segunda-feira, 6 de maio de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) IX


EU ABRI OS MEUS OLHOS

Eu abri os meus olhos para a noite
e o céu se debruçou sobre minhas retinas...

Eu abri os meus olhos para a noite
e a claridade entrou pela minha alma escura
como gritos de festa...
-e a escuridão ao rasgou-me ante os punhais da luz
cravados na minha alma,
como as clareiras cravam lâminas de luz
no corpo da floresta...

Dos profundos mistérios do meu Ser
num estranho rumor de asas rufando
veio uma sombra que era luz na sombra
e que brotou do chão,
- veio... pousou nos meus olhos abertos
e voou buscando o céu que viu lá fora
batendo as asas da imaginação. ..
..................

Senti-me como a estátua de mim mesmo...
O meu corpo ficou como uma catedral
sonâmbula e vazia
onde se co'a a luz mortiça dos vitrais...
E a minha alma fugiu
(pobre alma sonhadora !)
pelos raios de luz dos vitrais dos meus olhos,
- tal como foge sempre
na ilusão de subir e não pousar jamais! . . .

EU TE QUERIA TÃO DIFERENTE

Há muito eu te esperava...

Mas eu queria que quando chegasses
trouxesses nos teus olhos vultos de bonecas;
e a tua boca sorrisse o sorriso dos botões
apenas entreabertos;
e as tuas mãos fossem como as folhas fechadas
de um livro que ninguém leu;
e a tua alma fosse mais pura do que a fonte
que canta dentro da pedra
e ainda por sobre a terra as águas não correu. . .

E tu chegaste...

Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua boca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vezes me parece pálida e amarela,
como uma folha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
.....................

Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como louco
um doente,
encontro em teu amor, às vezes, casualmente,
os restos de outro amor!

EU... E ARVERS

Hás de ler estes versos algum dia
e mais ou menos pensarás assim:

"- ele ainda sofre muito, e esta poesia
escreveu-a, bem sei, pensando em mim...
Sou a mulher que a inspira e que a anima,
pensava em mim no instante em que compôs,
e na incógnita sutil de cada rima
há um pedaço da história de nós dois...
Sinto-me em cada verso, em cada frase,
e as palavras que leio são as minhas...
- Sou eu essa mulher!... Vejo-me quase
na expressiva mudez das entrelinhas..."

E sorrirás... Eu sei que sorrirás
ante a certeza do meu sofrimento,
- é o teu prazer, sorrir desse tormento
que me causaste... e que não finda mais...

Ah! Feliz foi Arvers, bem mais do que eu!
Ao menos, essa a quem ele escrevia,
perguntou certa vez depois que o leu:
- "que mulher será essa..."

E não sorria...

EXALTAÇÃO AO AMOR

Sofro, bem sei...Mas se preciso for
sofrer mais, mal maior, extraordinário,
sofrerei tudo o quanto necessário
para a estrela alcançar...colher a flor...

Que seja imenso o sofrimento, e vário!
Que eu tenha que lutar com força e ardor!
Como um louco, talvez, ou um visionário
hei de alcançar o amor...com o meu Amor!

Nada me impedirá que seja meu,
se é fogo que em meu peito se acendeu,
e lavra, e cresce, e me consome o Ser...

Deus o pôs...Ninguém mais há de dispor...
Se esse amor não puder ser meu viver,
há de ser meu para eu morrer de Amor!

EXAUSTÃO

Falta essência... A minha alma trêmula vacila
como  um astro a faiscar, distante, na amplidão...
Vai no ocaso o meu sol... como rubra pupila
a se afundar na noite em plena escuridão

Às descargas de luz de cada sensação
e os sísmicos abalos, minha pobre argila
na carne exausta e exangue aos poucos se aniquila
como um monte de palha que entra em combustão!

Vou rolando em meu Ser de nevrose em nevrose
e como um sol que morre estourando luz
minha morte há de ser uma grande apoteose...

Despencarei nas trevas assim como um meteoro
deixando o turbilhão dos versos que compus
como estrelas de um céu esplêndido e sonoro!

FADA
 
Tua figura suave, delicada
nem parece que vive, parece bordada,
- como a boneca de seda de um desenho
de uma antiga almofada que eu tenho...

Teus gestos, teus embaraços
fazem lembrar finos traços
de uma filigrana,
e tão frágeis me parecem, tuas mãos, teus braços,
que nem sei se és de carne ou se és de porcelana...

Bonequinha de louça
linda moça,
tua alma é um fio de seda, estou bem certo,
e a minha imaginação
criou para o teu destino uma lenda encantada:

- jura que tu fugiste de algum livro
e que eras a ilustração
de uma história de fada !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

domingo, 5 de maio de 2019

Arthur de Azevedo (A Viúva do Estanislau)


Por ocasião da morte do marido, aquele pobre Estanislau, que, depois de uma luta horrível, foi afinal vencido pela tuberculose, Adelaide parecia que ia também morrer. Dizia-se que ela amava tanto o marido, que fizera o possível para contrair a moléstia que o matou e acompanhá-lo de perto no túmulo. Emagreceu a olhos vistos, e toda a gente contava que, mais dia menos dia, Deus lhe fizesse a vontade; mas o tempo, que tudo suaviza e repara, foi mais forte que a dor, e ano e meio depois de enviuvar, Adelaide estava rubicunda e linda como não estivera jamais.

O Estanislau deixou-a paupérrima. O pobre rapaz não contava arrumar a trouxa tão cedo, ou, por outra, não teve com que preparar o futuro.

Enquanto viveu, nada faltou em casa; depois que ele morreu, tudo faltou, e Adelaide, que felizmente não tinha filhos, aceitou a hospitalidade que lhe ofereceram seus pais. 

– Vem outra vez para o nosso lado, disseram-lhe os velhos; façamos de conta que te não casaste.

Não tardou muito que aparecesse um namorado à viúva. Era um excelente moço, o Miranda, que frequentava a casa dos velhos por ser funcionário da mesma secretaria onde o pai de Adelaide era chefe. Foi com muita satisfação que este notou a simpatia que o Miranda manifestava pela moça, e pulou de contente quando o rapaz, um dia, na repartição, se abriu com ele, dizendo-lhe que ser seu genro era o que mais ambicionava neste mundo. O velho foi para casa alegre como um passarinho, e disse tudo à mulher.

– Sabes, Henriqueta? O Miranda confessou-me hoje que gosta da Adelaide e quer casar-se com ela. Estou satisfeitíssimo, porque nossa filha não poderia encontrar melhor marido! Que me dizes?

– Digo que seu Miranda é uma sorte grande, mas duvido que Adelaide aceite.

– Duvidas, por quê?

– Porque ela só pensa no Estanislau: é uma viúva inconsolável. Engordou, tomou cores, goza saúde, mas aposto que não admite que lhe falem noutro casamento.

– Deixe-a comigo; vou sondá-la. O velho sondou-a, efetivamente, e reconheceu que D. Henriqueta calculava bem.

– Não me fale em casamento, papai! Eu considerar-me-ia uma mulher indigna se desse um substituto ao meu pobre Estanislau!

Mas o velho que não era peco, não se deixou vencer e insistiu, lançando mão de quanto argumento lhe sugeriu a sua longa experiência do mundo.

– Minha filha, numa terra de maldizentes como este Rio de Janeiro, a reputação de uma viúva moça e bonita corre tantos perigos, que a melhor resolução que tens a tomar, para fazer respeitar a memória honrada do teu Estanislau, é casares-te em segundas núpcias. Uma única dificuldade haveria para isso: o marido; mas neste particular, minha filha, foste de uma fortuna fenomenal. O Miranda caiu-te do céu! Olha, eu, se tivesse que escolher um genro, não escolheria outro -, e tu, se te casares com ele, darás muito prazer a tua mãe, e tornarás feliz a minha velhice.

Essas palavras, que acabaram molhadas de lágrimas de enternecimento, calaram no ânimo de Adelaide, e na mesma noite, como a família se achasse reunida na sala de jantar, e o Miranda presente, ela dirigiu-se a este nos seguintes termos:

– Meu amigo, sei que o senhor gosta muito de mim e deseja ser meu marido; sei que o nosso casamento daria muita satisfação a meus pais; mas devo dizer-lhe que ainda amo o Estanislau como se ele estivesse vivo, e não posso amar dois homens ao mesmo tempo.

Os velhos morderam os beiços; o Miranda remexeu-se na cadeira, sem responder.

– Sei também que o senhor é um perfeito cavalheiro e que nada lhe falta para ser um marido ideal; aprecio o seu caráter, a sua bondade, a sua inteligência; mas, se nos casarmos, não poderei levar-lhe o sentimento que todo o homem tem o direito de exigir no coração da sua noiva. Se depois desta declaração leal e honesta, persiste em querer ser meu esposo, aqui tem a minha mão.

– Aceito-a! respondeu prontamente o Miranda, tomando a mão que lhe estendeu Adelaide. - Aceito-a, porque, perdoe a minha vaidade, tenho alguma confiança no meu merecimento, e espero conquistar o seu amor!

Casaram-se, e hoje, que estão unidos há um ano, podem gabar-se – ela de ter tido verdadeiras surpresas fisiológicas, e ele de ser amado como o Estanislau nunca o foi.

– És então feliz, minha filha?

– Muito feliz, mamãe; o Miranda é tão bom marido, que, lá no outro mundo, o Estanislau, se meteu a mão na consciência, com certeza me perdoou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 4


AMORES
Amor de segunda-feira
perdido em filas e pagamentos
amor de terça-feira
cansado da correria da semana
amor de quarta-feira
breve descanso após o expediente
amor de quinta-feira
alegria e glória pela sequência
amor de sexta-feira
lobos e cordeiros em seus lugares
amor de sábado
caseiras tarefas semanais
amor de domingo
agradecer aos céus e aos deuses

amores de todos os dias
                        cansados
            sem brincadeiras.

DIVISÕES

Ainda
divididos em raças
cores
credos
filosofias
políticas
virtudes
e vícios

diferentes histórias
religiões
medos
bandeiras
e línguas

tanto nos separamos
por árduos caminhos
que ao nos reencontramos
não nos reconhecemos
iguais como irmão.

PASSAGEM

Lodo
barro

a primeira impressão
na extração da costela
ao estratificar a marca

lama
barro

dificuldades e sujeiras
impedem o livre andar
para haver sentimentos
através da multiplicação
do pensamento

superar a lama que resseca
a herança marcada no solo
pela passagem.

PRINCÍPIO

Os que vieram
na primeira leva
nada trouxeram
além de suas vidas

pobres
paupérrimos: vidas
estagnadas vindas
de lugares pobres
paupérrimos

os que vieram
na primeira vez
não trouxeram
medo ou raiva

suas vidas eram pobres
para terem medo ou raiva

trouxeram suas vidas
e na vida foram os primeiro.

RECOMEÇAR

Recomeçar
deste ponto
recarregado
em energias
revolvidos
pensamentos
reescritas
palavras
resolvidos
problemas
recorrentes
saudades

deste ponto
o recomeço
viável
ou o salto
repetido.

SEM MEMÓRIA

Nada vale o ser
sem sua memória recente
perdido em antigas histórias
que repete
em antigos amores
amortecidos
deslumbrado com novidades
envelhecidas
deslocado em ambientes
irreconhecíveis

nada vale o passado
desacompanhado
nem o futuro
não vislumbrado
em antigas passagens
fechadas pelo tempo
fossem túmulos.

VINGANÇA

Tanta raiva traz o homem
em sua vingança: mais
do que o inverno e o verão
de polos opostos em atração
da noite pelo dia
                na madrugada

tanta ira traz o homem
em sua vingança: o barco
emborcado no porto
enquanto animais ferozes
sobre a presa no irônico
gargalhar do surdo

quanto de santidade há no homem
em sua vingança: o direito pelo revide
na mão que soca o inimigo e o caroço
cuspido no prato

tantas razões irracionais
no homem em sua vingança.

Fonte:
Pedro Du Bois

Vinícius de Moraes (Com o pé na cova)


Segunda-feira última, ao entrar no Golden Room do Copacabana para a estreia do novo espetáculo de Carlos Machado, tive a mão vivamente apertada por um dos maitres da casa, velho chapa meu. Notei que me olhava com um ar ansioso.

- Como é? - perguntei-lhe. - Tudo em ordem?

- Puxa, dr. Vínícius... O senhor nem sabe como estou satisfeito! Imagine que hoje de tarde andou correndo que o senhor tinha morrido...

Fiz, por via das dúvidas, a minha figa, com o pai-de-todos e o furabolos, pensando na mãe do autor da gracinha. Mas a real satisfação do maitre meu amigo compensou-me de um certo mal-estar deixado pela notícia. Fiquei considerando que ela realmente vai acontecer um dia e … - mas deixa pra lá. Entrei na boate lembrando-me de que, se há um homem que pode dizer já ter estado "com o pé na cova", literalmente, esse homem sou eu.

Foi em Los Angeles, aí por 1947. Com o cônsul em férias, achava-me eu encarregado do nosso Consulado e um belo dia eis que me aparece por lá um marinheiro brasileiro: um bom paraibano, com um sotaque pastoso, que havia fugido de um navio, no porto de São Francisco, e depois de viajar de carona até Los Angeles, esfaimado, resolvera se apresentar. Tomei os necessários dados, dei-lhe um dinheirinho para que comesse num drugstore embaixo e arrumasse um hotel, e pedi-lhe que se mantivesse em contato comigo, enquanto tratava de sua repatriação.

Dia seguinte, surge-me um cidadão da polícia de San Diego, porto vizinho a Los Angeles, para dizer-me que um brasileiro havia sido esmagado por um trem, por se encontrar deitado na linha férrea. Reconheci, na carteira profissional que me foi apresentada, o retrato do meu bom paraibano. Tinha-se "mandado". Fiz um telegrama ao Itamaraty, pedindo autorização para fazer embalsamar o corpo e proceder o enterro, e três dias depois, dirigidos por dois agentes da companhia funerária que havíamos tratado, eu e o então auxiliar contratado Maurício Fernandes - que posteriormente entrou firme no negócio de hotéis, e continua sempre um bom amigo - dirigimo-nos para o cemitério de Forest Law: cenário do famoso romance The Loved One, de Evelyn Waugh; cemitério onde se ouve música piegas sair de todos os lados e que, no meu tempo, mantinha cartazes de publicidade nas ruas de Los Angeles com os seguintes dizeres: "Sleep under the stars..." ("Durma sob as estrelas").

Uma vez chegados, um dos agentes acionou um mecanismo que fez o caixão sair automaticamente do coche, já em posição de ser retirado. E assim o levamos nós, com Maurício Fernandes e eu nas alças de trás, até a cova que havíamos adquirido para o nosso bom paraibano. Mas de uma coisa não sabia eu: que com essa mania de disfarçar a morte que têm os americanos (maquilar os defuntos, etc.), existe também o curioso costume de tapar o buraco da cova, até a hora da descida do caixão, com um tapetinho de um material verde parecendo chenile - o que a integra na relva circundante.

E foi exatamente onde eu pisei e desapareci, deixando o caixão sobre mim, por um momento, em posição bastante precária, devido ao desequilíbrio causado pela minha queda. Aí veio todo mundo me ajudar a sair da cova, mas eu, apesar de um pouco arranhado nas pernas, ao dar com a cara entre aflita e irônica de Maurício Fernandes, a me estender a mão, desabei numa tal gargalhada que foi uma luta para me tirarem dali. Dobrava-me de tanto rir. Meu riso contagiou-o, e nós não podíamos mais olhar um para o outro. Ríamos, ríamos, e foi rindo assim, em frouxos alternados, que demos sepultura ao nosso pobre patrício. E não sem muitos olhares de censura dos dois agentes funerários, absolutamente imperturbáveis no exercício do seu piedoso dever.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

sábado, 4 de maio de 2019

Trova 348 - Odenir Follador


Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma. Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas. Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio aquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes) que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo.

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio. A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nívei das margens, como as de um outro rio qualquer. 

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão. A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que Lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões.

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo, poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé! '

(Tribuna de Itararé-24/01/1990)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos.  São Paulo/SP: Dialeto, 2012.

Adélia Prado (Nuvens Poéticas) III


ANÍMICO

Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorezinha conversa.

BILHETE EM PAPEL ROSA

A meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

O INTENSO BRILHO

É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA
Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira
constelada,
os botões,
Alguns já com rosa- pálido
espiando entre as sépalas,
joias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizam-se
diante do recorrente milagre.
maravilhosas faziam-se
as cíclicas perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro

OBJETO DE AMOR

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

O VESTIDO

No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.

Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

Luiz Poeta (Diamante Bruto)


Foi às radículas. Chegou aos ápices de retomar aos dias menos felizes na casa de sapê. Via a irmã mais nova com a boneca de pano, feia, mal costurada, desconjuntada soltando palha, apertando-a no pálido e pneumônico peitinho, cuspindo saliva e catarro tísico numa tosse seca, pés imersos no barro amarelo do arrozal tão raro de grãos.

No riacho descendo cautelosa como serpente, à água cristalina murmurando silêncios.

E já o sol ardia vermelho queimando a colina, sobre os bois que pastavam preguiçosos do outro lado da cerca que separava o rancho pobre do rancho rico, numa calma de dar sono.

A mão girava o leme sobre o poço de água salobra e aquele ruído era um punhal nos seus ouvidos, tiquetaqueando a presença da morte.

O último boi haviam-no sacrificado na última seca, pesarosos de ver o animal definhar, língua de colher clamando um gole no córrego pantanoso, lamacento, seco, estéril, triste.

Com a chuva, teve-se que cultivar um novo arrozal, plantar mais mandioca e abóbora, comprara um capadinho.

Mas quedê dinheiro ? A carne do esquálido bovino dera parcas tigelas de míseros músculos para a família e mínimas outras para a venda.

Vida miserável aquela.

Começara cedo a conhecer das coisas da dor; primeiro, com dois anos, o ferrão da lacraia no pé, que foi preciso muita reza e muito mato para salvar-lhe a vida; depois, a jararaca na folha da bananeira e tome fumo de rolo e cachaça pra vedar o veneno. Afora isso, fome, sede e prece à tardinha pras coisas melhorarem. Mas nada melhoravam mesmo. Depois, a barreira soterrou o velho, o mais moço foi com o tétano do arame farpado e a mãe morreu de incredulidade e susto, restando só ele, a tísica e alguns vizinhos de palavras miúdas na boca e muitos tapinhas de consolação em suas costas anestesiadas pela dor.

- Bebe, Célia, chá de losna que Nhô Chiquinho te fez. - Mas Célia não bebia e nem falava mais nada, apenas olhava, os seus imóveis olhinhos fitando sei-lá-o-quê, enquanto o fiozinho róseo de sangue descia destamainho pela boquinha inerte e lilás dela.

Enfim ficou só; ele, a sabiá e a cachorra magrela e pulguenta se coçando num canto, a bonequinha de pano no chão, olhos em cruz, mortinha também, vazia de palha no ventrinho sujo e amarelo.

E na barreira que matou seu pai, escavando, dia-a-dia, olhos embotados, vermelhos pela cachaça, amarelos pela cirrose, estavam as pedras brilhando ao sol do meio-dia, um espelho só de dourado e prata, fogo e mel. Nhô Chico, preto velho, fumo-de-rolo socado no cachimbo de angola, puxando um pito, cuidou para que as pedras fossem vendidas e o dinheiro empregado no bem-estar do moleque precoce de dor e mágoa.

E veio a dúzia de bois gordos e nutridos, as hortaliças e os pés de manga no sítio quadruplicado pela inteligência e perspicácia do velho.

- Se aveche não, Nhô Mininu - dizia sorrindo - preto veio carcomido qué nada introca docê, só sua compreensão pros úrtimos dia.

Nhô Chico, oitenta e cinco anos, cabelos brancos e ralos, o pé descalço na água barrenta descendo da barranqueira, não queria mesmo nada, não nascera - como ele mesmo dizia - para a opulência, para ser dono de boi. Preferia, sim, guiar manada, laçar, marcar, matar e cortar o animal. Nada como um bom burrico, uma vara de pesca e uma sombrazinha de pé-de-Jamelão-beira-de-rio.

E foi assim: um dia o peixe beliscou, mas o bambu tombou na água barrenta. Nhô Chico morreu dormindo. Num canto da boca, o inútil cachimbo de cinzas inertes, como seu corpo.

Sua alma... incolor voava... quem sabe para o céu africano onde o sangue do seu povo riscava sua história na como um passarinho.

O telefone tocou, ele atendeu. Alguém o parabenizava pelo aniversário.

- Aniversário ? - interrogou-se - Puxa... tinha até esquecido.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Carolina Ramos (Duas Vidas)


I

Maria Plácida fazia jus ao nome. Plácida como um lago em tempos de calmaria. Nem a brisa mais sutil lhe arrepiava a pele. Nada, ou quase nada, perturbava a serenidade que lhe servia de escudo. O que nem sempre seria sinônimo de virtude. Talvez que até o próprio nome tivesse influído no seu modo de ser, absolutamente horizontal e passivo. Quantas oportunidades perdera em consequência dessa placidez contumaz e sem tamanho? Não se demorava em responder, mas, sem dúvida alguma, inúmeras! Os planos mirabolescos, sempre calcados em datas remotas, com base em hipotéticas situações mais favoráveis à realização, eram geralmente postergados para depois da aposentadoria, lá no fim da carreira.

Houvera, sim, um dia especial. E como especial, só daquele dia Maria Plácida se recordava. O dia em que se tornara mulher, ou melhor, o dia em que se sentira mulher, pela primeira vez! Não biologicamente falando, é evidente. Tinha, então, quinze anos. E apesar dos seus dourados e completos quinze anos, se não houvesse recebido aquele presente, seria ainda a menina tímida, que fugia ao convívio social e olhava os rapazes, da sua idade, furtivamente, temperando-lhes o calor das investidas com a aura fria de geladeira aberta.

A magia do pequeno frasco de perfume francês, oferecido pela madrinha, fizera o milagre. Revirara-o entre os dedos, maravilhada! Consultara o espelho, sentindo-se valorizada. Nem feia, nem bonita. Contudo, naquele instante, o brilho especial do olhar a tornara bela. E bela se sentira, como se uma fada madrinha a houvesse tocado com sua varinha mágica. Como por encanto, rompera-se a humilde crisálida, nascendo, vaidosa e volúvel, a exuberante borboleta! Aspirou, deliciada, as emanações do pequenino frasco, deixando-se embriagar pela volúpia da extraordinária essência. E, num impulso imperceptível, galgou o primeiro degrau que a arrancava da plácida adolescência, para a incógnita realidade de sentir-se mulher.

Um último minucioso exame, tendo por inquiridor o espelho, aprovou-a. Os contornos rijos cada vez mais arredondados, davam-lhe o diploma de feminilidade que seus olhos buscavam. Mulher!...

Maria Plácida sorrira para a imagem do cristal, recebendo um sorriso de volta. Tudo não passara, no entanto, de reação passageira., 

Com carinho todo seu, guardara o pequena frasco para ser usado num momento propício, especialíssimo, que saberia reconhecer quando chegado. Poderia, então usufruir todo o mago potencial contido no minúsculo recipiente. O perfume seria usado com o mais requintado esmero! — Aquelas gotinhas, sutis, atrás da orelha, nos pulsos e no sulco dos seios. Coisas que qualquer menina aprende, quase que por intuição, e aperfeiçoa, com arte instintiva, ao correr dos tempos.

A partir daquele presente, Maria Plácida virou mulher, de verdade. Sonhou. Fez planos. Muitos! Aqueles sonhos e aqueles planos que apenas um futuro remoto, sempre adiado, poderia por em pauta.

Menina, sonhava ser moça, para viver cm plenitude. Moça, esquecia do presente para sonhar com o que o porvir lhe poderia dar.

Apesar de tudo, refinou-se. Instruiu-se. E lutou com afinco para ter direito à almejada aposentadoria.

E a vida fugiu-lhe ligeira como água corredeira a caminho do irremediável despencar em cascata, pulverizador dos sonhos mais sólidos e mais belos. Sem o menor impulso para detê-la, a moça deixou-a fugir, placidamente, até a aproximação do instante inexorável da queda, quando o espelho, friamente, mostrou-lhe os sulcos das primeiras rugas. Não teve, então, vontade de sorrir. Sem saber porquê, deixou-se arrastar peia força da evocação que a levou de volta ao dia, muito especial, em que o pequenino frasco de perfume francês a tornara mulher. Procurou-o apaixonadamente, revolvendo a gaveta da penteadeira entre lencinhos rendados e cambraias bordadas, parte de um enxoval jamais solicitado para uso.

Pela primeira vez, conscientizou-se da urgência e fugacidade do tempo. A partir daquele instante, não lhe importava mais a ausência de motivação ou a ansiada presença de uma data relevante. A hora era aquela, sem programações nem adiamentos tolos ou românticos.

Decepção! O pequeno frasco estava completamente vazio! E nem era possível esperar outra coisa. O perfume evaporara-se igualzinho à felicidade, que, se passara pela vida de Maria Plácida, teria sido tangencialmente, sem deixar o menor vestígio.

Tornou a guardar o frasco vazio, mecanicamente. Gostava de colecionar coisas que lhe sugeriam momentos agradáveis, mesmo não realizados. Lembrar, por intermédio delas, tudo de bom que lhe poderia ter acontecido, chegava a ser algo compensador.

O espelho devolveu-lhe a imagem da mulher triste que o fitara à procura de apoio. Sentiu que, inadvertidamente, descera o indesejável degrau que dava acesso ao primeiro patamar da velhice.

Maria Plácida fechou a gaveta. Sepultava nela o frasco, vazio, de perfume francês e os planos teimosos, chegados ao futuro em fase de deteriorização. Não queria mais tratos com o amanhã e nem tinha mais tempo para viver o hoje. Torceu a chave e deixou-se arrastar pela correnteza da vida, melancólica, mas, como sempre, placidamente, rumo ao nada.

II

Maria Expedita fora colega de Maria Plácida, na Escola Normal. Eram água e vinho, ou melhor, água e azeite, que não se misturam. Tinham fusos horários contraditórios. E, quando era primavera na casa de uma, já vicejavam os frutos do outono no pomar da outra. Tão logo o clima outonal se anunciava junto a Expedita, Maria Plácida, janelas fechadas, tiritava o seu inverno.

Miúda e ligeira, Maria Expedita também fazia jus ao nome.

Erguia-se, cada manhã, lamentando o tempo perdido com as horas de sono. Movia-se em tempo de música, com ralentandos e afretandos intercalados, seguindo as circunstâncias, mas, sempre dentro de um ritmo agitado e vivaz, difícil de ser acompanhado pelas pessoas de andamento normal.

Assim como o maestro parece arrancar do espaço notas musicais, Expedita, batuta na mão, parecia reger com maestria a sinfonia da vida, de acordo com a partitura por eia mesma composta. Não desperdiçava uma só nota! O tempo era dividido em compassos elásticos, prontos a admitir uma quiáltera, ou apogiatura, sempre que necessário introduzir mais uma nota. Se preciso, desmembrava tranquilas semibreves, multiplicando-as, substituindo-as por fusas e semi-fusas irriquietas, num sobe e desce de escalas ligeiras, a ondular-lhe a vivência, que, longe de parecer lago plácido, mais lembrava perene mar revolto!

Vivia, apaixonada e intensamente, cada instante sem deixar nada para depois. Se houvera paralelismo na fase estudantil entre as duas meninas, vivencialmente falando, situavam-se agora em polos opostos.

Casada por duas vezes, que a primeira não dera certo, Maria Expedita concebeu três filhos, acrescentando à rumorosa existência, novas primaveras, a intercalar semeadura e colheita com a exuberância de uma festiva floração.

Trabalhou, sim, e muito! Em casa e fora dela, sem permitir que a atividades cotidianas lhe abafassem os impulsos criativos.

Com esforço e pertinácia, conseguiu espaços só seus, logrando expandir dotes artísticos acalentados com carinho.

E quando as primeiras neves se abateram sobre sua cabeça, estranhou: — Já?í Com decisão inabalável, negou-se à depressão decorrente. Ajeitou os cabelos, ignorando as cãs, e empurrou para mais longe o alçapão da velhice. Com sessenta e poucos anos, bem vividos, e alguns netos, acumulava expressiva bagagem literária. Vários livros editados e outros prestes a vir à luz; que o espírito independe do corpo. Só envelhece, quando, conscientemente, se aceita que envelheça.

Maria Expedita recusava-se a envelhecer.

Com tintas, pincéis e algumas noções de arte, coloriu dias ameaçados de se agrisalharem depois da aposentadoria.

E não parou aí: — injetou força à própria voz, engajando-a a um grupo coral bastante atuante. Escancarou, assim, os últimos escaninhos da alma, deleitando a si mesma com um hino de amor à vida, num vibrante e caloroso canto de vitória!

*      *      *

 Maria Plácida morreu, certo dia, durante o sono. Bem de acordo com a placidez com a qual convivera.

Maria Expedita, por sua vez, morreu cantando. E, lá por cima, deve continuar cantando! Deve continuar vivendo, naquele mesmo ritmo prestíssimo! Tão do seu jeito... e tão do sou gosto!

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Nota de rodapé:

A autora retiniu o papel da máquina, relendo o que escrevera. Sorriu...
Se na fusão das duas personagens havia muito de si mesma, embora parecesse paradoxal, absolutamente não teria sido mera coincidência!


Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Franz Kafka (Comunidade)


Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôs-se junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto.

Além do mais somos cinco e não queremos ser convivência permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, posto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.