terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas

Também têm se dedicado ao conto
Adriano Espínola (poeta e ensaísta dos mais conceituados no Brasil, com livros editados por grandes editoras),
Alcides Matos (nascido em 1938, publicou o primeiro livro de contos em 2006),
Almir Gomes de Castro (volumes de contos e romances),
Angela Gutiérrez (romancista e poeta, com livros publicados),
Aíla Sampaio (poeta e ensaísta, com livros publicados),
Cândido Rolim (algumas coleções de poemas, sendo o primeiro de 1982),
Carlos Nóbrega (autor premiado, tem livros de poemas),
Cherlanyo Barros (um livro publicado e alguns inéditos),
Dimas Macedo (tem se dedicado à poesia e à crítica literária, com êxito),
Floriano Martins (poeta, ensaísta e contista desde os anos 1970, com extensa obra publicada),
Genuino Sales (piauiense há muitos anos no Ceará, um livro de contos editado),
Ivaldo Ribeiro Filho (piauiense, tendo morado em Fortaleza por dezesseis anos, com quatro livros de poemas editados),
João Soares Neto (autor de livros de crônicas e poemas),
Jorge Tufic (poeta acreano radicado no Ceará há muitos anos, com mais de quarenta livros editados),
Julio Lira (premiado diversas vezes, livros infantis publicados),
Léo Mackellene (estreou em 2006 com O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios, de poemas),
Lucineide Souto (um volume de contos publicado e diversos inéditos),
Majela Colares (livros de poemas e contos),
Mendes Júnior (estreou nas letras impressas, em 2007, com o volume de contos O Engraxate e Outros Suicidas),
Pedro Henrique Saraiva Leão (poeta publicado desde 1960, com diversos volumes de poemas),
Raymundo Netto (autor do romance Um Conto no Passado: Cadeiras na Calçada),
R. Leontino Filho (poeta com alguns livros publicados, tendo estreado em 1982),
Sânzio de Azevedo (mais conhecido como ensaísta, historiador da Literatura Cearense e poeta),
Sérgio Rebouças (estreou em 2007 com o volume de contos A Canção do Silêncio),
Soares Feitosa (poeta, mas já deu a conhecer contos, que seriam capítulos de um romance em construção),
Tânia Lima (maranhense, com alguns anos em Fortaleza, estreou em 1996),
Tulio Monteiro (autor de biografias, ensaios, contos e crônicas),
Virna Teixeira (dois livros de poemas publicados),
Zorrillo de Almeida Sobrinho (um livro de contos publicado) e outros.

Dezenas de contistas são menos conhecidos, uns por não terem ainda livro publicado, outros por não se dedicarem à narrativa curta tanto quanto os mais citados ou comentados: Aetamira Lúcia Ribeiro, Ajuricaba Freitas Gaspar, Alan Santiago, Alda Maria Cordeiro de Santana, Aldir Brasil Jr., Alexandre Perazo Nunes de Carvalho, Álvaro Fernando de Araújo Filho, Amanay Parangaba (pseudônimo de Alexandre Gomes), Ana Cristina Souto, André Dias, Ângela Maria Bessa Linhares, Antonio Carlos Klein, Antonio Vanderley Moreira, Ary Albuquerque, Ary Salgueiro, Ayla Andrade, Augusto Azevedo, Augusto Nascimento, Áuria Rafael, Caio Marinho, Caio Montenegro, Camila Marcelo, Carla Amalia Lourenço, Carlos Alexandre Bastos Gonçalves, Carlos Costa, Carlos Eduardo Bezerra, Cecília Oliveira do Nascimento, Celina Côrte Pinheiro, Cellina Muniz, César Barros Leal, Chico Vieira, Cláudio Bentemuller, Cláudio Portella, Clodomiro Paulino Gomes Filho, Cris Nobre, Cristiano Gonçalves Ribeiro, Daniel Glaydson, Daniel Magérbio Almino de Lucena, David Cid, Diana Melo, Ecila Moreira de Meneses, Edilson Brasil Júnior, Eduardo Jorge, Eduardo Pragmácio Filho, El Escriba del Benfica, Eli Castro, Emerson Freitas Braga, Erick Leite Maia, Fabiano dos Santos, Fayga Silveira Bedê, Felipe Neto, Fernando Lima, Fernando Marcelo Probo, Fernando Siqueira, Francisco José Brasil, Francisco Octávio Marcondes Rudje, Francisco Paulo de Souza, Frederico Maltesta, Geraldo Gesuino da Costa, Germano Silveira, Gilberto Machado, Gislene Maia de Macedo, Guenthner Gadelha Wirtzbiki, Guilherme Linhares, Iclemar Nunes, Igor Leite Mendonça Mina, Irenísia Torres de Oliveira, Ivan Moreira de Castro Alves, Jean Garcia Lima, Jeovah Lucas da Silva, Jéssica Fontenele, Jesus Rocha, Joana d’Arc Araújo, João Dionísio Viana Neto, José Augusto do Nascimento Filho, José Augusto Nóbrega Lessa, José Carlos do Nascimento, José Célio Freire, José Cornélio Ribeiro Neto, José Flamarion Pelúcio Silva, José Mesquita Xavier Ferreira, José Murilo Martins (nascido em Caxias, Maranhão), Juliana Antunes de Menezes, Júnior Ratts, Lavignia Ocarro, Liana Aragão (radicada em Brasília), Lia Terceiro (1980-2007), Lígia Leal Heck, Lourival Mourão Veras, Lucelindo Dias Ferreira Júnior, Luciano Lira de Macedo, Lucíola Limaverde, Luiz Antonio Simonetti, Manoel Carlos, Marcela Magalhães de Paula, Marcela Rosseti Pacheco, Marcelo Bittencourt, Mardônio França, Maria Amélia Barros Leal, Maria Carolina Lobo, Maria Rosa Menezes, Marília Passos, Marta Adalgisa Nunes, Max Victor Freitas, Mendes Júnior, Napoleão Sousa Jr., Natércia Pontes, Nuno Gonçalves Pereira, Onias Lopes, Osmar Menezes dos Santos, Otoniel Arilo Landim, Paulo Avelino, Paulo César Benício Mariano, Paulo Henrique de Oliveira, Paulo de Tarso Vasconcelos, Pedro Fontenele (nascido em Manaus, Amazonas), Priscila Peres, Raffaella Maria Duarte, Raimundo Cavalcante dos Santos, Raimundo Rocha, Raul Silveira Bento, Révia Maria Herculano, Ricardo Guilherme Vieira dos Santos, Roberto Vasconcelos Lima, Robson Ramos, Rodrigo Marques, Rogério Santos Braga, Rogério da Silva e Souza, Rosel Ulisses Vasconcelos, Ruth Maria de Paula Gonçalves, Ruy Vasconcelos de Carvalho, Sabrina Kelma Tomaz, Sarah Diva Ipiranga, Sérgio Rebouças, Urik Paiva, Vânia Maria Ferreira Vasconcelos, Vanius Meton Gadelha Vieira, Vilmar Ferreira de Souza, Wesley Lyeverton, Ylo Barroso, Ythallo Rodrigues, Yuri Leonardo e Zélia Maria Sales Ribeiro.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 44 – 18 de janeiro de 1888

Para quem gosta de sangue...
Peço à leitora querida
Não desmaie nem se zangue;
Não venho arrancar-lhe a vida.

A gente pode, em conversa,
Dizer alguns nomes duros,
Não por índole perversa,
Nem maus costumes impuros.

Se achar algum dito horrendo,
Não desmaie nem se zangue...
Porém, como ia dizendo,
Para quem gosta de sangue,

Houve-o em Moura, S. Fidélis,
Grajaú, Piracicaba;
Esfriam muitas peles
Na própria grave Uberaba.

Ali, fogueira queimando,
Muito antes de Santo Antônio,
Cará de gosto execrando
Para a boca do demônio.

Mais longe, uma catequese;
Mais perto, uns tiros trocados...
Quem souber rezar que reze
Por alma de tais finados.

Eu, de todas essas cenas
Que acaso coincidiram,
E que outras melhores penas,
Em prosa, já referiram,

Confesso que a de Uberaba
Vale mais que outra nenhuma;
Tem luz que se não acaba,
Ensina e conforta, em suma.

Note-se que lá não houve
Sangue propriamente dito,
Omissão que é bom se louve
Em vista de outro conflito.

E por quê? Porque um Sampaio
Que, pelo nome não perca,
Para copiar o raio,
Que voa, mas não alterca,

Logo que viu a gente armada
Vociferando nas ruas,
Disposta, pronta, assentando
A ir a cenas mais cruas,

Bradar que ou lhe tiraria,
Sem compaixão a existência,
Ou ele a favorecia
Nada mais que com a ausência,

Ele, coronel e cabo
De partido, achou cabido
Não afrontar o diabo
Na gente do outro partido.

Saiu; logo a gente amiga
Para trazê-lo de novo,
Cuidou de uma vasta liga
E andou ajuntando povo.

De modo que, se lá volta,
Havia provavelmente
Nova e sangrenta revolta,
Em que morreria gente.

Poupou-se uma cena crua;
Sampaio ficou de fora.
Tem casa ali, casa sua;
Morava; já lá não mora.

Porém onde a luz do caso?
Que há aí que conforte e ensine?
Escute, ou vai tudo raso,
Depois de escutar, opine.

A luz é que tem Sampaio,
Com a maior segurança,
Nas mãos um futuro ensaio
De desforra e de vingança.

Ponha-se de lá à espreita
De ocasião valiosa,
E vá com a sua seita
Contra o Borges, contra a Rosa,

Contra o Marques e os capangas
Ponha-os fora da cidade,
E entre vivas e charangas
Fique em paz e em liberdade.

Virá dia em que eles troquem
As bolas contra Sampaio,
E a toque de caixa o toquem
Nas asas de novo raio.

Fuja então; de novo espreite,
E a murro e a tiro os disperse,
Tranquilamente se deite
E alegremente converse.

E assim, aumentando a soma
Das proscrições alternadas,
Uberaba será Roma,
Ambas imortalizadas.

Ora Mário, agora Sila,
Um de dentro, outro de fora,
Ante-fila ou serra-fila,
Ora Sila, Mário agora.

E não haverá na vida,
Na vida em que tudo acaba,
Cousa mais apetecida
Que ir viver para Uberaba.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Tiago Lobão (Maringá Além da Imaginação)

Toda cidade tem suas histórias. Essa eu ouvi de um velho conhecido maringaense que, para manter a tranquilidade na vida, pediu para não ser identificado. Me disse que seu pai a ouviu da boca de um dos policiais envolvidos no caso. Transcrevo-a para que não se perca.

Foi em 1996. A rodoviária de Maringá ainda era na Joubert de Carvalho, prédio um tanto sombrio e velho, mas de arquitetura interessante. Tinha um visual pretenso futurista - comum na época em que fora construído -, mas imundo e com as paredes manchadas, indelevelmente, com a terra vermelha que lhes respingaram as chuvas em seus já 33 anos de uso. Uma garota chegara de viagem, cansadíssima, com uma mala que se arrependia de ter feito tão grande. Já eram quase duas da manhã. Pegou um táxi.

O taxista, de pouca conversa, mas com um bigode impossível de não se notar, guardou a bagagem da moça no porta-malas e ambos embarcaram no traslado. Saindo da rodoviária, entraram à direita na Avenida Herval e, depois de cruzarem a Avenida Brasil, uma viatura policial começou a seguí-los. O motorista ficou apreensivo e o pouco assunto se transformou em assunto nenhum. Continuaram.

Segundos depois, a polícia soou a sirene e sinalizou com os faróis para que encostassem o carro. O taxista estacionou prontamente na esquina da Herval com a Neo Alves Martins, e estranhamente parecia aliviado.

Bateram no vidro da passageira. Era um dos policiais perguntando o que ela fazia ali, no banco de passageiros daquele táxi, e onde é que estava o motorista. Imediatamente a garota olhou pro banco do motorista e não o viu lá. Assustada e auxiliada pelo policial, saiu do carro olhando pra todos os cantos, tentando encontrar o motorista recém desaparecido, enquanto o outro policial fazia o mesmo pelas redondezas.

Sem barulho e sem que os policiais ou a garota vissem, o taxista tinha simplesmente desaparecido. E pelo jeito não era a primeira vez. Veio, pelo rádio da viatura, a confirmação de que aquele carro era o mesmo que constava no B.O. de desaparecimento, registrado três dias antes.

Com a confirmação do B.O., começou a revista pente-fino no carro. Revistaram cada centímetro para encontrar algo que explicasse aquilo tudo. Abriram o porta-malas. Susto! Aquele bigode seria reconhecido em qualquer lugar do mundo. Era o taxista. Morto. E, enfim, em paz.

Fonte:
Contos Maringaenses

Erros Comuns em Redação IV

62.

Não "se o" diz.

É errado juntar o se com os pronomes o, a, os e as.

Assim, nunca use:
Fazendo-se-os, não se o diz (não se diz isso), vê-se-a, etc.

63.
Acordos "políticos-partidários".

Nos adjetivos compostos, só o último elemento varia:
acordos político-partidários.

Outros exemplos:
Bandeiras verde-amarelas, medidas econômico-financeiras, partidos
social-democratas.

64.
Andou por "todo" país.

Todo o (ou a) é que significa inteiro:

Andou por todo o país (pelo país inteiro).
Toda a tripulação (a tripulação inteira) foi demitida.

Sem o, todo quer dizer cada, qualquer:

Todo homem (cada homem) é mortal.
Toda nação (qualquer nação) tem inimigos.

65.
"Todos" amigos o elogiavam.

No plural, todos exige os:
Todos os amigos o elogiavam.
Era difícil apontar todas as contradições do texto.

66.
Favoreceu "ao" time da casa.

Favorecer, nesse sentido, rejeita a:

Favoreceu o time da casa.
A decisão favoreceu os jogadores.

67.
Ela "mesmo" arrumou a sala.

Mesmo, quanto equivale a próprio, é variável:

Ela mesma (própria) arrumou a sala.
As vítimas mesmas recorreram à polícia.

68.
Chamei-o e "o mesmo" não atendeu.

Não se pode empregar o mesmo no lugar de pronome ou substantivo:

Chamei-o e ele não atendeu.

Os funcionários públicos reuniram-se hoje: amanhã o país conhecerá a decisão dos servidores (e não "dos mesmos").

Fonte:
www.info-vest.com.br

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Cecília Meireles (O Fim do Mundo)

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...

Fonte:
Quatro Vozes. RJ: Record, 1998.

José Roberto Balestra (Vers’Encartados Pra Joãozito)

João Guimarães Rosa (Cordisburgo, 27.06.1908 - Rio, 19.11.1967)
.
João, meu caro Escritor-Mor,
Broto fino do divino das Gerais.
Hoje você apagaria 105 velinhas,
Porém, as anteviu 59, não mais.

E como seria bom, João,
Se o que houve não tivesse sido.
Você por aqui, de entrevinda,
Anotando os seus encantos
Que sobrevivem tão lindos
Por todos esses nossos cantos.

Depois dos teus, João,
Nossos livros novos andam sem graça,
Falam pouco do imo, do d’dentro,
D’ homens, d’campos e d’animais.
E d’inocências então, nem se falam mais.

Só se pensam em frias capas,
Coisa que sei, Zé Olympio abominava.
E agora, também sem seu amigo Poty,
Os traços d’ilustração perderam em magia,
Restando os atuais miolos das obras
Feito enchimentos, coisa de pouca serventia.

As histórias andam muito urbanas, João,
Como esquecidas vão as suas veredas,
Onde a vida ainda teima tocar por si
A eterna melodia nas folhas do buriti,
Só ouvida pelos bichos e os capins-sedas

Mas o manuelzinho-da-croa inda passeia
Às margens do Urucuia, sobre a areia.
E em suas águas, João, as ariranhas
Estrinçam os cascudos com toda manha.

O lobo-guará, João, inda grita penitência
Bem do jeito que você escreveu,
Só que em verdade ele está mais triste,
Antevendo o fim final de sua existência.

João, caro Poeta-Mor de Cordisburgo,
Redigo-lhe por fim: nossos livros estão sem graça.
Feito você, demiurgo que escreva o belo no comum,
Não apareceu outro. Joãozito, não vi mais nenhum!

Arre!...
=============
Errata: Conforme observação do escritor, no mini-conto havia colocado que Balestra é jornalista, o correto é advogado em Maringá.
Fonte:
Blog do Autor
http://zerobertoballestra.blogspot.com.br

Irmãos Grimm (Allerleirauh)

Era uma vez um Rei que tinha uma esposa com cabelos dourados, e ela era tão bela como não havia outra sobre a Terra. Aconteceu que ela adoeceu, e sentindo que logo morreria, chamou o rei e disse:

— Se tu desejares casar novamente depois da minha morte, não escolherá uma mulher menos bela do que eu, nem que tenha cabelos menos dourados do que o meus: isto vossa senhoria deve me prometer. E assim que o Rei lhe fez a promessa, ela cerrou os olhos e morreu.

Por longo tempo o Rei não quis pensar ou ouvir falar em tomar outra esposa. Finalmente seus conselheiros lhe disseram,

— Não há outro jeito, o Rei precisa se casar novamente, para que tenhamos uma Rainha. E os mensageiros foram enviados para todos os cantos, em busca de uma noiva que fosse tão bela quanto a falecida Rainha. Mas não havia nenhuma em todo o mundo, e mesmo que a tivessem encontrado, nenhuma tinha os mesmos cabelos dourados. Então os mensageiros voltaram para casa do mesmo jeito que foram.

Mas o Rei tinha uma filha, que era tão bela quanto à falecida mãe, e tinha os mesmos cabelos dourados. Quando estava crescida, o Rei viu um dia que era igual a sua mãe, e viu que era igual a sua esposa anterior em todos os aspectos, e de repente apaixonou-se por ela. Disse então a seus conselheiros,

— Irei casar com minha filha, porque ela é o retrato de minha falecida esposa, e como não encontro uma noiva, irei me casar com ela. Assim que ouviram isto, os conselheiros ficaram horrorizados e disseram:

— Deus proíbe que o pai se case com a filha, do pecado não pode vir nenhum bem, e o reino seria arrastado à ruína.

A filha ficou mais chocada ainda quando soube das intenções de seu pai, mas esperava que ele desistisse de seu objetivo. Então ela disse a ele,

— Antes de cumprir seu desejo, devo ter três vestidos, um dourado como o sol, um prateado como a lua e um brilhante como as estrelas; além disso, quero um manto de milhares de peles e couros unidos, cada animal de nosso reino precisa dar a ele um pedaço de sua pele. Mas ela pensou:

— Isto é completamente impossível, mas dessa forma desvio meu pai de seu mau desejo. O Rei, porém, não desanimou e as moças mais habilidosas do reino tiveram que fazer os três vestidos: um dourado como o sol, um prateado como a lua, e um brilhante como as estrelas. Seus caçadores tiveram que capturar todos os animais do reino e tirar um pedaço de sua pele; então foi feito um manto com milhares de peles. Quando tudo finalmente ficou pronto, o Rei mandou trazer o manto, mostrou-o ela e disse,

— O casamento será amanhã.

Quando então a filha do Rei viu que não havia mais qualquer esperança de mudar o coração de seu pai, decidiu empreender a fuga. À noite, quando todos dormiam, ela se levantou e pegou três objetos preciosos: um anel de ouro, uma pequena roca de ouro e um pequeno fuso de ouro. Colocou em uma casca de noz os três vestidos, de sol, de lua e de estrelas, vestiu o manto com todos os tipos de pele e cobriu o rosto e as mãos com fuligem negra. Pediu a proteção de Deus e saiu, e andou a noite toda até chegar a grande floresta. E ela estava cansada, entrou em uma casca de árvore e adormeceu.

O sol nasceu e ela dormia, e dormiu ainda mais, até o meio do dia. Aconteceu que o Rei, a quem esta floresta pertencia, foi caçar nela. Quando seus cães chegaram à árvore começaram a latir e a saltar em torno. O rei disse a seus caçadores,

— Vejam que animal se esconde lá. Os caçadores obedeceram e, ao voltar disseram,

— Na árvore oca tem um animal estranho, como nunca vimos antes: sua pele tem milhares de tipos de pelo. Ele está deitado dormindo. O Rei disse,
   

— Tentem capturá-lo vivo, prendam-no a minha carruagem e vamos levá-lo conosco. Quando os caçadores agarraram a moça, ela ficou aterrorizada e gritou para eles,

— Sou uma pobre criança, abandonada por pai e mãe, tenham compaixão de mim e levem-me com vocês. Eles disseram,

— Allerleirauh, tu serás útil na cozinha, venha conosco, você pode varrer as cinzas. Eles a puseram na carruagem e voltaram para o castelo real. Lá lhe deram para morar um espaço debaixo da escada, onde não entrava nenhuma luz do dia, e disseram,

— Ferinha peluda, você pode morar e dormir aqui. Então ela foi mandada para a cozinha, onde carregava lenha e água, acendia o fogo, depenava os frangos, limpava as verduras, varria as cinzas e fazia todo o trabalho sujo.

Lá viveu Allerleirauh por um longo tempo em completa miséria. Ah, bela princesa, o que ainda lhe acontecerá! Acontece que um dia, em que haveria uma festa no castelo, ela disse ao cozinheiro,

— Posso subir um pouco para dar uma olhada? Ficarei do lado de fora.

— Sim, respondeu o cozinheiro,

— vá, mas em meia hora você deve estar aqui e juntar as cinzas. Ela pegou seu lampião, entrou no desvão onde ficava, despiu seu manto de pele e lavou a fuligem de seu rosto e suas mãos, para que toda sua beleza viesse de novo à luz do dia. Então abriu a noz e tirou seu vestido que parecia com o sol, e quando estava pronta subiu para a festa, e todos abriram caminho para ela, pois ninguém a conhecia, e não pensaram outra coisa senão que era a filha de um Rei. O Rei então foi ao seu encontro, tomou-lhe a mão e dançou com ela, e pensou em seu coração,

— Meus olhos ainda não viram uma mulher tão bela. Quando a dança terminou, ela se inclinou, e quando o Rei olhou ao redor de si ela havia desaparecido, e ninguém sabia para onde. Os guardas que estavam na frente do castelo foram chamados e interrogados, mas ninguém a havia visto.

Entretanto, ela correu para o pequeno espaço onde morava, tirou rapidamente o vestido, pintou as faces e as mãos de preto novamente, colocou o manto novamente e outra vez era Allerleirauh. E quando foi para a cozinha e estava prestes a voltar ao trabalho e a varrer as cinzas, o cozinheiro disse,

— Deixe isto para amanhã e faça a sopa para o Rei; Também irei subir um pouco e dar uma olhada; mas não deixe nenhum cabelo cair na sopa, ou no futuro não terá nada para comer. Então o cozinheiro se foi e Allerleirauh fez a sopa para o Rei, e fez a sopa o melhor que podia, e quando estava pronta ela trouxe seu anel de ouro de dentro do pequeno lugar onde ficava e colocou na tigela na qual a sopa foi servida.

Quando a dança terminou, o Rei pegou a sua sopa e a comeu, e gostou tanto que parecia que nunca tinha experimentado nada melhor. Mas quando chegou ao fundo da tigela, ele viu o anel dourado nele, e não conseguiu entender como foi parar ali. Então ordenou que o cozinheiro aparecesse perante ele. O cozinheiro ficou aterrorizado quando ouviu a ordem e disse a Allerleirauh.

— Você certamente deixou um cabelo cair na sopa, e se deixou, deve pagar por isto. Quando estava diante do Rei, este lhe perguntou quem havia feito a sopa? O cozinheiro respondeu,

— Eu fiz. Mas o Rei disse,

— Isto não é verdade, porque está muito melhor que o usual, e cozida de modo diferente. Ele respondeu,

— Devo reconhecer que não a fiz, e que foi feita por um animal estranho. O Rei disse,

— Vá e faça o vir aqui.
   
Quando Allerleirauh veio, o Rei disse

— Quem tu és?

— Sou uma pobre garota que não tem pai nem mãe.

— O que fazes em meu palácio? Ela respondeu,

— Não sirvo para nada além de ter botas atiradas em minha cabeça. Ele continuou,

— Onde conseguis-te o anel que estava na sopa? Ela respondeu, Não sei nada sobre o anel. Então o Rei não conseguiu saber de nada, e a mandou embora novamente. Após um tempo houve outro festival e então, assim como antes, Allerleirauh implorou ao cozinheiro para sair e dar uma olhada. Ele respondeu,

— Sim, mas volte novamente em meia hora e faça a sopa do Rei que ele gosta tanto. Ela então correu para o desvão, lavou-se rapidamente e pegou o vestido da noz que era prateado como a lua e o colocou. Então ela subiu e estava como uma princesa, e o Rei andou em sua direção para encontrá-la, alegrando-se de vê-la novamente e como a dança estava para começar eles dançaram juntos.

Mas quando terminou, ela rapidamente desapareceu tão rapidamente que o Rei não pode observar onde ela tinha ido. Ela, todavia, foi para o seu desvão e uma vez mais se fez um animal peludo e foi para a cozinha preparar a sopa. Quando o cozinheiro tinha subido escadas acima, ela tirou a roca dourada e a colocou na tigela que a sopa cobriu.

Então a sopa foi levada para o Rei, que a comeu, e assim como da vez anterior, trouxe o cozinheiro que foi obrigado a confessar que Allerleirauh tinha preparado a sopa. Allerleirauh novamente veio na presença do Rei, mas respondeu que não servia para nada além de ter botas atiradas em sua cabeça e que não sabia nada sobre a pequena roca de ouro.

Quando, pela terceira fez, o Rei organizou um festival, tudo aconteceu da mesma forma que tinha sido antes. O cozinheiro disse,

— Fé pele-dura, tu és uma bruxa, e sempre coloca alguma coisa na sopa que a faz tão boa que o Rei gosta mais do que a que eu cozinho, mas como ela implorou muito, ele a deixou subir na hora marcada. E agora ela colocou o vestido que brilhava como as estrelas, e assim entrou no salão. Novamente o Rei dançou com a bela moça, e pensou que ela nunca tinha sido tão bela.

E enquanto estavam dançando, planejou sem ela perceber deslizar o anel de ouro no dedo dela, e deu ordens para que a dança durasse bastante tempo. Quando a música terminou, ele quis segurá-la rapidamente pelas mãos mas ela conseguiu se soltar e fugiu tão rápido através da multidão que sumiu de sua vista.

Ela correu tão rápido quanto podia para dentro do desvão sob as escadas, mas como havia ficado muito longe, e tinha ficado fora por mais de meia hora ela não pode tirar seu belo vestido, mas somente jogar seu manto de peles, e na sua pressa ela não se fez muito preta, permanecendo um dedo branco.

Então Allerleirauh correu para a cozinha, e cozinhou a sopa para o Rei, e como o cozinheiro estava fora, colocou o fuso de ouro na sopa. Quando o Rei encontrou o fuso no fundo desta, ele solicitou que Allerleirauh fosse chamada, e então ele observou o dedo branco à distância, e viu o anel que havia colocado no dedo durante a dança.

Então ele a agarrou pela mão e a segurou firme, e quando ela quis se soltar e correr novamente, seu manto de pele se abriu um pouco e o vestido estrelado brilhou forte. O Rei agarrou com força o manto e o tirou. Então o seu cabelo dourado mostrou o seu brilho e ela pôs se de pé com todo o seu esplendor e não podia mais se esconder. E quando ela lavou a ferrugem e cinzas de sua face, era mais bela do que qualquer uma que havia sido visto na terra. Mas o Rei disse,

— Você é minha querida noiva, e nós nunca mais vamos nos separar um do outro. Por causa disso o casamento foi realizado, e eles viveram felizes para sempre até o fim de suas vidas.

Fonte:
Contos de Grimm

A Saudade em Versos Diversos V


MARTHA MEDEIROS
Verdades

Você pode ir embora e nunca mais ser a mesma
Você pode voltar e nada ser como antes
Você pode até ficar pra que nada mude
Mas aí é você que não vai se conformar com isso

Você pode sofrer por perder alguém
Você pode até lembrar com carinho ou orgulho
De algum momento importante na sua vida
Formatura, casamento, aprovação no vestibular
Ou a festa mais linda que já tenha ido

Mas o que vai te fazer falta mesmo
O que vai doer bem fundo
É a saudade dos momentos simples

Da sua mãe te chamando pra acordar
Do seu pai te levando pela mão
Dos desenhos animados com seu irmão
Do caminho pra casa com os amigos e a diversão natural
Do cheiro que você sentia naquele abraço
Da hora certinha em que ele sempre aparecia pra te ver
E como ele te olhava com aquela cara de coitado pra te derreter

De qualquer forma, não esqueça das seguintes verdades
Não faça nada que não te deixe em paz consigo mesmo
Cuidado com o que anda desabafando
Conte até três (tá certo, se precisar, conte mais)
Antes só do que muito acompanhado
Esperar não significa inércia, muito menos desinteresse
Renunciar não quer dizer que não ame
Abrir mão não quer dizer que não queira
O tempo ensina, mas não cura.

CECÍLIA MEIRELES
Silenciosas Lembranças


De que são feitos os dias?
De pequenos desejos
Vagarosas saudades
Silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias
Momentâneos lampejos
Vagas felicidades
Inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes
De pecados, de glórias
Do medo que encadeia
Todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos
Dentro deles choramos
Em duros desenlaces
E em sinistras alianças.

ADRIANA FALCÃO
Fugir da lembrança

 

Saudade é quando o momento
Tenta fugir da lembrança
Para acontecer de novo e não consegue.

FERNANDO ANITELLI
Belo e incerto


Metade de mim agora é assim
De um lado a poesia, o verbo, a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo, incerto
Depende de como você vê.

TATI BERNARDI
Saudadezinha


Eu tenho saudade de mil coisas
E todas essas mil coisas sempre caem
Na mesma única coisa de que eu tenho tanta saudade.

Eu tenho saudade de tudo
Não é um sentimento egoísta e muito menos possessivo
É apenas uma saudadezinha
Gostosa, tranquila, bonita, saudável, de longe.

RENATO RUSSO
Acrilic on Canvas


É saudade então, e mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez
Os traços copiei do que não aconteceu
As cores que escolhi
Entre as tintas que inventei
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três...
Trabalhei você em luz e sombras
E era sempre não foi por mal
Eu juro que nunca quis deixar você tão triste
Sempre as mesmas desculpas,
E desculpas nem sempre são sinceras, quase nunca são.
Preparei a minha tela
Com pedaços de lençóis que não chegamos a sujar.
A armação fiz com madeira das janelas do seu quarto
Do portão da sua casa fiz palheta e cavalete
E com as lágrimas que não ficaram com você destilei óleo de linhaça
Da sua cama arranquei pedaços que entalhei estiletes de tamanhos diferentes
E fiz, então, pincéis com seus cabelos
Com o batom que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga
E rabisquei meu horizonte
E era sempre não foi por mal
Eu juro que não queria machucar você
Prometo que isso nunca vai acontecer mais uma vez
E era sempre, sempre o mesmo novamente, a mesma traição
Às vezes é difícil esquecer
Sinto muito ela não mora mais aqui
Mas então porque eu finjo
Que acredito no que invento
Nada disso aconteceu assim
Não foi desse jeito.
Ninguém sofreu,
E é só você que provoca essa saudade parecia
Tentando pintar essas dores com o nome de amor perfeito

Teófilo Braga (Cabelos de Ouro)

Recolhido no Algarve

Um homem e a sua mulher tinham dois filhos, mas não tinham que lhes dar a comer; uma noite estando já deitados ouviu o pequeno estarem dizendo:

– É necessário matar um destes filhos, porque não podemos com tanta família.

O pequeno acordou com a irmãzinha, contou-lhe tudo e botaram a fugir de casa. Foram andando noite e dia, e já muito longe o rapazinho cansado deitou-se no chão e adormeceu com a cabeça no regaço da irmã. Passaram por ali três fadas, e vendo a criança, deram-lhe três dons:

Que fosse a cara mais linda do mundo;

Que quando se penteasse deitasse ouro dos cabelos;

Que tivesse as mais raras prendas de mãos.

Assim que o pequeno acordou, puseram-se outra vez a caminho, e foram dar a casa de uma velha muito feia, que os recolheu. Passaram-se anos, e um dia que o rapazinho quis dinheiro, a irmã penteou-se, e ele levou o ouro para vender na cidade. O ourives que lho comprou ficou desconfiado, perguntou ao rapaz como é que arranjava aquele ouro, mas não quis acreditar tudo quanto ele disse. Foi dar parte ao rei, que o mandou prender até vir a irmã à corte para se apurar a verdade.
   
A velha, que tinha ficado com a menina dos cabelos de ouro, resolveu matá-la à fome; já estava havia dois dias sem comer, e quando lhe pediu alguma coisinha a velha disse-lhe que só se ela lhe deixasse tirar um olho. Ela deixou para não morrer. Depois de outros dois dias, estava já a menina a cair com sede, e pediu à velha uma pinga d’água, e ela disse que só se lhe deixasse tirar o outro olho. Até que ficou ceguinha. Foi então que veio ordem do rei para que a levassem à corte; a velha pensou que era melhor deitar a menina ao mar, e levar uma filha que tinha em lugar dela. O rapaz que estava preso numa torre que tinha uma fresta para o mar, viu andarem boiando na água umas roupinhas, que a maré trouxe para terra; botou-lhe uns lençóis torcidos para que ela subisse.

A velha tinha chegado à corte com a filha, e se ela não botasse ouro dos cabelos, o rapaz iria a matar. Quando a menina soube isto disse ao irmão que lhe arranjasse do carcereiro um papel fino para fazer flores. O carcereiro trouxe o papel, e a menina assim mesmo cega fez um ramo muito lindo cheio de pérolas e ouro que lhe caíam dos cabelos. O irmão pediu ao carcereiro para lhe mandar vender aquele ramo, não por dinheiro, mas sim por um par de olhos. Apregoou-se o ramo, todos o queriam, mas ninguém se atrevia a dar os olhos da cara por ele; só a velha quando ouviu o pregão é que o comprou pelos olhos da menina, que tinha guardado. O carcereiro trouxe o par de olhos, e a menina tornou a pô-los outra vez na cara.

Veio o dia em que a velha teve de apresentar a filha diante do rei, mas não deitava ouro dos cabelos. O rapaz ia já a morrer, quando mandou pedir ao rei que se lhe dessem um fato de mulher; iria buscar sua irmã, que a velha tinha querido matar. Deram-lhe o fato, e trouxe então da torre a menina, que se penteou diante do rei, e todos ficaram pasmados daquele dom e da sua grande formosura. A menina contou tudo ao rei, que lhe perguntou o que queria que fizesse da velha.

– Quero que da pele se faça um tambor, e dos ossos uma cadeirinha para eu me assentar.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 43 – 3 de janeiro de 1888

Deus lhes dê muitos bons dias,
Deus lhes dê muitos bons anos,
Lençóis para as noites frias,
Para as de calor, abanos.

Se é certo que os novos planos
Melhoram as loterias,
Convém evitar enganos,
Devaneios e utopias.

Exemplo: as áreas vazias
Estão dos tais soberanos
Com que se pagam folias,
Prazeres e desenganos.

Logo os ímpetos insanos
De curar academias
Com os tais calomelanos
Das modernas francesias,

São custosas fantasias
Para a arte e seus arcanos;
Mil vezes as ferrovias
E os carros americanos.

Façamos com que dois manos,
Saindo às ave-marias
De Ubá ou Curitibanos,
Vão almoçar a Caxias.

Mas gastar novas quantias,
Para ter alguns maganos
Que pintem quatro Marias
E as bodas de dois ciganos;

Ou meia dúzia de ulanos
Entre bélicas porfias,
Ou revoltas de oceanos...
Sou seu criado Mathias!

Lá para ver agonias
De um mártir, de dois tiranos,
Conheço melhores vias:
É ler casos mexicanos.

Se os Zeferinos ufanos
Podem ser seguros guias
Digam lá os paduanos;
Não sou dessas freguesias.

São talvez cerrancerias,
Chamam-me a flor dos marcianos,
Cá vou pelas simpatias
Cá dos meus paroquianos.

Neste tempo de pianos,
Lembra-me ainda as poesias
Em que falavam Albanos
Com as pastoras Armias.

Então quando as minhas tias,
Casadas com dois baianos,
Tinham as peles macias,
Inda sem rugas nem panos;

E nos meses marianos,
Cantavam as melodias,
Que os nossos peitos humanos
Enchem de melancolias;

Enquanto duras harpias
Com a guerra dos Cabanos,
Tiravam sangue às bacias,
Além de outros muitos danos;

E as velhas tinham bichanos,
Que eram as suas manias,
E os primos Salustianos
Iam às alcomanias;

Então as mesmas teorias
Tinha a arte e seus fulanos:
Tudo o que agora copias
Copiaram veteranos.

E os fulanos e sicranos,
Batizados noutras pias,
Podiam ser Ticianos,
Sem novas filosofias.

Concluo que as velharias,
Como os tabacos havanos,
Podem trazer alegrias
A nós, como aos turcomanos.

Que mais? Bahias? Tucanos?
São rimas de melodias...
Deus lhes dê muito bons anos,
Deus lhes dê muito bons dias.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – Roberto Amaral

                Roberto Amaral (R. Átila A. Vieira) nasceu em Fortaleza, 1940. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1970. Graduou-se como bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, em 1964. No ano seguinte, formou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Ceará. Autor de mais de duas dezenas de livros na área da ciência-política-comunicação-direito, publicou também Viagem e Outras Estórias (contos), São Paulo: Brasiliense, 1991; Não Há Noite Tão Longa (romance), Rio de Janeiro: Record, 1996, e Limites (contos), Rio de Janeiro: Record, 1999.

                Há muito se preconiza que a falta de tempo para leitura tem levado os escritores a escreverem poemas e contos curtos. E, em razão disso, o romance seria gênero do passado. Entretanto, publicam-se todo ano milhares de romances no mundo. E a maioria dos contistas não se deixou seduzir pela fórmula do chamado miniconto. Roberto Amaral é um deles. Algumas de suas narrativas chegam a mais de vinte páginas. Esse fôlego de atleta empurra o ficcionista para caminhos mais largos e longos, que aproximam suas composições de pequenas novelas. Assim, nele o tempo é sempre dilatado. Não se contenta com flashes, flagrantes, um só episódio. “Pessach” subdivide-se em três momentos. Essa “mudança de foco” ocorre em outras peças. Em “Amor” primeiro se vê Mariazinha num quarto de hotel. No meio da história surge “o velho Praxedes”, pai da moça citada, e Dr. Santana, futuro marido dela. Novo hiato, e Marizinha reaparece em retrospecto, ao encontro do novo amor, o jovem Janjão. E, ao final, a cena do hotel se completa. O desfecho é o flagrante do adultério: “quando se deparam (Mariazinha e Janjão) com os olhos esbugalhados do juiz”.

                Em “Conto das águas” diversos episódios se costuram cronologicamente e até iludem o leitor. Melquíades, o protagonista, se mostra em luta com as formigas que invadem a casa. O leitor não entende logo que as inimigas do homem sejam formigas: “elas permaneciam inatingíveis e invulneráveis”, o que acontece na terceira página: “Vêm desde cedo, irmãos siameses, o ódio e a repugnância às formigas.” Não compreende também que o narrador prepara sua atenção para uma longa chuva e que as formigas não terão mais nenhuma importância na obra. E a mudança de foco se dá de forma abrupta: “Foi nesse exato momento, numa dessas noites, que o céu iluminou a cozinha e depois despencou sobre sua cabeça”. Consciente de sua arte, Roberto Amaral não permite ao leitor se dizer enganado: as formigas simplesmente anunciaram a tempestade.

                O ficcionista não se limita ao espaço geográfico de uma cidade, imaginária ou real. Os episódios de suas composições transcorrem em pequenas cidades, em Fortaleza, no Rio de Janeiro, em Paris, etc. Em “Você vai morrer” a cidade pequena aparece logo no início da narrativa. O narrador a chama de vila, embora se refira a uma avenida, a um mercado, a uma rua e uma praça. Mais adiante se sabe onde se localiza a tal vila: no Nordeste brasileiro, pela referência a “anos de seca” e penitentes. Na sequência da narração, o leitor percebe com mais nitidez onde vivem os personagens: no Ceará, pela menção de alguns topônimos (Canindé, Quixadá, Joazeiro (sic) do Norte, Guaramiranga) e nomes históricos (padre Cícero, beata Maria de Araújo). “Pessach” tem como espaço geográfico o Rio de Janeiro. E não são meras citações de nomes de logradouros e bairros. O personagem percorre as ruas e o narrador descreve o espaço como se filmasse. Em “Amor” o escritor volta ao Ceará. Narrações/descrições do centro da cidade conduzem o leitor pela mão, em passeio saudosista, sem deixar de lado a citação de nomes de velhos logradouros e prédios históricos. O mesmo se vê em “Feliz Natal”, com as referências ao tradicional diário O Povo e à Livraria do Edésio. E em “Conto das águas”, quando diz que a “estreita Domingos Olímpio estava alagada”. Hoje a avenida é larga, mas ainda se alaga quando chove. O alagamento da cidade de Fortaleza é descrito com perfeição.

                Os longos períodos de seca têm inspirado ficcionistas nordestinos, desde o século XIX, a criar romances e contos de retirantes. Por outro lado, essa mesma escassez de água tem induzido escritores do Nordeste a “inventar” chuvas, aguaceiros, muitas águas – o que também sucede, é claro, mas nunca como em outras regiões do país. Assim, Caio Porfírio Carneiro escreveu a coleção Chuva, os dez cavaleiros, em que todas as histórias têm como pano de fundo a chuva. Roberto Amaral não escapou desse sonho de nordestino: algumas de suas histórias estão repletas de água. O próprio título de um deles – “Conto das águas” – bastaria para ilustrar este argumento. Uma frase – “quando se viu chover tanto assim no Ceará?” – mostra o “horror” vivido pela população cearense naquele ano de tanta chuva, quando todos os açudes do Estado estiveram cheios “e o Orós pegou sua lâmina mais alta, desde que a barragem foi construída”. Como se descrevesse o dilúvio, o narrador encerra a história assim: “As águas continuaram subindo.”

                Os personagens de Roberto Amaral são quase sempre trágicos ou lembram os heróis e as heroínas dos romances realistas europeus do século XIX, de Shakespeare, dos gregos. O clima de tragédia percorre todas as linhas de “Você vai morrer!”. Há mesmo um quê de helenismo nesta peça, como no nome de uma personagem, Helena, inconsolada, com a morte do marido, desde moça até a velhice. A epígrafe de “Sentença” – “A vida é uma triste armadilha”, Tchekhov – referenda este raciocínio.

                Outros personagens do escritor parecem menos trágicos, como os de “Pessach”, judeus brasileiros. Entretanto, o principal tema da obra é a solidão, a velhice, a proximidade da morte, tão presente em Abrão, apegado ao comércio, aos livros, aos sonhos, às preocupações. Chegado aos 60 anos, sentia que a vida era “uma pequena solidão que caminha para a solidão absoluta”. Mariazinha, de “Amor”, tem muito daquelas mulheres dos romances realistas franceses. No enigmático “Feliz Natal” também é explorado o tema da solidão e da morte. Estranhamente, o protagonista é chamado apenas de Advogado, como se este fosse seu nome. Melquíades, de “Conto das águas”, não chega a ser trágico. Talvez patético, primeiro em sua luta desesperada com as formigas, depois com a chuva que não pára. Sua impotência, sua fraqueza, ele que sempre fora tão correto, tão civilizado, tão cumpridor dos deveres.

                Construídas nos moldes das narrativas tradicionais, as composições ficcionais de Roberto Amaral têm certo ímã, ainda mais porque sua linguagem não se alimenta de modismos, malabarismos e outros “ismos”. Entretanto, o ensaísta (ele é autor de 16 livros de ensaios) ainda não se distanciou totalmente do contista. Alguns contos poderiam ser mais enxutos, menos informativos, menos recheados de sociologia. Mas, mesmo assim, os limites da prosa ficcional de Roberto Amaral são largos.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Erros Comuns em Redação III

56.
Ficou contente "por causa que" ninguém se feriu.

Embora popular,a locução não existe.

Use porque: Ficou contente porque ninguém se feriu.

57.
O time empatou "em" 2 a 2.

A preposição é por:
O time empatou por 2 a 2.

Repare que ele ganha por e perde por. Da mesma forma: empate por.

58.
À medida "em" que a epidemia se espalhava...

O certo é:
À medida que a epidemia se espalhava...

Existe ainda na medida em que (tendo em vista que):
É preciso cumprir as leis, na medida em que elas existem.

59.
Não queria que "receiassem" a sua companhia.

O i não existe:
Não queria que receassem a sua companhia.

Da mesma forma:
passeemos, enfearam, ceaste, receeis

(só existe i quando o acento cai no e que precede a terminação ear: receiem, passeias, enfeiam).

60. Eles "tem" razão.

No plural, têm é assim, com acento.

Tem é a forma do singular.

O mesmo ocorre com vem e vêm e põe e põem: Ele tem, eles têm; ele vem, eles vêm; ele põe, eles põem.

61.

A moça estava ali "há" muito tempo.

Haver concorda com estava.

Portanto:
A moça estava ali havia (fazia) muito tempo.

Ele doara sangue ao filho havia (fazia) poucos meses.

Estava sem dormir havia (fazia) três meses.

(O havia se impõe quando o verbo está no imperfeito e no mais-que-perfeito do indicativo.)

Fonte:
www.info-vest.com.br

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Varal da Saudade em Trovas I


Jangada de Versos do Ceará (9) Filgueiras Lima

ANTONIO FILGUEIRAS LIMA
Lavras da Mangabeira  1909 – 1965


SÍMBOLO DO FIM

Hão de viver-me sempre, na memória,
este crepúsculo e esta despedida.
A beleza da tarde é merencória...
A luz do teu olhar é dolorida...

O sol, num instante último de glória,
beija as rosas vermelhas da avenida.
E morre, entre suspiros, esta história,
que era todo o esplendor da nossa vida!

Tua trêmula voz, dói-me escutá-la.
Na tarde passa uma andorinha leve,
sozinha e triste, pelo céu de opala.

- Adeus, adeus! respondes-me chorando.
Vai-se a felicidade, que foi breve,
como a andorinha que fugiu do bando...

POEMA DA DISTÂNCIA

                 A Stênio Gomes

No coração do espaço
a noite acordou, com a sua mão de sombra,
as notas de ouro das estrelas.
E a imponderável música dos astros
veio descendo,
por uma escada trêmula de luz,
até o chão colorido do jardim.
Todas as rosas cantaram
pela voz ignota dos perfumes...

Foi aqui - eu me recordo ainda! -
que, numa noite assim,
à música sonâmbula das estrelas
recebi tuas últimas carícias!
Na penumbra
              o repuxo, tristíssimo, chorava...
Depois
a poeira violácea da saudade
escreveu, entre nós, o poema da distância...

A CIGARRA E A FORMIGA

Passada a quadra invernosa,
de sofrimento e expiação,
a cigarra desditosa
vai gozar outro verão.

O ouro do sol espadana
pelos vales e campinas.
Toda a terra se engalana
de fulgurâncias divinas.

Que alegria, que algazarra,
aos resplendores do dia!
É que, de novo, a cigarra
fretine, canta, zizia. . .

A burguesa da formiga
vê então que a sorte é vária
Tem inveja da cantiga
da cigarra proletária.

Quem lhe dera aquele canto,
que todo mundo aprecia,
para encher o seu recanto
de música e de alegria!

E, à porta do formigueiro,
onde a fartura se abriga,
ela, passa o dia inteiro
bebendo aquela cantiga. . .

Fala à cigarra - a formiga,
que de vergonha se cobre:
- De nós duas, minha amiga,
eu sou, decerto, a mais pobre.

De que me serve o celeiro
em tempos fartos e bons?
Você, se não tem dinheiro,
é milionária de sons!

E eu negar - oh! que tristeza!
um simples naco de pão
a quem possui a beleza
sonora deste verão.

Que inveja ao vê-la, taful,
cantando, pelo arrebol,
na glória do céu azul,
dentro de um raio de sol!

A cigarra não responde
à vil formiga vulgar.
Porém, no verde da fronde,
põe-se, mais alto, a cantar!

RELÓGIO

Bates, de hora em hora,
e ouço no teu bater alguém que chora.
É o tempo que soluça em tuas cordas,
diante das horas que passam,
sinuosas, trêfegas, volúveis,
deixando um beijo em cada curva
e uma saudade em cada beijo...

Elas dançam
o bailado da ilusão:
rápidas chegam
e, rápidas, se vão,
como sombras que apenas deixam
outras sombras em nosso coração...

Quando te escuto,
ó meu velho relógio de parede,
conta-gotas de horas convencionais,
lamento a tua faina inglória e vã,
porque - bem sei - não poderás jamais,
embora andando e pelejando assim,
medir as horas infinitas
do Tempo que não tem fim.

Fonte:
Antonio Miranda

Cecília Meireles (História de uma Letra)

Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, balanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.

A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma.

Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil.

Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc...

As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de talento, de prestígio — e o povo classifica essa situação, que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.

O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção.

Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais.

Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas conseqüências ocultas.

Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental — que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais.

E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos, com todas as suas inesperadas trajetórias.

E há os que lêem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela...

Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas crêem numas coisas e noutras não. Tudo é crível. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.

Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca, chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar.

Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta, pus-me a procurá-la.

Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos que justificassem a conspiração que se fazia contra mim.

Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido nem vestido marrom nem gato preto nem número fatídico na porta.

E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido — e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas luzes é pela timidez em não acreditarem o momento propício — passei a analisar o meu nome.

Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.

Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos.

Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.

Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo.

Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra.

Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado.

Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ousem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade. Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome.

Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos.

Quanto às coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: "Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?" Não, as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa...

Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: "Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me... Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas... Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome... Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus."

Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim, — mas, um parente, um amigo extraordinário.

A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar.

E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.

(Rio de Janeiro, A MANHÃ, 27 de dezembro de 1944.)

Fonte:
Cecília Meireles. Obra em prosa. Volume 1. RJ: Nova Fronteira, 1998.

Irmãos Grimm (Dona Ola)

Era vez uma viúva que tinha duas filhas — uma delas era bonita e trabalhadora, ao passo que a outra era feia e preguiçosa. Mas a mãe gostava mais da filha que era feia e preguiçosa, porque ela era sua filha própria; e a outra, que era filha do marido dela, era obrigada a fazer todo o trabalho doméstico, e como tal, era a Gata Borralheira da casa. Todos os dias a pobre garota tinha de sentar-se perto de um poço, que ficava à beira do caminho, e fiava e fiava até que seus dedos sangrassem.

E então aconteceu que um dia a bobina ficou manchada com o sangue dela, então ela mergulhou a bobina no poço, para remover as marcas de sangue; mas a bobina escorregou das suas mãos e caiu no fundo do poço. Ela começou a chorar, e correu até a sua madrasta e contou a ela o seu infortúnio. Esta porém, repreendeu-a com severidade, e foi tão impiedosa a ponto de dizer, "Como foi você que deixou a bobina cair dentro do poço, você deve pegá-la de volta."

Então a garota voltou até o poço, e não sabia como fazer isso; e como o seu coração estava aflito, ela pulou dentro do poço para pegar a bobina. Ela perdeu os sentidos; e quando acordou e voltou a si novamente, percebeu que estava num lindo campo onde o sol brilhava e milhares de flores estavam desabrochando. Ela começou a vagar pelo campo, e finalmente avistou um forno de padaria repleto de pães, e o pão gritava para ela, "Oh, me tire daqui! me tire daqui! ou eu vou me queimar; já estou assado há muito tempo!" Então ela se aproximou dele, e tirou todos os pães, um após o outro, com uma pá de pegar pães.

Depois disso, ela continuou andando até que encontrou uma árvore repleta de maçãs, que gritaram para ela, "Oh, chacoalhe o galho! chacoalhe o galho! porque nós estamos todas maduras!" Então, ela chacoalhou a árvore, até que caiu uma chuva de maçãs, e ela continuou chacoalhando até que todas tivessem caído, e quando ela tinha apanhado um montão delas, ela seguiu seu caminho.

Finalmente ela chegou numa casa pequenina, onde uma velhinha estava espiando; mas ela tinha dentes tão grandes que a garota ficou assustada, e teve vontade de fugir.

Mas a velhinha gritou para ela, "Do que você tem medo, minha menininha? Fique aqui comigo; se você fizer todo o trabalho de casa direitinho, você mostrará que é uma boa menina. Somente você deve tomar muito cuidado para arrumar bem a minha cama, e você deve sacudir bem forte até que as penas voem  —  e então é como quando a neve cai sobre a terra. Eu sou a Dona Ola."[1]

Como a velhinha falava de um modo tão gentil com ela, a garota tomou coragem e concordou em fazer o serviço. Ela fez todo o serviço para satisfação da velhinha, e sempre sacudia a cama dela com tanta força que as penas voavam por todo lado e caíam como flocos de neve. Então ela tinha uma vida agradável ao lado da velhinha; que nunca se zangava; e comia comida boa todos os dias.

Durante algum tempo ela ficou em companhia de Dona Ola, e depois ela começou a ficar triste. A princípio, ela não sabia qual era o problema que a aborrecia, mas aos poucos ela foi descobrindo que era saudade da sua casa: embora ela fosse mil vezes mais feliz aqui do que na sua casa, mesmo assim ela sentia uma grande vontade de estar lá. Por fim, ela acabou dizendo para a velhinha, "Estou com muita saudades de casa; e embora eu seja muito feliz aqui, não posso ficar mais; preciso voltar para a minha família."

Dona Ola disse, "Fico feliz que você sinta saudade da tua casa, e como você me serviu com tanta dedicação, eu mesma vou te levar de volta." Dito isto, ela pegou a menina pela mão, e a levou até uma porta muito grande. A porta estava aberta, e assim que a donzela estava passando bem debaixo dela, uma pesada chuva de ouro começou a cair, e todo ouro ficava colado no corpo dela, até que ela ficou completamente coberta do metal.

"Tudo isso será teu porque você é muito esforçada," disse a Dona Ola; e ao mesmo tempo deu de volta a ela a bobina que ela havia deixado cair dentro do poço. E então a porta se fechou, e a pequena donzela se viu deitada no chão, não muito distante da casa da sua madrasta.

E a medida que ela caminhava em direção ao quintal ela avistou um galo que estava pousado ao lado do poço, e gritou — "Cocoricó! A menina de ouro voltou para casa!" Então ela foi até sua mãe, e quando ela se aproximou toda coberta de ouro, ela foi bem recebida, tanto por ela como pela irmã.

A garota contou tudo o que aconteceu a ela; e assim que a mãe ficou sabendo como ela conseguiu tanta riqueza, ela ficou muito desejosa que a sua filha, feia e preguiçosa, tivesse a mesma sorte. A única coisa que ela tinha de fazer era ficar sentada ao lado do poço e fiar e fiar; e para que a bobina ficasse manchada de sangue, ela precisou encostar a mão num espinheiro para que seu dedo fosse picado. Depois, ela atirou a bobina dentro do poço, e em seguida pulou dentro dele.

Ela se viu então, no mesmo e belo campo, como a sua outra irmã, e percorreu os mesmos caminhos. Quando ela chegou perto da fornalha o pão gritou novamente, "Oh, me tire daqui! me tire daqui! ou eu vou me queimar; há muito tempo que já estou assado!" Mas a pequena preguiçosa respondeu, "Como se eu tivesse alguma vontade de me sujar!" e continuou seu caminho. Pouco depois, ela encontrou o pé de maçãs, que falou para ela, "Oh, chacoalhe o galho! chacoalhe o galho! As maçãs estão todas maduras!" Mas ela respondeu, "Eu gostaria de fazer isso! mas uma de vocês poderia cair na minha cabeça," e continuou andando.

Quando ela chegou à cada de Dona Ola ela não ficou com medo, porque ela já tinha ouvido falar dos dentes grandes que ela possuía, e logo começou a fazer todo serviço que precisava ser feito.

No primeiro dia ela se esforçou para trabalhar com dedicação, e obedecia à Dona Ola quando esta lhe pedia para fazer alguma coisa, pois ela estava pensando em todo ouro que a velhinha lhe daria. Mas no segundo dia ela começou a ficar com preguiça, e no terceiro dia com mais preguiça ainda, até que ela não queria mais levantar cedo de jeito nenhum. Ela nem sequer arrumava a cama de Dona Ola como deveria, e não sacudia a cama com força até que as penas começassem a voar.

Dona Ola então se cansou de tanta preguiça, e falou para ela para que se fosse dali. A menina preguiçosa estava mesmo querendo ir embora, e pensou que naquele momento uma chuva de outro começaria a cair. Dona Ola a conduziu até uma porta muito grande; mas quando ela estava bem debaixo da porta, ao invés de ouro uma chuveirada de piche caiu por todo seu corpo. "Esta é a recompensa pelos teus serviços," disse a Dona Ola, fechando a porta.

E então a menina preguiçosa foi para casa; mas ela estava totalmente coberta de piche, e o galo estava sentado ao lado do poço, e assim que ele viu a menina, exclamou — "Cocoricó! A menina cheia de piche chegou!" Mas o piche estava tão grudado no corpo dela, que não pode ser removido durante toda a sua vida.
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Nota
[1] É por isso que em Hesse, na Alemanha, quando cai neve, as pessoas dizem: "Dona Ola está arrumando a cama agora.”


Fonte:
Contos de Grimm

A Saudade em Versos Diversos IV

GERMANA FACUNDO
Saudades do que nunca viveu

Que saudades
Como pode alguém sentir saudades do que nunca houve
Como pode alguém sentir saudades do que nem viveu
É como estou hoje
Com saudades
Morrendo de saudades dos sonhos que criei
Chorando de saudades das horas que imaginei
Das histórias que sonhei
Hoje estou assim
Querendo que o tempo vá para onde eu quero
Para onde ele nunca esteve
Mas a saudade é tanta que me paralisa
É muita saudade
E nem aconteceu
E nada eu vivi
Como se pode sentir saudades de uma época que não existiu
De fantasias e de promessas que nunca se concretizaram
Por que sentir saudades de um futuro inventado
Quando há um presente imenso para se viver
Mas não se manda no coração
O coração é pretensioso e quase sempre faz o que quer
A razão até tenta dominar
Mas raramente consegue
E por causa do coração a gente faz um monte de besteira
E fica esperando, esperando
Esperando que tudo volte a ser como antigamente
Ou pior
Que tudo seja como criamos em nossos sonhos mais recorrentes.

CHARLES CHAPLIN
Se amanhã sentires saudades

Tua caminhada ainda não terminou
A realidade te acolhe
Dizendo que pela frente
O horizonte da vida necessita
De tuas palavras
E do teu silêncio.

Se amanhã sentires saudades
Lembra-te da fantasia
E sonha com tua próxima vitória
Vitória que todas as armas do mundo
Jamais conseguirão obter
Porque é uma vitória que surge da paz
E não do ressentimento.

É certo que irás encontrar situações
Tempestuosas novamente
Mas haverá de ver sempre
O lado bom da chuva que cai
E não a faceta do raio que destrói.

Tu és jovem
Atender a quem te chama é belo
Lutar por quem te rejeita
É quase chegar a perfeição
A juventude precisa de sonhos
E se nutrir de lembranças
Assim como o leito dos rios
Precisa da água que rola
E o coração necessita de afeto.

Não faças do amanhã
O sinônimo de nunca
Nem o ontem te seja o mesmo
Que nunca mais
Teus passos ficaram
Olhes para trás
Mas vá em frente
Pois há muitos que precisam
Que chegues para poderem seguir-te.

MÁRIO QUINTANA
Do Amoroso Esquecimento

Eu, agora - que desfecho
Já nem penso mais em ti
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Teófilo Braga (O Ovo e o Brilhante)

Recolhido no Porto

Havia uma mulher, que tinha uma filha e uma enteada. Estavam sozinhas em casa, uma sempre na cozinha, muito maltratada, e a outra sempre altiva e soberba na janela. Passou uma velhinha, e pediu se lhe davam alguma coisa. Disse a soberba:

– Vá-se embora, tia, que não há pão cozido.

A outra disse:

– Não tenho que lhe dar; só se for este ovo fresco que pôs agora a galinha.

E deu o ovo à velhinha. A velhinha quebrou-o, e dentro do ovo estava uma grande pedra preciosa, que era um brilhante; pegou nele e deu-o à menina:

– Trazei sempre essa pedra ao pescoço, que enquanto andares com ela haveis de ter todas as felicidades.

A pequena pôs a pedra ao pescoço. A irmã, com inveja, foi também buscar um ovo, e deu-o à velhinha.

Ela disse que o partisse pela sua mão; assim fez, e rebentou o ovo choco, que estava com mau cheiro e a cobriu de porcaria pela cara e pelas mãos.

A velhinha foi-se embora. Aconteceu passar por ali o rei, e viu aquela menina com a pedra ao pescoço, e achou-a tão linda, e ficou logo tão apaixonado, que a mandou buscar e casou com ela.

Ficou rainha; e como era boa, a madrasta e a irmã pediram-lhe para que as deixassem viver no palácio; deixou.

Um dia o rei foi para uma guerra, onde tinha de se demorar; a rainha ficou no palácio. Ora a madrasta, que já sabia do poder da pedra preciosa, confiava mais a filha com intuito de ver se lhe furtavam, até que um dia que ela estava no banho, e que a irmã lhe tinha ido botar o lençol, furtou-lhe a pedra sem ela saber.

Imediatamente ficou muito aflita, e a irmã mais a madrasta fugiram para irem ter com o rei, que estava na campanha, porque tinha a certeza que ele a tomaria por mulher.

Pelo caminho puseram-se a descansar e adormeceram. Passou uma águia e viu luzir a pedra, e de repente desceu e arrancou-a, e engoliu-a. Quando as mulheres continuaram o seu caminho, chegaram à barraca do rei, sem terem ainda dado pela falta da pedra.

Pediram licença para entrar, dizendo que era a mulher do rei que vinha visitá-lo, porque tinha muitas saudades. O rei conheceu quem eram, e mandou-lhes dar muita pancada e pô-las fora; foi então que a rapariga deu pela falta da pedra, e se colocou a fugir, e a mãe atrás dela.

Quando o rei chegou ao seu reino, veio a rainha ao seu encontro; mas como não tinha a pedra o rei não a conheceu, e disse:

– É uma tola como as outras. E escorraçaram-na.

Ela tornou para o palácio, e lá só a aceitaram para ajudar na cozinha. De uma vez estava-se a arranjar um grande jantar para o casamento do rei, e ela ao preparar uma águia, achou-lhe no papo uma grande pedra preciosa.

Guardou-a, e pediu ao dono para ir servir à mesa. Assim foi; pôs a pedra ao pescoço, e assim que entrou na sala, o rei conheceu-a e lembrou-se dela, e perguntou-lhe como é que aquilo tinha sido.

Ela contou-lhe tudo, e o rei sentou-a logo à sua direita, e a outra princesa foi-se embora.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 42 – 28 de dezembro de 1877

Eu cá, quando toda a gente
Chora ou treme de assustada,
Tenho um desejo veemente
De dar uma gargalhada.

E a razão, — se há razão nisto,
Não é senão porque é útil
Fazer deste mundo um misto
De terrífico e de fútil.

Outrora o teatro dava,
Ao riso afrouxando a rédea,
Depois de uma peça brava,
Uma farsa, uma comédia.

Acabado o Aristodemo,
Vinha uma ária do Martinho;
Ao fel que chorava o demo,
Ao fel que sucedia o vinho.

Eu não, eu misturo tudo,
De modo que cada grito,
Angustioso ou sanhudo,
Não nos traga um faniquito.

Ou então uso o contrário;
Quando é geral alegria
Solto o verbo funerário
E misturo a noite e o dia.

Para não irmos mais longe,
Ninguém dirá que passamos
Uma existência de monge,
Que rezamos, que choramos.

Antes vejo anunciados
Bailes de vários feitios,
Teatros abarrotados
De cristãos e de gentios.
Malgrado o sol e a poeira,
Corridas de bons cavalos;
Toda uma cidade inteira
Brincando sem intervalos.

Pois é justamente agora
Que eu, por integrar a vida,
Deito a vista para fora,
Desordenada, insofrida.

E, ao ver do lado do norte
Aquele pobre diabo
Que encontrou comprida morte
Onde torce a porca o rabo;

Que foi com rara presteza,
Agarrado, arrebatado,
E com toda a ira acesa,
Crucificado e esfolado;

Vingando a sorte, vingando
Aquela porca mesquinha
Que, em suas roças entrando,
Foi morta e não foi rainha;

E, ao lado do sul, a dama
Que à preta engolir fazia,
Não garoupa sem escama,
Nem doce, nem malvasia;

Mas comidas singulares,
Não feitas por encomenda,
E a beber com tais manjares
Vinho de outra pipa horrenda;

E se a boca recusava
O petisco enjoativo,
Tição aceso lhe dava
Novo e forte aperitivo;

Sem contar a bordoada,
Que as rijas carnes alanha,
E era a música obrigada
Daquela ceiata estranha;

Às pressas trago estas duras
Histórias com que tempero
As folias e aventuras,
E ato ao jovial o fero,

Para que, quando tomarmos
No Pascoal alguma cousa,
Ou algum colar mirarmos
Na loja do V. de Souza.

Digamos: — P’ra lá, menina,
Menina in-oitavo, in-fólio,
Dá cá tua mão divina
Ao teu amador Malvólio.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Ricardo Kelmer (O Rio que não Gostava de Mudar)

Movimento significa contínua transformação, mudança, aprendizado. Significa evolução.

Isso nos faz lembrar da historinha sobre o sentido da vida. Ela diz que somos todos como o rio que vai descendo, procurando o melhor caminho. Podemos nos enganar muitas vezes mas isso fará parte do aprendizado e não da derrota. Podemos cansar de tudo e, deprimidos, querermos até desistir. Então, parados, transformamo-nos em lagos, para assim podermos provar a nós mesmos que estamos sozinhos e que o universo ao redor, com sua mania de movimento e transformação, não nos diz respeito e tudo que se dane.

No entanto, começa a cair uma chuvinha irritante que termina nos fazendo transbordar e lá vai o rio descendo novamente, seguindo caminho, inapelavelmente.

O rio, então, muda-se para um lugar onde não chove e ele possa continuar sua reclusão em paz, onde ele possa sofrer sozinho sem ninguém para lhe dar lições de moral. Mas aí, acaba descobrindo que aos poucos está se transformando em vapor, subindo para o céu e virando nuvem. Ele até pensa em aproveitar e seguir como uma nuvem até o polo sul, onde desceria como neve e ficaria como aquelas montanhas de gelo, solitárias e autosuficientes. Mas só de pensar no quanto teria de se transformar, desiste. Além do mais quem garante que até elas não evaporem mesmo com o sol fraco dos polos?

Achando aquilo tudo o cúmulo da aporrinhação e intromissão, o rio enfim decide esconder-se numa caverna profunda, a mais profunda que houvesse, no centro do planeta, onde enfim pudesse ser um pequeno lago, eternamente tranquilo e sem ninguém a lhe dar conselhos sobre evolução e transformação. Foi um esforço tremendo. Teve que primeiro transformar-se em chuva e umedecer bem as rochas, depois penetrá-las e descer por dentro delas, tendo sempre que buscar reforço quando o calor ameaçava estragar tudo. Pensou várias vezes em desistir mas aquilo era sua única saída. Sabia que talvez levasse toda a vida provando sua tese mas valeria a pena. Por fim terminou conseguindo. Virou um lago no fundo da caverna mais profunda. Mostrou ao mundo que podia ficar deprimido e desistir de tudo, tinha esse direito de não querer seguir em frente, de não querer se transformar.

Então, completamente exausto, sorriu satisfeito e morreu. E a morte veio saudar-lhe com todas as honras. Afinal, um rio que dedicou sua vida inteira a se transformar no lago mais distante da mais profunda caverna, e conseguiu, é mesmo um rio bem especial. Um rio que captou como nenhum outro que a evolução é o sentido da vida.

Moral da história: tudo se transforma, cada um a seu modo, ainda que insista em não se transformar. Porque somos a própria evolução.

Fonte:
KELMER, Ricardo. Quem Apagou a Luz?.