quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Contos e Lendas do Mundo (China: A Cinderela chinesa)


(Do "Yuyang Tsatsu", século IX) 

Ao que se sabe, esta é a mais antiga história da Cinderela escrita no mundo. Cinderela é um dos contos folclóricos mais conhecidos em todos os países e dela têm sido coligidas, estudadas e comparadas pelos entendidos centenas de versões. 

Contudo, de acordo com o professor R. D. Jameson, autoridade em assuntos do longínquo oriente: "A história é anterior à mais antiga versão ocidental de Des Perriers em seu "Nouvelles Récréations et Iojeux Devis", Lião, 1558, cerca de uns 700 anos." 

A versão chinesa é tirada de "Yuyang Tsatsu", um livro de mágicas e contos sobrenaturais e de fundo histórico. outrossim, escrito por Tuan Ch'eng-shih que morreu em 863 da era cristã. A história lhe foi contada por uma velha serva da família que provinha de Yungchow (moderna Nanning) em Kwangsei, e que descendia dos povos das cavernas (aborígines) daquele distrito. Tuan era filho de um primeiro ministro e era letrado e em "Yuyang Tsatsu", deu disso vários exemplos: pesquisou certos contos populares indo encontrá-los até nos clássicos budistas, pois no século IX, as histórias sobrenaturais budistas eram bem conhecidas e populares na China. Entretanto esse conto provou ser de tradição oral. 

Existem versões siamesas bem conhecidas e Nanning fica bem perto da Indochina. Segundo o professor Jameson- "Tanto quanto lhe posso afirmar, e até onde vão meus conhecimentos, a mais velha versão impressa é chinesa. Sabemos muito pouco sobre os processos da imaginação humana e são incontáveis os lugares folclóricos do mapa asiático que ainda não foram completamente explorados para justificar, parece-me, muita especulação." 

O que nos fere nessa versão chinesa é que ela contém elementos de todas as duas tradições, eslava e alemã, na primeira das quais um animal amigo é o motivo principal e onde, na segunda, a perda do sapatinho num baile é o fato mais importante. A madrasta cruel e as filhas são comuns a ambas. - Lin Yutang. 

O CONTO

Certa vez, antes de Ch'in (222-206 a.C.) e Han havia um chefe das cavernas da montanha a quem os nativos chamavam chefe Wu. Ele se casou com duas mulheres uma das quais morreu deixando-lhe uma menina chamada Yeh Hsien. Essa menina era muito inteligente e habilidosa no bordado a ouro e o pai amava-a ternamente, mas, quando êle morreu, viu-se maltratada pela madrasta que seguidamente a forçava a cortar lenha e mandava-a a lugares perigosos para apanhar água em poços profundos. 

Um dia, Yeh Hsien pescou um peixe com mais de duas polegadas de comprimento e que tinha as barbatanas vermelhas e os olhos dourados. Trouxe-o para casa e o pôs numa vasilha com água. Cada dia o peixe crescia mais e tanto cresceu que, finalmente, a vasilha não lhe serviu mais e a menina o soltou numa lagoa que havia por trás de sua casa. Yeh Hsien costumava alimentá-lo com as sobras de sua comida. Quando ela chegava à lagoa, o peixe vinha até a superfície e descansava a cabeça na margem, mas se alguém se aproximasse não aparecia. 

Esse hábito curioso foi notado pela madrasta que esperou o peixe sem que este lhe aparecesse. Um dia, lançou mão de astúcia e disse à enteada: - "Não está cansada de trabalhar? Quero dar-lhe uma roupa nova." Em seguida fêz Yeh Hsien tirar a roupa que vestia e mandou-a a várias centenas de li para trazer água de um poço. A velha, então, pôs o vestido de Yeh Hsien e estendeu uma faca afiada na manga da blusa; dirigiu-se para a lagoa e chamou o peixe. Quando o peixinho pôs a cabeça fora d’água, ela o matou. Por essa ocasião, o animalzinho já media mais de dez pés de comprimento e, depois de cozido, mostrou ter sabor mil vezes melhor do que qualquer outro. E a madrasta enterrou seus ossos num monturo. 

No dia seguinte, Yeh Hsien voltou e ao aproximar-se da lagoa verificou que o peixe desaparecera. Correu para chorar escondida no meio do mato e nisso um homem de cabelo desgrenhado e coberto de andrajos desceu dos céus e a consolou, dizendo: - “Não chore. Sua mãe matou o peixe e enterrou os ossos num monturo. Vá para casa, leve os ossos para seu quarto e os esconda. Tudo o que você quiser peça que lhe será concedido". Yeh Hsien seguiu o conselho e pouco tempo depois tinha uma porção de ouro, de jóias e roupas de tecido tão caro que seriam capazes de deleitar o coração de qualquer donzela. 

Na noite de uma festa tradicional chinesa, Yeh Hsien recebeu ordens de ficar em casa para tomar conta do pomar. Quando a jovem solitária viu que a mãe já ia longe, meteu-se num vestido de seda verde e seguiu-a até o local a festa. A irmã, que a reconhecera virou-se para a mãe dizendo: - "Não acha aquela jovem estranhamente parecida com minha irmã mais velha ?" A mãe também teve a impressão de reconhecê-la. Quando Yeh Hsien percebeu que a fitavam, correu, mas com tal pressa que perdeu um dos sapatinhos, o qual foi cair nas mãos dos populares. 

Quando a mãe voltou para casa encontrou a filha dormindo com os braços ao redor de uma árvore; assim pôs de lado qualquer pensamento que pudesse ter sido acerca da identidade da jovem ricamente vestida. 

Ora, perto das cavernas, havia um reino insular chamado T'o Huan. Por intermédio de forte exército governava duas vezes doze ilhas e suas águas territoriais cobriam vários milhares de li. O povo vendeu, portanto, o sapatinho para o Reino T'o Huan, onde foi ter às mãos do rei. O rei fêz as suas mulheres experimentá-lo, mas o sapatinho era cerca de uma polegada menor dos das que tinham os menores pés. Depois fez com que o experimentassem todas as mulheres do reino sem que nenhuma conseguisse calçá-lo. 

O rei, então, suspeitou que o homem que o tinha levado o tivesse obtido por meios mágicos e mandou aprisioná-lo e torturá-lo. Mas o pobre infeliz nada pôde dizer sobre a procedência do sapato. Finalmente, emissários e correios foram enviados pela estrada para irem de casa em casa a fim de prenderem quem quer que tivesse o outro sapatinho. O rei estava muito intrigado. 

A casa foi encontrada, bem como Yeh Hsien. Fizeram-na calçar os sapatinhos e eles couberam perfeitamente. Depois ela apareceu com os sapatinhos e o vestido de seda verde tal como uma deusa. Mandaram contar o caso ao rei e o rei levou Yeh Hsien para seu palácio na ilha juntamente com os ossos do peixe. 

Assim que Yeh Hsien foi levada, a mãe e a irmã foram mortas a pedradas. Os populares apiedaram-se delas, sepultando-as num buraco e erigindo um túmulo a que deu o nome de "Túmulo das Arrependidas". Passaram a reverenciá-las como espíritos casamenteiros e sempre que alguém pedia-lhes uma graça no sentido de arranjar ou ser feliz em negócios de casamento tinha certeza de que sua prece era atendida. 

O rei voltou à sua ilha e fez de Yeh Hsien sua primeira esposa. Mas durante o primeiro ano de seu casamento, ele pediu aos ossos do peixe tantos jades e coisas preciosas que eles se recusaram a conceder-lhe mais desejos. Por isso o rei pegou os ossos e enterrou-os bem perto do mar, junto com uma centena de pérolas e uma porção de ouro. Quando seus soldados se rebelaram contra ele, foi ter ao lugar em que enterrara os ossos, mas a maré os levara e nunca mais foram encontrados até hoje. Essa história me foi contada por um velho servo de minha família, Li Shih-yüan. Ele descendia de um povo chamado Yungchow e sabia de muitas historias estranhas do sul.

Fonte:

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Carlos Drummond de Andrade (O Telhado)


Em janeiro choveu a potes na cidade, mas onde choveu dez vezes mais do que em outro lugar qualquer foi na Rocinha. Isso me garantiu Biguá, uma semana depois da enchente trágica. Apareceu arrasado, no escritório. Seu barraco não rolou no abismo porque Deus não quis, ou porque, a certa altura, achou que era exagero ferir assim um humilde. Mas o quartinho das crianças ficou sem telhado, os móveis fugiram na correnteza, e se vier outro toró…

— Coragem, Biguá. Pelo menos, não morreu ninguém em casa.

— Não morreu, porque pobre não morre, senão acabava a pobreza na Terra.

Os colegas ajudaram Biguá como foi possível, com roupas e um dinheirinho; não era o único atingido pela calamidade. As precisões mais urgentes foram atendidas. Restava reconstruir o barraco, e a Caixa Econômica veio em auxílio dos flagelados, seiscentos mil cruzeiros de empréstimo a cada um.

— Para mim ela não vem, que eu não tenho pistolão. Já morei na jogada.

— De qualquer jeito, taca o pedido, Biguá.

— Vou tacar, mas sei que é bobagem. Vê lá se eles dão pelota a um joão-ninguém como eu.

Dias depois, com o sorriso amargo e triunfante do pessimista, comentava:

— Eu não falei? Os engenheiros estiveram lá, viram uma porção de barracos, nem pararam na minha porta.

Mais uma semana, duas, os engenheiros pararam, assuntaram, tomaram apontamento, mas Biguá mantinha-se cético:

— Qual. Seiscentos contos, que é bom, eles não me dão.

E os meninos — sete — dormindo na casa arruinada, à luz das estrelas, quando havia estrelas. Se chovia, era um corre-corre assustado, para tirar os colchões, defender os pobrezinhos. E o vento, mosquitos, todos os males e perigos da noite, cercando a família de Biguá.

— Como é? Já chegou o tutu?

— Não chegou nem chega nunca. Eu sabia que era só pra uns, os folgados. Isso não endireita não.

Os acontecimentos passam mais depressa do que o tempo, e o tempo vai na chispada. Quem se lembra hoje do terrível janeiro? Vaga recordação, se tanto, daqueles dias e noites de pesadelo. Os que sofreram e escaparam não se queixam mais. Até Biguá, o ácido, o inconformado e descrente, silenciou — ou são os colegas que já não lhe dão ouvidos à plangência.

Até que afinal, em dia de pouco serviço ou pouca novidade, à hora do cafezinho, alguém bole naquelas horas medonhas que o Rio passou, desabamentos, mortes, a comoção geral, o impacto.

— Ah, é verdade, Biguá, e aquele empréstimo da Caixa Econômica, hem? Você recebeu?

— Custou muito, mas recebi. Mixaria.

— Quer dizer que teu barraco foi consertado, e você nem contou pra gente.

— Não deu pra consertar nada.

— Espera aí, rapaz, seiscentos contos! Ou você queria trocar por um duplex?

— Vocês estão debochando, porque não conhecem meu barraco. Não adiantava botar telhado novo. Quem chegava lá e via a pobreza, nem olhava pra cima: baixava a cabeça. Eu tinha tristeza quando as colegas de minhas garotas iam estudar ou bater papo. Pobreza é apelido.

— E que é que você fez com o dinheiro?

— Que que eu fiz? Que que eu podia fazer? Me ofereceram uma televisão e uma geladeira de segunda mão, negócio bacana, todo mundo lá na Rocinha tem esses troços, só eu não tinha, dei quinhentos e oitenta contos pelos dois, foi isso que eu fiz. O telhado não tem jeito não, eu sei que não dou sorte, fico só pensando noutra enchente!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poemas Escolhidos) II


VOZ DO CORAÇÃO

Disseram-me que sou louco varrido,
Que vivo vagueando em ilusão,
Meus versos são delírios coloridos
Tal lírios no jardim inda em botão. 

Que minh’ alma é um ninho de saudade
A viver só de sonho e fantasia,
Que não vivo num mundo de verdade,
Que a paz que tanto prego é utopia! 

É assim que quero viver meu mundo,
Tendo n’alma um ninho de alegria,
Onde o amor seja pleno e fecundo
Como o sol clareando um novo dia

Que venha a paz que todos nós queremos,
Justiça seja feita ao nosso irmão,
Que cale a voz e fale o coração.
Pois só assim a PAZ conquistaremos.

VOCÊ

No rosto traz um sorriso 
terno, amigo e verdadeiro, 
no peito traz um gigante, 
que se abre a todo instante 
e acolhe um mundo inteiro!

És ternura da mais terna, 
és doçura da mais doce, 
e se eu poeta fosse,
diria da forma mais Vera: 
és outono, primavera, 
o mais ardente verão! 
És acalento, alegria, 
meu sonho de cada dia, 
és tudo afinal então!

E neste dia de hoje, 
quero te confessar: 
se eu fosse o Criador, 
dar-te-ia o céu, o mar, 
o campo coalhado de flor, 
e para arrematar, 
dar-te-ia todo amor, 
que se possa imaginar!

VIDA ETERNA

Se e vida fosse eterna,
Sem princípio, meio e fim,
Mesmo assim seria curta
Com você perto de mim.

Sua presença envolvente,
Com volúpia e paixão
Roubar-me-ia o juízo,
Tirar-me-ia a razão,
E a eternidade pra mim
Ser-me-ia breve, então.

Mas sei que a eternidade
É invenção de profeta,
Uma mera utopia,
Sonho louco de poeta,
Não existe de verdade,
Pois é pura fantasia.

Assim retomo o sentido,
A consciência, o tino...
Aceitando o meu destino,
Rogo-lhe usando a razão:
Seja minha, pelo tempo,
Pelo mais longo momento
Que lhe for possível, então!

VIDA

A vida é como a alvorada
Renascendo em cada dia,
É acalento, alegria,
É brisa soprando ao léu,
É a doce aurora nascendo
E aos poucos acendendo
O brilho azul lá do céu.

A vida é uma criança
Com seu sorriso contente
A mostrar pra toda gente
De forma plena e total
Que ainda existe esperança
Neste mundo desigual.

A vida é um sonho dourado
Que todos devem sonhar
Recordando no passado
Os momentos tão amados
Que o mundo pôde nos dar.

A vida é a própria existência
Nascida da Criação.
É a razão, a essência,
Obra divina de Deus,
Seja pra crente ou ateu
É tudo, afinal, então!

VÍCIO

O teu silêncio me cala,
A tua voz me dá vida,
Tua canção me embala,
Teu colo me dá guarida.

O teu sorriso me anima,
O teu abraço me aquece.
Querer-te é a minha sina,
Desejar-te me apetece.

Tua presença me encanta,
A tua ausência me mata.
E a saudade que é tanta!
Às vezes até me espanta
O tanto que me maltrata!

VERSOS COLORIDOS

No velho banco de um jardim florido,
Garimpo n’alma minha inspiração;
Rabisco em preto versos coloridos
Que desabrocham cheios de paixão.

O céu azul capricha no cenário,
A brisa leve sopra de mansinho,
Lá no ipê rosa canta o meu canário
- Meu coração a implorar carinho.

A noite surge, vem render a tarde,
Que já cansada põe-se a cochilar...
Dentro do peito a nostalgia arde.

E cai o dia... vem a longa noite.
Chega a  lembrança pra me maltratar,
E a saudade a me sovar com o açoite!

Fonte:

Guy de Maupassant (O Colar de diamantes)


Era uma dessas moças lindas e encantadoras, nascidas, como por um erro do destino, numa família de funcionários. Não tinha dote nem esperanças, nenhum meio de ser conhecida, compreendida, amada, desposada por um homem rico e distinto; e deixou que a casassem com um amanuense do Ministério da Instrução Pública.

Ela foi singela e modesta, já que não podia entregar-se ao luxo, mas infeliz como uma desclassificada; pois as mulheres não têm casta nem raça, e a sua beleza, a sua graça e o seu encanto é que lhes servem de nascimento e de família. A delicadeza nata, o instinto da elegância, a finura de espírito são a sua única hierarquia, e fazem das filhas do povo rivais das mais altas damas.

Sentindo-se nascida para todas as delicadezas e para todos os luxos, ela sofria continuamente. Sofria com a pobreza da sua casa, a miséria das paredes, com as cadeiras puídas, os estofados de mau gosto. Todas essas coisas, que qualquer outra mulher da sua casta nem mesmo teria notado, a torturavam e indignavam. Avista da pequena bretã que a servia despertava nela profundos pesares e sonhos sem fim. Ela pensava nas antecâmaras silenciosas, forradas de panos orientais, iluminadas por altos candelabros de bronze, e nos dois grandes lacaios de calções curtos que cochilam nas vastas poltronas, com o calor pesado do aquecedor. Pensava nos grandes salões revestidos de seda antiga, nos móveis finos carregados de bibelôs inestimáveis, e nos graciosos salõezinhos perfumados, feitos para a conversa das cinco horas com os amigos mais íntimos, os homens conhecidos e cortejados, cuja atenção todas as mulheres invejam e desejam. Quando, na hora do jantar, sentava-se à mesa redonda coberta de uma toalha de três dias, defronte ao marido que destapava a terrina, declarando com um ar encantado: "Ah! Que lindo cozido! Não há nada melhor que isto...", ela pensava nos jantares finos, na prataria brilhante, nas tapeçarias a povoarem os muros de personagens antigos e de pássaros estranhos em meio a uma floresta de magia; pensava nos pratos esquisitos, servidos em maravilhosas baixelas, nas galanterias ditas num sussurro e escutadas com um sorriso de esfinge, enquanto mordiscava a carne rósea de uma truta ou uma asa de frango.

Não tinha toaletes, nem jóias, nada. E só gostava disso, sentia-se feita para isso. E gostaria tanto de agradar, de ser invejada, sedutora, assediada!

Tinha uma amiga rica, uma colega do colégio, que não queria mais visitar, tanto isto a fazia sofrer. Pois na volta ela chorava durante dias inteiros, de desgosto, de pensar, de desespero e desolação.

Ora, uma tarde o marido chegou com um ar triunfante, trazendo na mão um grande envelope.

— Olhe — disse ele —, eu trouxe uma coisa para você. 

Ela rasgou vivamente o papel e retirou um cartão impresso com os seguintes dizeres:

O ministro da Instrução Pública e Mme. Georges Ramponneau têm a honra de convidar M. e Mme. Loisel para o sarau que se realizará no Palácio do Ministério, no dia 18 de janeiro, segunda-feira.

Em vez de ficar radiante, como esperava o marido, ela atirou com despeito o convite em cima da mesa, murmurando:

— Que quer que eu faça com isso?

— Mas, minha querida, pensei que você ficaria-contente. Você nunca sai, nunca aparece. E esta é uma belíssima ocasião. Não imagina o trabalho que eu tive para conseguir esse convite. Todos querem; é muito procurado; e há muito poucos para distribuir aos funcionários. Você verá lá todo o mundo oficial.

Ela o analisava com um olhar irritado e declarou com impaciência:

— Mas o que você quer que eu vista para ir? 

Ele não tinha pensado nisso, e balbuciou:

— O vestido com que vai ao teatro... Ele me parece muito bem...

Calou-se, estupefato, desorientado, vendo que sua mulher chorava. Duas grossas lágrimas desciam, lentamente, do canto dos olhos para o canto dos lábios; ele gaguejou:

— O que você tem? O que você tem?

Mas, num violento esforço, ela se dominara e respondeu com uma voz calma, enxugando as faces úmidas:

— Nada. Somente que eu não tenho toalete e por conseguinte não posso ir a essa festa. Dê o convite a qualquer colega cuja mulher possa vestir-se melhor do que eu.

Ele estava desolado. Falou-lhe:

— Vejamos, Mathilde. Quanto custaria uma toalete conveniente, que ainda pudesse servir em outras ocasiões, alguma coisa bastante simples?

Ela refletiu alguns segundos, fazendo suas contas e pensando também na soma que poderia pedir sem provocar uma recusa imediata e uma exclamação de horror do econômico amanuense. Enfim, ela respondeu, com hesitação:

— Não sei ao certo, mas me parece que com uns quatrocentos francos eu poderia arranjar a coisa.

Ele empalidecera um pouco, pois tinha reservado justamente aquela soma para comprar um fuzil e fazer caçadas com alguns amigos, aos domingos, no próximo verão, em Nanterre. Mas disse:

— Está bem. Eu te dou quatrocentos francos. Mas trate de arranjar um belo vestido.

Aproximava-se o dia da festa, e Mme. Loisel parecia triste, inquieta, ansiosa. Contudo, seu vestido estava pronto. O seu marido lhe disse uma noite:

— O que você tem? Há três dias que anda com um jeito esquisito.

E ela respondeu:

— Aborrece-me não ter uma joia, uma pedra, nada para pôr.

Assim, continuarei com um aspecto de miséria. Eu até preferia não ir a essa festa. Ele insistiu:

— Ponha flores naturais. É muito chique nesta estação. Por dez francos, terá duas ou três rosas magníficas.

Ela não estava convencida.

— Não... não há nada mais humilhante do que ter um ar de pobre em meio de mulheres ricas.

Mas o marido exclamou:

— Como você é tola! Vá procurar sua amiga Mme. Forestier e peça-lhe uma joia emprestada. Tem bastante intimidade com ela para isso.

Ela lançou um grito de alegria:

— É verdade. Eu não tinha pensado em tal coisa.

No dia seguinte ela foi à casa da amiga e lhe expôs sua situação. Mme. Forestier foi ao seu armário de espelho, pegou um grande cofre, trouxe-o, abriu-o, e disse a Mme. Loisel:

— Escolha, minha querida.

Ela examinou uns braceletes, depois um colar de pérolas depois uma cruz veneziana, ouro e pedrarias, de um admirável valor. Experimentava as jóias diante do espelho, hesitava, não podia decidir-se a deixá-las, a devolvê-las. Perguntava sempre:

— Não tem mais outra coisa?

— Claro. Procure. Eu não sei o que pode agradá-la. De repente ela descobriu, num estojo de cetim negro, um soberbo colar de diamantes; e o seu coração pôs-se a bater num imoderado desejo. Suas mãos tremiam ao segurá-lo. Ela o atou por cima do peitilho, e ficou em êxtase diante de si mesma.

Depois perguntou, hesitante, cheia de angústia:

— Pode emprestar-me este, somente este?

— Como não? Está às ordens.

Ela saltou no pescoço de sua amiga, beijou-a com frenesi, depois fugiu com o seu tesouro.

Chegou o dia da festa. Mme. Loisel obteve um verdadeiro sucesso. Ela era a mais linda de todas, elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria.Todos os homens a olhavam, perguntavam seu nome, procuravam ser apresentados. Todos os adidos do gabinete queriam dançar com ela. O ministro notou-a. 

Ela dançava com embriaguez, com êxtase, arrebatada pelo prazer, sem pensar em mais nada, na apoteose da sua beleza, na glória do seu sucesso, em uma espécie de nuvem de felicidade, feita de todas aquelas homenagens, de todas aquelas admirações, de todos aqueles desejos despertados, daquela vitória completa e tão grata ao coração das mulheres. 

Ela partiu pelas quatro da manhã. Seu marido, desde a meia-noite, dormia numa saleta deserta com três outros senhores cujas mulheres se divertiam muito. Ele lançou-lhe sobre os ombros os abrigos que trouxera para a saída, modestos abrigos da vida ordinária, cuja pobreza contrastava com a elegância do vestido de baile. Ela o percebeu e quis fugir, para não ser notada pelas outras mulheres, que se envolviam em luxuosos casacões.

Loisel a segurava:

— Espere. Vai se resfriar assim. Eu vou chamar um fiacre.

Ela, porém, não escutava e descia rapidamente a escadaria. Quando chegaram à rua, não encontraram carro; e puseram-se em busca de um, chamando os cocheiros que viam passar ao longe.

Desciam ambos na direção do Sena, desesperados, tiritantes. Enfim, acharam no cais um desses velhos cupês, noctâmbulos, que só aparecem em Paris ao cair da noite, como se ficassem envergonhados da sua miséria durante o dia.

Ele os levou até sua porta, na rua dos Mártires, e os dois subiram tristemente para os aposentos. Estava acabado para ela. E ele pensava que seria preciso estar no Ministério às dez horas. Ela tirou o abrigo que pusera nos ombros diante do espelho, a fim de verse uma vez mais em toda sua glória. Mas de súbito soltou um grito. O colar não estava mais no seu pescoço.

O marido, já meio despido, perguntou:

— O que você tem?

Ela voltou-se, louca de medo:

— Eu... eu... eu não tenho mais o colar de Mme. Forestier.

Ele ergueu-se desvairado:

— Quê!... Como!... Não é possível!

E procuraram nas pregas do vestido, nas dobras do casacão, nos bolsos, por toda parte. Ele perguntava:

— Tem certeza de que ainda o tinha ao deixar o baile?

— Sim, eu toquei nele no vestíbulo do Ministério.

— Mas se o houvesse perdido na rua, nós o teríamos ouvido cair. Deve estar no fiacre.

— Sim. É provável. Guardou o número?

— Não. E você, não reparou?

— Não.

Eles se contemplavam aterrados. Enfim Loisel tornou a vestir-se.

— Eu vou — disse ele — refazer todo o trajeto que fizemos, a pé, para ver se o encontro.

E ele saiu. Ela ficou de vestido de baile, sem forças para deitar-se, atirada numa cadeira, sem ânimo, sem um pensamento. O marido voltou pelas sete horas. Nada havia encontrado. Ele foi à chefatura de polícia, aos jornais, para prometer uma recompensa, às pequenas companhias de transportes, a toda parte, enfim, aonde uma suspeita de esperança o levava.

Ela esperou todo o dia, no mesmo estado de terror ante aquele medonho desastre. Loisel voltou à noite, desfigurado, pálido, nada descobrira.

— É preciso — disse ele — escrever à sua amiga, contando-lhe que você quebrou o fecho do colar e que mandou consertá-lo. Isto nos fará ganhar tempo.

E ele ditou-lhe a carta.

Ao fim de uma semana, toda esperança estava perdida. E Loisel, envelhecido cinco anos, declarou:

— É preciso substituir o colar.

Tomaram no dia seguinte o estojo que o encerrara, e foram ao joalheiro cujo nome se achava impresso no seu forro. Ele consultou seus livros:

— Não fui eu, madame, quem vendeu o colar. Devo ter fornecido apenas o estojo.

Então foram de joalheiro em joalheiro, procurando um colar igual ao outro, consultando a sua memória, ambos doentes de pena e de angústia. Acharam, numa loja do Palais Royal, um colar de diamantes que lhes pareceu corresponder exatamente ao que procuravam. Custava quarenta mil francos. Mas o deixariam por trinta e seis mil. Pediram então ao joalheiro que não o vendesse antes de três dias. E ficou combinado que o devolveriam por trinta e quatro mil francos, se o primeiro fosse encontrado antes do fim de fevereiro.

Loisel possuía dezoito mil francos, que seu pai lhe havia deixado. Pedira emprestado o resto. Conseguiu mil francos com um, quinhentos com outro, cinco luíses aqui, três luíses acolá. Assinou promissórias, assumiu compromissos ruinosos, houve-se com usurários, com toda casta de agiotas. Comprometeu todo o fim da sua existência, arriscou sua assinatura sem saber se poderia garanti-la, e atemorizado com as angústias do futuro, com a miséria negra que ia abater-se sobre ele, com a perspectiva de todas as privações físicas e de todas as torturas morais, ele foi buscar o colar novo, pousando sobre o balcão do negociante os trinta e seis mil francos.

Quando Mme. Loisel levou o colar a Mme. Forestier, esta disse, com um ar irritado:

— Você deveria tê-lo trazido mais cedo, pois eu poderia precisar dele.

Ela não abriu o estojo, o que mais temia sua amiga. Se ela notasse a substituição, o que não pensaria? O que não diria? Não a teria tomado por uma ladra?

Mme. Loisel conheceu a vida horrível dos necessitados. Ela tomou seu partido, aliás, sem hesitações, heroicamente. Era preciso pagar aquela dívida terrível. Ela pagaria. Despediram a criadinha, mudaram de casa, alugaram uma água-furtada.

Ela conheceu os trabalhos grosseiros da casa, as odiosas tarefas da cozinha. Lavou os pratos, estragou as unhas róseas na louça gordurenta e no fundo das caçarolas. Ela ensaboou a roupa suja, as camisas e os esfregões, que fazia secar numa corda; manhã após manhã, carregou o lixo para a rua e a água para dentro, parando a cada andar para tomar fôlego. E, vestida como uma mulher do povo, foi ao mercadinho, ao vendeiro, ao açougueiro, regateando e recebendo injúrias, defendendo cobre a cobre o seu miserável dinheiro.

Era preciso cada mês pagar letras, renovar outras, conseguir prazo. O marido fazia à tardinha a escrita de um comerciante e, de noite, muitas vezes, fazia cópia a cinco sous a página. E esta vida durou dez anos.

Ao fim de dez anos, haviam restituído tudo, tudo, com a taxa do ágio e o acúmulo dos juros superpostos.

Mme. Loisel parecia velha agora. Tornara-se a mulher forte, rija e rude, dos lares pobres. Mal penteada, com as saias de viés e as mãos vermelhas, ela falava alto, lavava os soalhos. Mas às vezes, quando seu marido estava na repartição, ela sentava-se junto à janela e pensava naquela festa de outrora, naquele baile em que fora tão bela e tão festejada.

Que teria acontecido, se não houvesse perdido aquele colar? Quem sabe? Quem sabe? Como a vida é estranha, mutável! Basta um quase nada, para nos perder ou para nos salvar!

Ora, um domingo, ao dar uma volta pelos Campos Elíseos, para descansar dos trabalhos da semana, ela avistou de repente uma mulher que passeava com um menino. Era Mme. Forestier, sempre jovem, sempre bela, sempre sedutora. Mme. Loisel sentiu-se comovida. Deveria falar-lhe? E, agora que já havia pago, lhe contaria tudo. Por que não?

Aproximou-se.

— Bom-dia, Jeanne.

A outra não a reconhecia, espantando-se por ser chamada de modo tão familiar por aquela mulher do povo. Ela balbuciou:

— Mas... madame!... Eu não compreendo... Deve estar enganada.

— Não. Eu sou Mathilde Loisel. 

A amiga soltou um grito:

— Oh!... minha pobre Mathilde, como estás mudada!...

— Sim, eu tenho atravessado dias bastante duros, desde que a vi pela última vez; e muita miséria... e tudo isto por sua causa!...

— Por minha causa! Como assim?

— Não se lembra daquele colar de diamantes que me emprestou para a festa do Ministério?

— Sim. E daí?

— Pois bem, eu o perdi.

— Mas como? Se o devolveu.

— Eu devolvi um outro igual. E levamos dez anos para pagá-lo. Bem compreende que não era muito fácil para nós, que não tínhamos nada... Enfim, acabou-se, e eu sinto-me contente, afinal.

Mme, Forestier estacou, de súbito.

— Está me dizendo que comprou um colar de diamantes para substituir o meu?

— Sim. Não notou nada, hein? Eles eram idênticos. – E ela sorria com uma alegria orgulhosa e ingênua. Mme. Forestier, muito comovida, lhe tomou as duas mãos.

— Oh! minha pobre Mathilde! M as o meu colar era falso. Valia quando muito uns quinhentos francos!…

Fonte:
Guy de Maupassant. Bola de sebo e outros contos. Rio de Janeiro/RJ: Globo, 1987.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Trova 329 - A. A. de Assis


Caldeirão Poético XVII



“Não Será Sempre Assim”

Não será sempre assim... Quando não for;
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito o estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer; fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
"Goza a ventura de que já gozei:"

Depois, desviando os olhos, de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.

(Tradução de Manuel Bandeira)


“Os lábios que meus lábios beijaram ”

Os lábios que meus lábios beijaram, onde e quando,
eu esqueci, e os braços que se estenderam
sob minha cabeça até o amanhecer... Mas a chuva
se povoa de espectros esta noite; eles batem à janela
e espiam pelos vidros atrás de uma resposta.
Uma dor silenciosa em minha alma se agita,
rapazes esquecidos que não voltarão mais
a procurar-me entre lágrimas à noite.

Assim também no inverno a árvore solitária
ignora quais os pássaros que se foram um a um
e, no entanto, sente mudos seus galhos, mais que antes;
não sei contar os amores que se foram um a um,
sei apenas que o verão cantou em mim
um curto instante, e já não canta mais...

(Tradução livre de Sérgio Milliet)


“Num Certo Lugar Da Alma”

Num certo lugar da alma, entre muros de olvido
em terra estéril, seca, enterram-se os amores
que nasceram sem vida; em chão sempre querido
de onde, sonho após sonho, a vida se abre em flores;

os que intentavam ter seu ninho, construído
quando os minutos maus, terríveis, caçadores
atingiram-lhes a asa... e os que apenas têm sido
piedoso lenitivo a aplacar nossas dores!

A tais sepulcros, sei, devemos o tributo
que a nossa alma nos cobra o seu denso mistério...
Por mortos tais, porém, eu nunca ponho luto

e ao entrar em mim mesma, - esse lugar esquivo...
Que numa tumba está, desse meu cemitério
um grande amor que tive e que enterraram vivo!

(Tradução de Luis Antonio Pimentel)


Coisas de Pássaros

Quase a romper-se parecia o fino
tecido, ao voo palpitante e belo
dos teus seios que, ansiavam num anhelo,
se transformar num manancial divino

de leite e vida, amor, ternura e mel.
Oh, lindos seios, túmidos arminhos,
que dás aromas de fragrantes vinhos!
-redondezas de pombos pelo céu!

Amo-te as formas e o perfume; canto
perfume e forma do teu duplo encanto.
Oh, nobre encanto que a  atrair, deleitas,

doce mistério da estação mais pura
bendita fonte de vital doçura
frutos que prenunciam mil colheitas!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)

Fonte:
J G de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. 
vol. III (Poesia Universal - Européia e Americana), 1966.

Hans Christian Andersen (A Margarida)


No campo, perto da grande estrada, estava situada uma gentil morada que você já deve ter notado. Na frente dela se encontra um jardim com flores e uma paliçada verde; não longe dali, no meio da erva fresca, floria uma pequena margarida. Graças ao sol que a aquecia com seus raios assim como às grandes e ricas flores do jardim, ela se desenvolvia a cada hora. 

Certa manhã, inteiramente aberta, com suas pequenas pétalas brancas e brilhantes, que se pareciam com um sol em miniatura rodeado de seus raios, quando a percebiam na relva e a fitavam como a uma flor insignificante, ela se inquietava um pouco. Vivia contente, respirava as delícias do calor do sol e ouvia o canto do rouxinol que se elevava nos ares. E assim a pequena margarida estava feliz como num dia de festa, embora fosse apenas segunda- feira. 

Enquanto as crianças, sentadas no banco da escola, aprendiam as suas lições, ela, sustentada por seu caule verde, aprendia sobre a beleza da natureza e sobre a bondade de Deus, e parecia-lhe que tudo o que sentia em silêncio, o pequeno rouxinol exprimia perfeitamente em suas canções felizes. Assim ela olhava com uma espécie de respeito o pássaro feliz que cantava e voava mas não sentia a mínima vontade de fazer outra coisa. 

– “Eu vejo e ouço - pensou ela –  o sol me aquece e o vento me beija. Oh! eu faria mal se me queixasse?”

 Dentro do jardim havia uma quantidade de flores lindas e viçosas; quanto menos perfume tinham mais bonitas eram. As peônias se inflavam afim de parecerem maiores do que as rosas, mas não é o tamanho que faz uma rosa. As tulipas brilhavam pela beleza de suas cores e se pavoneavam com pretensão, não se dignavam lançar um olhar sobre a pequena margarida, enquanto que a pobre as admirava dizendo: 

– “Como são ricas e belas! Sem dúvida o pássaro maravilhoso vai visitá-las. Obrigada, meu Deus, por poder assistir a esse belo espetáculo?” 

E, no mesmo instante, o rouxinol levantava seu voo, não para as peônias e às tulipas, mas para a relva ao lado da pobre margarida que, louca de alegria, não sabia mais o que pensar. O pequeno pássaro começou a saltitar em volta dela cantando: 

– Como a relva é macia! Oh! 

A música encantando a florzinha de coração de ouro e vestido de prata! Não se pode fazer uma ideia da bondade da pequena flor. O pássaro a beijou com seu bico, cantou à sua frente, depois subiu para o azul do céu. 

Durante mais de um quarto de hora, a margarida não pôde se refazer da sua emoção. Um pouco envergonhada, mas orgulhosa no fundo do coração, ela olhou para as outras flores do jardim. Testemunhas da honra de que fora alvo, elas deveriam compreender a sua alegria, mas as tulipas ainda estavam mais rígidas do que antes, sua figura vermelha e pontuda exprimia seu despeito. As peônias levantavam a cabeça com soberba. Que sorte para a margaridinha que elas não pudessem falar! Teriam dito coisas bem desagradáveis. A florzinha apercebeu-se e ficou triste com aquele mau humor. 

Alguns instantes depois, uma menina armada de uma grande faca afiada e brilhante entrou no jardim, aproximou-se das tulipas e cortou-as uma a uma. 

 – “Que infelicidade!”, disse a margaridinha suspirando, “Eis uma coisa pavorosa!” 

E enquanto a menina levava as tulipas, a margarida se alegrava por não ser mais do que uma florzinha no meio da relva. Apreciando a bondade de Deus e cheia de reconhecimento, ela fechou suas folhas no fim do dia, adormeceu e sonhou a noite inteira com o sol e o pequeno pássaro. 

Na manhã seguinte, quando a margarida abriu suas pétalas ao ar e à luz, reconheceu a voz do pássaro, mas seu canto era muito triste. O coitado fora aprisionado dentro de uma gaiola e suspenso na varanda. Cantava a felicidade da liberdade, a beleza dos campos verdejantes e as antigas viagens pelos ares. A pequena margarida bem que quisera ir em seu auxílio, mas que fazer? Era uma coisa difícil. A compaixão que ela sentia pelo pobre pássaro cativo fez com que se esquecesse das belezas que a rodeavam, o doce calor do sol e a brancura extasiante de suas próprias pétalas. 

Logo dois meninos entraram no jardim, o mais velho levava na mão uma faca comprida e afiada como a da menina que cortara as tulipas. Dirigiram-se para a margarida que não podia compreender o que eles queriam. 

– Aqui nós podemos levar um belo pedaço de erva para o rouxinol! - disse um dos meninos, e começou a cortar um quadrado profundo em volta da pequena flor. 

– Arranque a flor! – disse o outro. 

Ao ouvir essas palavras a margarida tremeu de medo. Ser arrancada significava perder a vida, e jamais ela gozara tanto a existência como naquele momento em que esperava entrar com a grama na gaiola do pássaro cativo. 

– Não, deixemo-la aí! - respondeu o maior - Ela está muito bem colocada. 

E assim ela foi poupada e entrou na gaiola do pássaro. O pobre pássaro, lamentando amargamente o seu cativeiro, batia com as asas nos ferros da gaiola. E a pequena margarida não podia, malgrado todo o seu desejo, fazê- lo ouvir uma palavra de consolo. E assim se passou o dia. 

– Não há mais água aqui? - gritava o prisioneiro – Todos saíram sem me deixar uma gota de água. Minha boca está seca e tenho uma sede terrível! Ai de mim! Vou morrer, longe do sol brilhante, longe da fresca erva e de todas as magnificências da criação! 

Mergulhou o bico na erva úmida a fim de refrescar- se um pouco. Seu olhar caiu sobre a pequena margarida. Fez um sinal amistoso e disse ao beijá-la: 

– Você sim, pequena flor, perecerá aqui! Em troca do mundo que eu tinha à minha disposição, deram-me algumas folhas de relva e você como companhia. Cada folha de erva deve ser para mim uma árvore, cada uma de suas pétalas brancas uma flor odorífera. Ah! você me faz lembrar tudo aquilo que eu perdi! 

– “Se eu pudesse consolá-lo!”, pensava a margarida, incapaz de fazer o mínimo movimento. No entanto, o perfume que ela exalava tornava- se cada vez mais forte, o pássaro compreendeu e, enquanto enfraquecia com uma sede devoradora que o fazia arrancar todos os pedaços de relva, tomava cuidado para não tocar na flor. 

A noite chegou, ninguém estava lá para levar uma gota de água para o pobre pássaro. Então ele abriu suas belas asas sacudindo-as convulsivamente e fez ouvir uma pequena canção melancólica. Sua cabecinha se inclinou para a flor e seu coração ferido de desejo e de dor cessou de bater. A esse triste espetáculo, a margaridinha não pôde, como na véspera, fechar suas pétalas para dormir, traspassada pela tristeza, caiu ao solo. 

Os meninos não chegaram senão no dia seguinte. Ao verem o pássaro morto, choraram muito e abriram uma sepultura. 0 corpo encerrado numa linda caixa vermelha foi enterrado realmente, e sobre seu túmulo semearam pétalas de rosa. Pobre pássaro! enquanto ele vivia e cantava, haviam-no esquecido em sua gaiola e deixaram-no morrer de sede. Depois de sua morte, choravam-no e enchiam-no de honrarias. A relva e a margarida foram jogadas no pó da estrada, e ninguém nem pensou que algum dia ela tivesse podido amar tão ternamente o pequeno pássaro.

Fonte: