amigo a quem a mão aperta,
Quase à meiga pressão se esquiva, indiferente,
E de outras efusões mais vivas se liberta.

Nessa mão, que recua, outras, frias, pressente...
Antes exílio e dor, pão duro e vida incerta,
Que o desprezo arrostar da sua própria gente.

PÉRFIDA

Disse-lhe o poeta: "Aqui, sob estes ramos,
Sob estas verdes laçarias bravas,
Ah! quantos beijos, trêmula, me davas!
Ah! quantas horas de prazer passamos!

Foi aqui mesmo, — como tu me amavas!
Foi aqui, sob os úmidos recamos
Desta aragem, que uma rede alçamos
Em que teu corpo, mole, repousavas.

Horas passava junto a ti, bem perto
De ti. Que gozo então! Mas, pouco a pouco,
Todo esse amor calcaste sob os pés".

"Mas, disse-lhe ela, quem és tu? De certo,
Essa mulher de quem tu falas, louco,
Não, não sou eu, porque não sei quem és..."

NO BAILE

Flores, damascos... é um sarau de gala.
Tudo reluz, tudo esplandece e brilha;
Riquíssimos bordados de escumilha
Envolvem toda a suntuosa sala.

Moços, moças levantam-se; a quadrilha
Rompe; um suave perfume o ar trescala;
E Flora, a um canto, envolta na mantilha,
Espera que o marquês venha tirá-la...

Finda a quadrilha. Rompe a valsa inglesa.
E ela não quer dançar! ela, a marquesa
Flora, a menina mais formosa e rica!

E ele não vem! Enquanto finda a valsa,
Ela, triste, a sonhar, calça e descalça
As finíssimas luvas de pelica!

CARIDADE

A alma do homem se torna egoísta e má
Porque a impiedade de hoje é a sua escola.
Essa, que no Evangelho se acrisola,
Caridade cristã, onde é que está?

Capazes, hoje em dia, poucos há
Dessa piedade rara, que consola,
Que os olhos fecha para dar a esmola,
A fim de que não veja a quem a dá.

Sede piedosos. Bem-aventurados
Os que fazem o bem de olhos fechados.
Pois a esmola é só útil e eficaz,

Só tem justo valor, sem dano ou perda,
Se não chega a saber a mão esquerda
O benefício que a direita faz.

OUTRA VIDA

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
Depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
De sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
Que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
Lei que me condenou à tortura constante;
Porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
Abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
Na minha solidão a sua voz escuto,
E sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
Que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio…

NOTURNO

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.

À NOITE

Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra;
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois, a pensar... De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um "requiem" doloroso.

No alto uma estrela triste as pálpebras descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso...

Em noite escura assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor tão cheia de alma...

É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.
-
Fonte:

Humberto de Campos (A Bilha)

Sentado em um banco de madeira tosca, colocado por ele próprio diante da sua chácara do "Bom Retiro", a dois quilômetros de São Fidélis, olha o coronel Saturnino as grandes águas do Paraíba, que rola, sereno e inchado, no rumo de São João da Barra. A cinco metros do honrado fazendeiro, no leito do rio, emergem duas cabeças queridas: a do filho, o Alfredinho, um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro anos, feitos em setembro, e a da sua segunda esposa, D. Florinda, cujos cabelos castanhos, soltos e molhados, lhe orlam, como um capuz de freira, o formoso rosto moreno. O fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe enchem o coração, e dá ordens:

- Não vá para longe, Alfredo. Fique aí mesmo.

E para a esposa:

- Mergulhe, Lindinha. Está com medo?

A moça dá um mergulho ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos fechados, para que lhe escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas, a água que lhe encharca os cabelos.

Diverte-se o coronel, assim, com os dois anjos que lhe constituem a família, quando, tomando uma bilha velha e inservível que se achava próxima, se põe de pé, e a atira, longe, um exercício dos músculos vigorosos, na corrente do rio. Apanhada pela correnteza, a vasilha de barro começa a descer, rápida, rodopiando, arrebatada pelas águas. De repente, porém, com a boca para cima, começa a encher-se, afundando-se pouco a pouco, até que desaparece, sem deixar vestígio, no tumulto um redemoinho fervente.

Alfredinho olha, atento, a viagem da vasilha, e, vendo-a desaparecer na voragem, franze o cenho infantil, perguntando, intrigado, ao velho:

- Papai, por que é que a bilha foi para o fundo?

- Porque entrou água; está claro! - explicou o coronel.

- Ela não estava com a boca para cima?

- Estava, sim.

- E como entrou água?

- Porque estava furada, - tornou o velho.

O pequeno meditou um instante, franziu a testazinha inteligente, e, olhando Dona Florinda, que se encaminhava com o rosto fora d´água, para o meio do rio, gritou, alto, alarmado, com a vozinha fina:

- Mamãe, venha mais p'ra beira!…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) VII

AGORA

A vida acontece
A todo o momento e em qualquer lugar
Estejamos ou deixemos de estar.
Atemporal escorre pelos dedos das mãos
Pegajosa lambuza-nos de gente
O coração.

ADOLESEMPRE
 

Meu coração inconsequente
Doce quente adolescente
Esquece o tempo que diz:

Tuas melenas brancas
Não fazem de ti criança
Então por que és tão feliz?

MERCADORES DA PALAVRA

Não aceito a palavra maldita
A palavra bendita rejeito
Prefiro a palavra não dita
Que faça abalar-me o peito
Porque
A palavra afiada
Eloquente e vazia
Não me diz nada
E
A palavra mansa
Mas cheia de hipocrisia
Simplesmente me cansa.

UÓ UÓ UÓ

Enquanto a ambulância
Desespera-se pela avenida
Trânsito e pessoas engarrafadas
Dizem não à vida.

SEMEADOR
 

Planto sementes, resoluto.
Sei nunca serei
Árvore ou flor
Sou fruto.

SEM CHANCE

Essa vida é uma escada
Apontada para o nada
Para aqueles que a vivem
Sem gozar a utopia
Das pessoas simples, vadias
Que amam e entregam-se amadas.

CICLOS

Nasço no verão
No outono frutifico
Morro no inverno
Na primavera ressuscito.

ALQUIMI$TA$

No princípio
Era o verbo
Um alquimista alegre
Cercado de crianças geniais.
Hoje
Alquimistas e crianças
$ão $eres $érios demai$.

CLOWN

Pintei um sorriso no rosto
Para disfarçar meu cansaço.
Hoje
Uns me chamam de louco
Outros exclamam, palhaço!!!

BEZERRAS

Tato frágil
Tito mais
Tita flor
Ambrózia
Pai...
Perdoem-me
Ser mais forte
Poeta
Sonho mais.

ADULTO

Vestido de feliz
Caminha o adulto triste
Enquanto a felicidade
Despida de maldade
Brinca de roda
Num coração
Infantil.

FLOR DO MEIO DIA

Eu nasci para ser feliz
Não lembro mais porque chorei
Também não sei porque sofri
O que sei é que amo demais
Do meu jeito meu mau jeito.
Importante!
É que ainda hoje consigo sorrir
Porque nasci neste lugar
E vim morar com a poesia
Menina flor
Musa do meio-dia.

FIO DE OURO


Num céu azul
De iluminadas núvens
Uma pipa dançando
Brinca de liberdade
Atrelada ao sonho que livra
Um garoto de sua dura realidade.

ESCREVER
 

Não jogues com palavras
Como quem joga dados
Nem com sentimentos
Como quem lê mãos...
Tuas sementes
Cultiva na mente
Com raízes fincadas
Em teu coração.

AVENIDA QUALQUER

Dos altos prédios impassíveis
Janelas olham, radares observam,

Antenas perfuram o céu
Da famosa cidade...
Êta ruazinha futriqueira, meu Deus!

OFÍCIO

Escrevo
Como quem acha um trevo
Escrevo
Como quem dá um beijo
Escrevo
Tudo o que desejo
Por muito desejar
Escrevo
Escrevo
Escrevo.

PRIMAVERA

A primavera talvez seja
Duas mãos cheias de cores
Que vêm silenciosamente
Abrir uma janela de fora pra dentro de nós
Movimentando de lá pra cá, daqui pra lá
Suavemente as coisas velhas
Sem nada quebrar.

BAILARINA
(Karina)

Ah, teus pés [rimas preciosas]
Bailam giram voam encantam
Como duas rosas.

Ai, teus pés [delicados artistas]
Quando finalmente no chão
Correm para as mãos do calista.

BALA PERDIDA
(No alvo)

Arma empunhada
Mirada no ser humano

Bala no alvo
Corpo no chão
Inocente ou não

Revólver do povo
Gatilho da lei
Ou vice-versa
Não sei

Sei que toda bala
Acerta sempre em cheio
O peito e o seio
De nossa frágil sociedade.

NEGRO

Negro jazz
Negro samba
Negro soul.

O branco canta e se encanta
Com o que a alma africana
Criou

Negro jazz
Negro samba
Negro soul
E Rock and roll!

OSCAR

Deus revela-se
Através das curvas
Leves, sinuosas e belas
Das monumentais mulheres
De Niemeyer.

LEITURA

Palavras dormem
No silêncio dos livros fechados
Cobertos pela poeira da ignorância...
Mas acordam
Em algazarra num livro aberto
Pela curiosidade de uma criança.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) VI – Uma Balda do Gemada

Mais vale jeito que força.

O meu cavalinho, o Gemada, era um ótimo animal, de cômodo e rédea: marrequeiro fino e até farejador de perdizes, pelo hábito aprendido com a minha cachorra Tetéia, que foi uma maravilha.

Mas o Gemada tinha uma balda; a não ser comigo, não havia quem o obrigasse a passar um rio, em balsa. Para cavalo era até uma burrice, isso; pois os próprios cavalos confessam - confessam pelo comportamento - que é muito mais agradável atravessar o rio na balsa, do que nadando: cansa menos e não é tão frio...

O Gemada, porém, era refratário a tais comodidades.

Fosse um peão ou qualquer outra pessoa fazê-lo entrar na balsa: gastaria horas, zangar-se-ia, cairia n'água e nada arranjava: o cavalo firmava-se, recuava, pulava, empacava-se, mas não entrava; a cacete, então era pior: empinava-se, couceava, mordia, mas não ia...

Ora, certa vez que, da barranca, eu assistia a uma dessas cenas, e tendo muita pressa e pouca paciência para fazê-lo passar a nado e encilbar do outro lado; enquanto o balseiro, já cansado de firmar a embarcação, praguejava, e o peão, já de mau humor, dava sofrenaços e tirões, e um outro auxiliar já estava rouco de tanto gritar com o cavalo, e embarreado e encharcado; enquanto essa luta durava, a mim fervia-me o sangue, e batia o queixo, enraivado, como que sacudido por febre de sezões...

Não me contive.

Desci da barranca, tomei o cavalo, apertei muito bem os arreios montei e mandei que os peões se afastassem, e que obalseiro, encostando bem a balsa à beira do rio, apenas a segurasse com a mão, de terra.

Isto feito, afastei-me como umas sete braças, firmei as rédeas e cravei as esporas na barriga do cavalo teimoso: ele gemeu com a dor, mosqueou, e saltou pra frente, como unia mola!

Daquele arranco vim à praia, e sempre tocado de espora e rebenque, de pulo, o Gemada atirou-se dentro da balsa, comigo em cima, olé!

O impulso para diante foi tão forte, que a balsa, como uma flecha, deslizou sobre a água e foi, certinha, abicar na outra margem!...

E conforme lá cheguei, tomei a cravar as esporas no Gemada, e ele, desesperado, arrancou, e, de pulo, atirou-se da balsa para terra...

O impulso para trás foi tão forte, que a balsa desandou sobre a água, e foi certinha, como uma flecha, abicar na margem donde havia saído...

Fora esse, exatamente, o cálculo que eu havia feito.

Dai por diante nunca mais inquietei-me. Havia rio para passar, em balsa? Ora!

Espora... pulo.., balsa pra lá!
Espora... pulo.., balsa pra cá!
======================
continua… mais casos

Fonte:
Wikipedia

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 15 – 20 de marco de 1887

“Câmara Municipal
Sem ter regimento interno!”
Exclamou, com ar paterno
Vereador pontual.

“Sem um acordo fraterno,
Um papel, um manual,
Certo, acabaremos mal,
Faremos disto um inferno.

“Digo-vos que é usual,
Em qualquer lugar externo
Haver regimento interno
Para evitar todo o mal.”

Em tom sossegado e terno
Diz outro municipal
Que o pau (físico ou moral)
É regime mais superno.

— “Há de haver algum sinal
Aqui, pelo lado interno,
Do efeito vivo e fraterno
Desse estatuto formal.

“Palavras (é dito eterno)
Às sopas não trazem sal;
Quero ação, ação real,
Venha do céu ou do averno.

“E que outra menos verbal
Que a ação do cacete alterno,
Não como um vento galerno,
Porém, como um vendaval?

Se, assim amparado, externo
Meu parecer cordial,
Para que me serve o tal
Regimento de caderno?

“Saiba a câmara atual
Que, se eu aqui não governo,
Tenho este dever paterno
De a não fazer trivial.

“Paterno disse? Materno;
Quero outro tom pessoal.
Fique-lhe o tom paternal
Ao colega mais moderno.

“Sim, o pau, é pau real
Venha do céu ou do averno,
E palavras (dito eterno)
Às sopas não trazem sal “.

Não sei que disse o paterno
Vereador pontual;
Eu, por mim, prefiro a tal
Um copo do meu falerno.

Não que seja um casual,
Ruim, triste e subalterno
Modo de encontrar em erno
O consoante final,

É falerno e bom falerno
Sorrir da municipal
Que vive tant bien que mal,
Sem ter regimento interno.

Ou esse escrito legal
Que o outro chamou caderno,
Para o bom viver paterno
Vale tudo ou nada val.

Se não, por que é que o superno
Parlamento nacional
Conserva um trambolho igual,
Quer de verão, quer de inverno?

Se sim, como é curial,
Que não tenha esse uso interno,
Corpo tal, que vive alterno,
Conservador, liberal?

Relevem se um subalterno
Entrou nesse cipoal...
Olha a taça de cristal,
Leitor, vamos ao falerno!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Aluízio Azevedo (Vida Literária) III – Um fruto da época

Ontem, quando saí do trabalho, para ir tomar o aperitivo do costume antes do jantar, dou com o nosso querido escritor, o Ernesto Branco, que eu não via há muito tempo.

- Olá! exclamei. Bons ares te restituam à rua do Ouvidor. Como vai isso, poeta? Que tens feito? Qual é agora o teu livro? Qual é o teu novo amor?

Ernesto respondeu-me a tudo isso com um gesto seco, acompanhado de um triste sorriso, que até então nunca lhe vira nos lábios.

E notei que a sua inteligente fisionomia perdera a primitiva expressão de alegre coragem, e parecia agora fechada sobre um surdo desgosto, desses que nos acabrunham, não pela violência da dor, mas pela pungente convicção de que não há esperança de remédio para eles.

- Que tens? perguntei-lhe, encarando-o. Parece-me doente.

- Tédio, murmurou o meu amigo, fechando por um instante os olhos e levando lentamente o charuto à boca.

- Tomaste já o teu vermouth?

- Já não tomo vermouth

- Tomarás hoje. Vem daí.

Subimos até ao largo de S. Francisco e fomos ter àquela confeitaria onde há um viveiro de passarinhos.

Uma vez instalados ao canto mais sombrio do botequim, disse-nos Ernesto enquanto o servente esperava as nossas ordens:

- Não bebas vermouth francês. Li numa revista médica muito séria, que essa detestável bebida é de todos os veículos alcoólicos o mais rápido para chegar à morte ou ao delirium tremens. Depois dele é que está classificado o ilustre absinto, e em terceiro lugar o piperment.

- Pois tomemos uma passagem de segunda classe. Garçom, dois absintos!

- Com goma?

- Não! com água e gelo. Para que adoçar os meios de morte?...

E, voltando-me de todo para o meu amigo, atirei-lhe misteriosamente a nova pergunta a respeito do que ele fazia nesse momento. Era impossível que Ernesto, o fecundo trabalhador das letras brasileiras, não tivesse em mão um novo livro. Quem sabe mesmo se não seria o excesso de trabalho o que lhe dera ao semblante aquele ar de fadiga e aborrecimento ?... Escrever com arte é coisa tão penosa e acabrunhante!... E eu sabia perfeitamente que Ernesto era desses artistas que, quanto mais produzem, melhor e mais acabado querem produzir; desses que, ao terminar uma obra, pensam logo em principiar outra, porque aquela lhes parece ainda incompleta e falhada. Qual seria, pois, a minha desilusão, qual seria o meu desgosto, notando que Ernesto, em vez de responder ao sincero interesse da minha pergunta de admirador e de amigo, deixara pender a cabeça e olhava vagamente para o seu copo?

- Então?! insisti. E' segredo?! Fala-me do teu novo livro! Dize-me o que estás escrevendo agora...

- Nada...

- Nada ?! Ora essa! Por quê?

- Não vale a pena!

- Ó injusto! Ó ingrato! Pois tu, o único homem de letras que ultimamente no Brasil tem ganho dinheiro... tu, que tens leitores certos; que tens editores para tudo o que escreves; tu, ó felizardo! tens a coragem de falar desse modo.... Vai para o diabo que te carregue! Não sei que queres tu então!

- Estás enganado... - replicou-me Ernesto sem se alterar. Estás muito enganado a meu respeito. Eu tinha com efeito três leitores, mas um abandonou-me para entregar de corpo e alma ao jogo da bolsa e agora só pensa em salvar-se do naufrágio em que o lançaram; o outro deixou-me pela política e, perseguido pelo governo atual, só pensa em salvar da fome a mulher e os filhos e em livrar do cutelo da legalidade a própria cabeça ameaçada. Bem vês que quem tem a pensar em coisas tão preciosas - o dinheiro e a vida, - não se pode dar ao luxo de ler os meus livros.

- E o terceiro?

- Ah! com o terceiro não conto; não contei nunca para pôr o livro no prelo ou a panela no fogo.

O terceiro é o meu colega, é o literato, é o jornalista, é o crítico; é o leitor que foi muito meu amigo enquanto as minhas obras nada rendiam, e que começou a dar-me bordoada de cego, desde que a coisa cheirou a sucesso de livraria.

Não o amaldiçoa; devo-lhe talvez mesmo a coragem triunfante com que trabalhei durante de anos; devo-lhe a convicção do meu valor e da minha energia, agora apagados; devo-lhe o cuidado crescente com que fui caprichando mais e mais toda a nova obra que eu produzia; mas não estou disposto a escrever só para ele, por uma razão muito simples, porque esse leitor não paga!

- Não! bradei eu com um murro na mesa. Não tens razão. Ou te esvaziaste o teu saco, meu rapaz, ou foste invadido pela preguiça! Os teus paradoxos são desculpas de cabo de esquadra! Dize-me que te esgotaste, e nada protestarei, mas...

- Não! Creio que não me esgotei, porque preciso empregar verdadeira violência para não continuar a escrever. Mas trabalhar para quê? por quê? para quem? em que língua? Nesta que falamos? Mas isso é escrever para a família; isto é o mesmo que falar para dentro de um garrafão vazio? E' ridículo escrever na língua portuguesa!

- Uma bela língua!

- Qual história! Uma língua incompleta e dificílima; uma língua sem prestígio, sem utilidade, sem vocabulário técnico para a ciência e para as coisas da vida moderna; unia língua que nem sequer tem ortografia, porque não tem ainda um dicionário definitivo; uma língua tão mesquinha, que não tem palavras de tratamento. - O homem é senhor, a mulher é senhoira, e acabou-se! Demoiselle, Miss, Senhorita não têm tradução em português. Uma língua em que é preciso errar, quando se não quer ser afetado na linguagem, porque não se há de fazer os personagens tratarem-se por vós, quando o que se usa é você. Você é gíria, é uma asneira que não existe autorizada por língua nenhuma do mundo!

- Você é a corrupção de Vossa Mercê.

- Não é tal! Vossa Mercê é um tratamento respeitoso, e eu não posso perguntar a urna senhora a quem falo pela primeira vez: "Você como vai?" o Usted espanhol, sim, é que pode ser usado e corresponde em respeito e legalidade ao desusado e inútil Vossa Mercê da língua portuguesa.

- Não! Pode-se perfeitamente falar ou escrever a boa língua portuguesa sem errar.

- Sem afetação clássica é impossível. Diz-me a gramática que o imperativo consta de "Faze tu; fazei vós; e eu digo todos os dias ao meu criado: "Faça isto: faça aquilo". Um horror! Pois eu posso lá continuar a escrever em semelhante língua?... Maldita a hora em que nô-la impingiram os donos dela, A língua portuguesa foi um presente grego!

- Ninguém pode negar que é um idioma elegante...

- Elegante e limpo: A barba que se usa por debaixo do queixo chama-se "Passa-piolho". A nostalgia da pátria chama-se "Morrinha galega".

O Antônio Castilho para dizer numa página que, no lugar descrito por ele, havia grande número de raparigas, exprimiu-se assim: "havia moçame à tripa forra"... Que elegância! Que distinção!

- Não concordo contigo.

- Pois não concordes. Ainda não há muito tempo, o Azeredo Coutinho, fazendo a tradução de uma comédia francesa, viu-se em sérios embaraços, para dizer em português um diálogo travado entre dois personagens de sexo diferente, porque os dois não deviam, nem podiam tratar--se por tu, mas também não deviam tratar-se por senhor, que é tratamento muito cerimonioso; e como não existe ou não se usa em português o tratamento de vós, o nobre tradutor, para não abandonar a sua obra, teve de fazer, sabes o teve de dar um título a cada um dos dois personagens, a mulher fez baronesa, e ao homem conde, para que eles pudessem conversar do seguinte modo, sem se tratarem por tu, nem por senhor: "A Baronesa é cruel", "Não diga isso, Conde", "A Baronesa não quer ouvir-me, mas eu hei de fazer-me ouvir pela Baronesa...", "Oh, o Conde não tem razão, mas eu perdoo o Conde". Delicioso! Mas ainda assim, prefiro que os senhores tradutores vão imitando Portugal na farta distribuição de títulos, ruas não imitem os atuais escritores portugueses que, apertados como o Azeredo na dificuldade do tratamento, recorreram ao passivo si, fazendo-o concordar com a pessoa com quem se fala; de sorte que, escritas por esses mestres aquelas frases citadas, ficariam assim: "A Baronesa não quer ouvir-me, ruas eu hei de fazer-me ouvir por si", "O Conde não tem razão, mas eu perdoo a si". Ah, bandidos! E queres tu, meu amigo, que eu escreva em semelhante língua, e para semelhante público de imbecis?!... Não! antes uma boa morte!

E Ernesto, com a resolução de um suicida, gritou para o moço do botequim:

- Garçom! traz um expresso de segunda ordem, bem carregado, bem forte, bem rápido, que me atire o mais depressa possível ao outro inundo! Ao menos lá hei de falar alguma língua que não seja a do padre Sena Freitas!

O Combate, 5 de março de 1892.

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura
Imagem = Aluizio Azevedo, por William Medeiros

Luiz Flávio do Prado Ribeiro (Poemas Avulsos)

Libreria Fogola Pisa (facebook)
Buarquianas n°1: No lugar

Ele já vai
e eu nem me despedi.
Vai resoluto,
ajeitando a gola
e eu aqui de camisola
de cor de luto.

Ele já foi
e eu nem me despedi.
Incontinenti,
bateu a porta,
assim como quem corta
o ar da gente.

Por quê assim,
se tantos anos se passaram em alegria,
e outros tantos, tantos dias,
tanta estrada,
entre prantos de esperança,
entre juras de mudança,
pra levar a nada ...

Fica a vida tão pequena,
a cama grande demais,
a saudade vem sem pena,
a tristeza não fica atrás.

Homenagem à RPBA
Samba composto em Candeias (Disul), 1983

Jorrou
o primeiro poço em Lobato
e ali começou de fato
um grande movimento
que teve o seu momento
com a Lei 2004

Fruto das aspirações brasileiras
de salvaguardar o país
da intromissão estrangeira
essa lei nos garantiu o monopólio
para industrializarmos
o nosso petróleo

E após tantos anos a velha Bahia
que não tem mais a primazia
dos novos e grandes achados
ainda trabalha com valentia
pra produzir
o seu volume provado

Prestamos a nossa homenagem
a essa Região de Produção
e de tradição:
Água Grande, Taquipe, Araçás, Lamarão
Fazenda Bálsamo, Miranga, Remanso, Dom João
Candeias, Brejinho, Imbé, Conceição
Malombê, Buracica, Mata de São João

Jorrou ...

Samba para o trabalhador do Recôncavo

Todos os Santos desceram do céu
com arco-íris, pincel e cinzel
e assim criaram, num lindo desenho
um monumento de arte e engenho ...

Mas o Recôncavo
não é só a riqueza de seu solo encantado
não é só a beleza e o nome histórico
é também o suor de seus anônimos heróis
que pela vida
vão deixando a força e a voz

É também a viagem
passagem num mundo de fé e coragem
onde a nobreza é a nascente e a foz

Por isso navega ...

Navega, navega
barcaça de cacau
nas ondas tão doces do canavial

Moinhos de sonho são dor e prazer
mão na massa, pé na estrada de massapê

Cavalga, cavalga
cavalo-de-pau
explora esses campos com alto ideal
que a luta, conduta de vida,
é força moral.

Salve o trabalhador:
Herói nacional !

Nossa parte
Enchi do vaso
o espaço terra.

Plantei
adubei
reguei.

Hei de colher,
que a flor
não erra.

Árvore que se planta
e rega,
não nega
a seiva.

O fruto-futuro,
sem eiva.

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico.

Nilto Maciel (Apontamentos para um Ensaio)

Chegou antiquíssima, atual e eterna, com a sua cara de máscara.
Moreira Campos, Dizem que os cães veem coisas.

 No dia 7 de maio de 1994 Mauritz Zetterling chegou a Fortaleza. Não esperava nenhuma recepção, quer no aeroporto, quer no hotel. Afinal, ninguém da cidade o conhecia. Ninguém sequer sabia de sua existência. Talvez algum estudioso de literatura já tivesse lido seu nome. E se essa pessoa tivesse lido seus livros? Não, seus livros não haviam sido ainda traduzidos para o português. Nem mesmo em Portugal. Decididamente nenhum habitante de Fortaleza o conhecia. Ele, porém, conhecia uma pessoa daquela cidade. Não, não conhecia a pessoa, mas a obra literária dela. Pequena parte da obra, é verdade. E com aquela viagem tinha exatamente o objetivo de conhecer pessoalmente o autor de uns maravilhosos contos que havia lido em Estocolmo. Ah! como ansiava conversar com Moreira Campos.

No táxi trocou duas palavras com o motorista. E se perguntasse se conhecia o escritor? Não, os escritores não são cantores populares. Nem nas suas próprias terras. Apesar de muito cansado, tomou banho, almoçou, folheou um jornal e se pôs diante de uma televisão.

O primeiro brasileiro lido por Mauritz tinha sido Jorge Amado. Havia quase vinte anos. Interessou-se pelo Brasil e leu outros brasileiros. Em sueco ou em inglês. Lenngren, um tradutor amigo seu, levava-lhe novidades. Em 1993 mostrou-lhe um livro de Moreira Campos. Traduziu alguns contos para o sueco e, entusiasmado, pediu a opinião a Mauritz. Um novo Tchekhov, gritou o crítico. E se pôs a fazer apontamentos para o ensaio.

Os estudos de Zetterling sobre as obras de George Stiernhielm e Esaias Tegner eram tidos como essenciais para a compreensão da arte literária sueca desde Erikskrönikan. Nenhum crítico na Suécia o superava em conhecimento da literatura de sua pátria. Por que, então, abandonar esse posto e partir em busca de outros mares, de distantes, desconhecidas e ainda informes literaturas?

Tão exaltado se achava Mauritz que decidiu conhecer pessoalmente o contista brasileiro. E zarpou para o Rio de Janeiro. Logo, porém, se encheu de decepção e descrença. Nas livrarias não encontrou nenhum livro do contista. Nas universidades ninguém sabia da existência de Moreira Campos. Teria sido ludibriado? Maldito Lenngren! Ou o castigo imposto ao escritor partia dos editores, livreiros, professores, jornalistas? Já desesperado, ouviu de um vendedor – esse autor é gaúcho e os livro dele só são vendidos em Porto Alegre. Rumou para o sul. Não, Moreira Campos era mineiro e somente em Minas Gerais era lido. De Belo Horizonte partiu para Brasília. No Itamarati ninguém sabia da existência de contistas. Mandaram-no ao Ministério da Cultura. O sueco se havia equivocado – o nome da pessoa procurada era Moreira Campista, deputado e cotista de uma empresa de transportes urbanos. Dirigiu-se à Câmara. O deputado nem escrever sabia. A pessoa a quem Mauritz buscava – informou um assessor legislativo – chamava-se Moreia Campos, banqueiro.

Pronto a desistir de encontrar o escritor e voltar a Estocolmo, o crítico arrumou as malas e sentou-se na beira da cama. Não, não existia um contista brasileiro chamado Moreira Campos. Súbito lembrou-se de detalhe da biografia do contista traduzida por Lenngren: “Moreira Campos nasceu em Senador Pompeu”. Ora, certamente o escritor ainda morava na cidade natal, razão por que não se teria feito conhecido no resto do país. Consultou um mapa do Brasil. Não, o contista não viveria numa cidadezinha. Provavelmente morava numa cidade maior. Levou o mapa ao gerente do hotel e concluiu ser em Fortaleza a morada de Moreira Campos.

Animado com os novos rumos de sua peregrinação, Mauritz viajou para a capital do Ceará. Algumas horas depois de sua chagada, já quase satisfeito consigo mesmo, esteve para morrer de susto – o locutor de televisão anunciou o falecimento de Moreira Campos. E num relance o sueco constatou: havia sido conduzido pelo destino a conhecer o contista no seu último dia.

Surpresa maior Mauritz sentiu após os funerais. Em visita à casa da viúva encontrou os apontamentos por ele feitos para um ensaio sobre a obra de Moreira Campos. Achavam-se junto a rascunhos de contos. Apavorado, perguntou à senhora quem havia escrito ou copiado aquilo. E justificou a pergunta, cuidadoso de não ofender a viúva. Ora, havia deixado aquelas anotações numa gaveta fechada a chave, em sua casa. Lembrou-se do sorriso nos lábios do falecido, ao vê-lo deitado no caixão.

No dia seguinte Mauritz Zetterling regressou a Estocolmo. Tinha pressa em abrir a gaveta da escrivaninha. Virou a chave e nem sequer teve tempo de rever seus apontamentos para o ensaio. Subitamente tombou, sem vida.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Yehudi Bezerra

Yehudi Bezerra (1946 - ?) faleceu jovem, tendo deixado impresso apenas um livro de contos, Tocaia (1977). Ficaram inéditos Momentos (poemas de 1964 a 1970), Barriga de Bombo ou As Desventuras de Pedroca Mundo, 1º. lugar no Concurso Universitário de Peças Teatrais, promovido pelo Serviço Nacional de Teatro e, em preparo, A Revolução das Bonecas e o romance Tonante.

As nove histórias de Tocaia se desenvolvem em pequenas cidades do Ceará e os personagens são quase sempre homens e mulheres simples. Mas há também coronéis-fazendeiros (os antigos chefes políticos, herdeiros dos coronéis da Guarda Nacional), padres, autoridades constituídas, em permanentes embates com seus rivais. Cada narrativa é um drama de violência e morte, com desfecho de tragédia. O título do volume expressa bem essa constatação.

Yehudi Bezerra faz uso da narração em primeira pessoa e também em terceira, com raríssimos diálogos e quase nenhuma descrição. Cada personagem-narrador tem características próprias. Na primeira obra, “Tocaia”, Venâncio Lustosa espera, pacientemente, atrás de uma moita, a passagem de Joca Viana, para matá-lo e vingar a morte do coronel Zezinho do Vale, em cujas terras, a fazenda Água-Bela, o matador trabalhava “no cabo da enxada ou da foice”. Venâncio parece falar para si mesmo (monólogo interior), até que na metade da narrativa diz ter conhecido Joca há muitos anos, desde “quando ele andava lá pras bandas de Penedo, nossa terra”. Somente então o leitor percebe que o matador fala para outra pessoa. Pouco mais adiante aparece detalhe do interlocutor: “Você era menino, nesse tempo”. Algumas linhas depois a informação se enriquece: O outro é irmão de Venâncio (“Rosalinda, nossa mãe”). E se reafirma com estas palavras: “você é meu irmão”. Ao final, o leitor compreenderá por que no início da narrativa o narrador parece monologar: “Pena você ser mudo, senão eu ia ouvir o que você tinha pra dizer”. Ou seja, o monólogo se transformaria em diálogo.

Em “Mané Piauí, Colo e o Vigário”, não fosse a única vez em que o “eu” aparece, embora em elipse, o leitor não veria no narrador um personagem: (...) “nunca vi tão leve no carregar uma dama” (...). Isto é, o ponto de vista seria do escritor/narrador onisciente. Trata-se de história do tipo oral, narrada nos pretéritos mais-que-perfeito, perfeito e no imperfeito.

Luiz, engenheiro recém-formado, de “Durante a viagem”, narra no tempo presente (monólogo interior) uma viagem de trem, de Fortaleza para Iguatu. Vez por outra, relembra fatos e faz uso do pretérito: “Um dia, no cabaré, eu estava numa das mesas” (...). Todos os pequenos fatos e incidentes e até um crime de morte vistos pelo protagonista são narrados detalhadamente.

Em “O Prefeito e sua gente”, o contista se vale do discurso indireto livre: o narrador onisciente dá voz ao personagem, sem uso de travessão ou aspas, isto é, na fusão da terceira e da primeira pessoa. Como quando se refere ao negro Mundurí: (...) “o diabo do negro não morreu” (...) “eu tenho corpo fechado” (...) Na verdade, são falas e diálogos no interior da narração.

Por último, o protagonista de “A Vida na Ponta da Língua”. Preso por homicídio, monologa em volteios, ora no passado, ora no presente: “sou um negro que conheço o meu lugar”; “perguntou onde era que eu tinha roubado aqueles couros”.   

Nas composições com ponto de vista onisciente, os personagens interagem, logicamente, e os conflitos se desenrolam aos olhos do leitor. Alzira, João e a filha Vilani, de “Oi, Gostosa!”, vivem típica história de costumes do sertão nordestino. O tempo se dilata a cada segmento da narrativa, passado e presente se confundem. Em “Larí Cabeção” o protagonista sobressai. Alarico se torna apenas Larí.  Filho espúrio, menino humilhado pelos outros, larápio de quinquilharias, Larí é um zé-ninguém. O tempo se arrasta e as ações se sucedem, para alcançar deslinde nada trágico: Larí chega à capital, volta a ser Alarico e se torna bandido de respeito. Típico conto de personagem. Em “Uma questão de honra” a trama gira em torno do tradicional triângulo amoroso, com todos os ingredientes de tragédia: Dorinha, Valdomiro e João. Aqui também os seres fictícios se sobrepõem ao drama, porque de desfecho anunciado, como é de praxe nesse tipo de história. Em “O Prefeito e sua gente”, vê-se mais um conto de personagens, como o próprio título indica. São tipos sertanejos clássicos em ação: um coronel, seus opositores políticos, sua mulher bonita, um padre mulherengo, um guarda-costas fidelíssimo. Em “O Pessoal da Rua 7” alguns seres fictícios se envolvem em diversos episódios entrelaçados.

Os narradores dos contos em primeira pessoa são tipos diferentes entre si e a manipulação da linguagem varia de narração para narração. Venâncio é narrador lento, quase silencioso, porque fala para seu irmão mudo, atrás de uma moita, em tocaia. A linguagem, apesar de coloquial, é correta na construção frasal. Uma ou outra palavra é grafada como no linguajar sertanejo: “peduvido” (pé-do-ouvido); “gavando” (gabando); “mindim” (mindinho). O protagonista de “Durante a viagem” é engenheiro e, portanto, tem um maior domínio da linguagem do que um simples matuto. Sua dicção não chega a ser erudita, mas as frases têm estrutura da língua culta. No entanto, faz uso de termos e expressões populares ou da gíria. O terceiro personagem-narrador está preso, após matar um homem. Como Venâncio, é um pobre serviçal de coronel. Sua fala é de fácil compreensão de leitores ou ouvintes de todos os matizes. Uma ou outra palavra pode parecer estranha a alguns, como “destamainho”.

Já o ponto de vista onisciente nas demais obras apresenta diversas variantes. Assim, em “Oi, Gostosa” as frases são curtas e os diálogos breves se intercalam às narrações. A trama se inicia com alguns retrospectos e tem no desenlace a gravidação de Vilani e sua expulsão de casa, pelo padrasto. Em “Mané Piauí, Coló e o Vigário”, o contista utiliza, aqui e ali, o diálogo indireto no interior da narração, quase toda no pretérito imperfeito. Em “Larí Cabeção” presente e pretérito perfeito se misturam ao longo da narração sem diálogos. “Uma questão de honra” também não apresenta falas. Em “O prefeito e sua gente” o leitor pode perder o fôlego desde o início, com longos períodos apenas virgulados. O primeiro ponto aparece na quarta página. As frases seguintes são um pouco mais curtas, de uma página. Em “O pessoal da rua 7” ocorre um entrelaçamento de histórias. No primeiro momento o protagonista é Chico, depois Chico Beira D’água. A seguir, Vila ou Vilani, “a mais valente rapariga daquelas bandas”. O terceiro personagem aparece logo: Rocildo ou Cidinho. O quarto é Zé Põe no Mato e o quinto, Maria. Algumas falas aparecem entre aspas.

Os dramas de Tocaia têm como raízes o modo de vida, a cultura da violência, os costumes sertanejos. Os enredos de Yehudi Bezerra, de tão fechados, costurados, dão ao leitor a impressão de que os desenlaces não poderão ser outros senão o fim trágico do protagonista ou do seu oponente. E isto não se dá sempre. Pois o contista prega uma peça no leitor a cada obra. Como a dizer, o realismo pode ser muito mais do que óbvio, sem precisar ser fantástico ou mágico.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 28 de dezembro de 2013

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n. 169 - janeiro 2014)



Gostar de ti, quem não há de?
Inspiras tal simpatia,
que a gente sente saudade
se deixa de ver-te um dia.
Colombina

Candelabro, iluminaste
meus dias... que glórias viste!
Agora és um velho traste
nas noites de um velho triste..
Jacy Pacheco
 

Meu sonho bom, tu me bastas,
mas, perto do amargo fim,
se por acaso te afastas,
morre um pedaço de mim!
Lavínio Gomes de Almeida

Descalços pelo gramado,
teus pés mansamente vão...
Pões, no pisar, tanto agrado,
que eu tenho inveja do chão!...
Marina Bruna

Ao que pede, à tua porta,
dá, também, tua afeição.
Um pouco de amor conforta
mais que um pedaço de pão!
Rodolpho Abbud – RJ

Não vivas com tanto orgulho
em razão do teu talento.
O tambor, que faz barulho,
tem por dentro apenas vento.
Vasques Filho
 


A madame era tão chique
e de tão fina linhagem,
que até para ter chilique
retocava a maquiagem!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

– “Mas, mamãe, se é gravidez,
que remédio é sugerido?”
– “Arranjar, com rapidez,
algum trouxa, pra marido!”...
Darly O. Barros – SP

Vive a coroa adoentada,
com o esposo desnutrido:
de dia... tome gemada!
de noite...tome gemido!
Edmar Japiassú Maia – RJ

O malandro te enganou
com truques, filha querida?
E a mocinha perguntou:
– Truque, paizinho, engravida?
José Lucas de Barros – RN

Separou-se... e com mais pique
justifica encabulada:
marido que dá chilique
não consegue dar mais nada...
Maria Nascimento – RJ

Em meu leito de abandono,
eu, mulher, só penso em ti;
se sem ti eu perco o sono,
que será contigo aqui?
Olympio Coutinho – MG


O tempo voa, bem sei,
nos dias da mocidade;
mostra onde errei e acertei,
tem remorso e tem saudade ...
Almir Pinto de Azevedo – RJ

Neste encontro inesperado,
vamos brindar a nós dois.
Primeiro, o beijo guardado...
o vinho eu peço depois!
Almira Guaracy Rebelo – MG

Velho trem me faz lembrar
os meus tempos de menino,
em que eu me punha a cismar
qual seria o meu destino...
Amilton Monteiro – SP

Felicidade é encanto
que se vive por um triz,
mas celebro, por enquanto,
apenas o que Deus quis.
Antonio Cabral Filho – RJ

Superando os meus problemas,
descubro que os teus abraços
são elos com que me algemas
no presídio dos teus braços.
Antonio Colavite Filho – SP

Racistas, intransigentes,
olhai o exemplo da mão:
cinco dedos diferentes
na mais perfeita união!
Antonio Juracy Siqueira – PA

Na bagagem que hoje trago
quase tudo joguei fora;
só guardei o bom afago
e as alegrias de agora.
Benedita de Azevedo – RJ

Já velhinho, sonha ainda,
mantendo o brilho no olhar,
que a juventude só finda
quando é impossível sonhar!
Carolina Ramos – SP

Não posso mais recolher
o que perdi no caminho;
mas se alguém me suceder
vai tropeçar em carinho.
Cida Vilhena – PA

Navegando pela vida,
em águas nem sempre mansas,
junto à bagagem sofrida
carrego mil esperanças!
Conceição Abritta – MG

Teu grande amor, que ironia,
é hoje coisa esquecida:
foi luz que por um só dia
iluminou minha vida.
Conceição de Assis – MG
 

Por que não curtir saudade,
que é parte do nosso ser?
– Saudade não tem idade,
fica em nosso entardecer.
Cônego Telles – PR

El primer Nobel del mundo
jamás ha sido entregado,
fue El de Paz y amor profundo;
ganador? Jesus amado!
Cristina Olivera Chávez – EUA

A trama que a vida urde,
tal qual a teia de aranha,
é perfeita, mas ilude
por ser cheia de artimanha...
Cyroba Ritzman – PR

Para o Natal ser perfeito,
com paz, amor e esperança,
faça um presépio em seu peito
e abrigue Jesus criança.
Dáguima Verônica – MG

A trova, de qualquer jeito,
chega forte e vai bem fundo.
Em seu contexto perfeito,
já percorreu todo o mundo.
Diamantino Ferreira – RJ

De beijar-te eu tenho ânsia,
pois vivemos separados...
“O beijo é a menor distância
entre dois apaixonados.”
Djalma da Mota – RN

Revejo o passado e penso,
sem surpresa e sem espanto,
que o tempo, às vezes, é o lenço
com que Deus me enxuga o pranto...
Domitilla Borges Beltrame – SP

Mesmo que a Terra se mude
e os montes vão para os mares,
Deus é refúgio e quietude
na angústia em que te encontrares.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Ao devolver minhas cartas,
o carteiro nem sabia
que, além de saudades fartas,
os meus sonhos devolvia.
Eduardo A. O. Toledo – MG

Num desabafo insincero,
chorando em teu ombro amigo,
digo coisas que não quero,
quero coisas que não digo...
Élbea Priscila – SP

Nos vales ou nos outeiros,
levando a luz da instrução,
escolas são candeeiros
que aplacam a escuridão.
Eliana Jimenez – SC

Meu beijo tem a fragrância
dos perfumes da amizade,
mas.. dado assim à distância
tem mais sabor de saudade!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Correndo entre paralelas
de aço, o trem foi a glória
para quem hoje vê nelas
apenas traços da história.
Ercy Marques de Faria – SP

Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão...
A fé tecida entre os trapos
remendava a solidão!
Francisco Garcia – RN

Todo indivíduo que é tolo,
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo...
só tem a casca por fora!
Francisco Pessoa – CE

Refém de ti, não recuo,
réu do amor que me corrói:
cada sonho que construo,
tua apatia destrói...
Gilvan Carneiro – RJ

Eu quero poder cantar
meus versos aos quatro cantos,
e assim talvez transformar
em risos todos os prantos!
Gislaine Canales – RS

Teu retrato desbotado,
num canto velho e sozinho,
são resquícios do passado
das pedras do meu caminho.
Gutemberg Liberato – CE

Hoje trago na lembrança
uma dor que sobrevive
num fiapo de esperança,
pelo amor que nunca tive.
J.B. Xavier – SP

Fazer as pazes... Presente
melhor a dar a um irmão
é desfraldar, complacente,
a bandeira do perdão.
Jeanette De Cnop – PR

Me esculpindo a cada dia,
vendo no Mestre o padrão,
tento chegar – que utopia! –
mais perto da perfeição.
Jessé Nascimento – RJ

Na aliança nunca desfeita,
alma e corpo te entreguei:
juntei a ideia perfeita
ao passo maior que eu dei.
Josafá Sobreira da Silva – RJ

Uma chave carregamos,
porta de um mundo melhor,
entretanto não largamos
a muleta de um pior.
José Feldman – PR

Cada vez que alguém cria algo, nasce de novo (Vanda F. Queiroz)

Tempo, cavalo indomável
que tento frear à toa...
Qual pégaso formidável,
quanto mais freio, mais voa...
Jaime Pina da Silveira – SP

Para abraçar-te, menina,
meu anseio é tão profundo,
que a distância de uma esquina
parece uma volta ao mundo.
José Lucas de Barros – RN
 

No aeroporto, o adeus, o abraço...
e no olhar... rastros de dor.
– Lá se foi, rasgando o espaço,
uma promessa de amor...
José Messias Braz – MG
 

Fugir, poeta, não queiras,
do que a vida preceitua:
teu destino é abrir fronteiras
e deixar que o sonho flua!
José Ouverney –SP

O anel que eu ponho em teu dedo,
mais que um simples adereço,
tem no amor nosso segredo;
do coração o endereço!
José Roberto P. de Souza – SP

Bendigo a lágrima doce
da chuva que cai lá fora.
Bom seria se assim fosse
o pranto que a gente chora!
José Valdez – SP

Ai, amor, estou doente...
Então devo declarar:
a saudade não consente
que tu venhas me curar!
Laérson Quaresma – SP

Se não me dás teu carinho,
se não me queres amar,
sou barco triste e sozinho,
que já não quer navegar.
Luiz Carlos Abritta – MG

Nunca mostres apatia
diante da luta na vida,
mas brinda com simpatia
e a inércia será vencida!
Mª Luíza Walendowski – SC

 

A distância, o céu aberto,
não podem mudar o amor,
que, embora longe está perto,
como a raiz junto à flor.
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Nesta vida o tempo ensina:
quem partilhar seu amor
a paz também dissemina,
exterminando o rancor.
Marina Valente – SP

As marcas do teu batom,
deixadas no meu cristal,
têm sabor e têm o dom
de um grande amor, no final.
Maurício Friedrich – PR

Enquanto espero a velhice
eu passo a vida trovando,
pois sei que é muita burrice
passá-la só lamentando.
Nei Garcez – PR
 

Sangra a terra quando arada:
fica frágil, tão exposta...
Mesmo sofrendo calada,
com seus frutos dá a resposta.
Olga Agulhon – PR

Meus sonhos, em grandes asas,
voam no azul infinito
e fulgem, tal como brasas,
por este céu tão bonito.
Olga Ferreira – RS

Solidão e violão
são irmãos e não se largam:
uma amarga o coração,
outro adoça os que se amargam.
Olivaldo Júnior – SP

Tenho em meu peito guardada
para você, que me evita,
a alma um tanto magoada,
mas com ternura infinita.
Renato Alves – RJ

Nossas almas parecidas,
nossos sonhos se irmanando,
eu e tu, vidas vividas
tarde demais se encontrando!
Rita Mourão – SP

Poesia é também música. Música é som.
Som se conta com o ouvido, não com o olho.


Na praia deixei meus sonhos
e, junto às ondas do mar,
pousei meus olhos tristonhos
à espera de te encontrar.
Sarah Rodrigues – PA

A semente, pequenina,
sob a terra protegida,
é assinatura divina
no grande livro da vida.
Selma Patti Spinelli – SP

Coração, nunca te emendas!...
És de fato um sonhador.
Até nas duras contendas
tu vês motivos de amor!
Thalma Tavares – SP

Partiste. Fiquei perdida:
vi meu céu escurecer...
Sem o sol da minha vida,
sempre é noite em meu viver.
Thereza Costa Val – MG
 

Passas por mim... nem me agradas...
e a saudade, sem tardança,
traz de volta as madrugadas
que hoje vivem na lembrança.
Therezinha Brisolla – SP

Meu tempo tornou-se esparso...
Por mais que tente retê-lo,
nem com tintura disfarço
o cinza do meu cabelo.
Vanda Alves – PR

Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
amor será sempre Amor.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Meus desenganos de amor
na poesia buscam fim:
eu não choro a minha dor...
meus versos choram por mim!
Wanda Mourthé – MG

Anjos brancos, as fumaças
dos casebres, no sertão,
aos céus sobem, dando graças
pelo almoço no fogão.
Yedda Patrício – SP

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Irmãos Grimm (Os Três Cabelos de Ouro do Diabo)

Há muitos e muitos anos, numa casinha pobre, nasceu um menino bonito e forte, mas que, ao contrário de todas as outras crianças, nasceu com todos os dentes na boca. Os pais, assim que o viram, ficaram muito assusta-os, pensando se tratar de alguma bruxaria. As vizinhas, entretanto, os tranquilizaram, dizendo que nascer com dentes era sinal de boa sorte. E uma delas, que era considerada feiticeira, profetizou que o menino, ao completar quinze anos, se casaria com a filha do imperador do país.

Um dia, quando o menino ainda era bem pequeno, o imperador passou casualmente pela vila e ouviu contar a história da criança, que era chamada de o "Filho da Sorte." Indignado com a possibilidade de ver sua filha casada com um tipo qualquer, pobre e de origem humilde, o imperador resolveu dar um jeito de impedir que a profecia se cumprisse.

Dizendo-se um rico comerciante, apresentou-se na casa onde vivia o Filho da Sorte. Tomou a criança nos braços e, fingindo-se encantado com sua beleza, disse aos pais que era muito rico e não tinha ninguém a quem deixar sua herança. Por isso, gostaria muito de poder levar o bebê e criá-lo como se fosse seu filho. O casal, a princípio, não aceitou a proposta, mas o imperador foi tão hábil e convincente que os fez acreditar que daria ao menino uma vida muito melhor do que ele teria naquela casa pobre.

Assim, o perverso imperador levou consigo o pequeno Filho da Sorte e, logo que se viu sozinho, fora da cidade, colocou-o numa caixa e atirou-a ao rio, na certeza de que ela afundaria, matando a criança.

Mas o menino parecia merecer mesmo o nome de Filho da Sorte, pois a caixa, em vez de afundar, saiu flutuando rio abaixo, indo parar no açude de um moinho.

Um velho moleiro que ali trabalhava, pensando ter encontrado um tesouro, foi correndo tirar a caixa da água. Quando a abriu, ficou comovido por ver uma criança tão linda e esperta abandonada para morrer. Como não tinha filhos, levou o bebê para casa. A mulher do moleiro ficou muito feliz, e o Filho da Sorte cresceu ali, rodeado pelo carinho dos pais adotivos.

* * *

O tempo passou e, um dia, alguns meses depois que o menino havia completado quinze anos, o imperador e sua comitiva viajavam pela região quando caiu uma tempestade muito forte. Como não havia nada por perto a não ser o moinho, o imperador foi obrigado a pedir abrigo na casa do velho moleiro.

O casal de velhos o recebeu muito bem. Para que o tempo passasse mais depressa, ficaram conversando com o imperador. Não demorou para que a beleza e a vivacidade do Filho da Sorte chamassem a atenção do monarca, que perguntou ao moleiro se o menino era seu filho. A mulher, inocentemente, respondeu-lhe que não, e acabou contando a história de como haviam encontrado a criança.

Quando ela terminou de falar, os olhos do imperador estavam vermelhos de ódio, pois ele logo se deu conta de quem era o rapaz. Furioso por ele ainda estar vivo, começou imediatamente a pensar num jeito de liquidar o moço de uma vez.

Como estava no meio de uma grande viagem e demoraria muitos meses para voltar ao palácio, o imperador ficou com medo de que a profecia se concretizasse durante sua ausência. Assim, resolveu agir rapidamente e, dando algumas moedas aos velhos, pediu-lhes que deixassem o rapaz levar uma mensagem à rainha, na capital do reino. Em seguida, mandasse à sua mulher ordenando que ela mandasse executar imediatamente o rapaz que lhe entregasse aquela carta.

No dia seguinte, bem cedinho, lá se foi o Filho da Sorte na direção da capital do reino, sem saber que levava nas mãos sua própria sentença de morte.

Andou o dia inteiro, sem descanso, pois queria chegar logo ao palácio. No entanto, como nunca havia deixado a vila em que morava, o rapaz se desviou do caminho certo e acabou se perdendo no meio da floresta.

Quando já estava anoitecendo, o Filho da Sorte viu, numa clareira, uma cabana, onde resolveu pedir ajuda. Bateu à porta e uma velhinha muito bondosa veio atender. A mulher o acolheu com simpatia e, depois de ouvir sua história, deu-lhe de comer e de beber, mas avisou-lhe que seria melhor ele não dormir ali, pois aquela cabana servia de esconderijo a perigosos ladrões, que certamente o matariam quando o encontrassem.

O rapaz, entretanto, não teve medo e insistiu tanto que a boa senhora arranjou-lhe um canto da cabana onde pudesse dormir aquela noite.

De madrugada, quando o Filho da Sorte dormia a sono solto, chegaram os ladrões. A velha, temendo pela vida de seu hóspede, avisou aos malfeitores que havia alguém na cabana, mas que se tratava apenas do filho de um moleiro que estava a caminho da capital para levar uma carta do imperador à mulher.

O chefe dos bandidos ficou muito curioso para saber o conteúdo da carta e a abriu para ler. Ao ver a maldade que estava fazendo com o pobre rapaz, ficou indignado e resolveu pregar uma peça no malvado soberano. Imitando a letra do imperador, escreveu uma nova mensagem à rainha, ordenando que ela casasse imediatamente a princesa com o portador daquela carta. Em seguida, queimou a carta verdadeira e colocou a outra em seu lugar.

Na manhã seguinte, o Filho da Sorte, sem saber de nada, partiu. Orientado pelo próprio chefe dos ladrões, encontrou facilmente o caminho certo para a capital e horas depois se apresentava no palácio.

A rainha, ao ler a mensagem que julgava ler de seu marido, preparou tudo para o casamento, que se realizou naquela mesma tarde, na capela do palácio.

* * *

Meses depois o imperador voltou de sua viagem e, vendo sua filha casada com o filho do moleiro, ficou furioso com a mulher, lista, sem entender por que o marido estava tão bravo, mostrou-lhe a carta que havia recebido. Como não havia mais remédio para a situação, o imperador decidiu não punir nem a mulher nem o genro, para a felicidade da princesa, que gostava muito do marido. Por outro lado, era impossível aceitar que a princesa vivesse casada com um tipo qualquer, sem eira nem beira, como aquele; por isso o imperador chamou o genro e lhe disse:

- Para eu consentir que você e minha filha continuem vivendo juntos, é preciso que você se torne digno de ser um príncipe realizando alguma façanha. Por isso, eu lhe dou uma tarefa para cumprir: quero que vá até o inferno e traga de lá três cabelos de ouro do Diabo. Se conseguir realizar esse feito, quando voltar eu o farei príncipe.

O Filho da Sorte, esperto e valente como era, partiu sem demora rumo ao inferno.

* * *

Caminhou durante muitos dias, até chegar à porta de uma grande cidade, onde uma sentinela lhe perguntou que problemas ele sabia resolver.

- Todos! - respondeu o rapaz.

- Todos?! - disse o guarda. - Então faça-me o favor de dizer por que a fonte do nosso mercado, que antes jorrava um vinho delicioso, agora está tão seca que não solta nem uma gota de água!

- Não posso responder agora - ele respondeu -, mas, se me deixar passar, eu lhe trarei a resposta na volta.

A sentinela, confiando na palavra do rapaz, abriu as portas da cidade para que ele passasse.

O Filho da Sorte seguiu seu caminho e alguns dias depois chegou à porta de uma outra cidade, onde havia outra sentinela que também lhe perguntou que problemas ele sabia resolver.

- Todos! - respondeu ele mais uma vez.

- Ah, é? - disse a sentinela. - Então me responda por que é que a árvore grande dos jardins do nosso rei, que antes dava frutos de ouro, agora está tão seca que não tem nem uma folha mais!

- Não posso responder agora - disse o moço -, mas, se me deixar passar, eu lhe trarei a resposta na volta!

O guarda também acreditou em sua palavra e o deixou seguir.

Alguns dias depois, o filho do moleiro chegou a um grande rio que precisava atravessar para chegar ao inferno. Só havia ali um barqueiro que, ao vê-lo, perguntou a mesma coisa que as duas sentinelas. Quando ouviu o rapaz dizer que sabia resolver todos os problemas, o barqueiro, interessado, disse-lhe:

- Meu jovem, se você sabe mesmo de tudo, então me explique logo por que eu preciso ficar a vida inteira sendo barqueiro, atravessando gente de um lado para outro do rio, sem nunca encontrar uma alma boa que venha me substituir neste trabalho!

- Não sei explicar o motivo - disse o Filho da Sorte -, mas, se me levar à outra margem, prometo que na volta eu trarei a resposta à sua pergunta!

O barqueiro também acreditou na palavra do Filho da Sorte e o levou para o outro lado do rio.

Bem perto dali ficava a porta do inferno. O rapaz bateu bem forte e esperou ser atendido. Algum tempo depois, apareceu à porta a avó do Diabo, dizendo que seu neto não estava. Como ela parecia ser uma boa pessoa, o moço contou-lhe sua história, e a velha, condoendo-se da sua situação, resolveu ajudá-lo.

- Mas se o meu neto o encontrar aqui - disse ela -, vai ficar tão furioso que vai querer matá-lo no mesmo instante e comê-lo assado no jantar. Por isso preciso escondê-lo.

Assim, a velha transformou o Filho da Sorte numa formiguinha e o escondeu numa das dobras de sua saia.

Minutos depois, chegava em casa o Diabo, e já vinha faminto, pois havia sentido cheiro de carne humana, seu prato predileto. Farejou por todos os cantos do inferno, mas, como nada encontrasse, a velha lhe disse:

- Você anda com mania de sentir cheiro de gente! Venha comer que eu matei um franguinho novo especialmente para. o seu jantar!

O Diabo comeu até fartar-se e, depois, como era seu costume, deitou-se no colo da avó para que ela lhe fizesse cafuné. Dali a pouco, dormia profundamente e a velhinha aproveitou-se disso para arrancar o primeiro fio de ouro de sua cabeça.

- Ai! - gritou Satanás. - Que é que você está fazendo, minha avozinha?

- Nada - respondeu a velha. - É que tive um sonho mau e acordei agarrada em seus cabelos!

- E qual foi o sonho que teve? - perguntou o Diabo.

- Sonhei que a fonte do mercado de uma cidade, que antigamente só jorrava vinho, agora anda tão seca que não solta nem uma gota de água.

Satanás deu uma gostosa gargalhada e depois respondeu:

- É verdade! É verdade! É que existe uma pedra tampando o nascedouro da fonte! Se a tirarem, a fonte voltará imediatamente a jorrar vinho.

A avó do Diabo voltou a fazer cafuné na cabeça do neto e logo depois ele dormia tão pesado que roncava. Quando estava num sono ferrado, a velha aproveitou para arrancar o segundo fio de cabelo.

- Ai! Ai! Ai! - fez ele de novo. - O que é que aconteceu agora?

- Eu sonhei outra vez! - disse a avó.

Desta vez foi com uma outra cidade onde havia, no jardim do rei, uma árvore que dava frutos de ouro e que agora está cada dia mais seca!

O Diabo riu gostosamente e respondeu:

- Isto também é verdade, minha avó! E sabe por que a árvore secou? Porque em- baixo dela há um rato que diariamente rói suas raízes. Se matarem o rato, a árvore ficará verde outra vez. Se o deixarem lá, ela ficará cada dia mais seca, até morrer!

Depois de dizer isso, Satanás ajeitou de novo a cabeça no colo da avó e, logo, embalado pelo cafuné, dormia outra vez. A velhinha aproveitou então para arrancar o terceiro fio e ele, acordando por causa da dor, gritou furioso:

- Ai, minha avó! Seus sonhos vão acabar me deixando careca! O que foi desta vez?

- Sonhei com um barqueiro - disse a avó - que se queixava de ficar eternamente passando gente de uma margem para outra< do rio sem nunca encontrar alguém que o substituísse nesse trabalho sem fim!

- Ah! - respondeu o Diabo, dando outra gargalhada. - Esse barqueiro é um bobo! Se ele quiser sair de lá, é preciso apenas que abandone os remos na mão da primeira pessoa que aparecer pedindo para passar à outra margem do rio! A pessoa não terá outro remédio senão tomar o lugar do barqueiro!

Como já estava de posse dos três fios de cabelo, e já havia obtido as respostas para as três perguntas, a velhinha finalmente deixou Satanás dormir sossegado.

Logo de manhã, dizendo ao neto que ia buscar água, a avó do Diabo saiu do inferno e retirou a formiguinha da dobra da saia, restituindo ao Filho da Sorte a forma humana. De posse das três respostas, o rapaz pegou os três fios de cabelo de ouro e, depois de agradecer muito à -velhinha, iniciou o caminho de volta.

Logo chegava outra vez à margem do grande rio e o barqueiro, ansioso, perguntou pela sua resposta.

- Primeiro você precisa me levar ao outro lado - respondeu o rapaz.

E, assim que o barqueiro o atravessou, o moço ensinou-lhe como deveria fazer para escapar da sina de ser barqueiro eternamente. Muito feliz, o homem agradeceu a ajuda e o Filho da Sorte seguiu seu caminho.

Depois de alguns dias, chegava ao portão da cidade onde existia a árvore que dava frutos de ouro. Ensinou à sentinela o que se devia fazer para recuperar a árvore, e o homem, agradecido, deu-lhe como recompensa dois jumentos carregados de ouro e pedras preciosas.

Mais à frente, passou outra vez pelo portão da cidade cuja fonte de vinho havia secado. A sentinela logo indagou da resposta e o moço ensinou-lhe o que fazer, conforme havia ouvido da boca de Satanás. Muito feliz, o guarda deu-lhe mais dois jumentos carregados de ouro e lá se foi o Filho da Sorte, rumo ao reino de seu sogro.

Chegou ao palácio muito satisfeito, pois, além de haver cumprido a façanha exigida, estava agora muito rico.

A princesa, sua esposa, o recebeu com muita alegria e o imperador, depois de ter em mãos os três cabelos de ouro e ver a riqueza que o genro trazia, permitiu que ele vivesse com sua filha e o tornou príncipe.

Tudo ia muito bem no palácio, mas o imperador era muito ambicioso e morria de curiosidade para descobrir como e onde o genro havia conseguido tantas riquezas.

Um dia, não resistindo mais, acabou perguntando, e o Filho da Sorte lhe respondeu:

- Foi muito fácil, meu sogro! No caminho para o inferno há um grande rio onde está sempre um barqueiro que atravessa todas as pessoas. É só pedir para ele atravessá-lo e colher, na margem de lá, todo o ouro que puder carregar, pois o ouro ali é a areia do chão!

- E eu posso ir até lá pegar ouro para mim também? - perguntou o imperador.

- Claro, meu sogro! - respondeu o rapaz. - É só falar com o barqueiro!

O ganancioso imperador saiu logo na manhã seguinte, ansioso por encontrar o lugar onde havia tanta riqueza. Viajou por vários dias e, de fato, acabou encontrando o barqueiro. Este, que aguardava ansiosamente o aparecimento de alguém, assim que o imperador lhe pediu que o atravessasse, entregou-lhe com satisfação os remos e disse: – Atravesse você mesmo, ora! Movido pela ambição, o imperador aceitou a tarefa e saiu remando, enquanto o barqueiro, feliz da vida, saía por esse mundo afora, livre outra vez.

E dizem que até hoje o imperador está lá, Cumprindo a eterna tarefa de atravessar gente de um lado para outro do rio.

Quanto ao Filho da Sorte, viveu feliz por muitos e muitos anos, junto com a princesa, sua amada esposa.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/os_tres_cabelos_de_ouro_do_diabo