domingo, 9 de outubro de 2016

A. A. de Assis (Triversos Ibéricos)

1.
Mergulho na história.
Giro em Portugal e Espanha,
a quarenta graus.
2.
Castelos, museus,
seculares catedrais.
Num roteiro Abreu.
3.
Augusta Lisboa.
Licença, meu bom Pessoa,
pra pisar teu chão.
4.
Ah, o velho Tejo.
Dá tremeliques na alma
vê-lo ali pertinho.
5.
Bem-vindos à mesa.
O bom vinho, o bacalhau,
os pastéis de nata.
6.
À noite sonhamos.
Ao som de viras e fados,
frementes bailados.
7.
Milenar cidade.
Chiado, Estrela, Jerônimos,
Praça do Rossio.
8.
O Oceanário, os shoppings.
O futuro está presente
na Lisboa nova.
9.
Torre de Belém.
De onde partiu a canoa
que achou o Brasil.
10.
Missa de domingo
na Igreja de Santo Antônio.
Ele ali nasceu.
11.
Estoril, Cascais.
A Europa em traje de praia
nas férias de agosto.
12.
O túnel do tempo.
Óbidos, Aljubarrota,
ruinas, mosteiros.
13.
De joelhos, rezo.
Ave, Mãezinha querida,
de Fátima, amém.
14.
Solene Coimbra.
Cada parede parece
recitar Camões.
15
Os vinhos do Porto.
Ao depois, descer de barco
as águas do Douro.
16.
Memória romana.
A Sé de Braga a rezar
no rolar do Minho.
17.
A porta da Espanha.
O doce falar galego,
quase igual ao nosso.
18.
Peregrinação.
Santiago de Compostela
é de ir às lágrimas.
19.
Leão e Castela.
O nobre berço real
da história de Espanha.
20.
Moinhos de vento.
Dom Quixote e Sancho Pança,
onde está Cervantes?
21.
Pátio das Escolas.
Em redor a Renascença
mora em Salamanca.
22.
As muralhas de Ávila.
De Teresa de Jesus,
doutorinha santa.
23.
Madri é Madri.
Já na entrada da Gran Via
a emoção dispara.
24.
A Porta do Sol.
O cheirinho da paella
passeia na praça.
25.
Leitão no Botín.
O charme do restaurante
mais velho do mundo.
26.
Templos do consumo.
Em cada quadra uma loja
do El Corte Inglés.
27.
Castanholas, danças.
O canto forte da terra
na noite flamenca.
28.
Prece em Zaragoza
para a Virgem do Pilar.
Madrinha do Reino.
29.
Barcelona bela.
Futebol, trabalho e arte
no Mediterrâneo.
30.
Sagrada Família.
Na obra-prima de Gaudi
o moderno eterno.
31.
No topo do mundo.
A fé sente em Montserrat
o aroma do céu.
32.
Fenícios, romanos,
muçulmanos. Hoje o brilho
da floral Valência.
33.
Os jardins do Alhambra.
Veraneio dos sultões
no alto da colina.
34.
Granada ao luar.
Que pena que os Três Tenores
não estavam lá.
35.
Viva Andaluzia.
Ouvindo o Guadalquivir,
Córdoba e Sevilha.
36.
Ah, Sevilha, a chique.
Velasquez, Murillo, as óperas,
e lá está Colombo.
37.
Évora branquinha.
Cheia de lendas e encantos,
e de queijadinhas.
38.
De novo em Lisboa,
para o retorno ao Brasil.
Grupo nota mil.
39.
Tudo bem... valeu.
Palmas para o guia Santos
e o chofer Antônio.
40.
Tchau, Vô Portugal;
tchau-tchau-tchau, querida Espanha.
Até breve, olé!

______________________________________________
5 a 22 de agosto - 2016

Lendas da Índia (O Filho do Vento)

Quando Brahma, o deus criador, descansava, derramou uma lágrima sobre o chão de ouro do monte Meru e assim nasceu o primeiro macaco. Um dia, ao contemplar seu reflexo no lago e pensando se tratar de um inimigo, o macaco se atirou nas águas, mergulhou até o fundo mas não encontrou ninguém. Ao sair, havia se transformado numa fêmea.

O grande Indra se apaixonou por aquela linda macaca e dessa união nasceu Vali.  Surya, o Sol, também se enamorou dela e desse encontro nasceu Sugriva. Numa ocasião em que a mãe banhava os filhotes no lago, ficou toda respingada da água que os macaquinhos lhe atiravam e, nesse momento, percebeu que havia voltado a ser macho. Levou, então, os filhos até Brahma e este deu a Vali uma cidade da qual ele se tornou rei. Mas nada deu a Sugriva.

O primeiro macaco foi morar no céu e lá de cima viu que Vali parecia ter o domínio de tudo. Então pediu a Vayu, o deus do vento, que gerasse um filho macaco, a fim de que se fosse o fiel amigo de Sugriva.

Um dia, quando soprava no alto de uma montanha, o deus do vento encontrou uma bela macaca sonhadora que passeava distraída. Vayu se uniu a ela e nasceu Hanuman, cujo nome significa “o que tem mandíbulas fortes”.  Porém, a macaca abandonou o filhote na entrada de uma caverna e foi embora. Sozinho e com fome, Hanuman se pós a correr atrás do sol para devorá-lo. Isso provocou a raiva de Rahu, a cabeça sem corpo, engolidora do sol e provocadora dos eclipses.

Rahu reclamou com Indra e ele, montando em seu elefante Airavata, derrubou Hanuman com um raio. Na queda, o macaco quebrou a mandíbula. Vayu tomou o filho ferido nos braços e tal foi sua tristeza que se recolheu no interior de uma caverna, recusando-se a ventar. De repente, desapareceram as dez formas de vento e o mundo parou de respirar.

Os deuses apavorados com o perigo que ameaçava toda a criação, imploraram o perdão de Vayu e ofereceram a Hanuman o dom da imortalidade, a coragem total e o poder da cura.

Fonte:

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A. A. de Assis (Revista Trovia n. 196 - Outubro de 2016)




Já que tens alma de artista,
vive teus sonhos em paz;
mas que não percas de vista
o feio mundo em que estás!
Archimimo Lapagesse

Na conquista de troféus,
um só quero merecer:
chegar às portas dos céus
e a mão de Deus me acolher.
Aurolina de Castro

No portão os namorados
são como barcos no cais:
pelos beijos amarrados,
querem ir e ficam mais.
Cleonice Rainho

A dor é o caro pedágio
que é pago na ponte erguida
de um estágio a outro estágio
na travessia da vida.
Clóvis Maia

Todo o teu corpo estremece
se te falo – que doidice!
Que dirá se eu te dissesse
aquilo que eu não te disse...
Djalma Andrade

Pode o homem ser vassalo,
desde porém que a mulher
não pense nunca em trocá-lo
por outro escravo qualquer...
Jorge de Pádua

Deixa a criança correr
descalça pelos caminhos!
Ela precisa aprender
a pisar sobre os espinhos...
José Maria M. de Araújo
 

Miséria de pão maltrata...
Mas quanta gente, Senhor,
sabeis que morre ou se mata
quando há miséria de amor!
Lilinha Fernandes

Quero falar... retrocedo...
pois tenho um pavor medonho
de que ao contar meu segredo
você destrua o meu sonho!
Luiz Otávio

Senhor, escuta os cicios
dos excluídos, sem teto...
Troca seus ninhos vazios
por ninhos cheios de afeto!
Milton Nunes Loureiro

E’ tanto o amor que me invade
quando em seus braços estou,
que cada instante é saudade
do instante que já passou!
Newton Meyer

A trova é tão pequenina
mas quanta beleza encerra;
feliz de quem tem a sina
de espalhá-la pela Terra!...
Sônia Martelo – PR
 



Em tempos de forte apego
a e-books e outros afins,
os vírus tomam o emprego
das traças e dos cupins.
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Fio dental, na verdade,
com seu cercado pequeno,
delimita a propriedade,
mas não esconde o terreno!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Vida boa, de ricaça,
passa o dia enchendo o bucho:
morar em sebo, pra traça,
é condomínio de luxo.
Eliana Jimenez – SC
 

A pulga e o “pulgo” a brigar...
Foi enorme a confusão!
A pulga deixou o lar
e... foi morar noutro cão!
Renato Alves – RJ

Marchando, na estante, em bando,
numa balbúrdia infernal.
– Eram traças protestando
contra o livro virtual!
Pedro Ornellas – SP

Tanto erotismo continha
o livro, do início ao fim,
que o pai proibiu a tracinha
de comer o folhetim!
Therezinha Brisolla – SP

A esposa numa pirraça
diz ao marido “rueiro”:
– Se “de graça” não tem graça,
me passa a grana primeiro.
Wandira F. Queiroz – PR



 
Pecado é o não cumprimento
da missão que a gente tem;
é ser dono de um talento
sem usá-lo para o bem.
A. A. de Assis – PR

Meu pai, muito te agradeço
por tudo que me ensinaste.
Não existe nenhum preço
pelo tanto que me amaste.
Agostinho Rodrigues – RJ

Este amor que é meu tormento
bate em casa abandonada;
responde, na voz do vento,
somente o eco – mais nada!
Amaryllis Schloenbach – SP

O tempo voa, bem sei,
nos dias da mocidade;
mostra onde errei e acertei,
tem remorso e tem saudade ...
Almir de Azevedo – RJ

Quando, então, do céu descer
um brilho no teu olhar,
é porque no entardecer
meus sonhos vão te buscar.
André Ricardo – PR

Meus bons anos se passaram,
com a leitura aprendi...
Hoje as letras se apagaram
mas o saber não perdi.
Ari Santos de Campos – SC

A praia é sempre pisada,
mas nos dá grande lição,
pois, mesmo sendo humilhada,
massageia o coração.
Arlene Lima – PR

Tudo em ti pede carinho,
pela graça que tu és...
– Amo o teu corpo inteirinho,
beijável da testa aos pés!
Bruno Pedina Torres – RJ
 

Não prolongues a partida...
Vai... não olhes para trás;
dói bem mais a despedida,
quão mais longa ela se faz!
Carolina Ramos – SP


Enganar que sou feliz
é coisa inútil, porque
meu sorriso triste diz
quanto sofro por você!
Conceição de Assis – MG

A trova não envelhece,
assim é toda a poesia.
É perene como a prece,
imortal a cada dia!
Cônego Telles – PR

Doy un beso agradecida
al árbol que está sembrado.
¡Con su vida nos da vida
aun despúés de ser cortado!
Cristina Olivera Chávez – USA

Um coração que se isola
cava a própria solidão
e não há melhor escola
que o convívio com o irmão.
Dáguima Verônica – MG

Nos momentos mais diversos,
sonho minha vida assim:
– Chuva de rimas e versos,
florindo  trovas em mim!
Delcy Canalles – RS
 

Ser feliz é ser poeta;
mais feliz, só trovador:
ambos, sendo um só esteta,
dizem tudo com amor!
Diamantino Ferreira – RJ

Procure espalhar, na vida,
alegria em sua estrada,
que a alegria dividida
é sempre multiplicada!
Domitilla Borges Beltrame – SP

Uma trova, um poema, um fado...
Quanta beleza se encerra
no meigo arrulho encantado
da língua de nossa terra!
Dorothy Jansson Moretti – SP

Lendo um bom livro, pressinto
que há entre mim e o autor
um sentimento indistinto
que é quase um caso de amor.
Élbea Priscila – SP
 

É tão forte a intensidade
das loucuras da paixão,
que no amor a insanidade
é o que eu chamo de razão!
Elisabeth Souza Cruz – RJ
 

Olho a tapera habitada
e em minha fé me concentro:
– Feita de restos de “nada”!...
e quanta paz tem por dentro!!!
Ercy Marques de Faria – SP

Em silêncio, a noite fria
dorme com a luz do luar...
Comigo dorme a magia
do brilho do teu olhar!
Eva Yanni Garcia – RN

Minha casa é meu cantinho,
onde tudo é natural;
no beiral fizeram ninho
as aves do meu quintal.
Evandro Sarmento – RJ

Gerador de paz e calma,
que dispensa cerimônia,
o livro é o jantar da alma
nas noites claras de insônia.
Flavio Stefani – RS

A solidão me angustia
e à noite aumenta o meu drama,
vendo a cadeira vazia
que a tua ausência reclama!
Francisco Garcia – RN

No coração de quem ama
transborda felicidade,
mas, quem perdeu essa chama
vive a chorar de saudade.
Gasparini Filho – SP

Não julgue alguém pela imagem,
pois muitos fazem de tudo
para esconder na “embalagem”
a falta de conteúdo.
Gérson César Souza – PR

Um mundo melhor... queria,
para deixar aos meus netos,
onde imperasse a alegria
numa transfusão de afetos!
Gislaine Canales – RS

 
No aconchego do regaço,
aquele que aqui chegou
foi trabalhando com os braços
que o progresso semeou.
Hulda Ramos – PR

Debruçado na lagoa,
qual Narciso a se mirar,
pescador jamais enjoa
de sonhar e de pescar...
Jaqueline Machado – RS

Ao conforto acorrentado,
quem se prende corta acesso
ao caminho acidentado
que levaria ao sucesso!
JB Xavier – SP

Por medo de te perder,
não errei – pobre aprendiz!
– Não soube me conceder
o risco de ser feliz...
Jeanette De Cnop – PR

Viva intensamente quem
tem um sonho a ser vivido,
que a saudade sempre vem
atrás de um sonho perdido…
João Costa – RJ

Largo sorriso é o recado
nascido do coração:
aquele abraço apertado
no reencontro com o irmão!
Jorge Fregadolli – PR

Mandando a carta da prece
com destino à Divindade,
quanta gente não se esquece
do envelope da humildade!
José Fabiano – MG

Ontem... florestas... encanto...
flores a desabrochar.
Hoje... pinheiros em pranto,
um grito parado no ar!
José Feldman – PR

A idade, a chegar de manso,
respeitando o meu cansaço,
põe cadeiras de balanço
nas tardes por onde eu passo!
José Ouverney – SP

Partiu, deixando o seu traço
no meu caminho dos sós...
A saudade é esse espaço
que existe sempre entre nós.
José Valdez – SP

Enquanto houver um luar
e um sol cheio de esplendor,
há de se ouvir o cantar
da lira de um trovador!
Lisete Johnson – RS
 

Na pouca pressa que tens
de aliviar minha saudade,
enquanto espero e não vens,
transcorre uma eternidade!
Lucília Decarli – PR

Não foi perto, nem distante
o nosso amor ideal;
nasceu da luz de um instante
e se tornou imortal!
Luiz Carlos Abritta – MG

Na estrada das aventuras
vemos quedas sem guarida,
algumas tão prematuras,
outras no fim da corrida.
Luiz Damo – RS

Na renúncia à própria vida
pra gerar os filhos seus,
uma mãe tem, garantida,
outra vida junto a Deus.
Luiz Hélio Friedrich – PR

Espera... se eu demorar,
quando eu voltar, certamente,
o sonho que eu te sonhar
te habitará... novamente.
Luiz Poeta – RJ

Longe vão minhas andanças
e, em meu trêmulo cansaço,
tento fazer das lembranças
bastão... e assim firmo o passo.
Mª Conceição Fagundes – PR


Qual boca sensual, a onda
beija as areias da praia.
Ao final de cada ronda
volta ao seu leito... e desmaia.
Mª Luíza Walendowski – SC

Retorno ao fim da jornada
e encontro alguém na memória,
que foi noite e madrugada,
que foi fracasso e vitória...
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Tenho por certo, em verdade,
bem vivo, embora pungente
que a mais pungente saudade...
é aquela de alguém presente!
Maurício Friedrich – PR
 

Tua amizade aguardei
com muito amor e afeição.
Quando de ti precisei,
fui buscar no coração.
Neiva Fernandes – RJ

Esperar muito da vida,
das pessoas, é ilusão.
É um beco sem saída
que termina em decepção.
Nilsa Alves de Melo – PR

Mira a “boneca” o “pendão”,
que a contempla lá de cima...
– É o milho em fecundação
pra safra que se aproxima!
Olga Agulhon – PR

Verga o galho num lamento
que a noite fria produz
sofre e range com o vento
da tristeza que o conduz.
Renato Frata – PR

Dos instantes devotados
a cada luta vencida,
todos estão retratados
no painel da minha vida.
Roberto Acruche – RJ

O vento, com peraltice,
leva folhas pelo espaço.
Que bom se um dia o sentisse
levando as preces que faço...
Ruth Farah – RJ
 

Quando a inspiração vagueia
à procura de um motivo,
o meu passado passeia
em cada verso que eu vivo.
Selma Patti Spinelli – SP

Seu trabalho, agricultor,
classificam-no “primário”,
mas nada tem mais valor
nem é tão prioritário.
Talita Batista – RJ

A vida não vale nada
se a gente nada produz.
Tanto a pena, quanto a enxada,
abrem veredas de luz!
Thalma Tavares – SP

Os poetas, em repentes,
se unem num elo de luz...
Suas trovas são correntes
de amor, que a todos seduz.
Vanda Alves – PR

É tão vazia a paisagem,
e nem um vulto se vê...
Mas, sem ver qualquer imagem,
consigo enxergar você!
Vanda Fagundes Queiroz – PR
 

Vence valores, de fato,
quando em meio à discussão,
se revolta de imediato,
mas, na ofensa... dá o perdão!!!
Vânia Ennes – PR
 

Somos velhos caminhantes...
a doçura nos invade;
namoricos vão distantes,
fica o flerte da saudade!
Wagner Lopes – MG

Sem outra opção que a rotina
de esperar-te sempre em vão,
minhas noites de neblina
só gotejam solidão...
Wanda Mourthé – MG

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Lenda Africana (A Mensagem Perdida)

A formiga teve desde tempos imemoriais muitos inimigos, e porque ela é muito pequena e destrutiva, tem havido um grande número de mortes entre elas. Não só a maioria das aves são suas inimigas, mas o tamanduá se alimenta quase que exclusivamente só de formigas, e a centopeia ficava tocaiando elas em todas as oportunidades e lugares que tivessem chance.

Então entre algumas delas surgiu a ideia de fazer um conselho e juntos eles imaginarem uma solução para ver se eles podiam ser mudar para um lugar seguro, quando atacados por pássaros e animais ladrões.

Mas na conferência as opiniões foram as mais discordantes possíveis, e eles não chegavam a nenhuma decisão.

As formigas não se entendiam e cada uma resolveu fazer sua casa onde bem entendesse.

Lá estavam a formiga vermelha, a formiga do arroz, a formiga preta, a formiga alvéola, a formiga cinza, a formiga brilhante, e outras variedades. A discussão foi uma verdadeira babel de diversidades, que continuou por um longo tempo e não deu em nada.

Uma parte desejava que todos fossem morar em um pequeno buraco na terra, e viver lá, outra parte queria ter uma casa grande e forte construída no chão, onde ninguém pudesse entrar, além de formigas; ainda outros queriam morar nas árvores , de modo a se livrar do tamanduá, esquecendo completamente que eles seriam a presa das aves; outra parte parecia inclinada a ter asas e voar.

E, como já foi dito, não houve acordo quanto a nada, e cada partido resolveu ir trabalhar de sua própria maneira, e sob sua própria responsabilidade.

As facções se dividiram em pequenas partes separadas e se espalharam em todo lugar do mundo, e cada um tinha a sua própria tarefa, e cada uma fez o seu trabalho de forma regular e bem. E todos trabalharam juntos no mesmo caminho. Dentre eles, escolheram um rei, e devemos dizer que alguns dos grupos fez e eles dividiram o trabalho para que tudo corresse tão bem como podia.

Mas cada grupo fez de sua própria maneira, e nenhum deles pensou em se proteger contra o ataque de pássaros ou tamanduá.

As formigas vermelhas construíram sua casa sobre a terra e viveram sobre ela, mas o tamanduá jogou no chão em um minuto o que lhes custou muitos dias de trabalho precioso. As formigas do arroz viviam debaixo da terra, e, com eles, não houve sorte melhor. Pois quando eles saíram, o tamanduá apareceu, tirando eles do buraco e metendo numa mochila. As formiga alvéola fugiram para as árvores, mas em muitas ocasiões a centopeia estava esperando por eles, ou os pássaros os devoravam. As formigas cinza tinha a intenção de salvar-se de extermínio, alçando voo, mas isso também não lhes valeu de nada, porque o lagarto, a aranha caçadora, e as aves foram muito mais rápidos do que eles.

Quando a formiga rei ouviu que não chegariam a acordo nenhum, ele lhes mandou uma unidade de formigas em segredo, com a mensagem de trabalharem em conjunto. Mas, infelizmente, ele escolheu o besouro como mensageiro, e até hoje ele não chegou às formigas, de modo que eles ainda hoje são a personificação da discórdia e, consequentemente, a presa dos inimigos.

Fonte:
http://www.sacred-texts.com/afr/saft/ Disponível em https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A. A. de Assis (Haicai de Primavera)


Conto Japonês (O nome da gata)

Há muitos e muitos anos, numa pequena cidade no interior do Japão vivia um casal de velhinhos. Eles levavam uma vida feliz e tranquila e amavam a natureza. Certo dia quando os velhinhos visitavam um templo, o monge deu a eles uma gatinha que havia nascido sob o assoalho do pavilhão de orações.

O velhinho e a velhinha receberam a linda gatinha como quem recebe uma graça divina. Eles não tinham filhos e sentiram que podiam criar aquele pequeno animal com todo carinho e dedicação. Enquanto voltavam para casa foram discutindo qual nome dariam para a gatinha.

- Vamos dar o nome de uma pessoa forte e valente para que nossa gatinha seja sadia e corajosa - disse o velhinho.

- Sugiro que seja Musashi-bo Benkei, pois é um forte e valente guerreiro e ao mesmo tempo, um monge dedicado - respondeu a velhinha.

- Seria um nome perfeito se Benkei não fosse nome de homem. Nossa gatinha tem que ter nome de mulher.

- Que tal Tomoe Gozen, nome da mais forte mulher guerreira do Japão. Ela participou de várias batalhas cavalgando pelos campos, vestida de armadura e brandindo sua mortal naguinata (alabarda). Lutou ao lado do marido Minamoto no Yoshinaga, até tomar a capital do Japão e expulsar os poderosos de Heian-kyo (capital do antigo Japão).

- Tomoe Gozen, pode ser um nome interessante, porém é um nome muito comprido. Para chamar nossa gatinha será preciso repetir - Tomoe Gozen, Tomoe Gozen, Tomoe Gozen...ah! é comprido demais.

Assim os velhinhos continuaram pensando em qual nome colocar na gatinha, quando chegam em casa. Um vizinho que os viu chegar foi logo perguntando.

- Oh! Que linda gatinha, qual é o nome dela?

- Pois estávamos pensando exatamente em qual nome dar para ela. Tem alguma sugestão?

- Deixe-me ver...acho que Tora (tigre) combina com as manchas na pele dela.

- Pensando bem é um bom nome, pois o tigre é um animal forte e destemido.

Assim a gatinha passou a ser chamada de Tora, sendo tratada com muito carinho.

No dia seguinte o casal brincava com a gatinha chamando Tora pra cá e Tora pra lá. Nisso a mulher do vizinho que observava do portão perguntou:

- Por que deram o nome de Tora para um bichinho tão delicado?

- A sugestão foi de seu marido, e nós aceitamos porque queremos que nossa gatinha cresça muito forte.

- Ah! Meu marido não sabe nada. O animal mais forte que existe é o ryu (dragão). Se lutarem dentro d’água, o dragão vence o tigre facilmente.

O casal concluiu que a vizinha tinha razão e mudaram o nome da gatinha para Ryu.

Alguns dias depois, passou por ali um andarilho e comentou:

- É a primeira vez que ouço uma gatinha sendo chamada de Ryu (dragão). Por que puseram um nome tão diferente para uma gatinha?

Mais uma vez o velhinho explicou que era um nome sugestivo para a gatinha crescer forte.

- Realmente o dragão é um animal muito forte, porém, todos nós sabemos que em dia de grande tempestade, o dragão sobe nadando na chuva e penetra numa nuvem para chegar ao céu. Portanto, se não fosse a nuvem ele jamais chegaria ao céu. Isso significa que a nuvem é mais forte que o dragão.

O casal pensou, pensou e concluíram que o andarilho tinha razão. Assim mudaram o nome da gatinha para Kumo (nuvem). O andarilho seguiu sua caminhada e chegando ao castelo mais próximo comentou o que tinha acontecido.

Na época havia na corte muitos debates culturais. Os intelectuais discutiam incansavelmente durante anos à fio, qual era a estação do ano mais bonita: a primavera ou o outono. Também faziam debates para saber qual a flor mais bonita: a cerejeira (Sakura) ou a ameixeira (Ume). Houve então, grande interesse em sugerir o nome da gatinha pelos intelectuais do castelo. Um deles foi até o vilarejo e sugeriu ao casal que mudasse o nome da gatinha que agora chamava Kumo (nuvem), para Kaze (vento).

- Por que Kaze?, perguntou o velhinho.

- Ora, pense bem. Um sopro de vento e a nuvem dissipa-se toda. Por isso é melhor dar o nome de Kaze (vento).

O bom velhinho pensou um pouco e concluiu que o cortesão tinha razão. Assim o nome da gatinha foi mudado para Kaze.

Nisso chegou outro intelectual da corte e questionou:

- Ora, Kaze não me parece forte suficiente. Estive observando no último vendaval que o vento destelhou muitas casas, mas não conseguiu derrubar as paredes. Isso significa que Kabe (parede) é mais forte que Kaze (vento).

O argumento pareceu muito convincente ao velhinho e mais uma vez o nome da gatinha foi mudado para Kabe (parede).

- Acho que Kabe será seu nome definitivo, disse o velhinho olhando satisfeito para a gatinha.

Nisso a velhinha fez uma observação:

- Parede não é tão forte assim. Veja ali aquele buraco. Foi o Nezumi (rato) quem fez.

- Então precisamos mudar o nome dela para Nezumi.
- Gato com nome de rato não fica muito bem, e rato tem medo de Neko (gato)...

- Realmente, o gato é mais forte que o rato. Então vamos chama-la de Gatinha. E assim passaram a chamar a gatinha de Gatinha e parece que foi uma medida acertada, pois ninguém mais deu palpite no nome dela.

Fonte:
Gisele Keiko Yamasaki. Contos e Lendas Japonesas.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Delcy Canalles (Anita Garibaldi)

Clique sobre a figura para ampliar

Lenda Aborígene Australiana (Os Sapos Arautos)

Quando Baiame deixou de viver nesta terra e voltou pelo caminho que o levava para Bullima, subindo a escada de pedra espiral até o cume do Oobi Oobi, a Montanha Sagrada, apenas os wirinuns, ou homens sábios, foram autorizados a dirigir-lhe a palavra e apenas através de seu mensageiro, Walla-guroon-bu-um.

Pois Baiame estava agora fundido à rocha de cristal onde ele sentava, em Bullima, e assim também estava Birra nulu, sua esposa. A parte superior dos seus corpos permaneciam como tinham sido na terra, mas as partes inferiores estavam mergulhadas no cristal de rocha.

Somente Walla-guroon-bu-um e Beili Kunnan foram autorizados a aproximar-se deles e transmitir seus comandos para os outros.

Birra-nulu, a primeira esposa, era a criadora das inundações. Quando os riachos estavam secando e os wirinuns queriam uma inundação viesse, estes homens subiam até o topo da Oobi Oobi e aguardavam em um dos círculos de pedra a vinda de Walla-guroon-bu-um. Ouvindo o que eles queriam, ele ia e dizia a Baiame.

Baiame dizia a Birra nulu, que, se ela estivesse disposta a dar sua ajuda, ele iria enviar Kunnan-Beili aos wirinuns, dizendo para avisar lhes: “Depressa diga a tribo Bun-yun  Bun-yun para ficar pronta. A bola de sangue será enviada para rolar em breve. ”

Ouvindo isto, os wirinuns iriam rapidamente descer a montanha e atravessar os woggi, ou planícies, abaixo, até chegaram a Bun-yun Bun-yun, ou Rãs, uma poderosa tribo com braços fortes para arremessar e vozes incansáveis.

Esta tribo ficou esperando, ao comando dos wirinuns, ao longo das margens de cada lado do rio seco, a partir de sua fonte a alguma distância. Eles fizeram grandes fogueiras, e colocaram essas pedras enormes para gerar calor. Quando estas pedras se aqueceram os Bun-yun Bun-yun colocaram algumas nas cascas, diante de cada homem.

Então eles ficavam na expectativa, aguardando a bola de sangue alcançá-los. Logo que via essa bola de vermelho-sangue de tamanho fabuloso rolando na entrada para o rio, cada homem se abaixava, pegava uma pedra quente e, gritando, jogava com toda sua força contra a bola. Em tal quantidade e com toda a força eles jogavam as pedras e quebravam a bola.

De dentro corria um riacho de sangue fluindo rapidamente para o leito do rio. Cada vez mais alto levantava-se o clamor dos Bun-yun Bun-yun, que carregavam pedras com eles, seguindo o fluxo do rio, que passava correndo. Eles corriam aos trancos e barrancos ao longo das margens, lançando pedras e gritando sem cessar.

Aos poucos, o fluxo de sangue, purificado pelas pedras quentes, se transformava em enchente, e os gritos dos Bun-yun Bun-yun alertava as tribos da enchente, para que eles pudessem mover os seus acampamentos para terrenos elevados antes que a água chegasse até eles.

Enquanto a enchente corria, os Bun-yun Bun-yun não paravam de gritar em em voz alta. Até hoje, quando uma inundação está por vir, são ouvidas as suas vozes, e ouvindo-lhes os Daens, ou Aborígenes, dizem, “O Bun-yun Bun-yun está chorando. A inundação deve estar chegando.” Então, “o Bun-yun Bun-yun está chorando. Águas de inundação estão aqui.”

E se a água da inundação vem grossa, vermelha e com  lama, os Daens dizem que os Bun-yun Bun-yun ou rãs-de-inundações deixaram as águas passarem sem purificá-las.

Fonte:
A.W. Reed, Aboriginal Fables and Legendary Tale Disponível em https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/page/2/

Sinclair Pozza Casemiro (Mundo Guarani e Literatura) Parte III, final

3. Um pouco do histórico sobre a autoria e a produção discursiva indígena

Pela incapacidade de se compreender que os índios não são incapazes, mas culturalmente diferenciados, em 1916 foi promulgada uma lei chamada Código Civil (Lei 3.071/16), afirmando que "todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil", considerando, no entanto,que algumas pessoas não tinham a mesma capacidade de exercer seus direitos. O art. 5º dessa lei afirmava são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir sua vontade. E também que eram relativamente incapazes para certos atos os maiores de 16 anos e menores de 21, os pródigos (pessoas que assumem comportamentos irresponsáveis) e os silvícolas, ou seja, os índios. E, como considerava que os índios não eram totalmente capazes de exercerem seus direitos, esta lei determinava que eles fossem tutelados até que estivessem integrados à civilização do país. Essa tutelagem implicou a negação de sua autoria e do próprio uso de seus conhecimentos tradicionais, sendo suas criações apresentadas sob a tutela de pesquisadores e/ou responsáveis legais como representantes e tradutores do seu dizer e do seu saber.

Na época em que se escreveu esse Código Civil, a sociedade não indígena acreditava que os índios seriam extintos e que, portanto, não precisariam de direitos. Índio significava passado, mesmo no presente remetiam à ideia de não pertencimento a essa sociedade. Imaginava-se que os índios eram seres primitivos que iriam se educar, adquirir a cultura dos brancos até se integrarem de vez à sociedade brasileira, deixando de ser índios.

A Constituição de 1988, no entanto, em seus Artigos 231 e 232, ao reconhecer os direitos e a autonomia das culturas e territorialidades indígenas, estabeleceu que apolítica de transformar os índios em brancos não poderia continuar, pois uma outra concepção a fundamentou: eles viveriam para sempre índios, independente do acesso que tivessem ao mundo da sociedade envolvente. E assim deveriam ser respeitados e considerados pela sociedade brasileira como tais, em sua língua, crença, seus usos, costumes, tradições, suas formas de vida e de organização.

Hoje os esforços são no sentido de que o governo dê proteção e apoio de que os índios precisam, para que possam tomar suas próprias decisões, ou seja, não sendo mais tutelados, nem considerados relativamente incapazes.

3.1 A propriedade intelectual indígena

Salvaguardando a autoria indígena e os direitos e proteção sobre os seus conhecimentos tradicionais, o Projeto de Lei 2.057/91(em decorrência da Constituição de 1988) e a proposta alternativa a ele, apresentada pelo Governo, não só garantem direito autoral ao indígena, a proteção ao conhecimento tradicional, a representação segundo seus usos e costumes, o direito de participação em todas as instâncias oficiais de discussão da questão indígena, a proteção aos recursos naturais como seu patrimônio legítimo, como consideram crime o uso indevido desses conhecimentos tradicionais.

Assim, a propriedade intelectual indígena se vê assegurada. A importância disso se dá especialmente pela característica singular de suas narrativas. Como vimos, a palavra tem, para o indígena, um valor de Verdade, assim,produções discursivas indígenas se destacam pela sua singularidade.

Há, em todas elas, um encantamento e uma valorização da palavra, do discurso, que não permite sua leitura despreparada. É preciso compreender esse sentido que a palavra, o discurso, empresta a essas culturas, interpretando-as com a solenidade que exigem, diante dos seus signos carregados dessa Verdade, ou seja, um novo dizer se autoriza no país, um dizer outro, marcado por radicais diferenças culturais. Falar por si representa a legitimidade dessa diferença e uma nova realidade jurídico-social para os indígenas e também para os não indígenas.

Mas, autores indígenas como Jekupé, reconhecido e premiado na Literatura Brasileira, vem desvelando, como vimos acima, a realidade política que está implícita no apagamento das vozes indígenas em seus discursos e o novo momento histórico para a autoria e uso do seu saber tradicional. E há hoje, além de Jekupé, vários escritores indígenas, nas mesmas condições autorais e levando o conhecimento de sua cultura a outras culturas indígenas e a toda a sociedade não indígena pelas suas obras. Há um centro de escritores indígenas, o Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas-NEARIM, do qualJekupé é Presidente.

Daniel Munduruku, diversas vezes premiado na Literatura Brasileira e mesmo internacional, da etnia Munduruku, das terras indígenas de Cayabi, Munduruku, Manduruku II, Praia do Índio, Praia do Mangue e Sai-Cinza, no sudoeste do estado do Pará; as terras indígenas Coaté-Laranjal e São José do Cipó, no leste do estado do Amazonas e a Reserva Indígena Apiaká-Kayabi no oeste de Mato Grosso percorre o mundo e leva sua mensagem de autonomia e amor à cultura indígena, à Palavra que lhe é cara:
As sociedades indígenas são movidas pela poesia dos mitos – palavras que encantam e dão direção, provocam e evocam os acontecimentos dos primeiros tempos, quando, somente ela, a Palavra, existia.

E foi por causa dela, de sua ação sobre o que não existia, que tudo passou a existir. Foi como um encantamento, um vento que passa ou o sopro sonoro de uma flauta, e... pronto...tudo se fez.

Assim é a palavra, que flui em todas as direções e sentidos e que influenciou e influencia todas as sociedades ao longo de sua história. Ela cria, enfeitiça, embriaga, gera monstros, faz heróis, remete-nos para nossa própria memória ancestral e dá sentido ao nosso estar no mundo. Mesmo vivendo na época em que a tecnologia impera e coloca a Palavra – aqui como sinônimo de Verdade – em segundo plano, percebemos que ainda há esperança, pois ela vivifica a poesia dos mistérios que nos emocionam e fazem buscar, dentro de nós mesmos, a certeza de que vale a pena colorir o mundo.

Foi com esta paixão e certeza que este livro foi escrito. Ele traz a magia dos mitos narrados pelos anciãos de cada povo aqui apresentado. E mesmo que não queira abraçar todo o universo da sabedoria indígena, ele traz uma grande amostra daquilo que tem guiado nossas sociedades até nossos dias. Mas, não sem desafios o novo momento histórico é vivenciado pelos indígenas. Sobre a dificuldade que tiveram e têm em se adequar à realidade bilíngue pela força da colonização, bem como a sua superação, sem perder a indianidade, a narrativa do Cacique Miguel KaraiTataxiBenite é esclarecedora (2009,pp 44,45). Falando dela e falando da língua aprendida na colonização, fala de si, fala do ser Guarani em nossa sociedade atual:
Vivi muitos anos com a língua entortada,
Porque fui obrigado a falar palavras estranhas de uma outra língua.
Por isso, durante muito tempo fiquei emudecido.
Tentaram tirar de mim aquilo que havia guardado como um tesouro:
A palavra, que é o arco da memória.
Diziam que me faltava a inteligência,
Porque antes de gaguejar as palavras certas
Eu tinha de pensar, duas vezes, numa língua estranha.
O tempo passou. Agora, tenho duas línguas.
Uma língua nasceu comigo, no colo de minha mãe.
É a língua que expressa a alma guarani.
É a língua do tekoha, da opy.
O nome que tenho, foi ela quem me deu na cerimônia do Nhemongarai.
Com ela nomeio as plantas, as flores, os pássaros, os peixes,
os rios e as pedras, o sol e a chuva, a roça e a caça.
Tudo isso com ela eu faço: rio e choro, rezo e canto.
Com ela, eu sou o que falo: guarani.
A outra língua que tenho é a que
Sobrou de uma guerra de muitas batalhas.
Ela trouxe a espada e a cruz, o livro e as imagens, o sermão, o
catecismo, a doutrina, as leis.
Ela me ensinou a aprisionar o som,
Como quem pega a fumaça com a mão e a guarda no ajaka.
Com ela, aprendi a riscar as letras. E a desenhar as palavras
no papel.
Quando saio da aldeia, é ela quem me ajuda.
Com ela, procuro escola e biblioteca,
Mercado e igreja, posto de saúde e hospital, cartório e tribunal.
É com ela que me comunico com índios de outras línguas.
Com ela navego na internet,
Descubro o pensamento do juruá,
Caminho pelas ruas, leio as cidades,
Entro nos ônibus,
Embarco e desembarco na rodoviária,
Vendo o artesanato e converso com as pessoas.
Agora já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua,
Com um pouco de medo, como se
Fosse um caso de bigamia.
Uma língua sabe coisas que a outra desconhece,
Acham graça uma da outra fazem
Gozação e às vezes se zangam.
Afora isso, elas se dão bem que
Sonho nas duas ao mesmo tempo.
Às vezes, a palavra de uma soa
Engraçado na outra.
Às vezes, quando me perguntam
Numa, respondo na outra.
Às vezes fico com uma delas tão
Engasgada que se permaneço calado
Tenho a impressão de que vou explodir.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra, mas as
palavras se escondem de mim, fogem para bem
Longe e gasto muito tempo correndo atrás delas.
Ambas pensam, mas há partes do
Coração em que uma delas não
Consegue entrar e quando se
Aproxima da porta, o sangue se põe a jorrar com as palavras.
Cada uma foi professora da outra:
O guarani nasceu primeiro e eu me
Habituei a dormir embalado por sua
Suave sonoridade musical.
O guarani não tinha letra, é verdade, mas era o dono da palavra falada.
Ensinou ao português os segredos da Oralidade, guiando-lhe a voz.
Já o português, nascido na ponta dos meus dedos, ensinou o guarani a
Escrever, porque este nunca havia
Frequentado a escola.
Tenho duas línguas comigo. Duas
Línguas que me fizeram e já não vivo sem elas, nem sou eu,
sem as duas.
A sua narrativa, toda ela poética, é um saber indígena contemporâneo. Se pretendêssemos situá-la na perspectiva não indígena, poderíamos afirmar que ela se realiza num misto de conto, mito, poesia e narrativa histórica. Conto, pois a sequência de fatos faz um enredo e traz um conflito, perfazendo-se de todos os elementos que compõem a narrativa, ou seja, tempo, espaço, trama. Possui apenas um personagem, escolhe o foco narrativo de 1ª pessoa e obedece a um dos fatores de total relevância para a tipologia conto, que é o enredo apresentado de forma condensada e sintética, centrado em um único conflito, o que é chamado de unidade de impressão.

Também se realiza no mito, pois fala da origem, dos símbolos de culturas diversas entre si significando o modo de vida atual, traduzindo uma realidade antropológica fundamental,na medida que não só representa uma explicação sobre as origens do mundo em que o autor está vivendo, como traduzindo, por símbolos ricos de significado, o modo como sua civilização entende e interpreta a civilização sua e a do outro.

E se realiza na poesia, pois se estrutura em versos e manifesta o belo pela forma, pela escolha de palavras,pelos jogos de linguagem como, entre tantos, catacreses (língua entortada), metáforas (a palavra que é o arco da memória), comparações (trocando de língua com um pouco de medo como se fosse um caso de bigamia), antropomorfizações ([as línguas] acham graça uma da outra, fazem gozação, às vezes se zangam) , pelos muitos sentidos figurados que provoca no seu descrever de fatos reais, históricos.

Nesse belo, traz o percurso da vida do Guarani, no percurso da sua linguagem sendo atravessada e finalmente parceira da língua do não indígena, colonizador. Traz a saga e o percurso da constituição da subjetividade do indígena Guarani, em que a cultura do outro se impõe e se interpõe pela língua estrangeira, que já então se faz necessária – já não vive sem elas (a sua e a do outro). Nesse sentido, é uma narrativa histórica.

O conjunto poético dessas tipologias emaranhadas no texto do Cacique Guarani Miguel Karai Tataxi Benite , pela polissemia que engendra e pelo amálgama que o constitui, produz um discurso próprio, singular. Diferente. Esse conjunto em que se notam marcas do conto, do mito, da poesia,revela algo único, indivisível, algo que se repete nas vozes indígenas em geral. É o seu modo de dizer, totalizante, como uma unidade de sentido cosmogônica como é o modo de ser indígena em qual tempo e lugar. Um modo de dizer singular que se pode compreender como saber indígena.

Considerações finais

O mundo Guarani e a Literatura se confundem, ao tempo em que vão ainda além, pela singularidade do discurso Guarani, poético, totalizante, cosmogônico e as tipologias que normalmente traduzem esse seu saber indígena não dão conta de traduzir os sentidos que os abarcam pela sua magia e subjetividade. Nhë’e – palavra-alma, linguagem Guarani e nhë’eporä, belas palavras, Ayvuporä, a bela linguagem, as palavras enfeitadas, encantadas produzem sentidos musicais e cheios de mistérios, únicos.

Escritores Guarani hoje divulgam seu saber, sua narrativa encantada, pela Literatura Nativa, como propõe o escritor Jekupé, diferenciando-a da Literatura Indígena. A primeira, de autoria dos próprios indígenas, a segunda, de escritores não indígenas. Essa divisão marca um novo tempo, o tempo da autoria, do reconhecimento dos seus conhecimentos tradicionais e da propriedade intelectual indígena, o que se materializa pelo Projeto de Lei 2.057/91. Independente desse projeto, a vida Guarani, sempre livre, porque sua palavra é alma, é eterna e intocável, indisciplinada e rebelde nos seus encantos, se faz ecoar pelas páginas da Literatura nacional, enriquecendo e tornando mais humana a convivência da nossa sociedade.

O mundo Guarani e a Literatura, assim como os mundos de todas as etnias indígenas do país estão por todos os cantos, distribuindo sua poesia na territorialidade que é tão sua. A sua poesia, pela Palavra –Verdade, como nos diz Munduruku, encantada, acostumada a povoar esse Brasil de seus mistérios, de seus encantos e personagens tão únicos, mesmo no silêncio a que foi submetida por longos séculos. E aquela Palavra, finalmente, poderá ser vivida de verdade, aquela que ainda não se ouviu, mas que a cultura indígena impõe na sua grandeza, singeleza e docilidade: alteridade.

REFERÊNCIAS

BENITE, Cacique Miguel KaraiTataxi. Duas línguas. In:Maino’ i rapé. RJ, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2009.
CASEMIRO, 2013. O mito do Tatu. Disponível em: www.caminhodepeabiru.com.br.Captado em 20.9.2013.
CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal – o profetismo tupi-guarani. São Paulo, Editora Brasiliense, 1978.
CUNHA, Antonio G. da.Dicionário Etimológico Nova Fronteira. RJ, Nova Fronteira, 1982.
DUARTE, Miguel B. Liceu Aristotélico. In:http://liceuaristotelico.blogspot.com.br/2010/02/contos-proibidos-iii.html. Captado em 20.9.2013.15h37.
ELIADE, Mircea. O mito e a Filosofia, 2010. In: http://ricardorose.blogspot.com.br/2010/08/o-mito-e-filosofia.html. Capatado em 20.9.2013. 17h50.
FRAGOSO, Vera M. Os mitos e a psicanálise: o debate. In: http://www.searchgol.com/?q=psicanalista+fragoso&babsrc=SP_ss&mntrId=F8 9100234D48917B&affID=121225&tl=gkn539325&tsp=5016. Captado em 20.9.2013.17h28
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio. RJ, Editora Nova Fronteira, 1974.
MONTOYA, Antonio R. de. Tesoro de lalengoa guarani. In: CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal – o profetismo tupi-guarani. São Paulo, Editora brasiliense, 1978.
MUNDURUKU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. SP, Global Editora, 2005.
STRAUSS, Levi. O mito e a Filosofia, 2010. In: http://ricardorose.blogspot.com.br/2010/08/o-mito-e-filosofia.html. Captado em 29.9.2013.18h04
JEKUPE, Olívio. In: Literatura Indígena x Literatura Nativa (2010) http://www.youtube.com/watch?v=xGXcQ_Bb_7g.captadoem30.9.20137h31
SGAMBATTI, Milton Junior. Literatura Indígena. In: http://sgambatti.wordpress.com/2009/04/23/literatura-indigena. Captado em 20.9.2013.
InfoEscola. Mito ou Lenda? Disponível em: http://www.infoescola.com/redacao/mito-ou-lenda/02. Captado em 02.9.2013.12h30.

Fonte:
Anais do I Encontro de diálogos literários: um olhar para além das fronteiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2013. 453 p.
Imagem = www.vermelho.org.br

_____________________________
    Sinclair Pozza Casemiro é graduada em Letras Anglo Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá [UEM] (1976), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (1995), doutorado em Letras, Área de Filologia e Lingüistica Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (2001) e pós-doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo [USP].
         Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM – NECAPECAM, com sede em Campo Mourão, pesquisadora pelo CNPq da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão – FECILCAM. Foi diretora e vice-diretora da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, FECILCAM.