terça-feira, 30 de agosto de 2016

Paulo Leminski (XL)


Nilto Maciel (O Menino e o Bacamarte)

Para Airton Monte

De batismo chamava-se João Alves Mendes, nome depois reduzido a Jão. Apelidou-se Carcará, dizendo-se danado.

Virou índio aos cinco anos. Despia-se e corria pelo quintal, espantando galinhas e porcos. Subia às laranjeiras e de cima atirava laranjas podres nos bichos. Deu para fabricar arcos e flechas com que irritava os galos. Queria matar todos os brancos da cidade com as armas nativas amontoadas no canto do muro. Crescia analfabeto e grosseiro, metido nos ca­fundós do quintal, sem reza e sem hora para nada.

   — Vem comer, menino.

    — Já comi.

Devorava bananas quase verdes e chupava as laranjinhas mal brotadas.

Aos doze anos organizou uma tribo e saía pelas ruas a experimentar seu arsenal nos ossos dos cachorros. Os vizinhos reclamavam, o povo todo se maldizia.

— Mataram meu gato.

— Foi o moleque do Pedro Mendes.

— O doidinho?

  Já rapazinho, viu-se só. Nenhum dos companheiros de infância queria mais brincar de índio. Preferiam namorar nas pracinhas. E Jão seminu, armado de arco e flecha, pintado de jenipapo. Correndo o mato atrás de preás, pescando no Potiú. Mal dormia em casa.

Um dia deram-no por perdido. Vasculharam toda a cidade e arredores, e nada de notícia dele. Nos leitos dos rios nem sinal de corpo apodrecido. Nos açudes talvez nada. Nos matos nenhum mau cheiro. A mãe só faltou morrer de chorar. O pai resmungava.

Dias depois a notícia chegou: Carcará havia tentado invadir Parangaba, onde brancos escravizavam Jaguaribaras. Repelido, foi bater na Precabura. E em seu encalço saíram trinta soldados e alguns habitantes da Fortaleza. Acossado, embrenhou-se nos matos.

— Vamos pegar o doido.

Em Parangaba criou fama. Andava armado e voltaria para matar qualquer inocente. Talvez até uma criança. O povo todo do bairro só falava nele e alguns se armavam para caçá-lo.

Foi visto às margens do Choró e correu espantado feito bicho do mato.

— Querem ocupar também aqui?

Depois passaram pelo Pacoti.

Sua fama se espalhou. Todo o Ceará já sabia de um doido fantasiado de índio que andava pelos sertões. A confusão se fez logo. Qualquer rapazote visto de calção no mato era perseguido. Muitos apanhavam até provarem nunca ter ouvido falar de índio. Houve casos de barbaridades. E o estopim se alastrava pelo Rio Grande do Norte. Todo o sertão pegava fogo: Carcará atacava vilarejos com suas flechinhas que mal ofendiam um passarinho, e os homens o perseguiam com revólveres e metralhadoras.

Certo coronel João de Barros, saudoso de seus tempos de chefe de capangas, prometeu caçar e prender o delinquente. Procurou o padre João da Costa e prometeu-lhe entregar o doido. Dito e feito. Com poucos dias de caçada, lá estava Jão acuado numa grota, cercado por mais de vinte homens, seguro e amarrado. Levado à presença do padre, aquietou-se e prometeu viver pacificamente daí em diante.

Na conversa, conseguiu fugir, deixando o padre atarantado. Dessa carreira foi bater no Banabuiú. Vagou pelos sertões à cata de companheiros. Chegava às fazendas e convocava os caboclos para uma guerra.

— Que guerra, seu menino?

 — Para acabar com os brancos.

Aliciou alguns rapazes que já tinham ouvido falar em reforma agrária.

— Vamos expulsar os ricos das terras?

A guerra começaria em Aquiraz. De lá partiriam para outras cidades e as fazendas. E seguiram, ele nu e armado de arco e flecha, os outros vestidos de calça e camisa e armados de foice e facão. No meio do caminho encontraram uns capangas, que dispersaram o regimento, mas Carcará conseguiu escapar e continuar viagem. E entrou em Aquiraz, onde disparou centenas de flechas contra indefesos e pacatos aquiraenses atônitos. Ciente da carnificina causada, fugiu para o rio Choró, onde se defrontou mais uma vez com o coronel João de Barros, saindo ferido.

Em Aquiraz o pânico crescia. Organizou-se uma expedição para caçar o louco, caçada que nunca deu em nada. Carcará então já vagava por Pacatuba, Pacoti, Catu, Cocó, espiando as coisas.

Um dia foi ter numa fazenda de certo Senhor Feitosa, que disputava terras a uns tais Montes e precisava de homens valentes, cabras machos. A partir daí a vida de Carcará mudou. Deram-lhe um bacamarte. E virou capanga, com mais de cem mortes nas costas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

domingo, 21 de agosto de 2016

Paulo Leminski (XXXIX)


Lenda Africana (O Violino do Macaco)

A fome e a necessidade de satisfazê-la forçou o macaco a abandonar a sua terra e procurar outro lugar entre estranhos para o tão necessário trabalho. Bulbos, feijões da terra, escorpiões, insetos, e estavam completamente extintas em sua própria terra. Mas, felizmente, ele recebeu, por enquanto, abrigo com um tio-avô dele, Orangotango, que morava em outra parte do país.

Quando ele tinha trabalhado durante certo tempo ele quis voltar para casa e, como recompensa seu tio deu-lhe um violino e um arco e flecha e lhe disse que com o arco e flecha, ele poderia acertar e matar qualquer coisa que ele desejasse, e com o violino ele poderia obrigar qualquer coisa a dançar.

O primeiro que ele encontrou em seu retorno para a sua terra foi o irmão lobo.  Este velho companheiro disse-lhe todas as novidades e também que ele estava desde cedo tentado perseguir um cervo, mas tudo em vão.

Então macaco disse para ele todas as maravilhas do arco e flecha que ele carregava nas costas e lhe garantiu que se avistasse o cervo, ele iria acertá-lo para ele. Quando o lobo mostrou-lhe o veado, o macaco estava pronto e derrubou o cervo.

Eles fizeram uma boa refeição juntos, mas em vez do lobo ser grato, o ciúme se apoderou dele e ele pediu o arco e flecha. Quando o macaco recusou-se a lhe dar, ele usou sua força para ameaçá-lo, e assim, quando passaram pelo chacal, o lobo disse que o macaco tinha roubado o seu arco e flecha. O chacal tendo ouvido falar do arco e flecha, declarou-se incompetente para resolver o caso sozinho, e ele propôs que eles levassem a questão para o Tribunal do Leão, Tigre, e os outros animais. Nesse meio tempo, ele declarou que iria ficar tomando conta do que tinha sido a causa de sua discussão, de modo que seria mais seguro, como ele disse. Mas o chacal imediatamente atirou em tudo o que era comestível,  e isso gerou um longo período de matança, antes que o macaco e o lobo concordassem em levar o caso para o tribunal.

As evidências do macaco era frágeis, e para piorar, o testemunho de chacal foi contra ele.  Ele pensou que desta forma seria mais fácil obter o arco e flecha para si mesmo.

E assim a sentença foi contra macaco. O roubo foi encarado como um grande crime: ele seria enforcado.

O violino ainda estava ao seu lado, e ele recebeu como um último desejo do tribunal o direito de tocar uma música nele.

Ele era um mestre dos truques de sua época, e além disso, tinha o maravilhoso poder de sua rabeca encantada. Assim, quando ele emitiu a primeira nota do “Canto do Galo” no violino, o tribunal começou logo a mostrar uma vivacidade incomum e espontânea, e antes de terminar a primeira estrofe da valsa da velha canção toda a corte estava dançando como um redemoinho.

Mais e mais, mais rápido e mais rápido, tocou a melodia do “Canto do Galo” no violino encantado, até que alguns dos bailarinos, exaustos, caíram, embora ainda mantendo seus pés em movimento. Mas o macaco, músico como ele era, ouvia e não via nada do que tinha acontecido à sua volta. Com a cabeça colocada carinhosamente contra o instrumento, e seus olhos meio fechados, ele tocou, mantendo a cadência com o seu pé.

O lobo foi o primeiro a gritar em tom suplicante, sem fôlego, “Por favor, pare, primo macaco! Pelo amor de Deus, por favor, pare!”

Mas o macaco nem conseguiu sequer ouvi-lo. Mais e mais a valsa “Canto do Galo” parecia irresistível.

Depois de um tempo o leão mostrou sinais de fadiga e, quando ele rodava mais uma vez com a leoa, ele rosnou quando passou do macaco, “Todo o meu reino é vosso, macaco, se você parar com essa música!”

“Eu não quero isso”, respondeu macaco “, mas retire a sentença e devolva o arco e flecha, e você, lobo, reconheça que você o roubou de mim!”

“Eu reconheço, reconheço!” gritou o lobo, e o leão no mesmo instante, chorou anulando a punição.

O macaco ainda deixou-os girando mais uma vez ao som da valsa, e depois recolheu seu arco e flecha, e sentou-se no alto da árvore de espinhos mais próxima.

A corte e outros animais estavam com tanto medo que ele pudesse começar de novo que apressadamente correram para outras partes do mundo.

Fonte:
http://www.sacred-texts.com/afr/saft/sft05.htm in https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Paulo Leminski (XXXVIII)


Nilto Maciel (O Inseto)

Sonhou João Cordeiro que subia aos céus, no bojo de uma nave estranha, tripulada por seres esquisitos.

Contou o sonho primeiro a sua mulher. Levaram aquilo muito a sério e durante toda a manhã engendraram novas teo­rias, que à tarde deixaram seus ouvintes em estado de graça.

A sabedoria de João assentava-se em Os fundamentos da vida, de um tal Krishnaradha, edição apócrifa do Rigveda, traduzida do francês para o português pelo carioca Si­darta Hastinapura. E também em Sodoma e os deuses, de Jack Morton, e Os extraterrestres, de Teddy Young.

Armado de tão maravilhosas armas, levava a vida a com­bater os leitores de porcarias e inutilidades, como Homero, Camões, Machado, Graciliano.

Os materialistas, coitados, mereciam dele as mais ferinas farpas, por voltarem as costas à vida, à energia cósmica, à realidade impalpável.

Sua sábia boca enchia-se de espuma diante de bebedo­res de cerveja, fumantes, frequentadores de motéis, revolucio­nários, admiradores de Lampião, Pelé e Carlitos.

No seu sonho privilegiado, acompanhado apenas dos navegantes do infinito, olhava para a Terra, aquela minúscula bolinha azul, e ria dos bichos humanos, salvo da catástrofe.

A palavra jorrava de seus olhos feito chispas incendiá­rias. Onde permanecesse por mais de um discurso, deixava plantado o vírus de sua ciência.

  — Só existe uma verdade e esta eu a sei. Ela está nas palavras dos seres, não destes imbecis chamados filósofos, mas daqueles que nunca aprenderam nada, porque já trouxeram consigo todas as explicações.

Se alguém se interessava por suas pregações, não mais parava de falar, a citar Krishnaradha a três por dois.

Parecia viver o sonho: liberto da mentira da Terra, a na­vegar no rumo da Verdade, passageiro da Nave da Vida.

No trabalho contava com alguns ouvintes e uns poucos adversários. Aos primeiros dedicava uma ou duas horas por dia e aos outros chamava de vermes, bichos e cadáveres.

Se falavam de salários, carestia, injustiça, irritava-se com tanta mesquinhez. A vida vibrava dentro de cada um, lá fora, na selva, na água, no ar.

— A realidade está além de tudo isto, porque antes da roupa que vestimos, do livro que vocês leem, das preocupa­ções que vocês têm, já a vida existia.

Lembrava-se bem: a espaçonave de seu sonho tinha for­mas variadas — achatada, pontiaguda, circular — e os tripu­lantes não falavam, comunicavam-se com ele por meio de si­nais, gestos, cores, sentimentos materializados.

Conhecia pessoalmente o mestre Krishnaradha, que vivia na Suíça, ocupado apenas com os ensinamentos da vida, em conferências diárias.

— Quantos seres existem entre nós?

— Dez, cem, milhares. Eles estão por aí, vivendo, aguar­dando o momento da Viagem.

A ciência de João ia além dos livros indianos, da sabedo­ria antiga e eterna dos seres como Cristo e Krishnaradha.

— Os homens, como os outros animais, nasceram de se­mentes lançadas à Terra por seres superiores, habitantes de outros mundos.

Os extraterrestres podiam apresentar formas humanas. No sonho, por exemplo, os tripulantes da nave até falavam português e vestiam-se como lavradores.

— De longe percebi tudo e nem me espantei quando per­guntaram se eu já queria partir.

A reputação de João variava de pessoa para pessoa: sábio, sa­bido, doido, besta. Para sua mulher talvez chegasse a santo.

Apregoava o fim da raça humana, por se ter distanciado da vida, dos objetivos do Criador, e ao mesmo tempo abria baterias contra postemas como Hitler.

—    A catástrofe não tarda — bradava.

— A guerra? — perguntavam, espantados, seus ouvintes.

            – Ela e tudo: maremotos, furacões, terremotos, incêndios, inundações. E dela só se salvarão os seres, porque vocês, a grande maioria, não são seres, são bichos.

   No sonho, deixava a Terra, essa morada podre de vermes, e alcançava a dimensão dos deuses.

   Não viajou em vida, porém. Morreu recentemente, após ingerir um litro de inseticida.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

Lenda Australiana (O Goanna e Suas Listras)

Novamente foi nos dias em que os animais andavam sobre duas pernas e eram em todos os sentidos iguais aos seres humanos. Havia duas tribos que viviam juntas, Mungoongali os Goannas (1) e Piggiebillah os Équidnas (2). Era uma associação desconfortável, pois seus antepassados, que vieram de terras distantes no oeste, eram de diferentes espécies. Os Goannas nasceram ladrões, enquanto os porcos eram uma tribo muito mais autossuficientes, e eram caçadores especializados.

Os goanas mandaram os équidnas dormir, assaram a comida e depois queriam roubar tudo, subindo com a caça nas árvores

Na planície oriental para a qual as duas tribos tinham migrado, os Piggiebillahs ou équidnas ocupavam-se da caça, mas a comida dos Mungoongalis ou goanas comiam somente os favos das abelhas nativas, que eles coletavam subindo em árvores, e comida que roubavam da aldeia dos dos Porcos.

É triste relatar que suas depredações ia além disso, pegando as crianças desprotegidas dos équidnas que eram mortas e comidas em segredo.

Em certa ocasião, os goannas convidaram seus vizinhos para se juntar a eles em uma expedição de caça. Os porcos riram com desdém.

‘Vocês se tornaram especialistas na perseguição desde ontem, ou no dia anterior? eles perguntaram ‘Obrigado por sua oferta, mas vamos fazer muito melhor sem vocês. “

“Por favor, venha com a gente”, pediram. “Nós sabemos que não podemos caçar, mas enquanto vocês estiverem ocupados, vamos reunir favos de mel das árvores,” um dos équidnas mais jovens disse ao seu povo:  “isto pode funcionar. Vamos nos juntar a eles?

“Tendo em conta o fato de que somos notoriamente mal sucedidos em subir em árvores, eu acho garoto que você está mostrando mais do que sua sagacidade habitual”, o équidna mais velho observou ao jovem sarcasticamente.

Os homens das duas tribos saíram juntas. Os équidnas fizeram uma grande matança, mas no final do dia, e os goannas não haviam catado um único favo de mel. Embora fossem hábeis em escalada de árvores, eles estavam com preguiça de trabalhar sob o sol quente. Quando eles viam que estavam sendo observados, eles fingiam fazer buracos nos troncos das árvores para subir, mas tão logo os équidnas lhes davam as costas, eles se deitavam e dormiam.

“Não importa”, os goannas disseram no final do dia. ‘Favos estão escassos neste ano. Agora é hora de vocês descansarem. Vamos cozinhar a caça. Vão dormir. Vamos chamá-lo quando a comida estiver pronta.”

“A luz do fogo piscavam sobre as folhas das árvores e sobre as formas adormecidas dos équidnas. De vez em quando um deles se virava e perguntava sonolento: “A janta não está pronta ainda?”

“Ainda não. Vão dormir. Vamos acordá-los quando estiver pronta. “

Os équidnas partiram pra cima deles pra recuperar a caça!

Quando a comida ficou pronta os goanas correram até as árvores e se esconderam nas folhagens. Um deles ficou para trás e jogou os corpos assados dos animais um por um para seus companheiros nas árvores. Mas fazendo isso ele passou muito perto do fogo, batendo contra um tronco queimado de modo que caiu sobre um sobre um équidna, que acordou com um grito. Os outros ficaram de pé e viram a comida desaparecer entre as árvores.

Um dos équidnas pegou um pedaço de lenha acesa e atacou o goana. As cinzas caíram sobre seu corpo dourado, queimando a carne e deixando um rastro de listras pretas e amarelas, que tem sido desde a coloração que distingue os goannas de outros lagartos monitores.

Não é de estranhar, portanto, que os goanas e équidnas se evitem, pois eles não tem os pensamentos mais felizes um sobre o outro.…
_________________________
Nota:

1) Tipo de lagarto monitor australiano;
2) Os équidnas são mamíferos que põe ovos que habitam a Austrália.

Fonte:
http://www.artistwd.com/joyzine/australia/dreaming/goanna.php#.UjB72z8iz5k 
in https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Nilto Maciel (O Riso do Gato)

Nunca ria o gato. Sisudo, posava dia e noite para os de casa e os de fora. Costumeiramente vivia em cima da mesinha de centro. Às vezes nas prateleiras da estante, ao lado da Bíblia, da enciclopédia, dos discos. Mil vezes escapou do fim. Quando a arrumadeira se zangava. Quando os meninos brinca­vam de bola na sala. Quando qualquer mão descuidada o aba­nava.

Não lhe faltavam elogios. Chamavam-no gato bonito, ga­tinho lindo, belo gatão. Mesmo quando percebiam sua cir­cunspecção. Talvez até vissem nela o melhor de sua beleza.

As visitas chegavam a ser impertinentes, mal-educadas. Queriam saber onde a dona da casa havia comprado tão fino bibelô. Que loja vendia adornos como aquele? Onde encon­trar enfeite tão raro? Se era de gesso, porcelana, barro.

Imune à curiosidade geral, o gato olhava muito sério para o meio da sala. Nem sequer mexia os longos fios do bigode colado às faces. Como se falassem do fim do mundo, de mor­tes e dores.

Um dia, porém, o gato amanheceu outro. Um largo sorri­so enchia seu rosto formoso. O bigode mais espalhado, os olhos mais brilhosos. Não, não se tratava do mesmo objeto. Alguém andava brincando naquela família.

A dona da casa se irritou. Queria de volta seu gato sisu­do. Ou não servia o café. O dono da casa apoiou a mulher. Ou o gato antigo, ou muita briga.

Desconfiaram da arrumadeira. Se não desse conta imediatamente do gatinho lindo, perdia o emprego. E ganhava um processo na Justiça. Por roubar um enfeite raro.

A cozinheira jurou inocência pelas chagas de Cristo. Adora­va o gato bonito. Só não falava em verdadeira paixão para não ser chamada de doida.

A moça da casa chamou os pais de idiotas. Deixassem de besteiras. Ninguém roubara o gato. Simplesmente o bicho re­solvera mudar de cara.

Terminado o café, todos já concordavam com a moci­nha. Cada um, no entanto, defendia, com unhas e dentes, sua opinião a respeito do motivo daquela tão esquisita mudan­ça de feições. Para a mãe, o gatinho lindo ria por um só motivo — estava amando. Segundo o pai, o belo gatão ria à toa. Co­mo um débil mental. O rapazinho achava o gato um gênio, que ria da imbecilidade humana.

A copeira limpava a mesa e resmungava. O gatinho sorria como qualquer pessoa. Mais tarde, talvez chorasse.

Um dos meninos achou por bem dar palpite. O bichano ria de satisfeito. Durante a noite pegara um ratinho. Só podia ser aquilo.

Houve gargalhadas em toda a casa.

Zangado, o garoto quis arriscar outra opinião. E se aproxi­mou da mesinha de centro. Seus pais e irmãos gargalhavam ainda.

Súbito agarrou e ergueu a peça. A gargalhada teve fim. Ha­via realmente um ratinho no fundo oco do objeto.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

Nemésio Prata e José Feldman (Correspondências em Versos)

NAVIOS

Ouvi falar com receio
de um cabra de muitos brios:
– Nemésio está no torneio?
Deixa-nos a ver navios!!!
(José Feldman)

RESPOSTA DO NEMÉSIO

Torneio mesmo só é
bom quando a turma é das boas;
sou grato ao amigo Zé
pelos navios de loas!

Mas, por falar em navios,
lembrei de trama passada:
eu, todo cheio de brios,
fui ao mar numa jangada.

Depois de muita marola,
quase vomitando os bofes
voltei à terra. Gabola,
hoje faço essas estrofes!
____________________
UM ADEUS NO DOMINGO

Ayllin 
(25 set 2001 - 22 mai 2016)
Ayllin... assim se chamava,
leal, doce, puro amor...
 Sua ternura encantava,
mesmo em momentos de dor!
(José Feldman)

RESPOSTA DO NEMÉSIO:
Leal, terna e encantadora,
razão de alegria e risos,
doce "Ayllin", tão sedutora,
hoje calou os seus guizos!

No sofá, o seu lugar
predileto está vazio;
silenciou seu ronronar...
a alegria fez estio!

Dura perda, caro irmão
pra você que tanto amor
tem aos bichanos, que são
razão de alegria e dor!
_________________________
NEMÉSIO PRATA
MANHÃ DE ABRIL

Nesta manhã aprilina
choveu no meu Ceará,
também veio chuva "fina"
das bandas do Paraná;
este "chover", na verdade,
que banhou a nossa herdade,
veio lá de Maringá!

Às vezes, fico a pensar
como ficará, no dia
que esta chuva nos "faltar";
vai secar toda alegria
do Trovador brasileiro,
seu chão vai virar braseiro...
- Livrai-nos desta agonia!
_______________________

MATE O TEMPO MAS NÃO MATE A TROVA

NEMÉSIO PRATA

Saiu por aí, disperso.
Tão logo se viu sozinho
buscou o caminho inverso;
perdeu-se num descaminho!

Cuidado quando sair
por aí, buscando atalho,
pois você pode cair
na armadilha de um bandalho!

 

Quando sair pra balada,
a noite, é bom se cuidar
para não ser assaltada
e "perder" seu celular!

- O celular! -Vai passando!
Pede o assaltante, peralta.
- Um momento! - Estou mandando
um "zap-zap"! Diz o internauta!
(Nemésio Prata)

JOSÉ FELDMAN DANDO CORDA

O tempo nunca é perdido...
Por mais que o tempo se vá,
mesmo sendo um foragido,
ele está aqui e acolá.

Na vida, saindo em atalhos,
nada de bom acontece,
pois eles são qual cascalhos
que sob o pé, se padece.

O celular é importante,
pois até para assaltar,
é nele que o assaltante
diz: - Alô! Vou te roubar!
(José Feldman)

RESPOSTA DO NEMÉSIO SOBRE SUA TROVA DE PÉ QUEBRADO (em itálico acima)

Neste atalho tinha um galho,
nem dei fé, dei um tropeço;
mil perdões... foi ato falho:
já botei o pé no "gesso"!

Depois de consulta "métrica"
ao "ortotrovista" Zé,
estou de bota "ortopédrica"
para consertar o "pé"!

Graças ao "esteticista"
das trovas, já consertei
a trova, que vai revista:
e mais cuidado terei:

Cuidado quando sair
à solta, buscando atalho,
pois você pode cair
na armadilha de um bandalho!

ou, numa versão mais "atualizada":

Depois de levar um malho
do meu amigo José,
não vou mais pegar atalho
para não "quebrar o pé"!
(Nemésio Prata)
_________________________
NEMÉSIO PRATA
FAZENDO TROVAS

No contexto de uma trova
deve o Trovador rimar
com cuidado, pondo à prova
a trova, pra não "melar"!

Não fazer verso "perneta"
e nem de "perna comprida"
são cuidados que o exegeta
deve tomar de saída!

E nem brincando rimar
tamarindo com limão
só porque ao paladar
ambos azedos lhes são!

Singrando o mar da poesia
o Trovador deve ter
cuidado na travessia
pra nas rimas não morrer!

Jamais se deixar levar
pelos ventos de pretextos
falsos, sem antes cuidar
de enfunar velas no texto!

Mas se o contexto o levar
a um pretexto alucinante
deve o Trovador lembrar
do leitor: o navegante!

Depois de escrever as tais
"asneiras", fico a pensar
se já não está demais
de "besteiras"... vou parar!

Folclore Japonês (Anchin e Kiyohime: O Monge e a Serpente)

Este é um velho conto japonês que inspirou gerações de poetas, e é uma das histórias mais encenadas no Japão. É uma antiga lenda a respeito do sino de Dojoji, um templo budista na província de Kishu, hoje Wakayama. Que muitas centenas de anos atrás, abrigou um belo monge com o nome de Anchin, irmão do imperador Suzyaku. Existem muitas versões literárias deste trágico conto, em que o jovem monge se envolve com uma delicada menina provocando seu ódio a ponto de transformá-la em uma terrível e vingativa serpente.

Há muitos e muitos anos, havia um jovem monge chamado Anchin. Todos os anos, ele fazia uma peregrinação nos Caminhos de Kumano. Certa ocasião, quando se dirigia a um dos templos, começou a escurecer, precavido, procurou abrigo onde pudesse passar a noite. O religioso encontrou uma aldeia chamada Hidaka e bateu à porta de uma de suas habitações. Foi atendido pelo senhorio Kiyotsugu que era o administrador da aldeia. Lá, o monge teve uma recepção calorosa, e foi convidado a passar a noite.  Kiyotsugu tinha uma bela filha adolescente chamada Kiyohime.

Anchin elogiou a beleza da garota e disse brincando que um dia viria buscá-la para se casarem. Kiyohime acreditou nele. Na manhã seguinte, Anchin seguiu em peregrinação.

Na casa de seu pai, Kiyohime esperou pacientemente pelo retorno de seu prometido amor. O tempo passou. As estações mudaram, e os crisântemos no jardim de flores desapareceram novamente, mas Anchin não retornou.

Três anos se passaram e Anchin novamente estava fazendo a peregrinação pelos Caminhos de Kumano. Por coincidência, quando passava próximo da aldeia, o tempo fechou e começou a escurecer. Lembrando que já conhecia o administrador local, foi pedir hospedagem.

O monge já nem se lembrava da menina Kiyohime, mas, ao vê-la na casa do administrador, a lembrança voltou à mente do monge. Ao mesmo tempo, o religioso ficou  surpreso ao constatar que ela havia se transformado em uma bela mulher.

O coração de Anchin ansiava pela calma do templo ao som dos sinos da noite e o canto suave dos sutras. Mas a noite caía rapidamente e ele estava cansado. Então Anchin retirou-se para o quarto ofertado pelo senhorio.

Anchin já havia pegado no sono quando foi despertado pela presença de Kiyohime ao lado de seu leito. Ela se atirou em seus braços e disse emocionada: – Obrigada por ter vindo me buscar. Esperei tanto por esse momento que, durante três longos anos, fiquei contando os dias à sua espera. O monge não protestou… foi uma noite de volúpia.

Ao despertar, na manhã seguinte, Anchin, caiu em si. Como bonzo (Sacerdote budista), estava proibido de se casar. Mas não teve coragem de contar a verdade para a inocente Kiyohime. Prometeu a ela que iria até o templo em Kumano e na volta passaria em sua casa para assumir seu compromisso matrimonial.

Na tarde deste dia, Anchin chegou ao templo. Como estava com a cabeça nas nuvens, Osho-san, o monge superior, logo percebeu que ele poderia estar pensando em alguma mulher. Por isso, aconselhou-o que meditasse bastante antes de fazer alguma bobagem. Anchin meditou muito e finalmente disse para si mesmo: – Eu sou um bonzo. Não posso querer Kiyohime. Regressarei por outro caminho para não me encontrar com ela. E assim fez.

Enquanto isso, Kiyohime, preocupada, se perguntava: – Por que Anchin não volta do templo? Ela decidiu ir ao seu encontro. Perguntou para um peregrino que passava por ali se ele não havia visto um monge e fez a descrição de seu tipo físico. – Sim, eu o vi no templo, ele tomou outro caminho para retornar a sua cidade.

– Não posso crer. Ele havia prometido que viria ao meu encontro – disse Kiyohime surpresa e quase chorando.

Ela então correu muito para alcançar Anchin e chegou a vê-lo na travessia do Rio Hidaka.

– Anchin, me espere! Anchin, me espere! – ela gritou com toda a força de seus pulmões.

Ao vê-la, Anchin disse: – Remador, rápido, zarpe o bote.

Kiyohime surpreendeu-se e ficou sem entender porque ele estava fugindo. Ela ficou muito triste, desesperada e cega de raiva, seu amor transformou-se em ódio. – O rato entrou no rio e desapareceu. Somente uma serpente aquática pode acabar com um rato da água.

Kiyohime estava com tanto ódio, que mergulhou no rio para tentar atravessá-lo a nado. Pessoas que estavam na beira do rio ficaram pasmas com o gesto impensado de Kiyohime. Naquele rio, a correnteza era tanta que era impossível atravessá-lo nadando. Testemunhas contaram mais tarde que a moça atravessou o rio nadando e, quando surgiu na outra margem, havia se transformado em uma enorme serpente.

Dizem que o desejo de sua mente moldou seu corpo, transformando-a numa serpente aquática. A jovem transformada pela ira, mergulhou no rio e foi nadando atrás do bote onde estava o monge.

Anchin desembarcou do bote e refugiou-se no Templo Dodoji. – Socorro, socorro, escondam-me por favor! Os monges do templo, mesmo sem saber de que se tratava, abaixaram um enorme e pesado sino, ocultando Anchin em seu interior.

A serpente subiu a escadaria e encontrou o sino. Anchin rezava desesperadamente. Enfurecida, ela se enrolou no grande sino, jorrando chamas de sua enorme boca como um dragão serpente.

O sino começou a esquentar, esquentar, até que o metal avermelhou completamente e deformou-se, derretendo um dos lados, matando Anchin  em seu interior.

Os monges de Dodoji fizeram o enterro do jovem Anchin. Após a tragédia, encomendaram a fundição de um novo sino e determinaram que nenhuma mulher poderia se aproximar novamente de sua plataforma.

O tempo passou, e o novo sino chegou ao Templo Dodoji. Foi preparada uma grande festa para instalação do sino com a participação da comunidade local, porém a cerimônia de entronização estava proibida para mulheres. Entretanto, durante a cerimônia, uma encantadora jovem finamente vestida aproximou-se, e se atirou-se tocando o sino e, para espanto de todos reunidos, desapareceu sem deixar vestígios, como se engolida pelo gongo.

A partir desse acontecimento, o sino ao ser tocado, não soava  como os sinos dos templos, mas gemia como uma voz terrível. E cada vez que ele tocava, desastres aconteciam. Até finalmente, por não mais suportarem, o sino foi levado para baixo, e enterrado.

Ele permaneceu enterrado durante 200 anos, até que Toyotomi Hideyoshi ordenou que fosse cavado e levado para o santuário Myomanji, onde as cinzas de “Sakyamuni Buddha” foram consagradas pelo Imperador Asoka. E lá, dizem que o som da “Sutra de Lótus” incessantemente entoada pelos monges do templo, finalmente trouxe o descanso para as almas atormentadas de Kiyohime e Anchin.

Com o tempo, o som do sino adquiriu uma beleza irresistível, tingida com sabedoria e consciência de dukkha (o sofrimento necessário à mudança).

Ainda hoje, o sino permanece em Myomanji, como um tesouro do templo, junto com as cinzas sagradas de Sakyamuni.

Dizem que, muito tempo depois, Anchin e Kiyohime apareceram abraçados e felizes em sonhos dos monges do Templo Dodoji, eles finalmente encontraram seu destino nos caminhos da Sutra de Lótus.

Fontes:
Wikipedia
Caçadores de Lendas