segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Irmãos Grimm (A Água da Vida)

Era uma vez um rei muito poderoso que vivia feliz e tranquilo em seu reino. Um dia adoeceu gravemente e ninguém esperava mais que escapasse. Seus três filhos estavam consternados vendo o estado do pai piorar dia a dia. Choravam no jardim quando surgiu à sua frente um velho de aspecto venerável que indagou a causa de tamanha tristeza. Disseram-lhe estar aflitos por causa da enfermidade do pai, já que os médicos não tinham mais esperanças de o salvar.

O velho lhes disse: "Conheço um remédio muito eficaz que poderá curá-lo; é a famosa Água da Vida. Mas é muito difícil obtê-la."

O filho mais velho disse: "Vou encontrá-la, custe o que custar."

Foi imediatamente aos aposentos do rei, expôs-lhe o caso e pediu permissão para ir em busca dessa água.

"Não. Sei bem que essa água maravilhosa existe, mas há tantos perigos a vencer antes de chegar à fonte que prefiro morrer a ver um filho meu correndo esses riscos" disse o rei.

O príncipe porém insistiu tanto que o pai acabou por consentir.

Em seu íntimo o príncipe pensava: "Se conseguir a água me tornarei o filho predileto e herdarei o trono."

Partiu pois montado em rápido corcel na direção indicada pelo velho. Após alguns dias de viagem, ao atravessar uma floresta viu um anão mal vestido que o chamou e perguntou: "Aonde vais com tanta pressa?"

- "Que tens com isso, homúnculo ridículo? Não é da tua conta" respondeu altivamente sem deter o cavalo.

O anão se enfureceu e lhe rogou uma praga. Pouco adiante o príncipe se viu entalado entre dois barrancos; quanto mais andava mais se estreitava o caminho, até que não pôde mais avançar nem recuar, nem voltar o cavalo nem descer. Ficou ali aprisionado sofrendo fome e sede mas sem morrer.

O rei esperou em vão sua volta.

O segundo filho, julgando que o irmão tivesse morrido, ficou contentíssimo pois assim seria o herdeiro do trono. Foi ter com o pai e lhe pediu para ir em busca da Água da Vida.

O rei respondeu o mesmo que ao primeiro; por fim cedeu ante a insistência do rapaz.

O segundo príncipe montou a cavalo e seguiu pelo mesmo caminho. Quando atravessava a floresta surgiu-lhe o anão mal vestido e lhe dirigiu a mesma pergunta: "Para onde vais com tanta pressa?"

- "Pedaço de gente nojento! Sai da minha frente se não queres que te espezinhe com meu cavalo."

O anão lhe rogou a mesma praga, assim o príncipe acabou entalado nos barrancos como o irmão.

Passados muitos dias sem que os irmãos voltassem, o mais moço foi pedir licença ao pai para ir buscar a Água da Vida. O rei não queria consentir, mas foi obrigado a ceder ante suas insistências.

O jovem príncipe montou em seu cavalo e partiu; quando encontrou o anão na floresta ele, que era delicado e amável, deteve o cavalo dizendo: "Vou em busca da Água da Vida, o único remédio que pode salvar meu pobre pai, que está à morte."

- "Sabes onde se encontra?" perguntou o anão.

– "Não."

- "Pois já que me respondeste com tanta amabilidade vou te indicar o caminho. Ao sair da floresta não te metas pelo desfiladeiro que está à frente, vira à esquerda e segue até uma encruzilhada; aí segue ainda à esquerda. Depois de dois dias encontrarás um castelo encantado: é no pátio dele que se encontra a fonte da Água da Vida. O castelo está fechado com um grande portão de ferro maciço, mas basta tocá-lo três vezes com esta varinha que te dou para que se abra de par em par. Assim que entrares verás dois leões enormes prestes a se lançarem sobre ti para te devorar; atira-lhes estes dois bolos para apaziguá-los. Aí corre ao parque do castelo e vai buscar a Água de Vida antes que soem as doze badaladas, senão o portão se fecha e tu ficarás lá preso."

O príncipe agradeceu gentilmente, pegou a varinha e os dois bolos e se pôs a caminho, e conforme as indicações chegou ao castelo.

Com a varinha mágica bateu três vezes e o imenso portão se abriu; ao entrar os dois leões se arremessaram contra ele de bocas escancaradas, mas atirou-lhes os dois bolos e não sofreu mal algum. Porém antes de se dirigir à fonte da Água da Vida não resistiu à tentação de ver o que havia no interior do castelo, cujas portas estavam abertas: galgou as escadas e entrou.

Viu uma série de salões grandes e luxuosos. No primeiro, imersos em sono letárgico, viu uma multidão de fidalgos e criados. Sobre uma mesa estava uma espada e um saquinho de trigo; pressentiu que lhe poderiam ser úteis e levou-os consigo. Indo de um salão a outro, no último deu com uma princesa de rara beleza, que se levantou e disse que, tendo conseguido penetrar no castelo, destruíra o encanto que pesava sobre ela e todos os súditos do seu reino; mas o efeito do encantamento só cessaria mais tarde.

– "Dentro de um ano, dia por dia, se voltares aqui serás meu esposo."

Depois lhe indicou onde estava a fonte da Água da Vida e se despediu, recomendando-lhe que se apressasse para poder sair do castelo antes do relógio da torre bater as doze badaladas do meio-dia, porque nesse exato momento os portões se fechariam.

O príncipe percorreu em sentido inverso todos os salões por onde passara, até que viu uma belíssima cama com roupas muito alvas e limpas; cansado que estava da longa caminhada deitou-se para descansar um pouco e adormeceu.

Felizmente mexeu-se e fez cair no chão a espada que colocara a seu lado, despertando com o barulho. Levantou-se depressa: faltava um minuto para o meio-dia e mal teve tempo de correr ao parque, encher um frasco com a água preciosa e fugir.

Ao transpor os batentes da entrada soou o relógio dando meio-dia; o portão se fechou com estrondo e tão rápido que ainda lhe arrancou uma espora.

No auge da felicidade por ter conseguido a água que salvaria seu pai e ansioso por se ver no palácio pulou sobre a sela e partiu a galope.

Na floresta encontrou o anão no mesmo lugar, o qual vendo a espada e o saquinho de trigo disse: "Fizeste bem em guardar este precioso tesouro. Com essa espada vencerás sozinho o mais numeroso exército, e com o trigo desse saquinho terás todo o pão que quiseres e nunca se lhe verá o fundo."

O príncipe estava porém apoquentado com a desgraça dos irmãos, e perguntou se o anão poderia fazer algo por eles.

"Posso, ambos estão pouco distante daqui entalados em barrancos muito apertados; amaldiçoei-os por causa de seu orgulho."

O príncipe rogou encarecidamente que os perdoasse e libertasse, e o anão cedeu às suas súplicas.

"Mas te advirto que te arrependerás. Não te fies neles, são de mau coração; liberto-os apenas para te ser agradável."

Assim dizendo fez os barrancos se afastarem libertando os entalados, pouco depois reunidos ao irmão que os esperava. Muito feliz por tornar a vê-los o príncipe lhes narrou suas aventuras e disse que daí a um ano voltaria para desposar a maravilhosa princesa e reinar com ela sobre um grande país. Puseram-se os três de regresso para casa. Atravessaram um reino assolado pela guerra, estando o rei desesperado de poder salvar-se e a seu povo.

O príncipe confiou-lhe então o saco de trigo e a espada mágica, com os quais o rei derrotou os exércitos invasores e encheu os celeiros até o forro. O príncipe tornou a receber a espada e o saquinho de trigo e os três irmãos seguiram viagem, tomando um navio para encurtar o caminho.

Durante a travessia os dois irmãos mais velhos, devorados de ciúmes, começaram a conspirar contra o mais novo.

"Nosso irmão conseguiu a Água da Vida e nós não; com isso nosso pai o promoverá a herdeiro do trono que deveria ser nosso e nada nos restará."

Então juraram perdê-lo. De noite quando ele dormia furtaram-lhe o frasco e substituíram a Água da Vida por água salgada. Tentaram também roubar-lhe a espada e o saquinho de trigo mas os objetos desapareceram de repente.

Chegando em casa o jovem correu para o pai e lhe apresentou o frasco para que logo sarasse. Mal engoliu alguns goles daquela água salgada o rei piorou sensivelmente.

Estava se lastimando quando chegaram os mais velhos e acusaram o irmão de ter querido envenenar o pai. Eles porém traziam a verdadeira Água da Vida e lha ofereceram.

Apenas bebeu alguns goles pôde se levantar do leito cheio de vida e saúde como nos tempos da juventude. O pobre príncipe, expulso da presença do pai, se entregou ao maior pesar. Os dois mais velhos vieram ter com ele rindo e mofando:

"Pobre tolo! Tu tiveste todo o trabalho e conseguiste encontrar a Água da Vida mas nós tivemos o proveito; devias ser mais esperto e manter os olhos abertos, enquanto dormias a bordo trocamos o frasco por outro de água salgada. E poderíamos se quiséssemos ter-te atirado ao mar para nos livrarmos de ti, mas tivemos dó. Livra-te contudo de reclamar e contar a verdade ao nosso pai, que não te acreditaria; se disseres uma só palavra não nos escaparás, perderás a vida. Também não penses em ir desposar a princesa daqui a um ano, ela pertencerá a um de nós dois."

O rei estava muito zangado com o filho mais moço, julgando que o quisera envenenar. Convocou seus ministros e conselheiros e lhes submeteu o caso. Foram todos de opinião que o príncipe merecia a morte e o rei decidiu que fosse morto secretamente por um tiro.

Partindo o moço para a caça sem suspeitar de nada um dos criados do rei foi encarregado de o acompanhar e matar na floresta. Chegando ao lugar destinado o criado, que era o primeiro caçador do rei, estava com um ar tão triste que o príncipe lhe indagou a razão:

– "Que tens, caro caçador?"

- "Proibiram-me de falar, mas devo dizer tudo."

- "Dize então o que há, nada temas."

- "Estou aqui por ordem do rei e devo matar-vos."

O príncipe se sobressaltou mas disse:

– "Meu amigo, deixa-me viver. Dar-te-ei meus belos trajes em recompensa e tu me darás os teus, que são mais pobres."

- "Da melhor boa vontade" disse o caçador.

– "É preciso que o rei julgue que executaste suas ordens senão sua cólera recairá sobre ti. Vestirei estas roupas feias e tu levarás as minhas como prova de que me mataste. Em seguida abandonarei para sempre este reino."

Assim fizeram.

Pouco tempo depois o rei viu chegar uma embaixada faustosa do rei vizinho incumbida de entregar ao bom príncipe os mais ricos presentes em agradecimento por ter ele salvo o reino da fome e da invasão do inimigo.

Diante disso o rei se pôs a refletir: "Meu filho seria inocente?" e comunicou aos que o serviam: "Como me arrependo de o ter mandado matar! Ah, se ainda estivesse vivo ..."

Encorajado por estas palavras o caçador revelou a verdade. Disse ao rei que o bom príncipe estava vivo mas em lugar ignorado. Imediatamente o rei mandou um arauto proclamar por todo o país que considerava o filho inocente e que desejava imensamente sua volta. Mas a notícia não chegou ao príncipe; encontrara seu amigo anão, que lhe dera ouro suficiente para poder viver como um filho de rei.

Nesse interim a princesa do castelo encantado que ele livrara do sortilégio mandara construir uma avenida toda calçada com chapas de ouro maciço e pedras preciosas que conduzia diretamente ao castelo, explicando aos seus vassalos:

– "O filho do rei que será meu esposo não tardará a chegar; virá a galope bem pelo meio da avenida. Mas se outros pretendentes vierem, cavalgando à beira da estrada, expulsem-nos a chicotadas."

Com efeito, dia por dia, um ano depois do jovem príncipe ter penetrado no castelo, o irmão mais velho achou que podia se apresentar como sendo o salvador e receber a princesa por esposa. Vendo aquela avenida calçada no meio de ouro e pedrarias não quis que o cavalo estragasse com as patas tanta riqueza que já considerava sua e fez o animal passar pelo lado direito. Quando chegou diante do portão e disse ser o noivo da princesa todos riram e depois o correram de lá a chicote.

Pouco tempo depois veio o segundo príncipe, e vendo todo aquele ouro e jóias pensou que seria um pecado arruiná-los; fez o cavalo galopar pelo lado esquerdo e se apresentou como sendo o noivo da princesa. Teve a mesma sorte do irmão mais velho: foi corrido a chicote.

Findava o ano estabelecido e o terceiro príncipe resolveu deixar a floresta para ir ter com sua amada e a seu lado esquecer as mágoas. Pôs-se a caminho pensando só na felicidade de tornar a ver a linda princesa; ia tão embebido que nem sequer viu que a estrada estava toda coberta de pedras preciosas. Deixou o cavalo galopar pelo meio da avenida, e quando chegou diante do portão do castelo este lhe foi aberto de par em par. Soaram alegres fanfarras e uma multidão de fidalgos saiu para recebê-lo.

Adentrou e em pouco apareceu a princesa, deslumbrante de beleza, que o acolheu cheia de felicidade e declarou a todos que ele era seu salvador e senhor daquele reino. As núpcias foram realizadas imediatamente em meio a esplêndidas festas.

Terminadas as festas, que duraram muitos dias, ela lhe contou que seu pai o havia proclamado inocente e desejava vê-lo de novo.

Acompanhado da rainha sua esposa ele foi ter com o pai e contou-lhe tudo que se passara: como fora traído pelos irmãos e como estes o obrigaram a se calar.

O rei, extremamente irritado contra eles, mandou que seus arqueiros os trouxessem à sua presença a fim de receberem o castigo merecido, mas vendo suas maldades descobertas eles tinham tomado um barco tentando fugir para terras longínquas para aí esconderem sua vergonha. Não o conseguiram. Sobreveio uma tremenda tempestade que tragou o navio e eles pereceram miseravelmente.

Fonte:
Contos de Grimm

domingo, 19 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 15


Irmãos Grimm (A Serpente Branca)

Há muitos e muitos anos, vivia um rei muito celebrado por sua sabedoria. Nada era oculto para ele. Era como se o conhecimento das coisas mais secretas chegasse até ele pelo ar. Mas tinha um estranho costume. Quando a refeição do meio-dia acabava, a mesa era tirada e não havia mais ninguém presente, um criado de confiança lhe trazia um prato a mais. Esse prato era coberto. Nem mesmo o criado sabia o que havia ali dentro. Nem ele nem mais ninguém, porque o rei só tirava a tampa e comia depois que ficava sozinho.

Um dia, depois que isso já acontecia há algum tempo, o criado não aguentou mais de curiosidade na hora de levar o prato embora. Secretamente o carregou para seu quarto, trancou a porta com cuidado e, quando levantou a tampa, viu que dentro havia uma serpente branca.

Depois de ver a cobra, não aguentou ficar sem dar uma provadinha. Cortou um pedaço bem pequeno dela e o pôs na boca. Assim que o pedacinho da serpente tocou a língua dele, o criado começou a ouvir sussurros suaves e estranhos do lado de fora da janela. Quando se debruçou para ver o que era, descobriu que as vozes que murmuravam eram de pardais conversando, que contavam uns aos outros tudo o que tinham visto pelos bosques e campos. Provar a serpente tinha lhe dado o poder de entender a linguagem das aves e dos animais.

Ora, aconteceu que justamente naquele dia desapareceu o melhor anel da rainha.

Como o criado de confiança tinha toda a liberdade para ir onde bem entendesse no palácio, suspeitaram que o tivesse roubado. O rei mandou chamá-lo e brigou com ele, dizendo que, a não ser que ele desse o nome do ladrão até o dia seguinte, seria considerado culpado e decapitado. Não adiantou jurar inocência. O rei mandou-o embora sem uma palavra de consolo.

Com medo e se sentindo desgraçado, ele foi até o quintal e ficou pensando, vendo se encontrava um jeito para sair daquela situação. Alguns patos estavam calmamente sentados na beira de um riacho, à vontade, se alisando com o bico e batendo papo. O criado parou e escutou. Cada um dizia aos outros o que tinha acontecido em todos os lugares por onde tinha nadado naquela manhã, e toda a comida gostosa que tinha comido. Mas um deles disse, queixoso:

- Estou com um peso no estômago... Estava comendo tão depressa que engoli um anel que estava no chão bem embaixo da janela da rainha...

O criado rapidamente agarrou o pato pelo pescoço, levou-o direto para a cozinha e disse ao cozinheiro:

- Olha só que pato gordo Se eu fosse você, assava ele.

- É mesmo - disse o cozinheiro, pesando o pato com a mão. - Já que ele se esforçou para ganhar tanto peso, é tempo agora de ir para o forno.

Cortou o pescoço do pato e depois, quando estava limpando a ave para assar, encontrou o anel da rainha no estômago dela. Com isso, não foi difícil o criado convencer o rei de sua inocência. Querendo reparar a injustiça que tinha feito, o rei lhe perguntou se havia alguma coisa que ele desejasse, e lhe ofereceu o cargo que ele quisesse escolher na corte.

O criado recusou todas as honras e disse que só queria um cavalo e um pouco de dinheiro, porque desejava ver o mundo e viajar um bocado. O rei logo lhe deu o que queria, e ele partiu.

Um dia, passando por um lago, notou que três peixes estavam presos nuns caniços e estavam ficando sem água. Dizem que os peixes são mudos, mas ele ouviu muito bem como eles gemiam se lamentando, diante da morte horrível que os esperava. Como era um bom sujeito, desceu do cavalo e pôs os três cativos novamente na água. Eles puseram as cabecinhas de fora, se abanando de alegria, e disseram:

- Vamos lembrar disso e recompensar você por nos ter salvo.

Ele continuou seu caminho e, pouco depois, ouviu uma voz que vinha da areia a seus pés. Prestou atenção e ouviu a queixa do rei das formigas:

- Se os humanos conseguissem manter seus animais desajeitados bem longe de nós, seria ótimo! Esse cavalo estúpido com esses cascos imensos e pesados está esmagando meu povo sem piedade...

Ouvindo isso, o criado saiu por um caminho lateral, e o rei das formigas gritou: - Vamos lembrar disso e recompensar você...

O caminho levava a uma floresta. Lá, ele viu um casal de corvos empurrando os filhotes para fora do ninho:

- Fora, seus marmanjões! - gritavam. - Não podemos mais encher as barrigas de vocês. Já estão bem grandinhos para buscarem sua própria comida.

- Ainda somos filhotes indefesos - gritavam. - Como é que podemos arranjar comida?

Os pobres filhotes batiam as asas desajeitados e não conseguiam levantar-se do chão. comida se ainda nem sabemos voar? Vocês vão nos fazer morrer de fome!

Ouvindo isso, o bom jovem apeou, matou o cavalo com a espada e deu sua carne para alimentar os filhotes de corvo. Eles vieram saltitando, comeram até se fartar, e disseram:

- Vamos lembrar disso e recompensar você.

Daí para a frente, ele teve que usar as pernas. Depois de muito caminhar, chegou a uma grande cidade. As ruas estavam cheias de barulho e movimento. Um homem a cavalo anunciava que a filha do rei estava procurando marido, mas que quem quisesse pedir a mão dela precisava primeiro cumprir uma tarefa muito difícil e, se falhasse, perderia a vida. Muitos já tinham tentado, mas arriscaram a vida à toa. Quando o jovem viu a filha do rei, ficou tão estonteado com a beleza dela que se esqueceu do perigo, foi até o rei e se apresentou como pretendente.

Foi levado diretamente à beira do mar. Lá, diante de seus olhos, jogaram n'água um anel de ouro. Depois, o rei lhe disse que ele precisaria ir buscar o anel lá no fundo. E acrescentou:

- Se você sair da água sem ele, será jogado de volta, tantas vezes quantas necessário, até morrer nas ondas.

Os cortesãos todos ficaram com pena do jovem e lamentaram sua sorte, tão bonito. Depois, deixaram-no sozinho na praia.

Ele ficou um pouco ali parado, pensando no que ia fazer. De repente, viu três peixes nadando em sua direção - justamente os três cujas vidas ele tinha salvo. O do meio tinha uma concha na boca. Depositou-a na praia, junto aos pés do rapaz. Quando ele pegou a concha e abriu, viu que dentro estava o anel de ouro.

Todo contente, levou o anel até o rei, esperando receber a recompensa prometida.

Mas a princesa era muito prosa e, quando viu que ele era inferior a ela em nascimento, desprezou-o e disse que ele ia precisar cumprir uma segunda tarefa. Desceu até o jardim e espalhou dez sacos cheios de farelo pelo meio da grama.

- Você vai ter que recolher tudo isso até amanhã, antes do sol nascer - disse ela -, sem faltar nem um grãozinho.

O rapaz sentou no jardim e começou a pensar em um jeito de cumprir a tarefa, mas não lhe ocorria nada. E lá ficou ele, tristíssimo, esperando que o levassem para a morte quando o dia nascesse. Mas quando os primeiros raios do sol chegaram ao jardim, ele viu que os dez sacos estavam de pé, cheios até a borda, sem faltar nem um grãozinho. O rei das formigas tinha vindo durante a noite, com milhares e milhares de formigas, e os bichinhos agradecidos tinham juntado todos os grãos de farelo dentro dos sacos outra vez.

A filha do rei veio em pessoa até o jardim e ficou espantadíssima de ver que a tarefa tinha sido cumprida. Mas seu coração prosa ainda se recusava a se render. Por isso, ela disse:

- Ele cumpriu as duas tarefas. Mas não será meu marido enquanto não me trouxer um fruto da árvore da vida.

O rapaz nem sabia onde ficava essa árvore da vida. Partiu procurando, resolvido a andar até onde as pernas o levassem, mas sem qualquer esperança de encontrar.

Uma noite, depois de procurar por três reinos, ele chegou a uma floresta. Sentou-se debaixo de uma árvore e estava quase adormecendo quando ouviu um barulho nos galhos e uma fruta de ouro caiu em suas mãos. Ao mesmo tempo, três corvos desceram voando da árvore, pousaram em seus joelhos e disseram:

- Nós somos os filhotes de corvo que você não deixou morrer de fome. Quando crescemos e ouvimos dizer que você estava procurando a fruta de ouro, voamos por cima do mar até o fim do mundo, onde cresce a árvore da vida, e pegamos a fruta.

Muito contente, o rapaz voltou para casa. Deu a fruta de ouro para a princesa e, depois disso, ela não tinha mais desculpa. Dividiram a maçã da vida e a comeram juntos. Aí o coração dela se encheu de amor por ele, e os dois viveram até a velhice numa felicidade perfeita.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 25 – 30 de agosto de 1887

Eu, pecador, me confesso
Ao leitor onipotente,
E a grã bondade lhe peço
De ouvir pacientemente

Uma lengalenga longa,
Uma longa lengalenga,
Áspera, como a araponga,
E tarda como um capenga.

Saiba Sua Senhoria
Que, em cousas parlamentares,
A minha sabedoria
Vale a de um ou dois muares.

Não? Isso é bondade sua...
Modéstia minha? Qual nada!
Digo-lhe a verdade crua,
Nua e desavergonhada.

Não entendo patavina,
Eu, que entendo a lei mosaica,
Humana, embora divina,
Límpida, conquanto ataica.

“E disse o Senhor: Faze isto,
Moisés, faze aquilo, ordena,
Eu, c'o meu poder te assisto;
Põe esta pena e esta pena”.

Eram assim leis sem voto,
Sem consulta, sem mais nada.
Deus falava ao grão devoto,
E vinha a lei promulgada.

Mas por que é que tanta gente,
Reunida numa sala,
Examina a lei pendente
Escuta, cogita e fala?

E por que vota? pergunto ...
Nisto abro uma folha, e leio
Bem explicado este assunto:
Era um discurso alto e cheio.

O orador, um deputado
Do Ceará, respondia
A um que o tinha acusado
De manter a escravaria.

Defendia-se, mostrando
Que, desde anos longos, fora
Dos que viveram chamando
A aurora libertadora.

Que a obra da liberdade
Era também obra sua,
Fê-la com alacridade,
Sem proclamá-lo na rua.

Votou, é certo, em contrário
Ao projeto com que o Dantas
Criou o sexagenário
E umas outras cousas tantas.

Mas não foi porque o julgasse
Oposto ao que entende justo,
Nem porque ele lhe vibrasse
Qualquer sensação de susto.

Foi só porque o gabinete
Para o Ceará mandara
Um presidente e um cacete,
Ambos de muito má cara.

Ele, vendo os seus amigos
Perseguidos, destinados,
Depois de grandes perigos,
A serem exterminados.

Votou contra a lei; e a prova
De que lhe não era oposto,
É que, vindo gente nova,
Votou a lei, de bom rosto.

E conclui assim: “Senhores,
Qualquer outro que se achasse,
Cheio de iguais amargores
E injúrias da mesma classe,

Faria o que fiz”. Pasmado,
De tudo o que não sabia,
Vim confessá-lo humilhado
Ante Vossa Senhoria.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Tiago Malta (Tragédia Grega Poética)

TORNEDOR

Depois de muito tempo sentado,
Resolvi levantar,
E pude notar que meus braços não se moviam.
Só às vezes, e por vontade própria.
Eu erro! Eu ergo! Eu enxergo!
Boto um monte de brinquedo para moer
E faço disto adubo que fará um buraco no solo.

CARRAPATO DE SATURNO

Um dia eu vi o futuro.
- É verdade... Eu já fui assim,
Hoje em dia faço força para conseguir chegar no próximo dia,
Pois no peito há um buraco,
E esse buraco dói,
Mostrando que não está vazio,
E sim com um coração fora da validade
esquecido pelas pessoas que nos matam,
Nos roubam
E fingem nos amar...

FERMATA

Me apoiando no porque de formula -preá-
Queria ouvir meus rins funcionarem,
E por favor, peçam pro professor pardal
Para me congelar até descobrirem o remédio contra a dor de
cotovelo

TRATADO

De todos os sentimentos
Que podem rondar
A mente de um poeta medíocre,
Porém com ideias puras,
O medo é o que domina,
De ficar vazio sem sua presença.
(não te conquistar)
Quero minha menina
Enroscada no meu peito
Eu ainda não dei meu último lance,
E como cabeça dura que sou,
Não aceitei os fatos
Luto pelo seu sorriso, olhos e colo

MAQUIAGEM PARA UMA PSEUDO FELICIDADE

Mais idiota que perde alguém sem saber o porquê.
É saber muito bem o motivo e não conseguir fazer nada.
Ainda mais quando você ama uma mula empacada.
Como já fora dito por alguns espectadores

DAS PIORES SENSAÇÕES

Foi quando um machado na minha mão,
Ela passou na minha frente
Tive de segurar minha besta
Para não cravar na coluna dorsal
Acabar com a história.

BATENDO A CABEÇA NO ARMÁRIO

Aqui estão todos eles,
Me enchendo a cabeça:
Minhas ampolas de adrenalina...
A linha do trem...
A Cinelândia...
E o saco muito cheio...
A gente passa batido com a cabeça erguida,
E acha que sorriso é sinal de felicidade,
E lágrima é sinal de tristeza.
Resumo: Eu sou então a felicidade triste.

NA TUA FRENTE

...     Então escrevo ideias feitas na hora ao olhar para ti...
Observar seu sorriso
Olhando para mim
Menina que me encanta
Trocando olhares
Não terminarei meu poema
Pois meu espaço é pequeno e eu estou cansado

ZABUMBA

O coro esticado rasgou
Quando minha maceta
Tentou me proteger de mim
E falhou.
Mas dizem que o que vale é a intenção...
A zabumba não toca mais
Silêncio para todos

CARICATURA EXPRESSO

Convivi dezenove vezes
Com a imagem impressa
Que se tornava redundante.

Sentindo um alívio no peito
Por toda cisma ter sido abolida
Foi permitido cumprir...

Foi medido o número de mãos direitas balançando com
outras mãos direitas.
Pra aparecer no final do relatório:
Resumido: foi coisa de louco.

Fonte:
Tiago Malta. Trovas Egoístas.

Expressões e suas Origens II

Pensando na morte da bezerra

A história mais aceitável para explicar a origem da expressão é proveniente das tradições hebraicas, onde os bezerros eram sacrificados para Deus como forma de redenção de pecados. Conta-se que certa vez um rei resolveu sacrificar uma bezerra e que seu filho menor, que tinha grande carinho pelo animal, opôs-se. Independentemente disso, a bezerra foi oferecida aos céus e afirma-se que o garoto passou o resto de sua vida pensando na morte da bezerra. Assim, estar “pensando na morte da bezerra” significa estar distante, pensativo, alheio a tudo.

Farinha do mesmo saco

"Homines sunt ejusdem farinae" (São homens da mesma farinha, em latim) é a origem dessa expressão, utilizada para generalizar um comportamento reprovável. A metáfora faz referência ao fato de a farinha de boa qualidade ser posta em sacos separados, para não ser confundida com a de qualidade inferior. Assim, utilizar a expressão "farinha do mesmo saco" é insinuar que os bons andam com os bons, enquanto os maus preferem os maus.
   
Dor de cotovelo

A expressão teve origem nas cenas de pessoas sentadas em bares, com os cotovelos apoiados no balcão, bebendo e chorando a dor de um amor perdido. De tanto permanecerem naquela posição, as pessoas ficavam com dores nos cotovelos. Atualmente, é muito comum utilizar essa expressão para designar o despeito provocado pelo ciúme ou a tristeza causada por uma decepção amorosa.

Olha o passarinho!

Quando a fotografia foi inventada, a impressão da imagem no filme não se dava com a mesma rapidez dos dias atuais. Na metade do século 19, os fotografados tinham de permanecer parados por até 15 minutos, a fim de que sua imagem fosse impressa dentro da máquina. Fazer as crianças ficarem imóveis por tanto tempo era um verdadeiro desafio. Por isso, gaiolas com pássaros ficavam penduradas atrás dos fotógrafos, o que chamava a atenção dos pequenos. Assim, a expressão “Olha o passarinho” ficou conhecida como a frase dita pelo fotógrafo na hora da pose para a foto.

Motorista barbeiro

Antigamente, os barbeiros eram conhecidos não apenas por realizar o corte de cabelo e barba, mas também por desempenhar tarefas como: extração de dentes, remoção de calos e unhas, entre outros. Geralmente, os serviços extra deixavam consequências desagradáveis aos clientes. No século 15, o termo “barbeiro” era atribuído a atividades mal executadas. Com o tempo, passou a ser relacionado aos motoristas.  Daí a expressão “motorista barbeiro”, ou seja, mau motorista.

Novo em folha

Para falar que algo nunca foi usado ou que, se já foi, está em ótimo estado, dizemos que está "novo em folha". A expressão também pode ser usada para designar alguém que, depois de se machucar ou enfrentar uma doença, está curado. A origem dessa expressão baseia-se em folhas de papel branquinhas, limpinhas e sem amassados, encontradas em livros novos, recém impressos. Assim, trata-se de livros “novos em folha”.
   
Ovelha negra

Esta expressão não é brasileira nem restrita à língua portuguesa. Vários outros idiomas também a utilizam para designar alguém que destoa de um grupo, assim como uma ovelha da cor preta se diferencia em um rebanho de animais brancos. Na Antiguidade, os animais pretos eram considerados maléficos e, por isso, sacrificados em oferenda aos deuses ou para acertar certos acordos. Daí o hábito de chamar de "ovelha negra" aqueles que se diferenciam por desagradar e chocar aos demais.

Guardar a sete chaves

No século 13, baús eram usados para guardar joias e documentos da corte de Portugal. Cada baú tinha quatro fechaduras e era aberto por quatro chaves distribuídas entre funcionários do reino. Com o tempo, os baús caíram em desuso. E algo que antes estava bem “guardado a quatro chaves”, passou a ser “guardado a sete chaves”, devido ao misticismo associado ao número 7. Esse misticismo originou-se nas religiões primitivas babilônicas e egípcias, que cultuavam os sete planetas conhecidos na época. Assim, a expressão “guardar a sete chaves” está relacionada ao ato de guardar algo com segurança e sob sigilo absoluto.
   
Tintim por tintim

Corrente tanto no português do Brasil como em Portugal, a expressão "tintim por tintim" é utilizada para falar de alguma coisa descrita em seus mínimos detalhes. Segundo o filólogo brasileiro João Ribeiro, “tintim é a onomatopeia do tilintar de moedas”, ou seja, tintim é o barulho que uma moeda faz quando cai sobre outra. Em sua origem, a expressão “tintim por tintim” era usada para se referir a uma conta ou dívida paga até a última moeda. Assim, quando queremos obter informações precisas sobre algum fato ou situação, costumamos dizer: "Conte-me tudo, tintim por tintim”.
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continua...

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) V

A FUNÇÃO DE UM POETA

Eu não era tão amargo assim,
nem trazia no rosto a marca do sofrimento.
O semblante sisudo herdei por conta das tragédias.
E o sorriso de menino indefeso desapareceu de meus lábios finos.
Quando descobri verdadeiramente o mundo
esse se desmoronou sob os meus pés.
Procurei, então, nas sendas do passado:
Tude, a negra alta, que mercava fufu
numa lata de manteiga da Aliança para o Progresso,
Os cambucás doces da Lagoa Funda de Américo Carneiro,
A suave proteção de meu avô Augusto Asclepíades.
Mas tudo se esvaiu como uma névoa branca
repleta de saudades.
Canto agora a minha dor,
e sou apenas um pequeno poeta jacuipense,
num canto escuro de uma casa,
sem amor.

BOQUEIRÃO DE MINHAS LEMBRANÇAS
Para minha filha Laura

“Santa Bárbara, Virgem
dos cabelos louros
a sua morada
é na pedra do ouro”
Domínio Público


Tocós, Cipó, Cocorobó, Caldeirão
Riachinhos, riachos, fontinhas, minação
Cedro, Peixe, Sacraiú, Riachão

Água de beber, água de beber, água de beber, meu irmão

Pedra do Taquari, Passagem, Olaria, Tanque da Nação
Cari, corró, donilo, piaú, camarão
Cabaça, carote, pote, porrão

Água de beber, água de beber, meu irmão

Rio do Peixe, Rio Castelo, Rio Achado no Chão
Rede de Três Maio, canoa, tarrafa, temporão
Lagoa Funda, Barreiros, São José, Gavião

Água de beber, meu irmão
Baronesas, golfos, mulungus, sangradouros, corrimão
Afogados da Gameleira, Mestre Domingos, Lontras,
Zé de Epifânio acordando os peixes no breu da escuridão.

Noites de velas,Sentinelas, Água de gasto
Teu batismo João.
Por favor,
Não mate meu Jacuípe
Não mate meu Jacuípe
Povo de meu Riachão.

Senhor,
Meu Deus!
Não me deixeis cair também nessa tentação.

Agora e para sempre
Na hora de nossa morte,
Rios de minha vida
Ó ó ó doce Boqueirão.

BALADA DE AFONSO MANTTA

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
Recitando em redondilha maior
Toda a verve de um ateu
na província de São Fudeu.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E rebradar que a loucura
não deixa o juízo apodrecer,
e que pela terra ficaram poetas,
de varas tesas até o amanhecer.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus
em sua perpendicular,
fazendo da pedra de toque,
o ouro que ornata seu versejar.

Lá vai, Lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E nesse adeus,
estamos nós esperando a hora chegar.

BALADA DO AMARGOSO

Meu avô Antônio Geminiano Santana não nasceu escravo,
mas como escravo fosse,
e sentisse no lombo o peso do vergalho seco de boi,
açoitado por um capitão do mato ou qualquer capataz,
e gemesse de dor na Coluna do Suplício.

Meu avô Antônio Geminiano Santana,
negro forro das terras do Amargoso,
vaqueiro do coronel Aurélio Mascarenhas,
comia em casco de cágado,
bebia num litro de óleo rícino,
como forma de humilhá-lo.

Das boiadas que meu avô Antônio Geminiano Santana tangeu pela vida afora
muitas ficaram pelos caminhos,
ou se perderam dentro dos próprios currais dos Mascarenhas.
Algumas foram trocadas numa mesa de pôquer,
todas marcadas a ferro que o próprio tempo
fez questão que a escória e a oxidação perdesse o sinal de ferrreiro,
moldado o ferrete em ferro aceso no bater do martelo na bigorna
fria da Rua dos Velhacos.

E as terras que meu avô Antonio Geminiano Santana mediu na vara de braço,
só restaram a traça corroendo os selos, à tinta dos carimbos, e o calhamaço de
averbação,
em pleno arquivo morto, jaz no Fórum Desembargador Abelard Rodrigues dos Santos,
meu padrinho, em pleno Riachão.

Meu avô Antônio Geminiano manso como suas próprias criação,
tangia com vovó Umbulina sua prole numerosa que se espalhou pelo sertão ,
e de espeto de aguilhão,
sentiu nas costas iniqüidade dos coronéis de títulos comprados à Guarda Nacional.
Não havia a quem reclamar:
se a Deus ou se ao Diabo.
Morreu pobre
abandonado num beiço de tanque,
enfartado e roxo,
no dia que o coronel lhe expulsou da própria fazenda,
que há quarenta anos tomava conta.
E em seu féretro,
o coronel também lá não apareceu,
ficando somente eu,
para recontar seu amargoso.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Beatriz Alcântara (Vizinhança)

Na varanda do sétimo andar, o cão, patas apoiadas no parapeito, olha o nevoeiro. O dono, a seu lado, fuma cigarro após outro fitando o horizonte. Manhã de sol, o homem abre a porta da varanda num elegante pólo, penteado com gel, pendura meticulosamente a roupa no varal. O cão, focinho fora da balaustrada, observa a rua que jamais frequenta. Dia inteiro de calor, o animal e seu senhor, sempre muito bem vestido, olham com melancolia o pôr-do-sol num céu
laranja como brasa sobre nuvens em carneirinhos. Natal, duas mulheres, uma marcadamente mais nova, aparecem por instantes na varanda, olham os arredores e logo fecham a porta ao vento e ao frio. Pela Páscoa, a Judiciária entra e sai, sem demora, do prédio. O homem vem à janela e prega nos vidros um papel, "Vende-se". Pouco depois a mulher jovem encosta o carro à porta do prédio e o indivíduo, acompanhado pelo fiel animal, entra na viatura seguindo rua afora. Mas tarde, a porteira avisa ao carteiro, terminou a prisão domiciliar do doutor.

Fonte:
REBRA

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Beatriz Alcântara

Maria Beatriz Rosário de Alcântara nasceu em Fortaleza, Ceará. Filha de pais portugueses, passou a adolescência em Portugal. Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e Mestra em Literatura pela Universidade de Brasília. Professora da Universidade Estadual do Ceará. Integrou o Grupo Seara de Literatura e pertence ao Grupo Espiral. Membro da Academia Cearense de Letras, Academia Fortalezense de Letras e da Academia de Letra e Artes do Nordeste Brasileiro. Poeta, ensaísta e contista. Publicou, de poesia e ensaios, os livros La Revolte Positive de Simone Beauvoir (1973); Fernando Pessoa e o Movimento Futurista de Álvaro de Campos (1985); La Parure; A Academia Brasílica dos Esquecidos (1993); Água da Pedra; O Portal e a Passagem; Raízes do Tempo; Folha de Prata e Livre Sinfonia; além do livro de contos Daquém e Dalém-Mar (1993). Participa também de diversas coletâneas, como da Revista Seara, Revista Espiral, O Livro da Ajebiana, Contos Correntes e Antologia do Conto Cearense, dentre outras.

                Daquém e dalém-mar é o livro de estreia de Beatriz Alcântara no gênero conto. Para Moreira Campos, prefaciador do volume, “impõe-se a obra, de logo, pela linguagem trabalhada, limpa, corrente e pelos vários temas de que se vale (são 16 contos, ao todo, 4 portugueses e 12 brasileiros), o que testemunha a imaginação fértil da autora”. Em “Mito rei” o leitor testemunha o velório da jovem Abigail, que “morreu daquela queda besta na calçada quando saltou do lotação” e “bateu com a cabeça no meio-fio”. Trata-se, na verdade, de conto de duplo enredo. A morte e o velório da moça seriam meros artifícios para a entrada em cena de outro personagem, cuja história se vai contanto (pelo narrador onisciente), enquanto se desenvolve o diálogo entre mãe e filha (prima da morta). A chegada do desconhecido instaura o mistério na sala (e no conto). Aliás, o mistério é uma constante neste livro. “Cortejos e avisos” é um conto misterioso, elaborado a partir de sonhos, pesadelos e premonições da narradora.

                Segundo Moreira Campos, “são múltiplos os caminhos da autora. Ora se envereda por experiências filosóficas, como no conto Monólogo da Coisa, ou não esquece o fantástico, o extraordinário, particularmente no conto Cortejos e Avisos. Ora se faz hermética, submersa, irrevelada, deixa ao leitor capaz a tarefa de preencher vazios. Um outro elemento de modernidade em Beatriz Alcântara é o conto curto, breve, um “flash”, mancha”. Uma das peças é constituída somente de diálogos; outra é um monólogo, espécie de apólogo.

                É forte a presença feminina nos contos de Beatriz. A protagonista Potyrama de “No divã” inverte os papéis de paciente e analista, ao “analisar” o psicanalista. Maria, da história que leva o seu nome, é outra personagem interessante, embora de feitio diferente de Potyrama. Enigmática, chega ao vilarejo da Taiba (litoral do Ceará), encosta “seus poucos pertences em cima da gruta, debaixo de um coqueiral”, e ali vai vivendo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 18 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 14)


Zerai os ressentimentos
e as mágoas do coração.
– Sem rancores, os bons ventos
novamente soprarão!
A. A. DE ASSIS – Maringá/PR
-
Se a noite chega cansada
de caminhar sempre ao léu,
Deus dá vinhos de alvorada
na taça rubra do céu.
ADELIR MACHADO – Niterói/RJ
-
Quebro a taça do passado
e o vinho espalhado ao chão
é meu brinde apaixonado
aos cacos de uma ilusão.
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO – São Paulo/SP

-
Quando o inverno, com seu manto,
cobre de frio os caminhos,
o vinho é o doce acalanto
do coração dos sozinhos…
ALBERTINA MOREIRA PEDRO – Rio de Janeiro/RJ

-
A saudade, sem carinho,
procura, nas noites frias,
por velhas taças de vinho
que a vida já pôs vazias!
AMÁLIA MAX – Ponta Grossa/PR
-

O medo é perturbador
e afeta a nossa razão;
faz que coisas sem valor
pareçam mais do que são.
AMILTON MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Neste meu verso amoroso
digo com certa emoção:
- a trova é vinho gostoso
que embriaga o coração.
ANITA THOMAS FOLMANN – Ponta Grossa/PR
-
Meigo menino sem nome
- alma e vida seminuas -
devora o vinho da fome
pelas adegas das ruas.
ANTONIO BISPO DOS SANTOS – Niterói/RJ
-
Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho;
é vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho.
ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
O pedestre inteligente
sem excesso de confiança,
atravessa, calmamente,
na faixa de segurança.
CAMILO BORGES NETO – Curitiba/PR
-
Goza o momento que passa.
Repara que, em nossas vidas,
nem sempre há vinho na taça,
mas, há, sempre, despedidas…
CARLOS GUIMARÃES – Rio de Janeiro
-
O café que aquece as almas
e adoça nossas lembranças
merece todas as palmas,
companheiro de esperanças.
CARMEN PIO – Porto Alegre/RS
-
Pai, nos caminhos da vida,
seu exemplo é solução,
onde descubro a saída
pra qualquer complicação…!!!
CECILIA SOUZA ENNES – Curitiba/PR
-
Se o frio for prolongado
nestes dias de inverno,
dê calor ao flagelado,
seja um pouco mais fraterno!
CECILIANO JOSÉ ENNES NETO – Curitiba/PR
-
Para mim a ecologia
é sagrado compromisso.
É meu sonho ver um dia
pescador só de caniço.
CECIM CALIXTO – Tomazina/PR
-
Não há vinho que me faça
esquecê-la um só segundo,
porque vejo em cada taça
a imagem dela, no fundo.
CLARINDO BATISTA DE ARAÚJO – Natal/RN
-
Eu, como quem desabafa
no vinho a dor que lhe esmaga,
vou pondo a dor na garrafa
do vinho que me embriaga.
DIVENEI BOSELI – São Paulo/SP
-
Caminhos que contêm flores.
Caminhos cheios de espinhos,
os caminhos dos amores.
Caminhos, longos caminhos...
DJALMA MOTA – Caicó/RN
-
Brigamos… E o amor, injusto,
prendendo-me a um labirinto,
põe no vinho, que degusto,
todo o amargor que ainda sinto!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – Rio de Janeiro/RJ
-

Bendito seja o sujeito
que, traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!
EDUARDO TOLEDO – Pouso Alegre/MG
-
Querência… O encanto profundo
dos dias calmos, risonhos…
- Um pedacinho de mundo
no mundo azul dos meus sonhos.
ELISABETH N. PASCHOAL – Taubaté/SP
-
Se em teu caminho prossegues
um grande amor procurando,
vai em frente, tu consegues,
basta continuar tentando!...
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS
-
Quando a tristeza rescinde
contrato com o coração,
louve a Deus e faça um brinde
com o vinho dda gratidão.
FRANCISCO LUZIA NETTO – Amparo/SP
-
Te levanto, vino tinto,
cual obrero triunfador,
mis labios de color pinto
con el mosto abrasador.
GERMÁN ANTONIO ECHEVERRÍA AROS – Chile
-
Café Damasco… Sabor!
Gosto bem quente e bem forte,
tanto no frio ou calor,
Instantâneo ou em pacote!
GUIMARÃES TABORDA BUENO – Curitiba/PR
-
Aquelas nuvens revoltas
sob o imenso firmamento,
parecem ovelhas soltas
voando a favor do vento.
HELY MARÉS DE SOUZA – União da Vitória/PR
-
Vagando em brandos festejos,
antes que a brisa se amoite,
os vaga-lumes são beijos
que os anjos trocam de noite.
HUMBERTO DEL MAESTRO – Vitória/ES
-
Quando a tristeza não passa,
forço um sorriso no rosto,
ponho vinho em minha taça
e ergo um brinde ao meu desgosto!…
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Poesia: flor de mistério
que brota do coração,
e abre as pétalas de etéreo
no céu da imaginação.
J. G. DE ARAUJO JORGE – AC
-
Foi São Francisco a grandeza
do amor cristão e profundo...
que, abrindo mão da riqueza,
abriu as mãos... para o mundo!
JOÃO FREIRE FILHO – Rio de Janeiro/RJ
-
Meu consolo, na tristeza,
quando, no peito, a agasalho,
é o pranto da natureza,
nas gotas tristes do orvalho.
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA – Rio de Janeiro/RJ
-
Foram felizes instantes,
Juventude na querência
Hoje em terras tão distantes
Pilcha…mate…sinto ausência.
JOSÉ FELDMAN – Maringá/PR
-
Se nunca me abate a lida,
é porque sempre reponho
minha energia perdida,
tomando o vinho do sonho.
JOSÉ NOGUEIRA DA COSTA – Pouso Alegre/MG
-
Marcaram minha existência
duas "heranças" fatais:
no amor, a palavra "ausência";
na ausência, a expressão "jamais"...
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Cada vez mais terno e amigo,
na verdade o nosso amor
tem muito do vinho antigo
que o tempo apura o sabor!
JOSÉ TAVARES DE LIMA – Juiz de Fora/MG
-
Foi assim que me deixaste:
Sem nenhuma explicação!
E sepultada ficaste
neste infeliz coração.
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – Pinhalão/PR
-
Como atitudes presentes,
a envelhecer feito os vinhos,
bons exemplos são sementes
lançadas pelos caminhos.
LAVÍNIO GOMES DE ALMEIDA – Barra do Piraí/SP
-
Renúncia, pra São Francisco,
foi total libertação;
ter posses é sempre um risco
para a alma em ascensão.
LÓLA PRATA – Bragança Paulista/SP
-
O vinho dissipa o tédio
em que o fracasso nos joga.
Na dose certa é remédio,
em excesso, nos afoga!…
LOURDES REGINA F. GUTBROD – Rio de Janeiro/RJ
-
De volta, naquela viagem,
carregando o olhar tristonho,
via de perto a paisagem,
mas bem distante o meu sonho...
LUCÍLIA TRINDADE DECARLI – Bandeirantes/PR
-

Asoma por la ventana
la luna su triste faz:
¿Dónde está Mario Quintana
que no me canta ya más?
MARIA ELENA ESPINOSA MATA – México
 -
Renúncia... amor  em pedaços...
que se prendeu num tear,
no emaranhado de laços,
que eu tento em vão desfiar...
MARIA LUA – Nova Friburgo/RJ
-
Ao clamor da Liberdade,
tremem os reis e as nações,
porque a força da verdade
tem mais força que os canhões!
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO – Bandeirantes/PR
-
Com volúpia e desvario,
neste amor vou mergulhar...
Eu me sinto como o rio,
que se atira para o mar!
MARIA THEREZA CAVALHEIRO – São Paulo/SP
-
No abandono, em desalinho,
eu sonho me embriagar
na branca taça de vinho
que se derrama em luar!
MARINA BRUNA – São Paulo/SP
-
Meu querido piano amigo,
com acordes de veludo…
Quando estou junto contigo,
logo me esqueço de tudo!
MARITA FRANÇA – Curitiba/PR
-
São gotas de poesia,
ou de algum raro licor,
que o orvalho, com alegria,
põe no cálice da flor.
MARLÊ B. J. DE ARAÚJO – Viamão/Portugal
-
Fecho os olhos... sou cativo
da saudade que me escolta
e teima em me dar motivo
para crer na sua volta.
MAURÍCIO CAVALHEIRO – Pindamonhangaba/SP
-
O licor molha o carpete…
E o par de taças quebradas
brinda o silêncio… e reflete
nossas noites fracassadas.
MILTON SEBASTIÃO SOUZA – Porto Alegre/RS
-
A videira busca o sumo
em solo fértil, profundo,
e faz do vinho um resumo
das alquimias do mundo.
MOACYR SACRAMENTO – Niterói/RJ
-

Foi por falta de carinho
que errei e perdi meus passos,
mas bendigo o “mau caminho”
que me levou aos teus braços...
NÁDIA HUGUENIN – Nova Friburgo/RJ
-
Nas águas em que vivemos,
onde mais nada magoa,
teus braços serão meus remos
e a nossa cama... a canoa...
NEIDE ROCHA. PORTUGAL – Bandeirantes/PR
-
Tudo agora é tão comum!
Nada dói na consciência...
Mas não há motivo algum
que justifique a violência.
OLGA AGULHON – Maringá/PR
-

Eis meu desejo ideal,
minha utopia e quimera:
– ver seus braços, afinal,
abrirem-se à minha espera!
RENATO ALVES – Rio de Janeiro/RJ
-
Quando me assalta a saudade
de te ver, de te falar,
saio, cheio de ansiedade,
com o fim de te encontrar.
SERAFIM FRANÇA – Curitiba/PR
-
Sei que este mundo é mesquinho,
mas, Senhor Deus, não aceite
que alguns se fartem de vinho,
pois há crianças sem leite!
SÉRGIO MIRANDA FILHO – Rio de Janeiro/RJ
-

Que verdura, que beleza,
o vinhedo sobre o monte,
quando a mão da Natureza
borda a tela do horizonte!
SEBASTIÃO SOARES – Natal/RN
-
Tendo o amor por inquilino,
com coragem e artimanha,
meu coração é um menino
que ora bate... que ora apanha!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA – São Paulo/SP
-
O jardim, nos seus atalhos,   
unindo vários canteiros,
tece colcha de retalhos,
ungido com doces cheiros...
VANDA ALVES – Curitiba/PR
-
Eu tinha o corpo cansado…
Ao dela faltava amor…
- E foi um vinho encorpado
que deu corpo ao nosso amor!…
WALDIR NEVES – Rio de Janeiro/RJ
-
No seu espaço abrangente,
a vida é espaço comum:
mistura um pouco da gente
na vida de cada um.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – Curitiba/PR
-
Na lareira um fogo brando
e, entre doses de licor,
nossos corpos desenhando
todas as formas de amor.
WILMA MELLO CAVALHEIRO – Porto Alegre/RS

Irmãos Grimm (As Três Folhas da Serpente)

Houve uma vez um pobre homem que não podia mais sustentar seu filho único. Este, então, disse ao pai:

- Meu querido pai, vives tão miseravelmente e eu sou um peso para ti; quero, portanto, ir-me embora e tratar de ganhar o pão de cada dia.

O pai deu-lhe a benção, despedindo-se dele com grande tristeza.

Naquele tempo, o rei de importante reino estava na guerra; o jovem entrou ao seu serviço, acompanhando-o ao campo de luta. Quando chegaram à frente do inimigo, travou-se uma grande batalha; o perigo era assustador; o feijão azul (balas) caía de todos os lados e os companheiros eram terrivelmente dizimados. Tendo caído também o comandante, os outros tentaram fugir, mas o jovem postou-se à frente deles e incentivou-os, exclamando:

- Não deixaremos perecer nossa Pátria! Avante!

Os outros, então, seguiram-no; ele irrompeu contra o inimigo e derrotou-o. Quando o rei veio a saber que só a ele devia a vitória, elevou-o a grande dignidade, deu-lhe tesouros ingentes e nomeou-o primeiro-ministro de seu reino.

O rei tinha uma filha belíssima, mas muito esquisita. Ela havia jurado que só aceitaria por esposo e senhor quem lhe prometesse deixar-se enterrar vivo com ela, se acaso ela morresse primeiro.

- Se me amar realmente, - dizia ela - de que lhe servirá depois a vida?

Em compensação, prometia fazer o mesmo: Descer à sepultura junto com o marido se ele morresse primeiro. Esse estranho juramento havia sempre desencorajado todos os pretendentes, mas o jovem, tão fascinado ficou com a beleza dela, que não deu importância a tal esquisitice e pediu-a assim mesmo em casamento.

- Sabes, porém, o que deves prometer? - perguntou-lhe o rei.

- Sei, - respondeu o jovem - se eu lhe sobreviver, terei de descer com ela à sepultura; mas o meu amor é tão grande que o risco não me causa receio algum.

Assim, obtido o consentimento do rei, realizaram-se as núpcias com o máximo esplendor. Durante algum tempo, viveram os jovens alegres e felizes. Entretanto, aconteceu que a rainha ficou gravemente enferma e nenhum médico conseguiu salvá-la.

Diante da falecida esposa, o jovem rei lembrou-se da promessa feita e ficou horrorizado por ter que se enterrar vivo, mas não tinha outra alternativa. O rei dera ordens para que todas as portas fossem vigiadas; assim não lhe era possível fugir ao próprio destino. Portanto, no dia em que o cadáver foi trasladado para a cripta real, o jovem foi obrigado a segui-lo. Uma vez lá dentro, fecharam e aferrolharam-lhe a porta.

Perto do ataúde havia uma mesa e, em cima dela, quatro velas acesas, quatro pães e quatro garrafas de vinho. Quando terminasse essa provisão, ele teria de morrer à míngua. Cheio de angústia e tremendamente acabrunhado, o jovem comia, diariamente, apenas um pedacinho do pão e, do vinho, tomava um golinho apenas. Via, contudo, a morte aproximar-se inevitavelmente. Enquanto se achava assim absorto, olhando para a frente, viu uma serpente sair rastejando do canto da cripta e avizinhar-se do cadáver. Julgando que fosse mordê-la, desembainhou a espada dizendo:

- Enquanto eu viver, ninguém lhe tocará - e cortou o réptil em três pedaços.

Nisso, apareceu uma segunda serpente, que vinha rastejando do canto da cripta mas, quando viu a companheira morta e em pedaços, retirou-se voltando logo com três folhas verdes na boca. Pegou os três pedaços da serpente morta, juntou-os direito e sobre cada um dos talhos colocou uma folha. Os pedaços uniram-se novamente, a serpente moveu-se e readquiriu a vida e, em seguida, fugiu com a companheira.

As folhas ficaram caídas no chão e o infeliz, que assistira àquilo tudo, perguntou a si próprio se o poder mágico que continham, tendo ressuscitado a serpente, não poderia aplicar-se também a um ser humano? Recolheu então as folhas, colocou uma sobre a boca e as outras duas sobre os olhos da esposa falecida. Mal acabou de colocá-las, o sangue voltou a circular nas veias, afluindo-lhe ao rosto, dando-lhe natural colorido. Ela respirou, abriu os olhos e perguntou:

- Oh, Deus meu, onde estou?

- Estás comigo, minha querida mulher - respondeu o jovem.

Em seguida, contou-lhe todo o sucedido e a maneira pela qual havia ressuscitado. Depois, deu-lhe um pedaço de pão e um pouco de vinho; assim que ela se reanimou, levantou-se e ambos foram bater à porta, esmurrando-a e gritando tão alto que os guardas ouviram e correram a avisar o rei. Este, em pessoa, desceu à cripta e abriu a porta, encontrando os dois vivos, sadios e viçosos como nunca; radiantes de alegria, abraçaram-se felizes por terem superado aqueles tormentos.

O jovem rei levou consigo as três folhas e deu-as ao seu criado dizendo:

- Guarda-as com cuidado e traze-as sempre contigo; quem sabe lá as circunstâncias que podem vir e se elas ainda servirão a alguém!

Depois de ressuscitada, porém, a mulher mudara completamente; parecia que de seu coração se tivesse desvanescido todo o amor pelo marido. Este, decorrido algum tempo, quis fazer uma visita ao velho pai; ao embarcarem no navio que os levaria, a rainha esqueceu o grande amor e a dedicação que ele sempre lhe demonstrara, a ponto de tê-la salvo da morte e passou a nutrir uma paixão pecaminosa pelo comandante do navio.

Certo dia, enquanto o rei estava dormindo, chamou o comandante e mandou que pegasse o marido pelos pés, enquanto ela segurava-o pela cabeça e atiraram-no ao mar. Consumado o crime, disse ela:

- Agora voltaremos para casa. Diremos que ele morreu durante a viagem. Eu te exaltarei perante meu pai e tais elogios farei que ele consentirá em nosso casamento. Assim ficarás sendo tu o herdeiro da coroa.

Mas o fiel criado, que tudo presenciara, foi, sem ser visto, destacar um bote salva- vidas e desceu ao mar. Entrou nele e foi vagando à procura de seu amo, deixando os traidores prosseguirem tranqüilamente a viagem. Assim que conseguiu pescar o cadáver, colocou-lhe nos olhos e na boca as três folhas verdes que trazia consigo, as quais lhe restituíram a vida.

Juntos, então, puseram-se a remar dia e noite, com todas as forças e o bote voava por sobre as ondas com tamanha velocidade, que chegaram antes dos outros à presença do rei. Este, vendo-os regressar sozinhos, muito se admirou e perguntou qual o motivo. Ao ter conhecimento da crueldade da filha, exclamou:

- Custa-me crer que tenha agido assim cruelmente, porém, a verdade logo virá à luz.

Mandou que entrassem num quarto secreto e ficassem ocultos de todos. Não tardou muito e chegou o navio. A pérfida rainha apresentou-se ao pai muito aflita. Ele perguntou-lhe então:

- Por que voltas sozinha? Onde está teu marido?

- Ah, meu querido pai - respondeu ela - volto em grande luto; meu marido adoeceu repentinamente durante a viagem e faleceu. Se este bom comandante não me socorresse, não sei o que teria sido de mim. Ele assistiu-lhe a morte e pode contar tudo.

- Eu vou fazer ressuscitar o morto - disse o rei.

Abriu a porta do quarto secreto e fez sair os dois. Ao ver o marido, a rainha recebeu um choque tão grande como se lhe tivesse caído um raio aos pés. Prostrou-se de joelhos implorando perdão, mas o rei gritou-lhe:

- Para ti não pode haver perdão! Ele mostrou-se pronto a morrer contigo; restituiu-te a vida e tu o assassinaste enquanto dormia. Deves, pois, receber o justo castigo.

Conduziram-na, juntamente com o cúmplice, para um navio que fazia água e os lançaram ao mar, onde, não tardou muito, foram a pique e se afogaram.

Fonte:
Contos de Grimm

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) IV

Balada de um Homem Apaixonado em Meio ao Luar na Baía de Todos os Santos
 
Dos meus olhos cintilam faíscas vermelhas
Que incendeiam como fachos de fogo
Teu lençol encharcado de suor e centelha
A boca vermelha, rubra de tanta paixão
Busco na madrugada me embeber de tanta predileção.

O hálito delicioso de estranho almíscar
Envolve-me num clima de verdadeiro estupor
Respiga na memória as ancas belas de meretriz
E minha mão desliza na tua escultura verniz
Moldada em febre por Camile Claudel
E o lençol do véu
Lentamente descubro na penumbra desse meu céu.

Trêmulo de ardor dessa paixão
Toco com a ponta dos dedos
O bico eriçado de teu peito mortal
E como um bebê que busca a mama
Sugo com sede teu fruto abissal.
Revira-se, então, com pose de gazela,
E como um caçador de estepes africanas
Lanço o falo em tua gruta aveludada e bela.

Pego teus cabelos sedosos e macios
Mergulho os dedos na direção
De teu rosto de porcelana chinesa
Repousa enfim em meu peito de esfinges.
Lentamente adormece, e à francesa
a lua cruza a abóbada celeste
Em direção ao Japão.

Canção para ninar Gaiaku Luíza

Eu
não sei dos mistérios,
e nem ousaria desvendar.
Dentro de mim correm negros
que me fazem de ti aproximar.

Trago, porém, de longe
guardado em meu peito
teu doce nome para te louvar.

Minha Mãe dos Caminhos
me embale até eu sonhar.
Ò Gaiaku Luíza
Teu povo jeje veio nos tumbeiros a penar

Transportados feitos animais,
chicoteados, humilhados.
Renascem por tuas mãos,
na longa luta,
através de teus Orixás.

Declaração de Princípios
Para o poeta Zéduardo Souza

Quem andou em cavalo baio
Nunca esquece a montaria
Chuva de molha não enche barreiro
Pedra de toque não é cantaria

Eu sou madeira de dar em doido
Eu sou barro bom de alvenaria
Martelo, prumo e serrote
Sou poeta da Bahia

No tempo de meninote
Andei tudo que é freguesia
Farra pra mim só três noites
Homem valente não é sinal de valentia
Bacalhau já foi comida de pobre
Asfalto foi quem trouxe a carestia

O diabo já morou no céu
Chuva do sul é invilia
Marmanjo já teve na escola
Conversa de bêbado nunca teve serventia

Eu sou madeira de dar em doido
Eu sou barro bom de alvenaria
Martelo, prumo e serrote
Sou poeta da Bahia.

Canção das noites de abril

A minha amada
tem olhos de madrugada
como fachos acesos de tição.
A minha amada é inquilina
bem menina
de meu velho coração.

Chama-me pro canto
Fascina-me
faz-se de traquina
em meu templo de celebração.

A minha amada tem a boca de mel
semelhante ao manjar do céu.
De travo tão bom,
espairecida no Jardim das Delícias
E nessa preguiça
permaneço a lhe enamorar.

Minha amada tem um cheirinho
que de longe eu posso identificar
Aquece-me e me cobre
e dorme sempre depois que eu estou a cochilar

Para Boi Dormir

Maria da Anunciação Moranda das Noitinhas,
onde os grilos cantam à tardezinha,
para avisar que a barrinha,
estava sumindo.

Perto da Malhada Comprida,
seu Zé da Anunciação,
com sua solidão,
vem capengando,
aboiando,
sem se importar com a cara do Cão.

No fogão de lenha,
a panela de feijão mulatinho chia,
pia,
ó tia,
e a cascavel no bote esperando uma rã.

Aquela vontade terçã,
de avistar as serras do Bugio,
e de onde me guio,
lembro dos Rios,
que enterraram patacas de ouro,
para as cabras do Istopô,
berrarem chamando os aliados.

Lá em casa meu louro,
sem nenhum agouro,
está a me aguardar.
Os meninos da Anunciação,
soletram o abc do sertão:
Da chegada de Lampião.

Tá tudo no mato,
e eu sem sapato,
com sandália de rabicho,
vendo tudo que é bicho,
nesse chapadão.

Vai desaguar trovoada,
Meus companheiros darão gaitada,
e a terra vai despregar da lua,
e ela toda nua,
com o cavalo de São Jorge despontando garboso,
todo formoso,
com as bridas de prata alumiando o sertão.

E essa cambada de gente,
nessa aporrinhação.
Empalhando jaracuçu,
comendo teiú,
e não sabe onde fica o Boqueirão,
Né, mesmo, Seu Zé da Anunciação?

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Expressões e suas Origens I

Corredor Polonês

Corredor polonês é uma expressão comumente utilizada para denominar uma passagem estreita formada por duas fileiras de pessoas que se colocam lado a lado, uma defronte à outra, com a intenção de castigar quem tenha de percorrê-la. A expressão faz referência à região transferida por parte da Alemanha para a Polônia ao fim da Primeira Guerra Mundial, em virtude da assinatura do Tratado de Versalhes. O Corredor Polonês dividiu a Alemanha ao meio, isolando a Prússia Oriental do resto do país. Através de uma extensão de 150 quilômetros e largura variável entre 30 a 80 quilômetros, permitiu que os poloneses circulassem livremente em território alemão, bem como possibilitou o acesso da Polônia ao Mar Báltico. Posteriormente, tanto o Corredor quanto a Prússia foram incorporados ao território polonês. A disputa pela região do Corredor Polonês provocou inúmeros atritos entre os dois países. Em 1939, durante a invasão da Alemanha à Polônia, os poloneses foram encurralados pelos alemães, os quais se posicionavam dos dois lados do Corredor e atiravam contra os poloneses, que estavam no meio.

Voto de Minerva


A expressão tem sua origem em uma história pertencente à mitologia grega. Agamenon, o comandante da Guerra de Troia, ofereceu a vida de uma filha em sacrifício aos deuses para conseguir a vitória do exército grego contra os troianos. Sua mulher, Clitemnestra, cega de ódio, o assassinou. Com esses crimes, o deus Apolo ordenou que o outro filho de Agamenon, Orestes, matasse a própria mãe para vingar o pai. Orestes obedeceu, mas seu crime também teria que ser vingado. Em vez de aplicar a pena, Apolo deu a Orestes o direito a um julgamento, o primeiro do mundo. A decisão, tomada por 12 cidadãos, terminou empatada. Chamada pelos gregos de Atenas (Minerva era seu nome romano), a deusa da sabedoria proferiu seu voto, desempatando o feito e poupando a vida de Orestes. Eis a razão da expressão Voto de Minerva (também conhecida como "voto de desempate" ou "voto de qualidade").

Bafo de onça

A onça é um animal carnívoro que se lambuza bastante na hora de comer a caça. Por esta razão, fede muito e sua presença é detectada à distância na mata. Assim, pessoas que possuem o hálito fétido passaram a ser chamadas de "bafo de onça". A expressão também faz referência ao hálito de quem está (ou esteve) alcoolizado.

Santinha do pau oco

Expressão que se refere à pessoa que se faz de boazinha, mas não é. Nos séculos 18 e 19, os contrabandistas de ouro em pó, moedas e pedras preciosas utilizavam estátuas de santos ocas por dentro. O santo era "recheado" com preciosidades roubadas e enviado para Portugal.
   
Névoa baixa, sol que racha
   
Ditado muito falado no meio rural. A Climatologia o confirma. O fenômeno da névoa ocorre geralmente no final do inverno e começo do verão. Conhecida também como cerração, a névoa fica a baixa altitude pela manhã provocando um aumento rápido da temperatura para o período da tarde.

Sem eira nem beira

Significa pessoas sem bens, sem posses. Eira é um terreno de terra batida ou cimento onde grãos ficam ao ar livre para secar. Beira é a beirada da eira. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário fica sem nada. Na região nordeste este ditado tem o mesmo significado mas outra explicação. Dizem que antigamente as casas das pessoas ricas tinham um telhado triplo: a eira, a beira e a tribeira como era chamada a parte mais alta do telhado. As pessoas mais pobres não tinham condições de fazer este telhado , então construíam somente a tribeira ficando assim "sem eira nem beira".

Lua de Mel
   
A expressão vem do inglês honeymoon. Na Irlanda, na Idade Média, os jovens recém-casados tinham o costume de tomar uma bebida fermentada chamada mead – ou hidromel, composta de água, mel, malte, levedo, entre outros ingredientes. O mel era considerado uma fonte de vida, com propriedades afrodisíacas. A bebida deveria ser consumida durante um mês (ou uma lua). Por essa razão, esse período passou a ser chamado de “lua de mel”.
   
Casa da mãe Joana

A expressão "casa da mãe Joana" alude a um lugar em que vale tudo, onde todo mundo pode entrar, mandar, uma espécie de grau zero de organização. A mulher que deu nome a tal casa viveu no século 14. Joana era condessa de Provença e rainha de Nápoles (Itália). Teve a vida cheia de confusões. Em 1347, aos 21 anos, regulamentou os bordéis da cidade de Avignon, onde vivia refugiada. Uma das normas dizia: "o lugar terá uma porta por onde todos possam entrar". "Casa da mãe Joana" virou sinônimo de prostíbulo, de lugar onde impera a bagunça.

Chegar de mãos abanando

A origem mais aceita para a expressão está relacionada com os imigrantes que chegavam ao Brasil no século 19. Eles costumavam trazer da Europa ferramentas para o cultivo da terra, como foices e enxadas, além de animais, como vacas e porcos. Uma ferramenta poderia indicar uma profissão, uma habilidade, demonstrava disposição para o trabalho. O contrário, chegar de mãos abanando, indicava preguiça. Atualmente, quando uma pessoa vai a uma festa, mandam os bons modos que leve um presente. Se não o faz, diz-se que “chegou com as mãos abanando”.
=====
continua...

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 24 – 23 de agosto de 1887

Anda-se isto a desfiar:
Quem será o responsável
Dos atos que praticar
O poder irresponsável?

Há várias opiniões
Sobre esta questão pendente;
Contradizem-se as razões,
Um afirma, outro desmente.

Vão aos livros e aos Anais
Buscar uma extensa lista
De palavras textuais
Deste ou daquele estadista.

Nem só nacionais, também
Surgem nomes estrangeiros,
Nomes ilustres, que têm
Merecidos pregoeiros.

Um deles foi o senhor
Benjamin Constant, pessoa
Que o poder moderado
Criou e deu à coroa.

Foi ele, em escrito seu,
Que à constituição brasília,
Sem saber, o artigo deu
Que pôs a toda família

Dos poderes, um poder
Que a regesse e moderasse...
Outros porfiam em ver
O caso por outra face.

E tu, Benjamin, fatal,
Grande amador de pequenas,
Tu, morto, tu, imortal,
Lá das regiões serenas,

Que pensas, que pensas tu
Nesta questão, obra tua?
Tira do espírito nu
Opinião crua e nua,

Põe-lhe sobrescrito a mim,
Se achas melhor escrevê-la;
Ou brada-m'a, Benjamin,
Que eu poderei entendê-la.

E logo uma bela voz
Me entrou pelo gabinete,
Fininha como um retrós,
Viva como um diabrete.

E disse: — “Queres saber
O que nesta causa penso?
Qual o meu modo de ver?
A que partido pertenço?

“Se acho que o moderador,
Nos atos em que modera,
Tem ou não algum senhor
Que responde e o desonera?

“Se o poder, a quem chamei
Neutro, pode, irresponsável,
Ter por isso mesmo em lei
Um ministro responsável?...”

“ — Sim, despacha, respondi
Já zangado e impaciente.
— “Di-lo-ei a ti, a ti;
Se queres, di-lo a mais gente.

“Não verás em mim a flor
Da modéstia, planta rara,
Responderei com rigor,
Certeza e palavra clara.

“Digo que gostei de ouvir
Idéias finas e tantas,
Gostei de as ver discutir
Leão, Cotegipe e Dantas.

“Mas, com franqueza, eu deitei
Tudo ao mar, nesta viagem.
Só uma cousa guardei
E trago-a cá na bagagem.

“Não que julgue sem valor
Outras páginas escritas
Ou faladas, não, senhor;
São puras e são bonitas.

“Foram feitas ao buril,
Pensadas e bem pensadas.
Deixei-as às mil e às mil,
Por esse mundo espalhadas.

“Mas agora que aqui estou,
Livre de ruins cuidados,
Digo: o melhor que ficou
Dos escritos lá deixados

“Foi... palavra que não sei,
Não sei bem como me exprima:
Foi um livrinho de lei,
Uma jóia, uma obra-prima,

Um livro, um livrinho só,
Que entre os escritos passados,
Resiste ao mórbido pó —
Dos anos empoeirados.

“Custa-me dizê-lo, crê:
Um romance, e pequenino;
Relê, amigo, relê
O meu Adolpho; é divino.

“Do mais tanto cuido aqui
Como daquela camisa,
A primeira que vesti...
Diz a rima que era lisa”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Três cobras

Sempre que ouço falar em cobras, benzo-me, em sinal de gratidão à divindade, por estar ainda hoje vivo, e aqui, com saúde, para poder referir o passado comigo.., e elas.

Quisesse eu contar casos de cobras... Registro apenas um terço, por causa da circunstância de ter sucedido durante uma só viagem.

Foi no tempo da guerra do Paraguai. Eu era cadete; o meu regimento seguia, pela campanha, recebendo a incorporação de piquetes de recrutas mandados de vários lugares: já se vê portanto que muita gente presenciou o acontecido.

E que muitos já morreram, outros extraviaram-se, e se não, eu apresentaria testemunhas, isto se alguém me duvidasse, o que não espero: felizmente sou tido e havido por homem de palavra!

Primeira cobra.

Uma tarde, ao lusco-fusco, acampamos junto a um pedregal; arrumada a cavalhada, oficiais e soldados, soprando nos dedos, fomos fazendo as camas nos arreios, e como o cansaço era grande, só se fez uma fogueira, e quem pôde aí perto deitou-se, com os pés para o braseiro.

Eu fui dos felizardos da quentura... Mas também o único de negra sorte, nessa noite.

Deitei-me; como de costume, fiz uma reza a São Romualdo e adormeci, sonhando com uma moça que no caminho me havia dado um pires de doce de coco.

Depois o sonho foi passando para aflito; eu era chão, chão de terra, e em cima de mim, chão, um gigante, parecido com o corneteiro do regimento, estava enroscando uma espia de navio, grossa, como um braço de homem, e fria, fria, como água de pedra...

E o gigante alava a espia, alava e ia-a enroscando, volta sobre volta, em cima de mim.

Depois eu já não era mais chão, era eu mesmo; queria agarrar o pires de cocada da moça, mas não podia, por causa do peso da espia; e do peso me veio vindo um pesadelo, que me dava a idéia de uma imensa lingüiça crua, enrolada e achatada sobre o meu rosto, sobre a garganta e o peito.

Quando o pesadelo foi me tomando por completo, quando eu ia gritar e bracejar para livrar-me da sufocação... o nariz entrou em função e pôs-me alerta; e acordei-me.

O nariz acusava o cheiro acre de uma catinga, catinga de cobra, que chega a arder lá dentro, nas voltinhas do cheiramento.

Despertei, disso.

E senti o horror da minha situação. Exatamente como eu havia sonhado o gigante enrolando a espia, assim estava enroscada sobre a minha cara e pescoço e peito uma tremenda cobra; pesava como chumbo, cujo frio trespassava-me, cuja catinga me sufocava!

E dormia, muito a seu gosto, o monstro, aproveitando o calorzinho do meu corpo! Sentia-lhe a respiração curta, um nadinha assobiada; pareceu-me até - isso não garanto, mas pareceu-me - que a cobra ressonava...

Que posição, hem?... Mexer-me.., era acordá-la; gritar.., ia assanhá-la, levantar-me, de salto, uma loucura; dar-lhe um bote à cabeça, apertá-lha pela goela... mas, no escuro, se em vez do pescoço eu agarrasse-lhe.., o rabo?...

No perigo é que se aprecia a calma dos homens.

Com mil cautelas tirei do bolso o naco de fumo, piquei-o, sovei uma palha, enrolei um grosso cigarro e comecei a pitar... a pitar... a pitar... puxando umas fumaças tão encorpadas, tão espessas, que se fosse dentro de casa fechada nublariam os aposentos! Ao cheiro ativo do forte fumo criolo a bicha moveu-se...

Deu-se com ela o que se havia dado comigo; o meu nariz despertou-me pela catinga dela; o nariz dela acordou-a pelo sarro do meu fumo. Estávamos a mano, de nariz.

A cobra acordou-se, deu uns seis ou sete espirros e foi se desenrosquilando, escapando-se furiosa, lanceando o ar, com a língua.

Eu, fuma que te fuma! E vá fumaça pelas ventas, vá fumaça!...

Para encurtar o caso: nem sei para que lado ela tomou, a noite estava muito escura, o lugar muito carregado de fumaça e eu muito cansado de pitar e com frio.

Virei-me para a parede e tornei a ferrar no sono.

Segunda.

Foi poucos dias depois. Vínhamos em marcha forçada; alta madrugada o regimento fez alto. Trazíamos umas novilhas gordas, que foram logo abatidas para um rancho apressado, de churrasco.

Fazia um frio de rachar pedras.

Acendeu-se uma grande fogueira e cada um tratou de chamuscar o seu pedaço de carne.

Eu saí a procurar um espeto para o meu assadinho. A noite era muito escura, mas graças ao clarão da fogueira descobri uma pequena reboleira de mato, ali perto. Aproximei-me e quando ia cortar um galho qualquer, caiu-me ao chão a faca, abaixei-me para apanhá-la dentre as ervas, e com tal sorte, que ao lado dela encontrei um pedaço de pau tal e qual como eu queria: duma meia braça, grossinho, liso, e o que mais é, já com a ponta feita.

Por certo que seria um espeto já pronto que algum dos camaradas perdera; melhor para mim!

E ainda bati com ele no chão para limpá-lo duns capins secos, e terra que estava pegada.

Voltando, atravessei o meu churrasco no meu espeto achado, e finquei-o na beirada do fogo.

Vinha clareando o dia.

Por toda parte branqueava a geada, alta de dois dedos, geada farinhenta,. que é a mais fria de todas. Estava eu um pouco arriado, conversando, quando um cabo, baiano, que viera acender o cigarro numa brasa, gritou, olhando para o chão, admirado:

— Olha o assado com o espeto, cadete Romualdo, que vai-se embora!...

Julguei que era algum gaiato que pretendia furtar-me o churrasco; mas o baiano repetiu:

— Acuda, seu cadete, que o assado vai de trote!...

Corri, e que vi?...

O churrasco, sim senhor, borrifado de salmoura, já chiando na gordura, que ia andando pelo chão.., dava a idéia de um cágado sem pernas, mas de cabeça é cauda mui compridas! ...

Acudiram então outros rapazes, muitos, quase todos: e todos viram o churrasco arrastando-se, fugindo da fogueira.

Então rompeu o sol. Foi quando se pode verificar a cousa: o espeto era uma cobra!

Como estava dura, dura de frio, agüentai a todo o trabalho de atravessar o churrasco e ser cravada ao lado do fogo; depois o calor começou a assar a carne e a aquecer o espeto, isto é, a cobra, que se foi reanimando, revivendo. E logo que ela sentiu-se quentinha e de saúde, tratou de escapar.

Com o alarido e o movimento a cobra assustou-se, fez força e desfincou-se do churrasco, escondendo-se logo num buraco ali adiante.

Este caso foi muito falado naquele tempo.

Terceira cobra.

Isso deu-se depois, já no regresso do regimento, depois de entregarmos os recrutas.

Seria uma hora da tarde; tempo seco; pesado.

Vínhamos numa troteada rasgada, levantando poeira, na estrada.

Eu estava morto de sede; avistando à direita um mato, calculei que ali devia haver algum olho-d'água e pedi' licença ao meu alferes para chegar até lá num galope.

Concedida; mas logo outros não se sofreram e imitaram-me e fomos, como uns sete, beber umas goladas d'água fresca.

Apeei-me eu, primeiro; e quando, já de beiço preparado para o chupão, ia debruçar-me, atirei-me pra trás, porque a meio palmo da cara vi. enroscada e furiosa, já silvando, uma cobra roxa, de umas tais que tem cerdas crespas, que nascem debaixo de cada escama da casca.

É a cobra chamada "viradeira", porque qualquer animal por ela mordido vira-se logo de papo para o ar, estrebuchando ou logo morto.

É cem vezes mais venenosa que a cascavel.

— Mata, Romualdo, senão ela vira-te!

Não esperei segundo aviso; foi só o quanto desafivelei o loro com o estribo, e fazendo deste arma, desferi uma pancada mestra sobre a cabeça da "viradeira".

Porém, ligeiríssima, a cobra ainda atirou um bote ao estribo, que era de prata, e tiniu, com o choque da dentada.

Porém matei-a.

Com a impressão do acontecimento e porque a bicha ao morrer caísse e se estorcesse n'água, todos, de nojo, perderam a sede.

Apresilhei novamente o estribo, montei e galopamos para alcançar a força, já distanciada.

Logo correu conversa sobre a cobra, aquela, e sobre outras, que não as conhecia, eu: oficiais e soldados, cada um muito honradamente esfolou a sua cobra.

Continuávamos a trotear, quando comecei a sentir o pé apertado no estribo e o cavalo meio derreado, como se trouxesse todo o peso a um lado.

Parei para examinar a esquisitice: era o estribo que ia inchando, a olhos vistos envenenado pela bruta peçonha da "viradeira", e conforme ia inchando apertava-me o pé, que já custei a retirar; e o peso da inchação ia sobrecarregando cada vez mais o cavalo...

O comandante veio ver o etribo inchado; o major veio ver: e vieram os capitães, os tenentes, os alferes, os cadetes, os sargentos, os cabos, os furriéis, os rasos.

O capitão-cirurgião ainda falou em lavar o estribo com cachaça, fumo e sal, a ver se ele vomitava.., mas o regimento não podia demorar-se, e eu fui obrigado a abandonar na estrada o estribo, que já estava como um trambolho, inchado e balofo e meio azinhavrado, tirante a verde de defunto passado...

— Cadete Romualdo! Que dentada, hem?... dizia o comandante.

— Que veneno! ... dizia o major.

— Que cobra! ... diziam os capitães.

Que "viradeira"!.., diziam os pica-fumo.

— Pois sim! Vão cantando, dizia eu ... O que vale é que todos viram!

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XIII

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 14

Fonte:
Trova formatada obtida no facebook do autor

Salomão Sousa (Poemas Avulsos)

Ela espera com as verbenas boas...

Ela espera com as verbenas boas
e em repouso todos guerreiros mortos
A luta esqueceu de bater na porta
e buscavam guerreiros de bom garbo
as chamas das verbenas sobre as águas
Estariam após as portas do sol
Schiller ameaçou tocá-las em Jena
e antes que as alcançasse houve a cegueira
Erguiam pontes e nelas se agarravam
e iam e se perdiam fundos nos lamaçais
Eram milhões para depois do gelo

E ao lado dos mortos fervem as hienas
vorazes nas vísceras dos guerreiros
e jamais se juncarão de verbenas
===================
E é o veneno que cresce no silêncio...

E é o veneno que cresce no silêncio
E é até o broto da lágrima
que está seco dentro de uma rocha
E é um vazio como um grão de ouro
e é uma tortura como o sentir de um coice
A mão esquecida sobre a bainha
e não há um corte para esvaziar o escarro
Há o pressentir de um estouro
e há um campo cheio de quietos touros
e não há uma queda onde quebrar a cara
e não há uma vara para escapulir da tara
Sem um gorjeio sequer num vento livre
e tudo é vendaval sem pedir ajuda
Não há o corte fino de uma lâmina
sobre o desejo que escurece
a passagem que vai dar ao ânimo
Não era para ficar uma pétala
Não era para bater um coice
E caem alimárias e crescem galhos
Fundição num domínio de pedra
e não há o bafejar do vento
e não há o entranhar de uma gota
e não há o pulsar de um malho
Irá inocular e será inócuo
Será sem sentido e falhas puras
O bote cairá numa pedra
e o brilho será jacinto murcho
=======================
Mede o universo verde...
 

Mede o universo verde
a lacraia no caule da piteira
Queimará seu dia de sol
Passará pela última lança
com as cem patas ondeadas
Não sou nem mesmo o eunuco
cuidando das fibras
das damas verdes
Não sou nem mesmo a pata
fritando dentro da trempe
Chegarei a esmo à ultima lança
e não terei atravessado
o cabo das tormentas
Meço o universo
e não sou nem mesmo o louco
======================
   
Nula fístula na língua...

Nula fístula na língua
Nulos lambris de nylon
Nulos pára-choques
pára-brisas parangolés
Nulo curral de lama
Desentupir nas bisnagas
e nas agulhas
os debruns
de enfeitar os nulos trapos
Desentupir nas tetas
o leite para as nulas goelas

Desfincar as estacas
que estancam as bocas dos sapos
Admirar ser a nula lacraia
debaixo do cavaco
A nula tartaruga demaiada
com a nula areia no sovaco
================

Nasci entre toras...

Nasci entre toras
Só entendo
de maneira entre
cortada
De carne em cubos
De esterco
esfarelado
De madeira em
cavacos
Frases de três
duas palavras
Uhm?
Posso perguntar
sem nenhuma frase
Além de nascer
entre lenhas
entre pirilampos
Posso
esbarrar no silêncio
uhm rhum!
=================

Para quando será a entrega?

Para quando será a entrega?
Está sendo aguardada
com todas as ardentias
Virá num ribombar de raios
e nada deixará sobre o solo
Não será o tridente
ou a tocha de ferro dos deuses
Também a semente prepara
o estalo de alguma entrega
Dará as veias da madeira
ou a arrogância do espinheiro
Também o sol prepara
o esvaziamento de uma entrega
Dará um barro quebrado
no poço onde estaria a aguada
Virão as ardências da pele
e a esfrega será putrefata
Virá a violência do meteoro
e a estrela será de pedra
Se não for de fogo
derramará seus grotões de água
E se a entrega for de leite
este também será derramado
nos intentos de impedir a trégua
E será possível tocar na dor
com a entrega do balde de lágrima
=======================

Ame com as forças e os frouxames...

Ame com as forças e os frouxames
derramado corpo entre as águas
bóiá-lo molhado entre velames
Ame com as águas e os vexames
nenhum vulto de pedra aos pássaros
encorpá-la a freguesia de chamas
Ame com os pássaros e os enxames
enxotá-los os melros do torpor
afundar nos porões do prazer
corpo úmido abri-los os tapumes
Ame de braçadas entre melames
decantado ópio da podridão
corpo lavado levantar novas façanhas
Para atravessar atravessá-los os baldrames
======================

No espelho o nó...

No espelho o nó
a estação sem vitrines
e no lugar do seio
sem nódulos
veio uma verruma
Este espelho está
de olho velho
Perde um talho
na partição do acaso
Perde um artelho
na caminhada lerda
Perde a erva
após o ânimo
do último animal
E se fosse uma casa
iria perder as telhas
E se fosse uma árvore
perderia o verde
Tenta lançar
um tentáculo
Está lá o galho de arruda
Tenta
e nem o vento a favor
ajuda
Está de olho velho
está sem tentáculos
este espelho
Desaparece entre
os atalhos das aparências
a tentação da última prece
e o eco da última vítima

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/salomao_sousa.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ssousa.html