sábado, 23 de julho de 2016

Júlia da Costa (Poemas Escolhidos)

ACORDES POÉTICOS 

Não tenho segredos, é pura minha alma,
Qual cândida aurora rasgando o seu véu!
Velando ou dormindo, chorando ou sorrindo,
Só amo – meus campos – meu solo – meu céu!

Cresci sobre um ermo tristonho e sombrio,
Soltei nas campinas meu primo cantar,
Saudei nas montanhas o sol que nascia,
Brinquei entre moitas ao claro luar!

Sou jovem, sou meiga, sorri-me o futuro
Nas fímbrias douradas de auroras de paz,
A flor das campinas só ama o infinito
Do céu, das venturas, não quer nada mais!

As flores dos prados não causam-me inveja,
Que hei flores mimosas no meu coração!
Lauréis e grandezas, eu não, não aspiro,
Não quero ter gozo tão falso, tão vão!

Não tenho segredos, é pura minha alma,
Qual cândida aurora rasgando o seu véu!
Velando ou dormindo, chorando ou sorrindo,
Só amo – meus campos – meu solo – meu céu!

DESESPERANÇA

Que céu formoso, que natura esta!
Tantos fulgores vem turbar minha alma!
Meu Deus! se a vida é para uns tão calma
Por que p' rã mim ela é tão negra e mesta!

Em magos risos despertando a aurora
A flor do prado seu aroma exala!
Eu também vejo-a despertar... que fala
Soltarei d' alma que o passado chora?

Ávida é negra! Nenhum astro ameno
Derrama luz que lhe afugente a treva!
Quero sorrir-me! mas a dor me leva
Do peito aos lábios um saudoso treno!

Vejo floridos para o seu noivado
Os laranjais, e a natureza inteira...
É tudo festa! na mimosa esteira
Da veiga amena, no florente prado...

Mas a esperança que dourou minha alma

Da minha vida na estação da infância
Agora à tarde, já não tem fragrância
Que possa dar-me ao desassossego calma!

E a natureza tem eterna festa!
Da f´licidade nela vê-se a palma!
Meu Deus! se a vida é para uns tão calma
Por que pra mim ela é tão negra e mesta?!

Dos verdes lustros na dourada aurora
Por entre rosas nos sorri a vida!
Mas de meu sonho é a ilusão perdida!
E geme o peito, enquanto a alma chora!

E a lira ali no laranjal cheiroso
Pendida a um galho se acalenta em prantos!
Ave chorosa dos passados cantos
Nem ouve o eco no vergel formoso!

E a rosa branca do gentil valado
Se às vezes diz-lhe um amoroso voto,
Ela suspira, e no futuro ignoto
Só vê a imagem do cruel passado!
  
SABIÁ

Ave sonora, que na veiga extensa
Trinas endechas de sentido amor,
Que de vertigens não me entornas n' alma
Asilo onde se abrigou a dor.

Teu canto é doce, como é doce a vida
Serena e bela no sorrir das flores;
Mas não modules tão sentido canto
Que o prado ameno nos promete amores.

Amo teu canto, como a virgem ama
O áureo sonho d' um porvir gentil;
Sinto minha alma taciturna e triste
Acompanhar-te no trinar febril.

Tremem as fibras de meu seio virgem,
Quando teu hino n' amplidão se espraia;
E sobre a fronte pensativa e triste
Uma saudade languemente paira.

Ouvindo esse hino me falece o alento...
Não sei que sinto que me enleia... e choro!
Fujo dos campos... os ouvidos cerro
Mas ouço sempre teu cantar sonoro.

Ave divina, que na veiga extensa
Trinas endechas de sentido amor,
Que de vertigens não me entornas na alma,
Asilo onde se abrigou a dor.

QUEIXAS

Outrora, outrora eu amava a vida
Meiga, florida na estação das flores!
Amava o mundo e trajava as galas
Dos matutinos, virginais amores.

Que sol, que vida, que alvoradas belas
Por entre murtas eu sonhava então,
Quando ao perfume do rosal florido
Da lua eu via o divinal clarão!

Hoje debalde no rumor das festas
Procuro crenças que só tive um dia!
Minha alma chora e se retrai sozinha,
O pó das lousas a fitar sombria!

Embalde, embalde, o bafejo amado
Da morna brisa minhas faces beija!
Meu peito é frio, como é fria a nuvem
Que em noites claras pelo céu adeja!

Embalde, embalde, no ruído insano
Das doidas festas eu procuro a vida!
Meu corpo verga... Meu alento foge...
Sou como a rosa do tufão batida.

 MINHA TERRA

Minha infância, meu sonho dourado,
Astro lindo que além se escondeu,
Por que as asas brandiste n'um voo
E sorrindo fugiste? Era o céu?...

A saudade minha alma devora...
Que contigo fugiu-me a esperança!
E com ela um arcanjo mimoso,
Minha irmã, doce, meiga criança...

Eu fui logo, (que fado cruento!)
De meu lar, tão criança banida!
Ai que dores! que mágoas acerbas
Desde então me atormentam a vida.

Eu chorei por meu berço mimoso,
Como o pobre proscrito por pão!
E sequer não ouvi neste mundo
Nem um brado de doce afeição.

E hoje ainda da pátria me lembro
Com dorida saudade e pesar;
Quando a noite desdobra seu manto,
E é mais brando, mais lindo o luar.

E me lembro... Se as auras osculam
As ondinas cerúleas do mar,
Eu nas asas das auras desejo
A meu solo querido voar. -

E as fímbrias do lindo horizonte
Do meu Norte, quem dera eu voar!
Para ver os anjinhos diletos
De meu puro e saudoso folgar!...

Para ver minha linda casinha,
Que, pequena deixei a chorar,
Testemunha dos brincos da infância
Que jamais haverei de gozar.

Para ver minhas lindas patrícias,
Visões puras d' um sonho dourado,
Que somem gentis entre as nuvens
De meu vago e tristonho passado...

Mas é tudo pra mim impossível!
Tudo é sonho! quimera!! ilusão!!!
Só real a saudade que sinto
Nesta negra e cruel solidão.
  
A NOITE

O luar manso e triste além prateia
          Do céu a imensidão;
E do mar os arcanjos luminosos,
De volúpia estremecem jubilosos,
          À voz da criação!

Correm mansas as brisas perfumadas,
Cantando seus amores;
E do cimo azulado da colina,
Surge triste uma fada peregrina
          Toucada de esplendores!

Das neblinas não traja as brancas vestes,
          É triste o seu sorrir!
Mas no manto que é negro e roçagante
Traz mil gotas de luz de um mundo errante
          Que fala do porvir!

É ela, meu Deus! a doce amiga
          Que eu vejo à beira-mar!
Quando ao longe as estrelas maviosas,
Mil centelhas desferem luminosas,
          Eu vejo-a despontar!

Desce, ó noite gentil! ó casta filha
          Da mórbida saudade!
Vem beijar-me em silêncio... o vento geme,
          Suspira a imensidade!

Já não cantam as aves... nem os ecos
          Modulam mais sequer!
Mas minha alma inda beija as mortas folhas
                              Que alastram o vergel!

Vem, ó anjo do orvalho! doce amiga
          De plácida harmonia,
Que me inspiram ainda longes cantos
          Nas harpas da poesia!

 O POETA

O poeta é a flor que desabrocha túmida
Ao sol da vida que dá luz ao val
É o orvalho doce de gentil aurora
Em tímido rosal!
É o círio ardente de uma crença santa
Que o mundo aponta ao descair do dia
É uma alma crente que se une aos anjos
Em mágica harmonia
O poeta é a luz que rutila vívida
Nos verdes campos da feliz mansão!
É um sorriso que desmaia trêmulo
À voz do coração!
O poeta é o gênio que dá vida à terra,
Dá voz à brisa, dá perfume ao mar!
É o cisne lindo que desprende as asas
Em trêmulo ansiar!...

AO ANJO DA MINHA GUARDA

Por que te vejo eu dormente
Como a flor à beira-mar?
Por que não falas, meu anjo,
Que mal te fez meu cantar?

Que mal te fez a andorinha,
Que esvoaça de ti perto?
Que mal te fez a minha alma
Prá viver neste deserto?

Eu quero a vida, essa vida,
Que sonhei perto da tua,
Entre sorrisos e flores
Ao clarão da branca lua.

O mundo me causa tédio,
Não posso viver, ai não!
Se tu me esperas no céu,
Ouve, ó anjo, esta canção:

Ouve a voz do peito meu,
Que te leva a viração
E de lá desfere um hino
Que ecoe na imensidão.

Por que não falas? que importa
Que o mundo, o mundo te escute?
Se teu angélico canto
Só em minha alma repercute?

Eu quero a vida, essa vida
Que sonhei perto da tua,
Entre sorrisos e flores
Ao clarão da branca lua.

Diz a nuvem do arrebol
Que fulge outra vida lá,
Que o sol, que brilha é prenúncio
De gozos que cá não há.

Quem sabe? Minha alma diz,
Que tu me esperas no céu!
Diz-me do mar a gaivota,
Que é só meu o sonho teu.

Em minhas noites de febre,
Sempre tu a me acenar.
– Não és o anjo das tumbas
Que eu bem sinto o teu olhar...

Não és visão, que eu conheço
Essa face branca e fria,
Esses cabelos doirados
Esse rir, essa harmonia.

És o meu anjo querido
Por quem tanto solucei
E que, perdido uma vez,
Nunca mais o encontrei.

Eu quero a vida, essa vida,
Que sonhei perto da tua,
Entre sorrisos e flores
Ao clarão da branca lua.

Se a rosa branca que dei-te,
Inda conserva o frescor.
Por que não cantas a rosa
Da doce lua ao palor?

Se a pátria deixada um dia
Inda guarda o berço teu,
Por que da pátria distante
Já não me falas do céu?

Deixaste a pátria sem pena
Sem pena dos prantos meus!
E foste triste, sozinho
Pousar teu berço nos céus.

A noite desdobra o manto
Pia a coruja nos ares...
Mas a gaivota inocente
Ainda paira nos mares...

Oh! dize a ela que vives
Distante dos irmãos teus,
Mas que aguardas a minh’alma
Da noite nos puros véus...

O vento cicia triste
Nas folhas do limoeiro!
Oh! a ele pede que seja
De teus hinos mensageiro!

Por que não falas? Que importa
Que o mundo, o mundo te escute?
Se teu angélico canto
Só em minha alma repercute?

Júlia da Costa (1844 - 1911)

De todos os filhos ilustres de Paranaguá, Júlia da Costa assume entre as mulheres o posto principal. Ela é considerada a primeira poetisa paranaense. A história de Julia da Costa sempre ganhou destaque em livros e jornais, e até mesmo sendo motivo de debates entre literatos e historiadores.
Isso porque Júlia da Costa foi uma mulher diferente para o seu tempo e viveu uma história triste de um amor que jamais aconteceu. Se não bastasse isso, a poetisa ainda teve que se casar contra sua vontade e deixar a cidade de Paranaguá que ela tanto amava. Para completar a sua triste história de vida, nem seu último desejo ela teve realizado, que era ser sepultada em sua terra natal: Paranaguá.    
Júlia Maria da Costa nasceu no dia 1.° de julho de 1844. Filha de Alexandre José da Costa e Maria Machado da Costa casou-se com o comendador Costa Pereira, chefe do Partido Conservador. Viveu toda a vida em São Francisco do Sul/SC.
Foi uma figura controvertida, forte, decidida e à frente de seu tempo. Com o auxílio do padre e escritor Joaquim Gomes de Oliveira Paiva, de Desterro, publicou dois livros: Flores dispersas – 1.ª série, e Flores dispersas – 2.ª série. Sob os pseudônimos de Sonhadora, Americana e J.C. (entre outros), escreveu, além de poesia, muitas crônicas-folhetins, que hoje chamaríamos de crônicas sociais, analisando a moda e relatando festas.
A poesia de Júlia — publicada com o título de Flores Dispersas em 1867 e 1868 — foi escrita antes de seu casamento, em 1871. Júlia tinha cerca de vinte e poucos anos, e seu pessimismo, seu tormento metafísico, suas angústias românticas, já estão presentes nessas obras.
Júlia da Costa casou, em 1871, por imposição familiar, com um homem rico e trinta anos mais velho que ela, mas amou o poeta Benjamin Carvoliva, cinco anos mais novo. Correspondia-se com ele quase que diariamente durante o namoro e, quando casada, em segredo. Em uma das cartas, que eram colocadas em esconderijos diversos, tais como o oco de uma velha árvore, Júlia sugere que fujam os dois, mas quem foge é Carvolina perante a ousadia da poetisa.
Desiludida, Júlia passa a escrever, febrilmente, poemas cada vez mais tristes e melancólicos, começa a frequentar mais e mais serões e festas, pintar os cabelos de negro (em uma época em que somente meretrizes e artistas o faziam), pintar o rosto e usar muitas joias, participar de campanhas políticas e publicar em jornais e revistas, tornando-se uma lenda viva em sua pequena cidade.

SOLIDÃO E LOUCURA

A solidão se tornou cada vez maior depois da morte do Comendador, que a habituara a receber catarinenses ilustres em banquetes e saraus (num dos quais esteve presente o Visconde de Taunay). Viúva, cansada das festas, fecha-se em casa com mania de perseguição. Durante o tempo que permanece enclausurada, planeja escrever um romance e, para tanto, confecciona painéis coloridos com cenas campesinas, interiores de lar e paisagens inspiradoras que espalha pelas paredes.
Nessa velhice solitária, Júlia da Costa enlouquece e permanece fechada no casarão por oito anos, dele só saindo para o cemitério em 2 de julho de 1911. Contrariando sua vontade, Júlia da Costa foi sepultada em Santa Catarina, e não em Paranaguá como desejava.
Em outubro de 1924, finalmente seu desejo foi atendido e seus restos mortais foram transladados de Santa Catarina até Paranaguá, sendo enterrados na Praça Fernando Amaro, sob um obelisco de pedra. Após 85 anos, em 2009, o monumento sofreu a ação corrosiva do tempo e necessitou de reparos.Com isso vieram à tona os restos mortais da poetisa, que dali foram transferido para o Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, sendo sepultado em jazigo próprio, finalmente, em sua última morada.

UMA HISTÓRIA DE AMOR

Há na vida de Júlia um fio condutor: uma história de amor ao gosto romântico. Ela construiu e viveu seu próprio mito. Sendo uma história de amor impossível, é a história de uma mulher e pelo menos dois homens, o Comendador e Carvoliva, sua grande paixão.
Mas, sendo Júlia a personagem que era, sua história tem o poder de retratar um período da História do Brasil. Permite vermos, com a ascensão e queda do Comendador Francisco e de Júlia, não só a ascensão e queda do predomínio da ilha de São Francisco na economia da Província de Santa Catarina, como também a história da ascensão e queda da monarquia. O Comendador é uma espécie de D. Pedro II municipal, oponente de um Carvoliva republicano. As disputas em que estão envolvidos revelam, em microcosmo, o Brasil do momento.
A vida de Júlia é ao mesmo tempo um retrato de sua época e estabelece marcos divisores desta época. Ademais, anunciam uma nova era. Temos aí o fim do amor romântico, o fim da monarquia, o fim da escravidão. Há um mundo que se esgota. Chega ao fim um tipo de mulher e de homem, ocorre a falência de um tipo de casamento, a ruptura com um modo de fazer política e de governar. Chega ao fim a hegemonia do porto de São Francisco. Chega ao fim o reinado de D. Pedro II, por quem Júlia e o Comendador tinham admiração imensa. E começa a república com seus acertos e desacertos, retratados nas idas e vindas de Carvoliva, o ativista republicano.
E Júlia, nesse turbilhão, anuncia uma nova mulher que só será possível no século seguinte. Foi uma mulher de espírito livre e indomável, que, no entanto, terminou vítima do grande sonho de um amor romântico e das armadilhas de sua época. Sonhava de forma precursora com a igualdade entre homens e mulheres, mas sucumbiu ao peso — e ao apelo, penso eu — de um casamento tradicional.
Sem realizar seus sonhos e vítima de seu pioneirismo, sua vida só poderia terminar em desgraça. Essa tragédia pessoal — que retrata a tragédia da mulher em geral no século XIX — é ao mesmo tempo a derrota e a grandeza da vida de Júlia.
Em resumo, o fim de um romance, como o fim de um amor, é o fim do mundo, como todos nós estamos cansados de saber.

Fontes:
Christian Barbosa – “Júlia da Costa, 1a. Poetisa Paranaense” in http://christianbarbosa.blogspot.com.br/p/julia-da-costa-1-poetisa-paranaense.html
Roberto Gomes – “Quem foi Júlia?” in http://www.bpp.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=535

Folclore Japonês (Bake-kujira: A Baleia Fantasma)

Bake-kujira (baleia fantasma) é um mítico youkai do oeste japonês. Segundo a crença, são esqueletos fantasmagóricos de baleias que navegam perto da superfície do mar e habitam o litoral do Japão, seguidas por um séquito de misteriosos peixes e pássaros. Geralmente aparecem em noites de chuva, próximo a aldeias costeiras de baleeiros.

Em tempos antigos, avistar baleias era considerado uma bênção para os pescadores pobres das vilas costeiras. Era possível colher enormes riquezas a partir da carne e óleo de uma única baleia. Tal recompensa não veio sem um preço, muitos pescadores afirmam que as almas dessas baleias assombram os mares em busca de vingança contra aqueles que tiraram suas vidas. De acordo com a lenda “A Maldição da baleia” trará: fome, pragas, incêndios e outros tipos de desastres para as aldeias manchadas com seu sangue.

Há muito tempo atrás em uma noite escura e chuvosa, alguns pescadores testemunharam uma figura branca enorme na costa da Ilha de Okino, península de Shimane. Os pescadores decidiram tomar um barco a remo para conferir o que era e, sob a luz da lua na noite chuvosa, avistaram uma baleia com um tamanho fora do normal, as águas do oceano lampejavam com milhares de peixes a sua volta.

Animados para a grande pesca, reuniram os habitantes da cidade, armaram-se com lanças e arpões. Logo remaram em direção a enorme baleia, um dos pescadores lançou seu arpão, mas a arma passou direto através da massa branca sem feri-la. Ao se aproximarem, através da superfície de água escura salpicada de chuva, eles avistaram um monstruoso esqueleto.

Naquele exato momento, o mar tornou-se vivo com uma criatura aterrorizante nunca vista antes chicoteando sua águas, ao mesmo tempo, o céu foi tomado por pássaros misteriosos e ameaçadores. À distância, eles viram uma ilha que nunca tinha estado lá antes, como se tivessem remado rumo a algum país misterioso. Então, de repente, a baleia emitiu um som horripilante, virou-se bruscamente para o mar e, tão rapidamente quanto havia surgido, desapareceu em meio a corrente, junto aos peixes e pássaros sobrenaturais. Os moradores aterrorizados voltaram para casa, perceberam que a criatura só podia ser o fantasma de uma vingativa Bake-kujira. A baleia fantasma nunca mais foi vista.

Dizem, que outras aldeias em Shimane sofreram com a praga da vingativa Bake-kujira “A maldição da baleia”, sendo consumidas por incêndios e atormentadas por doenças misteriosas.

Em 1983, uma ossada de baleia intacta foi descoberta flutuando na costa de Anamizu, prefeitura de Ishikawa. Logo,  o esqueleto foi nomeado como a “Bakekujira  real.”

Fonte:
http://www.cacadoresdelendas.com.br/japao/bake-kujira-a-baleia-fantasma/#more-5473

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A. A. de Assis (Os Cem Anos do Bom Luiz)

Há exatamente um século, num dia 18 de julho, nasceu na Vila Isabel, coração romântico do Rio de Janeiro, um menino que se chamou Gilson de Castro. Crescendo, fez-se dentista da Aeronáutica, porém logo se revelou sobretudo poeta, rebatizado como Luiz Otávio. Mais que poeta: sobretudo trovador. Mais que simples trovador: o mais brilhante, perseverante e fascinante apóstolo da trova. A partir dele a pequenina quadra milenar trazida de Portugal para o coração brasileiro ganhou dimensão nova, expandiu-se pelo país inteiro e em poucos anos se consolidou como a mais bonita, numerosa e apaixonante escola literária de todos os tempos. Luiz Otávio, o nosso querido e eterno Príncipe, formou a seu redor uma bela multidão de discípulos, reunidos na UBT – União Brasileira de Trovadores. Hoje estamos em todas as regiões do Brasil e em dezenas de países em todos os continentes. Somos uma grande família de irmãos de sonhos. Não somente escrevemos trovas, mas também semeamos fraternidade. Em nossas reuniões, em nossas festas, em nossos concursos, em nossos boletins, informativos, sites, blogues, em nossos muitos e variados encontros, dando prova de que mesmo num mundo tumultuado é possível viver em grau de excelência o dom da amizade. Foi o que mais aprendemos com o bom Luiz desde os anos 1950, quando, sob a sua carinhosa liderança, passamos a fazer da trova o nosso modo de colocar a arte literária a serviço de um mundo mais alegre e puro. Neste mês de julho todas as honras apontam para o centenário de Luiz Otávio. Também nós queremos partilhar o grande momento. Cheios de saudade e ao mesmo tempo cheios de orgulho pela convicção de que temos de sabido preservar, valorizar e difundir a trova em todos os lugares e em todas as ocasiões. Que lá onde hoje tiver o seu parnaso o bom Luiz continue a inspirar, iluminar e abençoar por todo o sempre os nossos versos.

Fonte:
Revista Trovamar - julho/2016. Editorial.

Folclore Japonês (O Samurai e a Raposa Encantada)

Uma tarde, em seu caminho para casa, passava ele pelo portal “Shujaku” do palácio Imperial,  quando ele viu uma jovem de figura extremamente graciosa, trajando um belo kimono de seda,  parada na avenida principal.

Ela lhe pareceu tão linda com seus cabelos negros, como as penas de um corvo flutuando na brisa gentil, que o jovem samurai ficou imediatamente fascinado pela imagem.  Ele se aproximou da garota e a convidou para entrar no jardim do palácio e conversar um pouco com ele. A menina, parecendo interessada no jovem samurai, concordou com grande alegria.

O jovem casal passou boa parte do tempo em um local tranquilo do jardim animadamente conversando. Logo as estrelas começaram a brilhar luzindo aqui e ali no céu e mesmo a silhueta da Via Láctea surgiu. Disse o jovem bem perto do ouvido da menina: “Nós nos encontramos aqui, eu devo dizer, por uma feliz graça da providência divina.  Por isso, você deve aceitar o que peço – de todas as formas. Nós devemos compartilhar os mesmos sentimentos. Eu sinto que te amo desde o momento em que a vi, e acho que você me ama também”.

O que lhe respondeu a garota enrubescida: “Se eu concordar com todos seus pedidos, pobre de mim! eu morrerei. Este será meu destino”.

“Seu destino morrer?” – as palavras dela ecoaram na cabeça do samurai – “isso é impossível. Você está simplesmente dizendo isso para evitar-me.”

E tentou segurá-la em seus braços. A garota se libertou de seu abraço e disse:

“Eu sei que você tem outra e está dizendo que me ama no calor do momento. Eu estou chorando porque eu sei que vou morrer por causa de um homem caprichoso.”

Ele negou tudo o que ela disse, de novo e de novo até que ela consentiu em acompanhá-lo.  Nesse meio tempo as estrelas e a Via Láctea estavam reluzindo com todo o brilho nos céus. Havia uma noite propicia ao romance no ar… Eles encontraram um lugar na vizinhança e passaram a noite juntos.

Um grilo solitário foi ouvido cantando através da noite… O sol de verão apareceu cedo. A garota com a tez pálida, então disse:

“Agora voltarei para casa – para morrer, como te avisei ontem à noite.  Quando eu me for, por favor, recite preces pelo descanso de minha penosa alma copiando o “Sutra de Lotus” e os oferecendo para o misericordioso Buda”.

O jovem apenas consentiu: “É à maneira do mundo que um homem e uma mulher fiquem assim tão próximos um do outro. Você não está destinada a morrer por causa disso.  Entretanto se você morrer, eu não vou falhar com você. Eu prometo”.

A garota disse tristemente, tentando ajeitar seu longo cabelo:

“Percebo que ainda não acredita em minhas palavras, mas, se você se importar em saber se o que falo é verdade ou não, vá até a vizinhança de “Butoku-den”  esta manhã”.

O jovem samurai não conseguia acreditar no que dizia a linda garota.

Ela terminou num tom pesaroso: “Deixe-me ficar com seu leque como uma boa lembrança dessa noite?”

Ele entregou o leque a triste menina. Tomou-lhe as mãos e olhou direto nos seus olhos embaçados. Então a seguiu até lá fora, e ficou parado até que a figura desapareceu no véu cinza da manhã cinzenta.

O jovem não conseguiu sequer cogitar sobre as trágicas palavras da garota . Entretanto, durante a manhã ele foi até aos lados de  “Butoku-den”, principalmente, porque estava muito ansioso para descobrir o seu verdadeiro destino.

Lá ele viu uma velha senhora sentada em uma pedra, chorando amargamente.

Consternado, aproximou-se da velha senhora: “Por que a senhora está chorando assim?  Qual o problema minha senhora?” perguntou a ela.

“Eu sou a mãe da jovem que você viu perto do portão de “Shujaku” na noite passada.  Ela está morta agora,” ela respondeu.

“Morta?” o rapaz respondeu com um olhar incrédulo. “Sim, ela está morta.  Eu fiquei aqui esperando por você, para lhe dar a triste notícia. O corpo dela está bem ali.”

Assim dizendo, a velha senhora apontou para um canto do grande salão, desaparecendo como mágica no momento seguinte.

O jovem  samurai, aproximando-se do lugar apontado, encontrou uma jovem raposa morta no chão, seu rosto coberto com um leque branco aberto, o leque dado por ele!

“Então essa raposa era a garota que encontrei noite passada, uma kitsune!” disse pesaroso por si mesmo.  Ele em nada podia ajudar, e sentiu muita pena pela pobre raposa fria ali deitada. Então retornou para casa sentindo o coração pesar no peito.

Profundamente tocado, começou a copiar imediatamente o “Sutra de Lotus”, assim como foi pedido pela raposa enquanto na forma da linda garota.  Ele achou a tarefa muito difícil de continuar. Porém, ele copiou um sutra por semana oferecendo-o a Buda, e rezou dia e noite pelo descanso da alma da raposa encantada morta.

Uma noite, cerca de seis semanas depois, o jovem samurai teve um estranho sonho no qual ele encontrava a linda jovem. Ela parecia tão nobre e divina que ele pensou que se tratava de uma ninfa celestial. Disse a jovem em seu sonho:

“Apesar do que aconteceu, você me salvou ao escrever o “Sutra de Lotus” e oferecer muitos deles ao generoso Buda. Através de seus esforços, renasci no “Paraíso” livre de pecado. Serei eternamente grata a você!”. Desaparecendo da mesma forma em seguida, e, deixando em paz e livre de seu pesar, o coração do jovem samurai.

Fonte:

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Jeremias Ribeiro Filho (Jerry Filho) Trovas

1
Amor, renúncia e perdão,
tudo isto na Mãe se encerra:
Mãe tem grande coração,
um ser divino na terra!
2
Ao ler o livro da vida
gravei a lição que diz:
– nem sempre a guerra vencida
traz lucros para um país.
3
Aos céus, minha mãe, tão crente,
por mim pediu com fervor,
e o destino, surpreendente,
fez-me, agora, um trovador.
4
Às vezes, tento esquecer
carinhos que foram meus,
e que um dia os vi morrer,
naquele tão triste adeus!
5
A trova é rica mensagem
que nos toca o coração:
– remédio que dá coragem
no instante da indecisão.
6
Com fervor ao Pai Divino,
Criador desse universo,
pedi pão, quando menino,
deu-me o consolo do verso.
7
Dar-te queria o carinho
que nunca dei a ninguém,
porém, sem ser adivinho,
sei que não me queres bem.
8
Do forró, quando termina,
resta mais do que poeira:
a saudade da menina
que dançou a noite inteira.
9
Fitar-te não é problema,
querer-te é minha paixão,
mas surge um grande dilema:
ganhar o teu coração.
10
Já dizia um certo nobre
ao filosofar aos seus:
“aquele que empresta ao pobre,
simplesmente dá... Adeus!”
11
Meu coração machucaste,
não sei se foi por querer.
Só sei que o mal que plantaste,
um dia, ainda vais colher!
12
Não há qualquer esperança,
segundo as Leis da Nação,
pra quem, por ódio ou vingança,
tira a vida de um irmão.
13
Não se deve propalar
que não existe esperança,
pois ninguém pode negar
ter sido, um dia, criança.
14
Nesta vida amargurada
onde o mal se opõe ao bem,
a poesia é nossa fada
no Universo ou mesmo além.
15
Neste mundo enganador,
na vida de uma criança,
Pai e Mãe – seja onde for,
são a sua segurança.
16
No adulto que agora sou
ainda se oculta a criança
que a pipa no ar lançou,
tendo as cores da esperança.
17
O mar revolto da vida
tenta abafar ideais,
e a gente – vaga perdida -
procura a praia da paz.
18
O tempo tem seu conceito
e dele não abre mão:
– aproveite-me direito,
perder-me é péssima opção.
19
Pela rua vou sorrindo,
pra tentar, não sei por que,
deslembrar teu nome lindo,
mas – dele – como esquecer?
20
Pela sombra do destino
o qual traça a diretriz,
viajo desde menino
na ilusão de ser feliz.
21
Por dinheiro, quanta lida
do homem, julgando-se esperto,
mas, na luta pela vida,
vem a morte – prêmio certo.
22
Quando alguém tenta brigar,
a confusão sempre cresce,
só porque, para atiçar,
um idiota aparece.
23
Quantas canções de ninar
eu ouvi, quando menino,
e não consigo cantar
as de enganar o destino.
24
Quem sempre vive pensando
no mal ou no pessimismo,
vai aos poucos se enterrando
na profundeza do abismo.
25
Se alguma coisa renova
e alegra meu coração,
essa coisa é mesmo a trova
que me traz consolação!
26
Se dizes: – sou homem triste,
estás errado, és risonho,
pois, na vida, ainda existe
momentos para um bom sonho.
27
Sofrendo, porém lutando,
continua o meu Nordeste,
e estamos testemunhando
seu crescimento inconteste.
28
Sorrindo à vida que finda,
começa a vida a criança…
Não sabe: aquela foi linda
e a sua é vasta esperança!
29
Todos nós queremos tanto
paz, amor, satisfação,
mas a vida traz o pranto
que abafa toda ilusão.
30
Vejo agora que o destino
surpreendeu meu coração.
Ontem, sonhos de um menino;
hoje, apenas ilusão!

Humberto de Campos (O Monstro)

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num voo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...

- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.

- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.

E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.

- Traze mais água! - pedia.

A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.

- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!

- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?

E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.

- Eu dei a água! - tornou a Dor.

- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu…

Fonte:
Humberto de Campos. O Monstro e outros contos. Domínio Público.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Folclore Japonês (Kitsune, O Noivo da Raposa Encantada)

Essa é uma antiga história que surgiu no século VIII, durante o reinado do imperador Kinmei no Japão. Conta a lenda que um rapaz que vivia em Mino-no-Kuni, atualmente prefeitura de Gifu, certo dia montou em um belo cavalo branco e decidido, saiu à procura de uma linda noiva para com ela casar. Depois de muito cavalgar, em uma grande planície, avistou uma linda jovem colhendo flores silvestres. Ele ficou admirado com a beleza da encantadora menina, que percebendo sua presença, abriu um belo sorriso. Seus olhares se cruzaram e ele sentiu um estranho brilho em suas pupilas, como intencionassem seduzi-lo…

O rapaz tomado de súbita coragem, aproximou-se educadamente com o coração cheio de alegria. Descendo de seu cavalo, dirigiu algumas palavras a ela: 

– O que faz tão bela donzela nesta planície florida? 

– Caminhando à procura, quem sabe, de alguém que possa preencher meu coração!

O rapaz levou um choque de encantamento e, timidamente, propôs: 

– Gentil menina queira eu poder ser essa pessoa! Aceita ser minha noiva?

Um tanto ruborizada, a garota abaixou os olhos e respondeu: 

– Eu aceito!

Poucos dias depois, o rapaz voltou para sua casa na companhia da bela garota. A vila inteira se reuniu e, então, foi realizada uma grande festa de casamento.

Assim, o tempo passou e o casal vivia muito feliz.  Tempo depois, a jovem esposa engravidou e no dia 15 de Dezembro, um filho saudável nasceu. Exatamente naquela data e hora, a cadela que o rapaz criava em sua casa, desde que era menino, também teve um filhote. Os dias foram passando e o cachorrinho, todas as vezes que via a bela mulher do lavrador, começava a rosnar irritado, mostrando-lhe os dentes. Por vezes, chegou ameaçar atacar, deixando-a tremendo de medo. Um dia, ela pediu ao marido: 

– Por favor, meu querido marido, livre-se desse filhote de cachorro que vive me atormentando. Porém, seu marido ficou com dó do cachorrinho.

O tempo foi passando, chegando meados de Fevereiro; época de pilar o arroz em casca para fazer o beneficiamento. Então, a bela esposa entrou na despensa onde estava o pilão e o almofariz, para preparar a refeição da tarde. De repente, a cadela, mãe do filhote, avançou rosnando e atacou a mulher saltando sobre ela enfurecida. Ela ficou paralisada de medo e tremendo de pavor. Ao ouvir os gritos, o marido correu em seu socorro. Mas o que ele viu o deixou ainda mais espantado.

Sua bela esposa estava se transformando em uma raposa. Imediatamente, a raposa subiu sobre um armário para fugir dos dentes afiados da cadela e disse ao marido: 

– Desculpe-me querido, a cadela quebrou meu encanto e, num momento de pânico, acabei por revelar minha forma original. Como pode ver, não sou humana, e sim uma raposa. Mas, creia, eu te amo como ninguém mais poderia amar nesse mundo! Tivemos uma bela convivência como marido e mulher. Embora por um período curto, nós fomos muito felizes. A prova da nossa felicidade é essa linda criança, ela é fruto de nosso amor. Sei que, conhecendo minha verdadeira origem, é impossível permanecermos casados, por isso retornarei a floresta – assim, saltando pela janela, a raposa desapareceu na mata.

A raposa encantada em forma de mulher foi chamada de kitsune. Dizem que a raposa voltava todas as noites para dormir com seu marido humano.  Mas, na realidade, ela voltava apenas nos sonhos do jovem lavrador. Certa ocasião, a raposa encantada veio visitar o marido trajando um lindo quimono. Seu longo traje tinha a cor rosa do alvorecer e uma elegância indescritível. Mas, tomada pelo vento, ela foi flutuando para um lugar distante e desconhecido.

Desde então, o jovem nunca mais sonhou com sua encantada. Porém, aquela visão ficou gravada em sua mente e ele não conseguiu esquecê-la. O saudoso marido passou a escrever poemas e recitá-los repetidamente em homenagem a sua amada. Com o passar dos anos, o garoto, filho do lavrador e da raposa, cresceu e se tornou um rapaz de força e rapidez sem igual. O jovem, muito popular na província, acabou se tornando o organizador dos Festivais da Primavera e da Colheita. E, por ele ser conhecido como filho da raposa encantada (kitsune), o cargo de organizador dos festivais, passou a ser chamado de Kitsune-no-atae.

Fonte: 
Myths and legends of ancient Japan