domingo, 24 de junho de 2018

Contos e Lendas do Mundo (Nação Iroquês: A Busca da Cura)


Nekumonta, o guerreiro iroquês, nunca matou um animal por desporto e adorava as plantas e as árvores à sua volta. 


Quando uma terrível praga caiu sobre a sua aldeia, a sua bondade para com a Natureza foi recompensada.

O Inverno chegara à aldeia de Nekumonta e a neve era muita. Mas algo pior do que a neve viera visitar a aldeia nesse ano: uma praga terrível. Ninguém parecia imune - homens, mulheres e crianças tinham morrido por causa dela. Aqueles que ainda não haviam sido apanhados pela praga estavam cansados de cuidar dos doentes e de se despedir dos mortos.

Nunca houvera tal tristeza na aldeia. Maridos que perderam as mulheres. Mães que perderam os filhos. Irmãos que perderam as irmãs. Famílias inteiras arrasadas. Com a neve veio a praga... e com a praga veio a tristeza e o desespero.

Nekumonta perdera toda a sua família com esta doença terrível - toda, isto é, menos a sua bonita mulher, Shanewis. Mas agora ela apanhara a doença e os seus dias entre os vivos estavam contados. Ela chamou Nekumonta e insistiu para que ele a levasse para fora da aldeia.

Quando ele protestou, ela disse:

- Marido, sabemos que a morte virá, quer eu esteja agasalhada quer esteja ao ar livre num lugar onde possa ouvir os espíritos dos meus queridos mortos a chamar por mim. Por favor, por favor, faz o que te estou a pedir.

Assim, Nekumonta enrolou a sua amada em peles e levou-a para o ar livre, pousando-a num lugar limpo de neve. O céu cinzento encheu-se dos espíritos daqueles que haviam partido desta vida, e chamaram por Shanewis.

- Junta-te a nós! - gritaram. - Livra-te da dor e do sofrimento trazidos pela praga.

Mas Nekumonta não queria saber daquilo para nada.

- Não dê ouvidos aos chamamentos deles até eu voltar da minha busca - pediu à esposa moribunda. - Vê depois se a única alternativa é juntar-te a eles.

- Que busca? - perguntou Shanewis, a testa alagada em suor.

- Sabemos que Manitu plantou ervas medicinais - disse ele. - Vou procurá-las e trazê-las para ti e para o nosso povo.

- Vou ficar à espera, marido - disse Shanewis -, porque só tu conseguirás levar a cabo tal tarefa.

Para muitas tribos, Manitu significa o espírito que está em tudo desde as rochas e as plantas aos humanos. Para os Iroqueses, Manitu é o nome dado ao maior e mais poderoso de todos os deuses. As suas ervas medicinais curariam Shanewis... se o marido as conseguisse encontrar.

Com a mulher fora do calor do lar, Nekumonta partiu em busca das ervas medicinais.

Teria sido uma tarefa difícil no melhor dos tempos, mas tornou-se ainda mais difícil pela neve que cobria a maior parte das terras. Nekumonta teve de escavar na neve para tentar encontrar as ervas e nem sequer sabia onde é que elas estavam plantadas. Com os conhecimentos que tinha da Natureza, só conseguia imaginar onde é que elas provavelmente cresceriam.

No fim do primeiro dia, um coelho passou a saltitar por Nekumonta, enquanto ele, de joelhos, escavava a neve com as mãos.

- Sabes onde é que Manitu plantou as ervas que ajudarão a curar o meu povo? - perguntou Nekumonta, mas o coelho não sabia e continuou o seu caminho, deixando o seu rasto na neve.

Mais tarde, quando a escuridão surgiu no fim do curto dia de Inverno, o guerreiro iroquês avistou um urso-pardo a olhá-lo das profundezas da floresta. Nekumonta perguntou ao urso pelas ervas, mas o urso não sabia de nada, e desapareceu pesadamente por entre as árvores.

Na tarde seguinte, após uma longa caminhada, Nekumonta viu uma coelha a roer os rebentos de uma planta que despontava da neve. A coelha reconheceu-o e, sabendo que ele era amigo dos animais e não lhe iria fazer mal, não fugiu nem se escondeu.

Nekumonta afagou-a carinhosamente e disse:

- Todos na minha aldeia estão a morrer, e a minha mulher, Shanewis, está entre eles. Se sabes onde é que Manitu plantou as ervas medicinais, leva-me, por favor, até elas. São a nossa única esperança.

Mas a coelha não sabia onde é que Manitu plantara as ervas, de modo que arrebitou as orelhas e desapareceu na floresta. A história repetiu-se com todos os animais que encontrou. Ninguém o conseguia ajudar.

À terceira noite, Nekumonta estava prestes a desistir. Fraco e exausto, enrolou-se no seu cobertor e adormeceu.

Enquanto dormia, os animais da floresta reuniram-se.

- Nekumonta é um bom homem - disse o urso-pardo. - Só mata quando tem de ser, tal como os animais.

- E também trata das nossas terras com respeito - disse o coelho. Cuida das árvores e das plantas à volta dele.

- Acham que o devemos ajudar? - perguntou a coelha.

- Sim - disse o coelho. - Mas como?

- Talvez possamos pedir ajuda ao grande Manitu - sugeriu o urso-pardo. - Ele compreenderá que todos os seres vivos querem que Nekumonta seja bem sucedido na sua busca.

Assim, o coelho, o urso-pardo, a coelha e todos os outros animais juntaram-se numa clareira da floresta e pediram a Manitu para salvar Shanewis da praga. Manitu ouviu as suas preces e, sensibilizado pela lealdade dos animais para com um humano, decidiu ajudar Nekumonta.

Nessa noite, Shanewis apareceu em sonhos a Nekumonta - pálida e muito magra. Começou a cantar-lhe uma estranha e bonita cantiga, mas ele não conseguiu entender as palavras, que se transformaram de imediato no som de uma cascata.

Quando acordou, o som da cascata ainda lá estava com o seu coro de vozes cintilantes - tão pura e cristalina como a água da Primavera.

- Encontra-nos... Liberta-nos... Shanewis e o teu povo serão então salvos.

Mas apesar do som maravilhoso, não havia nenhuma cascata - nem sequer um pequeno riacho.

- Quem és tu? - gritou Nekumonta.

- Somos as Águas Medicinais - disse o coro. - Liberta-nos.

- Onde estás? - gritou Nekumonta, desesperado, pois o coro de vozes cintilantes ouvia-se muito perto, embora não o conseguisse ver.

- Liberta-nos - cantou o coro uma vez mais.

Com novo alento, Nekumonta procurou por todo o lado, mas não conseguiu descobrir as Águas Medicinais em lado nenhum... embora a voz do coro se mantivesse forte. Percebeu então porquê. As Águas Medicinais corriam mesmo por baixo dos seus pés. Eram uma nascente subterrânea!

Observado pelos animais da floresta, Nekumonta afastou a neve para o lado e golpeou o duro solo com uma pederneira, até que um jato de água se elevou no ar e começou a correr pela encosta abaixo. Descobrira as Águas Medicinais!

Esgotado, Nekumonta saltou para as águas geladas e banhou-se nelas. Os poderes mágicos das águas deram-lhe força, e o cansaço desapareceu subitamente. Sentia-se mais forte que nunca.

Encheu um odre de Águas Medicinais e correu pela encosta abaixo até à aldeia. Os outros aldeões saíram a correr das suas tendas para o cumprimentar.

- Estamos salvos! - gritou. - Estamos salvos!

Em breve, toda a gente da aldeia tinha bebido e se tinha banhado nas águas e estava de novo de boa saúde, inclusive Shanewis. Agradeceram a Nekumonta do fundo dos seus corações.

Quando soube do papel que os animais tinham desempenhado, Nekumonta agradeceu-lhes a sua bondade. Em troca, os animais deram graças ao grande Manitu, que é, afinal de contas, senhor de tudo. Nekumonta e Shanewis viveram muitos Verões e tiveram muitos filhos.
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NOTA:

Iroqueses (em inglês e francês: Iroquois, pronunciado irocuá) ou Haudenosaunee 

Os iroqueses de antigamente eram primariamente nômades. Até o século XVII, formavam o que é atualmente chamado de nação iroquesa. Atualmente, esta nação indígena é composta pelos povos Seneca, Cayuga, Onondaga, Oneida, Mohawk e Tuscarora, formando uma confederação distribuída entre o Canadá e os Estados Unidos (principalmente no Estado de Nova Iorque e na província de Quebec). Esses grupos falavam línguas semelhantes e viviam perto uns dos outros. Algumas pessoas dizem que, pelo fato de ter durado centenas de anos, a Nação Iroquesa foi um dos exemplos que inspirou os fundadores dos Estados Unidos em sua organização política. Uma sexta tribo, a dos tuscaroras, se juntou à confederação em 1722.

Os iroqueses foram estudados, no século XVIII, pelo missionário jesuíta Joseph François Lafitau, que chegou a conviver com eles. Sua obra, Mœures des Sauvages américains comparées aux mœurs des premiers temps, publicada em 1724, descreve os princípios básicos da sociedade iroquesa, principalmente em relação a sua matriarcalidade e matrilinearidade. Lafitau abordou também os ritos de casamento, os jogos, lazer, doenças, enterros, língua, caça, educação e a divisão de trabalho entre os iroqueses, enfocando seus estudos na religião. Para ele, os iroqueses possuíam a sua religião (diferentemente de pensadores anteriores, que afirmavam que os índios não tinham religião alguma), embora esta não fosse tão organizada quanto a católica. Diz que os iroqueses, embora possuíssem religião, eram desprovidos de leis e política.

Ao estudar os iroqueses, Lafitau distinguiu características positivas (como a coragem) e negativas (como vingança e cobiça), inovando ao utilizar o método comparativo (embora não o tenha inventado) ao comparar os iroqueses aos heróis de Homero (na comunidade científica europeia da época, se idealizavam os gregos e romanos). Nesse sentido, Lafitau enaltecia os iroqueses, ao dizer que as construções náuticas desses povos eram parecidas, mas também os denegria, afirmando que a brutalidade dos heróis de Homero não se distinguia da ferocidade dos iroqueses, ferocidade esta que ele considerava como sendo inata. Mesmo assim, a importância se deu pelo fato de que Lafitau deixou os nativos mais humanos, diferentemente de pensadores anteriores (como Mandeville) que assemelhavam os nativos a monstros.

A Economia dos iroqueses se focaliza na produção comunal e ao sistema combinado de horticultura e de caçador-recolector. As tribos da Nação Iroquesa e outras do norte do continente americano que compartilhavam idioma (iroquês), como o povo hurón, viviam na região que hoje é o Estado de Nova York e a Região dos Grandes Lagos. Compunha-se de seis tribos de antes da colonização europeia da América. Mesmo não sendo iroquês, o povo hurón entrava no mesmo grupo linguístico e compartilhava economia com os iroqueses.

Fontes:

sexta-feira, 22 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 25


Jean-Pierre Barakat (Poemas Avulsos) I


ABERTO, NO CÉU...

Aberto, no céu,
O teu longínquo olhar...
De amores e abraços,
A vagar e vasculhar
Nos etéreos espaços.
Aberto, no céu,
O teu caminho na vida...
De desenlaces a fio,
Por essa terra prometida:
A alma assim no cio.
Aberto, no céu,
O teu inefável desaperto
Sorvendo esse universo...
E no coração um aperto
Urge o AMOR no verso.

CATIVOS

O Céu é cativo no teu olhar
Os filós de nuvens airosas
Seduzem os alísios ventos
No espaço do firmamento
O Mar é cativo no teu olhar
As ondas suspiram porosas
Sobre o mar os momentos
De um total contentamento
A Terra é cativa no teu olhar
A realeza em transe de rosas
Sangra atar nos pensamentos
O Tao-Amor é seu alimento
Um Pluriverso é cativo no teu olhar
Livre estou
No teu sonhar.

NOITE DO INFINITO

Estrelas e planetas
No silêncio do espaço
Acenam um ameno suspiro
E eu Amor já te respiro
Meu doce coração traço
Na elipse dos cometas
E vibro como os poetas
Outra dimensão abraço

Todos os mundos reviro
Teu nome gravo profiro
Pelas noites me refaço
Como os pios anacoretas.

NUVENS

Nuvens, nuvens por toda parte,
Explodindo sob a coroa solar.
O ruflar da ave vai encontrar-te,
E todo o meu ser vai te amar.
Nuvens, nuvens numa fileira,
Naus sem fado nesse vão.
Cores vibram na brincadeira
Quando aperto a tua mão.
Nuvens, nuvens fogem assim,
Sangrando rubras no poente.
Expiram, carregando em si

Um temporal inconsequente.

O RIO DA VIDA

É uma grande aventura
Porventura sempre será
Esse fluxo constante
De amor por toda parte
Na arte de ser rio
Mavioso abraçando o mar
Tornar-se quintessência
Dissolver-se na maré
Sonhar até em segredo
Ser a mesma Imensidão
Pois a vida no seu desenlace
Tece o nosso Despertar

CONTEMPLAÇÃO

E agora sei escutar o silêncio.
Disse-me ele que as palavras vãs fazem sentido,
Como a folha amarelada que cai no outono:
Algo morre, e é preciso sorrir, porque
Toda morte carrega uma vida em si.

Lembro do passado: lembro tudo.
Nada, porém, é mais deslumbrante que o Agora,
Esse, que vem, arrebata todas as razões e
Derruba as falsas seguranças que queremos:
Não é nosso esse privilégio de saber por certo.

Seja assim, então, que a Vida venha, plena
E imprevisível em mim, no efeito do Amor,
Seduzindo a minha alma com a sua promessa
De manhãs únicas, frágeis e inspiradoras:
E que o meu olhar possa sempre encontrar o teu.

Para abraçarmos a mesma visão no horizonte.

Fontes:

Stanislaw Ponte Preta (Prova Falsa)


Quem teve a ideia foi o padrinho da caçula - ele me conta. Trouxe o cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho. Ele até que não é contra isso de se ter um animalzinho em casa, desde que seja obediente e com um mínimo de educação.

— Mas o cachorro era um chato — desabafou.

Desses cachorrinhos de raça, cheio de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono da casa.

— Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de francesa.

Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro ficam mais por baixo que tapete de porão. Quando cruzavam num corredor ou qualquer outra dependência da casa, o desgraçado rosnava ameaçador, mas quando a patroa estava perto abanava o rabinho, fingindo-se seu amigo.

— Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico, minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro fingido e eu é que implicava com o "pobrezinho".

Num rápido balanço poderia assinalar: o cachorro comeu oito meias suas, roeu a manga de um paletó de casimira inglesa, rasgara diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava para locais incríveis. A vida lá em sua casa estava se tornando insuportável. Estava vendo a hora em que se desquitava por causa daquele bicho cretino. Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e era uma choradeira das crianças e uma espinafração da mulher.

— Você é um desalmado — disse ela, uma vez.

Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do adversário. O cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete da sala. Fez duas na boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que fez em cima do vestido novo de sua mulher.

— Aí mandaram o cachorro embora? — perguntei.

— Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova residência.

— Ué... mas você não o detestava? Como é que arranjou essa sopa pra ele?

— Problema da consciência — explicou: — O pipi não era dele.

E suspirou cheio de remorso.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Garoto Linha Dura. 
RJ: Ed. do Autor, 1964.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 24


Petrarca Maranhão (Poemas Escolhidos)


O REI DOS RIOS
À Laura da Cunha Mello Maranhão, minha Mãe

 Vem de longe o Amazonas, o gigante
caudaloso, feliz, tentacular,
maior que o Mississipi e que o possante
rio Nilo, de glória milenar...

 Do Telhado do Mundo, ele, insinuante,
desliza da montanha, a ultrapassar
vales, terras, florestas, sempre avante,
rumando na distância, para o mar...

 Busca o estuário, em que deve, finalmente,
arremessar, violento, inquietas águas,
num lance magistral, largo e imponente...

A tudo vence, como um herói romântico :
rompe diques, barragens, pedras, fráguas,
projetando-se, olímpico, no Atlântico!...

 EM LOUVOR DO SONETO CLÁSSICO
A Adelmar Tavares

 Saudemos na Poesia, ao soneto perfeito,
clássico em seu fluir, correntio e fugaz,
sonoro em sua rima, alado em seu conceito,
proeza de que ele só e só ele é capaz...

 Saúde-se no Verso, a esse milagre audaz
da arte de traduzir, eloquente e escorreito,
tanto um suave sentir, de deleite e de paz,
quanto um clangor de guerra a rebentar do peito!

 Glória ao talento eterno... Ariel, ente imortal,
gênio do ar, a surgir no soneto ideal,
que por séculos já toda uma história abarca.

 Glória e bela criação, deveras empolgante,
que a alturas se livrou, de forma emocionante,
na apoteose triunfal de Laura e de Petrarca.

A LEI DA VIDA

 Todos nós temos sempre em cada dia,
Uma ínfima dose de ventura:
Para cada minuto de alegria,
Outros tantos instantes de amargura . . .

 Se, acaso, alguns momentos de euforia
Fazem da vida um sonho de ventura,
Logo uma sombra má nos angustia,
Nos vem turvar aquela paz tão pura . . .

 Afinal, não se sabe por que lei
E por que inexorável fatalismo
Hão de andar, lado a lado, riso e pranto!

Eu também – ai de mim! – de nada sei . . .
Sei que me curvo ao meu determinismo,
Vivendo entre a ilusão . . . e o desencanto!

A  ELA
À Capitu do “D. Casmurro” de Machado de Assis

“O’ flor do céu, ó flor cândida e pura”
Em quem meu pensamento se resume!
Flor bendita de mágico perfume,
Que embevece minh’alma de ventura!

 Da seta de Cupido o afiado gume
Em raios mil no teu olhar fulgura,
Representante ideal da formosura,
Mulher magnífica! Meu Celso nume!

 No mundo, quando a mim mais nada valha,
Serás meu guia e único fanal!
Da vida em meio à luta intensa e forte,

 Quando tu fores minha, à própria morte
Declararei, por fim, de vez, triunfal:
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha”! . . .

SAUDADES DO AMAZONAS

Desde que te deixei, ó terra minha,
Jamais pairou em mim consolação,
Porque, se eu longe tinha o coração,
Perto de ti minh’alma se mantinha.

Em êxtase minh’alma se avizinha
De ti, todos os dias, com emoção,
Vivendo apenas dentro da ilusão
De voltar, tal qual vive quando vinha.

Assim, minh’alma vive amargurada
Sem que eu a veja em ti bem restaurada
Das comoções que teve em outras zonas,

Mas para torná-las em felicidade,
É preciso matar toda a saudade,
Fazendo-me voltar ao Amazonas!

ESCOLHA

 Neste dilema, o que é que tu preferes?
Sinceramente, amor, dize-me aqui:
Que eu ame em ti,  a todas as mulheres
Ou em todas as mulheres ame a ti? . . .

 CLARO ENIGMA

 Eu quis fazer um poema todo esdrúxulo,
Um poema estratosférico e algo exótico,
Que fosse ao mesmo tempo heroico e másculo,
Ainda que sem rima, ideia e métrica.
Quis escrever um poema todo excêntrico,
Um tanto claro, um tanto enigmático,
Um “claro enigma” apático e esotérico,
Futurístico, místico e vesânico,
Um tanto parecido com os patéticos
Poemetos futuristas cabalísticos,
Escritos pelos gênios marinéticos . . .
Mas, se caso, estes versos melancólicos,
Que não são protestantes nem católicos,
Não agradarem meus leitores líricos,
Não me chamem de tolo nem lunático,
Nem me taxem, tampouco, em tons satíricos,
de trêfego, de frívolo ou de pérfido . . .

Fontes:
– Petrarca Maranhão.  Sonetos petrarqueanos.  
Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1965.
– Petrarca Maranhão. Ronda de Estrelas: poesia.
Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1955

Petrarca Maranhão (Buquê de Trovas)


A glória é a ilusão de um bem...
nossa vida um simples ai...
o amor, um sonho que vem...
a morte, um sopro que vai...

As almas de certa gente
se parecem com um porão:
por fora, - que luz candente;
por dentro, - que escuridão!

A ventura é uma quimera
que estranhos caprichos tem,
pois vem quando não se espera,
quando se espera não vem...

Cômico é o mundo, não nego,
quando irônico insinua,
maldoso, que o amor é cego...
mordaz - que a verdade é nua...

Como vive tanta gente
de modo triste e inseguro
sem ver o bem do presente,
por só pensar no futuro! ...

Coração fonte da vida.
Coração fonte do amor.
E há tanta gente, querida,
que o torna fonte de dor.

Da vida que se renova
recolho a matéria prima
- com que faço minha trova...
- com que teço minha rima...

Eu pergunto, muito a medo,
quase a sentir-me um covarde:
- Nasceste por demais cedo,
ou fui eu que nasci tarde?

Felicidade... esperança
de um bem que custa a chegar:
e, afinal, quando se alcança,
se vê fugir... escapar...

Guarda escondido contigo
o amargor que te acabrunha:
não deixes teu inimigo
de teu mal ser testemunha.

Há muita gente infeliz,
por esta tolice imensa:
ou nunca pensa o que diz,
ou sempre diz o que pensa...

Minha trova canta o dia, 
canta a noite e canta o amor. 
Canta a tristeza e a alegria, 
- destino de trovador.

Muito boas as mulheres,
nos são sempre como amigas;
mas cuidado se as tiveres,
um dia, como inimigas...

Não dês a ninguém o gosto
de ver pela tua face,
na tristeza do teu rosto,
o que em tua alma se passe...

Não se deve valor dar
às grandes coisas apenas...
Saibamos valorizar
principalmente as "pequenas"...

Não te apresses. Que são danos
dentro da filosofia?
A vida, há milhares de anos,
recomeça todo dia...

Não te queixes desta vida.
Nunca sabes com razão,
se a de quem com a gente lida
resiste à comparação...

Ninguém é dono de nada.
E quem se conhece, quem?
Tudo é vaidade emproada
dos que se julgam alguém...

Nos recessos de minha alma
há dois seres bem diversos:
um que luta, sem ter calma,
outro, manso, que faz versos...

O amor é tal qual um rio
em caminho para o mar...
de repente faz desvio
para um rumo irregular...

O relógio bate as horas...
Na igreja, repica o sino...
E só tu, Amor, demoras
a surgir no meu Destino!...

Por entre mil embaraços,
luto contra anseios vãos:
quero cair em teus braços,
mas nunca nas tuas mãos...

Se ela, afinal, com delícia
te deu a boca a beijar,
com um pouco mais de malícia
tudo o mais hás de alcançar...

Se queres um bom conselho,
muito útil e bem pensado,
- nunca metas o bedelho
onde não fores chamado...

Sobre a montanha da vida ,
raro se pode saber
se ainda se está na subida,
ou já se vai a descer...

Um paradoxo qualquer,
sempre da vida nos vem:
- quando a gente tem, não quer...
- quando a gente quer, não tem...

Carlos Drummond de Andrade (Nascer)


Era manhã nova, quando ele telefonou, a voz enfestoada:

— Aída Isabel acabou de nascer!

No entressono, que sabia eu de Aída Isabel, como podia avaliar o ato de responsabilidade que ela cometera?

— Quem?

— Aída Isabel. Agora mesmo!

— E é forte, bonita?

— Não sei não senhor. Ainda não pude ver.

Estranhei que a um pai fosse defeso espiar sua filha. Explicou-me que o regulamento era dureza, mas ele daria um jeito. E de fato, mais tarde, comunicou-me que conhecera afinal Aída Isabel.

— Como é que você entrou?

— Por baixo. A dona da portaria estava de costas, lendo jornal, eu me agachei e passei juntinho dela, debaixo do balcão.

Sorria ao contá-lo, pois gosta dessas experiências marotas, e se pudesse ir ver a filha ao jeito comum, perderia o sabor.

— Era para ela chegar na semana passada, internei Lucinha no Hospital dos Servidores, à noite a criança cismou de atrasar, as dores pararam. Então o médico disse que carecia desocupar o leito, o funcionalismo está assim de menino fazendo fila para nascer. Voltamos para Olaria, desapontados. Na noite seguinte, acordamos com um estrondo, lá longe; os vidros da casa retiniram. Eu disse comigo: é agora. A explosão de Deodoro ajudou. Pedi a Lucinha que aguentasse firme até o dia clarear. Voltamos ao hospital, não havia vaga, mas eles foram camaradas, mandaram a gente para uma casa de saúde em Botafogo, negócio alinhado, valeu a pena. Só que não recebe visita. Pessoa da família nem nada.

— Então não posso conhecer Aída Isabel.

— Daqui a uma semana o senhor vai lá em casa e conhece. Damos uma reuniãozinha, bebe-se um chope.

Lembrei-me de que há dez meses, em Olaria, numa reuniãozinha ao ar livre, entre vasos de begônia, com uma cunhada portuguesa muito alegre, mas que não queria cantar fado, uma discussão sobre futebol, Ema d’Ávila e outras matérias, e um cachorro pacato dormindo ao sol, tínhamos bebido uma chopada comemorativa do casamento daqueles dois. Eu fora testemunha dele, no civil. 

Em dez meses, Aída Isabel se fizera e agora vinha ocupar um lugarzinho em Olaria, era um fato novo, no caminhar sorrateiro da vida.

O Brasil tinha 72 850 416 habitantes? Hoje tem 72 850 417. A situação se modificou, o casal tomara providências. Aída Isabel prepara-se para fazer alguma coisa, rara ou comum, ela ainda não sabe. Na dinâmica do país, uma força obscura se delineia, e como fui testemunha do desposório, dou testemunho do seu primeiro resultado, nesta fase inquieta da nacionalidade em busca de novos rumos políticos e sociais. Gostaria que todos tivessem acrescentado alguma pequenina riqueza ao país, neste período. O governo deu duro? Fizeram-se descobertas, escreveram-se livros, criou-se? Ou apenas trabalharam os casais novos?

Aída Isabel, não vou transmitir nenhuma palavra de ordem. Você será moça num Brasil tão diferente deste meu (já assisti a dois ou três brasis, em quarenta anos) que nem sei o que poderia servir-lhe de instrução para trabalhos e sonhos.

Tudo está sempre por acontecer de novo e pela primeira vez. Cresça, Aída Isabel, e floresça. Estamos muito precisados de flores, de moças e de vir a ser.

(conto escrito em 1958)

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Martha Medeiros (A Dor que Dói Mais)


Em alguma outra vida, 
devemos ter feito algo de muito grave,
Para sentirmos tanta saudade...
Trancar o dedo numa porta dói.
Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói.
Um tapa, um soco, um pontapé , doem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa,
Dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade.
Saudade de um irmão que mora longe,
Saudade de uma cachoeira da infância,
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais,
Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu,
Saudade de uma cidade,
Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa.
Doem estas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida.
Você podia ficar no quarto e ela na sala, sem se verem, mas sabiam-se lá.
Você podia ir para o dentista e ela pra faculdade, mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-la, ela sem vê-lo, mas sabiam-se amanhã.
Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna-se menor, 
Ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é basicamente não saber.
Não saber mais se ela continua fungando num ambiente frio.
Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia.
Não saber se ela ainda usa aquela saia.
Não saber se ele foi à consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre culpada,
Se ele tem assistido às aulas de inglês, se aprendeu a entrar na internet,
A encontrar a página do Diário Oficial, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros,
Se ele continua preferindo Malzebier, se ela continua detestando McDonalds,
Se ele continua amando, se ela continua a chorar até nas comédias.
Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, 
Não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento,
Não saber como frear as lágrimas diante de uma música,
Não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
É não saber se ela está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso...
É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer.
Saudade é isso que eu estive sentido enquanto escrevia
E o que você provavelmente estará sentindo depois que acabar de ler.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Trova 310 - Talita Batista (Campos dos Goytacazes/RJ)


Castro Alves (Poemas Avulsos)


O "ADEUS" DE TERESA

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala
E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa
E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!
E ela arquejando murmurou-me: "adeus!”

O BAILE NA FLOR

Que belas as margens do rio possante, 
Que ao largo espumante campeia sem par! 
Ali das bromélias nas flores doiradas 
Há silfos e fadas, que fazem seu lar... 

E, em lindos cardumes, 
Sutis vaga-lumes 
Acendem os lumes 
P'ra o baile na flor. 

E então — nas arcadas 
Das pet’las doiradas, 
Os grilos em festa 
Começam na orquesta 
Febris a tocar... 
E as breves Falenas 
Vão leves, 
Serenas, 
Em bando 
Girando, 
Valsando,
Voando no ar! …

CREPÚSCULO SERTANEJO

A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro... 
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante!
Tal vez um silêncio!... Tal vez uma orquestra... 
Da folha, do cálix, das asas, do inseto ...
Do átomo à estrela... do verme - à floresta!...

As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!

Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.

Então as marrecas, em torno boiando,
O voo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!…

O FANTASMA E A CANÇÃO

— Quem bate? — "A noite é sombria!"
— Quem bate? — "É rijo o tufão! ...
Não ouvis? a ventania
Ladra à lua como um cão."
— Quem bate? — "0 nome qu'importa?
Chamo-me dor...  abre a porta!
Chamo-me frio... abre o lar!
Dá-me pão... chamo-me fome!
Necessidade é o meu nome!"
— Mendigo! podes passar!

"Mulher, se eu falar, prometes
A porta abrir-me?" — Talvez.
— "Olha... Nas cãs deste velho
Verás fanados lauréis.
Há no meu crânio enrugado
O fundo sulco traçado
Pela c'roa imperial.
Foragido, errante espectro,
Meu cajado — já foi cetro!
Meus trapos — manto real!"

— Senhor, minha casa é pobre...
Ide bater a um solar!
— "De lá venho... O Rei-fantasma
Baniram do próprio lar.
Nas largas escadarias,
Nas vetustas galerias,
Os pajens e as cortesãs
Cantavam! ... Reinava a orgia! ... 
Festa! Festa! E ninguém via 
O Rei coberto de cãs!"

— Fantasmas! Aos grandes, que tombam, 
É palácio o mausoléu! 
— "Silêncio! De longe eu venho... 
Também meu túmulo morreu.
O séc’lo — traça que medra
Nos livros feitos de pedra —
Rói o mármore, cruel.
O tempo — Átila terrível
Quebra co'a pata invisível
Sarcófago e capitel.

"Desgraça então para o espectro,
Quer seja Homero ou Sólon,
Se, medindo a treva imensa
Vai bater ao Panteon...
o motim — Nero profano —
No ventre da cova insano
Mergulha os dedos cruéis.
Da guerra nos paroxismos
Se abismam mesmo os abismos
E o Morto morre outra vez!

"Então, nas sombras infindas,
S'esbarram em confusão
Os fantasmas sem abrigo
Nem no espaço, nem no chão...
As almas angustiadas,
Como águias desaninhadas,
Gemendo voam no ar.
E enchem de vagos lamentos
As vagas negras dos ventos,
Os ventos do negro mar!

"Bati a todas as portas 
Nem uma só me acolheu!..." 
— "Entra!" — : Uma voz argentina 
Dentro do lar respondeu. 
— "Entra, pois!  Sombra exilada, 
Entra!  O verso — é uma pousada 
Aos reis que perdidos vão.  
A estrofe — é a púrpura extrema, 
Último trono — é o poema! 
Último asilo — a Canção!..."