sexta-feira, 17 de maio de 2019

Carolina Ramos (A Cadeira Velha)


Pela segunda vez, passou pela calçada oposta. Agora, em sentido contrário.

Aquela cadeira velha, abandonada à porta do casarão, atraia-o, irresistivelmente. Jogada fora, não havia dúvida. E o que é jogado fora, não é de ninguém. E o que era de ninguém, bem que poderia vir a ser seu.

Cruzou a rua. Não em linha reta. Faltou-lhe coragem.

Andou um pouco para adiante do objeto da sua fascinação e, então, atravessou. Voltou, sem pressa, em direção à cadeira. Pisava macio, como quem não quer nada.

Parou diante dela. Namorou-a. Linda! Forro de veludo cor de ouro. Desbotado. E o que importava? Quantos dias de glória já teria tido! Tocou-a com carinho. Só tinha um braço. A cadeira, naturalmente. E para que mais? Pernas finas, torneadas com requinte. Uma delas rachada. Este, possivelmente, o estigma da condenação. Prometia um tombo de surpresa. Rico não conserta. Remediado, sim. Pobre, como ele, não despreza sobras. A cadeira tinha estirpe. Vinha, por certo, de família abastada. Tomou a acariciá-la. Experimentou-lhe o peso. Não seria difícil carregá-la. Acomodou-a sobre os ombros. Chegou a assobiar, enquanto caminhava.

Ao pé do morro, a coisa complicou-se. O peso e a ladeira podem tornar-se aliados temíveis.

Engoliu a vontade de assobiar. O suor a escorrer em bagas. Os ombros a reclamar do peso. Entrar no barraco, pela porta estreita, também não foi fácil. Venceram o jeito e a determinação.

A visão da cadeira à cabeceira da tosca mesa, compensou qualquer esforço. Desbotada, rachada, sem um braço, mas, sua! A sua cadeira. O trono de um rei! Nem ousou experimentá-la. Antes, um bom banho. Caprichou na aparência, como nunca o fizera. Só então, sentiu-se digno de ocupar tão nobre assento.

Sentou-se com extremo cuidado. Divina!

Sentiu-se um rei! Um rei sem coroa, sem súditos, mas, em pleno domínio de sua propriedade.

Lembrou-se da "coroa". Aquela "coroa" bonita, que não lhe saía da cabeça... a viúva do vizinho.

Era só: — Oi, bom dia... ou: — Oi, boa tarde...

Nunca lhe dissera nada de mais íntimo, nem mesmo quando sentia dois olhos tigrados, procurando os seus.

Gostaria de convidá-la para conhecer o barraco. Perdia a coragem, tão logo a via.

E lá estava ela, com toda a exuberante graça de mulher vívida, a acarinhar a cabeça do cachorro pulguento. Chegou a invejá-lo!

— Ei, dona, quer ver o que eu trouxe, lá de baixo?

Ela sorriu. Pela primeira vez, via o vizinho lavado, penteado e de roupa limpa. Com um misto de malícia e brejeirice, cruzou a porta do barraco.

Orgulhoso, ele mostrou-lhe a cadeira, o seu trono.

E, por toda uma noite, foi verdadeiramente um rei!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Arthur de Azevedo (Asa Negra)


Quando, em 185… poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara.

A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica.

Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclâmpsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.

O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis consequências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.
* * *

Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço.

Aureliano, que era de um natural orgulho, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmadas estúpidas do mestre escola. Isto acontecia diariamente.

O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da inteligência medíocre.

Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comércio.

Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto.

Dentro de algum tempo o menino, que já contava dezesseis anos, deveria entrar, como ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor.

Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprazado, em casa do futuro patrão.

– Cá estou eu.

– Quem é você?

– O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.

– Ah! sim… lembra-me… mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.

E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.

– Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense.

O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.
* * *

Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço.

Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.

Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.

Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.
* * *

Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina.

Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napeias de Rubens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de um gigante.

Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.

Felizmente assim não sucedeu.

Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças.

As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a áurea mediocrata relativa do condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.

De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.
* * *

Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano.

Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente.

O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos.

Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido.

Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho.

Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si.

O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido.

Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a família.

Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas
da Baía de São Marcos.
* * *

Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida solitária.

Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina.

No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos.
* * *

Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas negras da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido.

Embarcou.

Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço.
* * *

Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.

– Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heroico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.

Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer…

A embarcação submergiu-se.

O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera.

Debalde!

Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d’água, chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou… tentou bracejar… A sua mão encontrou alguma coisa fria. muito fria… que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador… boiou muito tempo com ele… e com ele finalmente foi arremessado à praia…

O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Convite para 26 de Maio, em Curitiba


Christóphoro Fonte-Boa (Poemas)


O SOL NA PROSA

Em Belo Horizonte em junho
o sol pela manhã não
é pau não.
(Se fosse em Ouro Preto as
lagartixas se espichavam
pra fora dos buracos
nas pedras centenárias)
Ao meio-dia não é de
todo católico debaixo
do braço dos transeuntes.
Mas às quinze é banzão.
nas sombras compridas
das árvores redondas.
Por que então aquele
homem varapau de
guarda-sol ou chuva
na paisagem mineira?

O POETA

Trago nos olhos o peso de noites inteiras maldormidas.
No coração esta ânsia de horizontes irrevelados.
Acima da minha cabeça estende-se o abismo
que nasceu dentro de mim
quando aprendi a sofrer a angústia da profundidade.
Penetrei o limiar azul dessa paragem,
embriaguei-me de sua mansuetude.
Vi a eclosão do amor em círculos concêntricos
afirmando a realidade essencial.
Vi auroras boreais, poentes luminosos,
arco-íris de polo a polo.
Eu ia levado pela tua mão.
_____________________________________________________

Christóphoro Fonte-Boa nasceu em São Gotardo/MG, a 29 de agosto de 1906, filho de Sebastião Lopes Fonte Boa e Firmina Alves da Silva.

Fez os primeiros estudos em São Gotardo e parte do curso ginasial em Ouro Preto, concluído no Ginásio de Cataguases, tendo sido inspetor de alunos de ambos.

Em 1927 participou do Movimento Verde.

Em 1932, concluiu o curso de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, onde exerceu o jornalismo no Diário de Minas.

Quando residia em Juiz de Fora, pertencia à Academia de Letras de Juiz de Fora e escrevia no Diário Mercantil, vindo a falecer nesta cidade em 1993.

Deixou o livro “Eu, tu e a quarta dimensão”, edição particular e fora de comércio.


Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Cláudio de Cápua. Revolução na Paulicéia: Semana de Arte Moderna de 1922. 2. ed. São Paulo/SP: EditorAção, 2019.

Ernesto Montenegro (Por uma dúzia de ovos cozidos)


Era uma vez um homem, pobre a mais não poder, que resolveu ir às minas tentar a sorte, deixando o quase-nada que lhe restava em casa para o sustento da mulher e dos filhinhos. Andou, andou, e lá um belo dia chegou a um povoado, onde teve de fazer das tripas coração para não pedir alguma coisa com que não o deixassem cair de fome; mas, finalmente, bateu à última porta, onde estava uma mulher sozinha ao pé do braseiro, com o seu gato e as suas galinhas.

— A necessidade, patroazinha, me obriga a lhe pedir que me arranje pelo menos alguns ovinhos, que quando eu voltar das minas lhe pagarei bem pagos.

 Naquele tempo os ovos eram tão baratos, que muitas vezes nem valia a pena ir buscá-los nos chocos; e como a dona da casa tinha o tacho fervendo para tomar o seu mate, tirou um punhado na canastra e os pôs a cozinhar, enquanto rezava três credos.

Foi-se o mineiro, muito agradecido com a sua dúzia de ovos, e graças a eles conseguiu chegar até à Descobridora, onde diziam que se estava juntando dinheiro que não era brinquedo.

Decorridos uns dez anos, o mineiro viu que já estava rico, e era tempo de voltar para a sua terra e socorrer a família. Porém não se esqueceu de passar no povoado, para cumprir a promessa feita à mulher das galinhas. Em frente à casa, parou a tropinha de burros que vinha tocando.

— Não me conhece mais, avozinha? Não se recorda do que lhe prometeu aquele pobre que passou por aqui nas casas, e a quem você deu uma dúzia de ovos? Pois bem: uma destas cargas de prata é para você; escolha a que mais lhe agradar.

 E despejou umas tantas pratas no chão.

 A velha já estava com a vista fraca, e muito dura de ouvido. Mas, como sucede a tantos outros, com a idade tinha ficado avarenta:

— Como é, moço? Tudo que esses burros levam é prata? E você foi ganhar toda essa prata depois que me pediu fiado os ovos? Hum...

 A velha não se podia conformar que lhe dessem uma carga, somente uma, quando os burros eram tantos! Não tivesse ela bom coração, e boa minazinha ele teria encontrado!

— Quanto tempo faz que lhe vendi esses ovos?

— Dez anos, pelo menos. Foi antes do Grande Tremor de Terra.

 Com uma cara muito azeda, ela voltou-se para o homem:

— Então, caro senhor, toda essa prata é minha! Homessa! Já se viu maior desfaçatez: querer contentar-me com uma carguinha... Se em vez de lhe dar ovos eu os tivesse posto a chocar, quantos milhares de dúzias de ovos e de pintos imagina que eu teria agora? Não, senhor, não me venha com espertezas. Então, porque vê a gente vestida de lã, pensa que está tratando com ovelha? Ajude-me a botar esses burros no curral, vamos!

 E empurrão pra cá, bordoada pra lá, fez entrar os burros e trancou a porta.

 O mineiro, que era uma pobre alma, não sabia que fazer com o diabo daquela velha. Deitar-lhe abaixo a porta, quando nem ao menos os cães o conheciam, talvez fosse pior — refletiu.

 Voltando para o centro do povoado, a passos lentos e de cabeça baixa, ouviu alguém lhe perguntar:

— Então, amigo, que foi que perdeu?

 Era um homenzinho de fraque cor de chumbo e nariz muito vermelho, que andava com o chapéu sobre os olhos e meio como se estivesse tocado.

 Num instante o mineiro lhe contou o que se passava.

— Não se aborreça, amigo velho. Olhe, eu sou advogado diplomado, e lhe prometo que amanhã ganhamos a questão. Providencie para que mandem à velha uma citação, lá para as duas da tarde, e me espere no tribunal.

 E tirou-lhe o último peso que lhe restava, “para completar o pileque”.

No outro dia, já a velha estava em presença do juiz, e do rábula nem sinal.

— Que faz o seu advogado que não vem? — disse, de muito má cara, o juiz ao pobre mineiro. — Fique sabendo que, se ele não chegar a tempo, eu o condeno, inclusive nas custas.

 Então batendo as duas horas, quando entra o rábula, muito vermelho, com o nariz que nem um pimentão.

— V. Sa. me perdoe o atraso — disse ele ao juiz —, mas com a pressa que tinha em cozinhar uma cevada para semeá-la...

— Vá contar essa história a sua avó! — gritou-lhe o juiz, dando na mesa uma pancada, que por pouco não a partiu. — Além de se fazer esperar, o cavalheirinho, ainda por cima, vem rir nas bochechas da gente! Onde já se viu alguém pôr a cozer a semente antes de semeá-la?

— Estranho que V. Sa. se aborreça comigo porque lhe digo que estava cozinhando uma cevada para semeá-la, e deixe que esta mulher venha contar-lhe que podia ter tirado milhares de ovos e pintos de uma dúzia de ovos cozidos que deu, há dez anos, a este bom homem.

— Como? Estavam cozidos os ovos, senhora? jure dizer a verdade! — gritou-lhe o juiz.

— Tal como diz Vossemecê. Melhor ainda: cozidinhos.

— Então, moço, pague seu real e meio a esta velha desavergonhada, e leve a sua prata, que muito lhe custou a ganhar — disse o juiz ao mineiro.

 O mineiro deu uma carga de prata ao rábula, por lhe haver defendido tão bem a questão, e foi com os seus burrinhos para casa, muito contente da vida.

Vinicius de Moraes (Do amor aos bichos)


Quem, dentre vós, já não teve vontade de ver um passarinho lhe vir pousar na mão? Quem já não sentiu a adorável sensação da repentina falta de temor de um bicho esquivo? A cotia que, num parque, faz uma pose rápida para o fotógrafo - em quem já não despertou o impulso de lhe afagar o dorso tímido? Quem já não invejou Francisco de Assis em suas pregações aos cordeirinhos da úmbria? Quem já não sorriu ao esquilo quando o animalzinho volta-se curioso para nos mirar? Quem já não se deliciou ao contato dulcíssimo de uma pomba mal ferida, a tremer medrosa em nossa palma?

Eis a razão por que, semanal leitor, hoje te quero falar do amor aos bichos. Não do amor de praxe aos cachorros, dos quais se diz serem os maiores amigos do homem; nem do elegante amor aos gatos, que gostam mais da casa que do dono, conforme reza o lugar-comum. Quero falar-te de um certo inefável amor a animais mais terra-a-terra, como as galinhas e as vacas. Diremos provisoriamente basta o amor ao cavalo, que é, fora de dúvida, depois da mulher, o animal mais belo da Criação. Pois não quero, aqui neste elogio, deixar levar-me por considerações éticas ou estéticas, mas apenas por um critério de humanidade. E, sob este aspecto, o que não vos poderia eu dizer sobre as galinhas e as vacas! Excelsas galinhas, nobres vacas nas quais parece dormir o que há de mais telúrico na natureza... Bichos simples e sem imaginação, o que não vos contaria eu, no entanto, sobre a sua sapiência, a sua naturalidade existencial...

Confesso não morrer de amores pelos bichos chamados engraçadinhos, ou melhor, não os levar muito em conta: porque a verdade é que amo todos os bichos em geral; nem pelos demasiado relutantes ou maníaco-depressivos, tais os veados, os perus e as galinhas-d'angola. Mas olhai uma galinha qualquer ciscando num campo, ou em seu galinheiro: que feminilidade autêntica, que espírito prático e, sobretudo, que saúde moral! Eis ali um bicho que, na realidade, ama o seu clã; vive com um fundo sentimento de permanência, malgrado a espada de Dâmocles que lhe pesa permanentemente sobre a cabeça, ou por outra, o pescoço; e reluta pouco nas coisas do amor físico. Soubessem as mulheres imitá-las e estou certo viveriam bem mais felizes. E põem ovos! Já pensastes, apressado leitor, no que seja um ovo: e quando ovo se diz, só pode ser de galinha! É misterioso, útil e belo. Batido, cresce e se transforma em omelete, em bolo. Frito, é a imagem mesma do sol poente: e que gostoso! Pois são elas, leitor, são as galinhas que dão ovos e - há que convir - em enormes quantidades. E a normalidade com que praticam o amor?... A natureza poligâmica do macho, que é aparentemente uma lei da Criação, como é bem aceita por essa classe de fêmeas! Elas se entregam com a maior simplicidade, sem nunca se perder em elocubrações inúteis, dramas de consciência irrelevantes ou utilitarismos sórdidos, como acontece no mundo dos homens. E tampouco lhes falta lirismo ou beleza, pois muito poéticas põem-se, no entardecer, a cacarejar docemente em seus poleiros; e são belas, inexcedivelmente belas durante a maternidade.

Assim as vacas, mas de maneira outra. E não seria à toa que, a mais de tratar-se de um bicho contemplativo, é a vaca uma legítima força da natureza - e de compreensão mais sutil que a galinha, por isso que nela intervêm elementos espirituais autênticos, como a meditação filosófica e o comportamento plástico. De fato, o que é um campo sem vacas senão mera paisagem? Colocai nele uma vaca e logo tereis, dentro de concepções e cores diversas, um Portinari ou um Segall. A "humanização" é imediata: como que se cria uma ternura ambiente. Porque doces são as vacas em seu constante ruminar, em sua santa paciência e em seu jeito de olhar para trás, golpeando o ar com o rabo.

Bichos fadados, pela própria qualidade de sua matéria, à morte violenta, irnpressiona-me nelas a atitude em face da vida. São generosas, pois vivem de dar, e dão tudo o que têm, sem maiores queixas que as do trespasse, transformando-se num número impressionante de utilidades, como alimentos, adubos, botões, bolsas, palitos, sapatos, pentes e até tapetes - pelegos - como andou em moda. Por isso sou contra o uso de seu nome como insulto. Considero essa impropriedade um atentado à memória de todas as galinhas e vacas que morreram para servir ao homem. Só o leite e o ovo seriam motivo suficiente para se lhes erguer estátua em praça pública. Nunca ninguém fez mais pelo povo que uma simples vaca que lhe dá seu leite e sua carne, ou uma galinha que lhe dá seu ovo. E se o povo não pode tomar leite e comer carne e ovos diariamente, como deveria, culpe-se antes os governos, que não os sabem repartir como de direito. E abaixo os defraudadores e açambarcadores que deitam águas ao leite ou vendem o ovo mais caro do que custa ao bicho po-lo!

E, uma vez dito isto, caiba-me uma consideração final contra os bichos prepontentes, sejam eles nobres como o leão ou a águia, ou furbos como o tigre ou o lobo: bichos que não permitem a vida à sua volta, que nasceram para matar e aterrorizar, para causar tristeza e dano; bichos que querem campear, sozinhos, senhores de tudo, donos da vida; bichos ferozes e egoístas contra o povo dos bichinhos humildes, que querem apenas um lugar ao sol e o direito de correr livremente em seus campos, matas e céus. Para vencê-los que se reúnam todos os outros bichos, inclusive os domésticos "mus" e "cocoricós", porque, cacarejando estes, conglomerando-se aqueles em massa pacífica mas respeitável, não prevalecerá contra eles a garra do tigre ou o dente do lobo. Constituirão uma frente comum intransponível, a dar democraticamente leite e ovos em benefício de todos, e destemorosa dos rugidos da fera. Porque uma fera é em geral covarde diante de uma vaca disposta a tudo.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

terça-feira, 14 de maio de 2019

José Feldman (Poeta, e ponto final)


Mia Couto (Perguntas à Língua Portuguesa)


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente quando em voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é dimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, exceto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste subúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

O mato desconhecido é que é o anonimato?

O pequeno viaduto é um abreviaduto?

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

Mulher desdentada pode usar fio dental?

A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

Um tufão pequeno: um tufinho?

O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

Em águas doces alguém se pode salpicar?

Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos esse outro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia (água sanitária). Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

Marlê Beatriz Jardim Araújo (Jardim de Trovas)


Acredito que a existência
seja um circo onde ninguém
escapa da experiência
de ser vaiado também...

“Águas de março” fizeram
um temporal de verão,
com mágoas que não couberam
na paz do meu coração.

A imaginação flutua,
dando à vida mais sabor:
– Que a Lua é muito mais lua,
nos versos de um trovador!...

Alegria, se eu te sinto,
não obstante os sermões,
é que em todo o labirinto
Deus me aponta as direções.

Alvorada, se eu pudesse,
faria, em trovas, um hino
pedindo, a Deus, que fizesse
de alvoradas, meu destino!

Ao desviar da espinheira
que, de espinhos transbordava,
caiu na isca certeira
do ouriço que o espreitava!

Ao pensar num bom presente
que leve alegrias novas,
sempre, o que me vem à mente,
é um belo livro de trovas!

Aquela rima que enfeita
e harmoniza os versos meus,
somente, se faz perfeita
quando é soprada por Deus.

Arroubos de juventude,
sonhos, projetos sem fim,
vem da Usina da inquietude
que trago dentro de mim!...

As estrelas se parecem
com vaga-lumes no céu,
ou serão eles que esquecem
que são estrelas ao léu?

As mágoas, os dissabores,
vê se esquece, segue em frente,
e planta, por onde fores,
do amor e paz, a semente.

As poças d’água da rua
brincam de espelho quebrado,
há em cada poça uma lua
e um belo céu estrelado.

Às vezes, por um momento,
sem que eu saiba definir,
me entristece, esse lamento,
que o vento me faz ouvir.

Bateu-me à porta, eu abri,
não sem antes ver quem era...
E, em pleno inverno, caí
nos braços da primavera.

Bendigo essa luz que, um dia,
em minha estrada brilhou,
e resgatou a alegria,
que o tempo quase apagou.

Cai a neve, mansamente,
e, enquanto não se desfaz,
faz-se altar na alma da gente
com flocos brancos de paz.

Com a água não se deu bem,
o clone de peixe-boi:
- Sem saber quem é de quem,
atrás da vaca ele foi!

Das angústias me desfaço,
ante a fé que se renova,
nestas viagens que faço
no belo mundo da trova!

Destino menino arteiro,
enquanto o mundo rodava,
te tornavas timoneiro
de tudo o quanto eu sonhava.

Desviava a todo instante,
da sogra o genro arredio...
E a coroa “itinerante”
o apelidou de "Desvio"!!!

Diferente e brincalhona,
é a chaminé que inventei:
não polui, pois não funciona,
para o que serve... não sei!...

É na ciranda das horas,
que passam todas as juras.
Passam, também, as demoras
e, até mesmo, as amarguras!

Era tão magro o Domingos
que, enquanto a chuva rolava,
ele passava entre os pingos
e nem sequer se molhava!...

És muito mais que um marido,
és um pai, amigo, irmão.
És, para sempre, querido,
dono do meu coração!

Essa agridoce saudade
que faz da gente refém,
maltratada, é a verdade,
mas nos conforta também.

Faço de conta que a vida
vive a sorrir para mim
e ela, então, descontraída,
me abraça a sorrir enfim.

Fez pose no trampolim
mas, distraído, o Janjão,
só dentro d'água é, que, enfim,
viu que estava sem calção!

Há na beleza selvagem,
que a cascata canta em festa,
emocionante mensagem
de quem criou a floresta!

Lembro a cidade natal
e, eis que meu lado criança
se aninha, inteiro, afinal,
na ternura da lembrança!...

Lembro a família reunida
na infância, já bem distante!
E uma saudade atrevida,
abraça-me nesse instante.

Magia é ver, finalmente,
o tempo a concretizar
aquele sonho, que a gente
passou a vida a sonhar.

Meio tristonho e sozinho,
às vezes me sinto assim...
Quando as pedras do caminho
parecem zombar de mim!...

Mundo mágico onde eu vivo!
Teus versos tão desiguais,
são flores, as quais cultivo,
nas trovas, cada vez mais!

Na estrada que coube a mim,
os entraves não são raros:
mas estradas... são assim...
Cabem a nós, os reparos.

Na primavera, até a chuva
é um festival de harmonia,
caindo feito uma luva
na mão radiosa do dia!

Neste dilúvio de sonhos,
neste mar, de quando em vez,
percebo acenos tristonhos
de um sonho, que se desfez.

Ora é médico, ora é louco...
Filósofo, quando a sós...
No ator, há bem mais que o pouco
que existe em cada um de nós!

O tempo passa veloz,
contudo deixa lembrança;
posso até ouvir a voz
do meu tempo de criança.

O tempo, viajor mutante,
nada o prende, nada o solta;
traz saudade e, num instante,
tem-se a ilusão que ele volta.

Paira ternura infinita
na forma de um Beija-flor.
E a flor se faz mais bonita
num intercâmbio de amor.

Para encontrar um desvio,
oscilou, tanto, o bebum
que, depois de um rodopio,
não quis mais desvio algum!

Peço ao vento cirandeiro,
das madrugadas de outono,
que seja o meu seresteiro,
mas que não me roube o sono!

Quando a distância incomoda
parece, que por maldade,
insiste, em brincar de roda,
com a lembrança, com a saudade!

Quando a dúvida persiste,
eu busco a Fé, simplesmente,
e espanto esse canto triste
dos labirintos da mente!

Quando a neblina persiste
e embaça toda a janela,
ao invés de ficar triste,
eu faço trovas a ela.

Quando a sonhar eu me ponho,
sem pressa de despertar,
a paz, que envolve meu sonho,
faz com que eu volte a sonhar!

Quando o grilo atrapalhado
num desvio se embrenhou,
mostrou-se tão desviado
que o cri-cri desafinou!...

Quando pular a fogueira,
não use de indecisão,
que fogo passa a rasteira
e queima até a distração!...

Resgatei, daqui e dali,
lembranças tantas e tais,
que em meu coração, senti
bater saudades demais.

São palhacinhos bisonhos,
num carrossel de ironia,
os retalhos dos meus sonhos,
que guardei dia após dia.

Seduz-me a luz do luar
que, a versejar, me conduz
e até me leva a pensar
que é feiticeira essa luz!...

Sugiro ao tempo, que passa,
que não corra tanto assim!
E o tempo, só por pirraça,
passa voando por mim!

Tanto arrepio sentia
um fantasma diferente,
que, assombrar, não mais queria,
por medo de virar gente!

Toda a florzinha do campo,
despretensiosa, singela,
tem, por perto, um pirilampo,
tem alguém que goste dela.

Todos os anjos que cantam,
no coral do entardecer,
são trovadores que plantam
sementes no alvorecer!

Um arrepio gelado,
diferente dos demais,
deixa, até mal-assombrado
quem não arrepia mais!...

Um trovador é capaz
de harmonizar universos,
pelas propostas de paz
encontradas em seus versos.

Vejo através da vidraça,
na noite morna de outono,
o vento varrendo a praça,
levando junto o meu sono.

Venho de um tempo em que a vida
era tão descomplicada,
que a Lua, mesmo escondida,
brincava com a criançada!

Vestiu de branco a cascata,
fez a mala, a fauna, as flores,
e uma janela de prata,
nos céus, para os trovadores.

Vez em quando, a fantasia,
nessa praia, veraneia
e acende a luz da poesia
em meus castelos de areia!

Vi passar a mocidade
de braços dados ao vento:
Deixou rastros, que a saudade
me traz a cada momento.

Vinicius de Moraes (Dia de sábado)


Porque hoje é sábado, comprei um violão para minha filha Susana, a fim de que ela aprenda dó maior e cante um dia, ao pé do leito de morte de seu pai, a valsa "Lágrimas de dor", de Pixinguinha - e seu pai possa assim cerrar para sempre os olhos entre prantos e galgar a eternidade ajudado pela mão negra e fraterna do grande valsista...

Porque hoje é Sábado, desejarei ser de novo jovem e tremer, como outrora, à ideia de encontrar a mulher casada, de pés de açucena; desejarei ser jovem e olhar, como outrora, meus bíceps fortes diante do espelho...

Porque hoje é Sábado, desejarei estar num trem indo de Oxford para Londres, e à passagem da estação de Reading lembrar-me de Oscar Wilde, a escrever na prisão que o homem mata tudo o que ele ama...

Porque hoje é Sábado, desejarei estar de novo num botequim do Leblon, com meu amigo Rubem Braga, ambos negros de sol e com os cabelos, ai, sem brancores; desejarei ser de novo moreno de sol e de amores, eu e meu amigo Rubem Braga, pelas calçadas luminosas da praia atlântica, a pele salgada de mar e de saliva de mulher, ai...

Porque hoje é Sábado, desejarei receber uma carta súbita, contendo sobre uma folha de papel de linho azul a marca em batom de uns grossos lábios femininos, e ver carimbado no timbre o nome Florença...

Porque hoje é Sábado, desejarei que a lua nasça em castidade, e que eu a olhe no céu por longos momentos, e que ela me olhe também com seus grandes olhos brancos cheios de segredo…

Porque hoje é Sábado, desejarei escrever novamente o poema sobre o dia de hoje, sentindo a antiga perplexidade diante da palavra escrita em poesia e como dantes, levantar-me com medo da coisa escrita e ir olhar-me ao espelho para ver se eu era eu mesmo...

Porque hoje é Sábado, desejarei ouvir cantar minha mãe em velhas canções perdidas, quando a tarde deixava um alto silêncio na casa vazia de tudo que não fosse sua voz infantil...

Porque hoje é Sábado, desejarei ser fiel, ser para sempre fiel; ser com o corpo, com o espírito, com o coração fiel à amiga, àquela que me traz no seu regaço desde as origens do tempo e que, com mãos de pluma, limpa de preocupações e angústia a minha fronte imensa e tormentosa...

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Isabel Furini (A Descoberta)


A literatura tem várias funções. Na minha opinião, a função mais importante da literatura é ajudar-nos a compreender e recuperar nosso próprio eu. Nosso eu fragmentado. Nosso eu oculto. Talvez o segredo dos personagens não seja sua aparência, nem verossimilhança, nem seus traços típicos, nem seu retrato detalhado. O mais importante de um personagem é sua capacidade de levar-nos por estradas desconhecidas até nosso próprio eu. Mostrar-nos aspectos de nós mesmos que ignorávamos. Dar-nos a possibilidade de experimentação e compreensão. A descoberta do personagem transforma-se em nossa própria descoberta (aquela epifania de que falava Joyce). O descortinar do personagem nos ajuda a enxergar-nos. Espelhamo-nos neles.

Ao compreendê-los, podemos nos compreender.

E como chegar a esse estado de percepção de nós mesmos e do mundo que nos permita, ao escrever, criar um espelho com as palavras? Um espelho onde os leitores poderão deleitar-se, observar-se e compreender-se?

Entramos em um caminho questionador. O escritor recebe um dom dos deuses ou seus acertos são fruto de trabalho duro? Arte ou técnica? Talento ou esforço? Quando o espírito se expressa na matéria, surge a ordem no mundo. Caos se transforma em cosmos. Na arte da escrita é o próprio autor, como um deus, que projeta sua obra. Plasma seu pensamento. Concretiza suas intuições estéticas. Talvez, por isso, alguns afirmem que não existe técnica para escrever um livro.

continua...


Fonte:
Isabel Furini. O Livro do escritor: técnicas e estratégias de como escrever um livro. Curitiba/PR: Instituto Memória.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

30º Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crônicas ALPAS 21 (Classificação Final)


Decimar Biagini - Os edificados pela obra pura
 
Decimar Biagini - A necessidade de inimigos e mitos   
 
Decimar Biagini - O que esperar da vida    
 
Fabiane Rodrigues da Silva - Professor   
 
José Feldman - A locomotiva da vida   
 
Marcelo de Oliveira Souza  - Agonia   
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Amor de capim
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Cachoeira Adormecida
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Entre folhas
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Labaredas   
 
Leandro Campos Alves - Reflexão   

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia
(Alpas 21)

Hildemar Cardoso Moreira (Poemas Avulsos)


CACÓFATOS DO AMOR

A  Neusa

Minha bela e doce amada
Ó querida esposa minha
Tu serás eternamente
A minha meiga rainha,
E o amor que hoje te tenho
Ainda é o mesmo que te tinha.

Hoje é o aniversário
De nossa feliz união,
Receba pois a homenagem
De todo o meu coração
E o amor que deixo patente
Nos versos que por ti são.

Nestes versos, minha amada
Vai a homenagem singela
De quem vislumbra no verso
A mais bonita aquarela
E que tem dentro do peito
Coração que por ti gela.

Querida, com a certeza
Que eu vivo para adora-la
Receba toda a ternura
No suspiro que se exala
Do peito deste poeta
Que não se cansa de ama-la.

FOI ENGANO

                     Querida Neusa

Se me ponho a lembrar os tempos idos,
Se busco reviver o meu passado,
A imagem de meus entes mais queridos
Me vem como a um retrato contemplado.

E folhando meus escritos de outras eras
Vejo poemas de amor impregnados,
Plenos de realismo e de quimeras
Que existe em corações apaixonados.

E relendo meus escritos do passado
Li um soneto que eu compus qual derrotado,
Porque havia perdido minha amada.

Foi engano, meu Deus, pois felizmente.
O amor falou mais alto e num repente,
Nos unimos pra trilhar a mesma estrada.

MEU CHIMARRÃO

Sempre quando me acordo
Louvo a Deus numa prece
Como o filho que agradece
Tantas graças recebidas.
Tão grandes que não se mede
As graças que nos concede
Em todas as nossas vidas.

Me levanto, lavo o rosto,
Ponho a chaleira na chama
Pois o apetite reclama
O sabor de um chimarrão.
Eu penso que sou viciado,
Nesse recurso abençoado
Nessa gostosa infusão.

Certa feita conversando
Declarou uma boticária
Que erva mate LEGENDÁRIA
No falar de muitas crenças
Além de muito gostosa,
É uma seiva milagrosa,
Remédio pra várias doenças.

Não sei se a crença exagera,
Mas sei que o Xande queria
Que fosse pura e sadia
Da fonte a fabricação,
E seus filhos respeitosos
Sempre do pai orgulhosos
Vem mantendo a tradição.

E a tradição dessa erva
Não vem do tempo do Monge.
Mas vem de longe, muito longe,
Já de outra geração,
Sempre mantendo a pureza
Do que vem da natureza
Pra um gostoso chimarrão.

MEU CORPO

Quase um século de vida aqui na terra
Tem o corpo que altivo me sustenta,
E a gene de ancestrais nele descerra
Em várias circunstâncias que ele enfrenta.

Exausto, algumas  vezes se declina,
Mas retorna para a luta cotidiana,
Porque aquilo que eu sou,lhe determina
Cumprir o que, do Alto então se emana.

E relembrando o tempo já vivido
Esse corpo se sente agradecido
Pela alma que dirige os passos seus.

Porque entende que o corpo necessita
De uma alma que o dirija e que reflita
Nos respeitos que devemos para Deus.

NOSSA PROMESSA DE AMOR

Já quando jovem, Deus brindou-me a vida
Com a beleza de mulher prendada
Que então por Ele foi-me concedida
Ante a promessa de ser sempre amada.

Entrelaçamos, por isso, nossas almas
Num “SIM” que então dissemos comovidos,
Para vivermos horas tensas e horas calmas
Deixando o amor guiar nossos sentidos.

E esse amor que é inconcluso e ardente
Sessenta anos vem norteando a gente
Tal como um raio de luminosidade.

Os anos passam, e nós envelhecemos
Mas a promessa sempre manteremos
Se é eterna a vida, pela eternidade.

PRECE PELA COMUNIDADE

Ao Colegio Miguel Franco Filho

Contenda terra querida
Que ao poeta deste guarida,
Dás o teto, dás o pão.
Por isso em versos que faço,
Eu vos concedo um pedaço
De meu grande coração.

Comunidade de bravos,
De brasileiros e eslavos,
Que Deus no mundo criou.
O teu passado distante
Nos lembra o forte emigrante,
Quando em teu solo aportou.

Irmanando-se ao altivo,
Ao brasileiro nativo,
Forma a raça varonil,
Que com luta e braço forte
Exporta ao sul e ao norte,
O cereal para o Brasil.

Contenda, teu nome á luta,
Mas não é guerra, é labuta,
É demanda pela paz.
Se plantar a Deus agrada,
Quer com trator ou enxada,
Teu filho é isso que faz.

Mas o terno e deslumbrante,
É em manhã de sol radiante,
Em uniforme escolar,
Ver teus filhos bem contentes,
Bandos tafuís sorridentes,
O aprendizado a buscar.

É de Deus a criatura,
Buscando beber cultura
Que é na vida um bem precioso.
Eu vejo em ti mocidade,
Marchar a comunidade
Pra um futuro esplendoroso.

Se este poeta merecesse,
Que Deus do céu concedesse,
Por amor ou por piedade,
Uma graça eu pediria:
Que só reinasse alegria
Em nossa comunidade.

QUEM DIRIA

Quem diria, meu Deus, oh quem diria
Que chegássemos a idade que chegamos
Ouvindo o eco do SIM que aquele dia
Há cinquenta anos nervosos pronunciamos.

Éramos dois, então, que se amavam
Há quanto tempo não sei eu, você ignora
Se nossas almas já antes se cruzavam
Ou se talvez o nosso amor nasceu agora.

O que eu sei, querida, é que esse amor é grande
Que junto a ti eu vivo onde quer que eu ande
Seja na terra, no mar ou nos espaços.

Meio século faz que juntos palmilhamos
Vivendo o mesmo amor que na paixão juramos.
Entre brigas de amor, beijos e abraços.

SER MÃE

Quisera homenagear-te minha amada
Pelo fato de ser mãe de minha filha.
Porém  já fostes por Deus homenageada
Ao conceder-te ser mãe, que maravilha!

Já quando planejou povoar a terra,
O Excelso Criador, a Sua semelhança
Criou o homem que no peito encerra
O sonho de ser pai de uma criança.

E criou a mulher com tal ternura
Para nela perpetuar a criatura,
No ventre santo porque é gerador.

Você querida gerou essa menina
Que já é mãe numa missão divina,
Ambas florindo meu jardim do amor.

Fonte:

Sophia de Mello Breyner Andresen (O Silêncio)


Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou­-os numa bacia com sabão e água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a no lava-louças com duas medidas de sonasol (detergente) e de novo lavou pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a louça e os talheres por água limpa e os pôs a escorrer na banca de pedra.

As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de estar a lavar a louça estivesse a lavar a sua alma.

A luz sem abajur da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava brandamente.

O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.

Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.

E Joana atravessou devagar a sua casa.

Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.

Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.

O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.

As coisas conhecidas - o muro, a porta, o espelho - mostravam uma por uma a sua beleza e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.

Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.

As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a louça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o pode captar?

O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.

E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimento imperceptível tornava em si a ordem e o silêncio da casa.

Com as mãos tocando a parede branca, Joana respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação noturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade. Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.

A paz que a cercava era aberta e transparente.

A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia, mas reconhecia.

Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noite.

As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo inteiro.

E ela habitava essa unidade, estava presente e viva na relação das coisas e a própria realidade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença. A felicidade e essa felicidade era no seu centro unidade.

Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas.

Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia deformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. , Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, baixou, tomou um ritmo de soluço, um tom de lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.

Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida. E assim como a água começa a invadir o interior enxuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.

Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.

A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.

Era uma rua estreita, apertada entre edifícios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço parado e pegajoso.

Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agarrar sob as tampas os restos, as cascas, o pescoço da galinha degolada.

O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. Ás vezes erguia a cara e então via-se o rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem.

Era tarde. As portas e as janelas estavam fechadas sobre gente adormecida e na rua não passava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.

O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:

- Vamos embora.

Mas ela não o ouvia. Gritava como se estivesse só no mundo, como se tivesse ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a responder. Gritava contra o silêncio.

Às vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.

Então, de novo, o homem implorava:

- Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.

Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um ausente, acordar um adormecido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.

Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação da noite, para o fundo do silêncio.

De repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as mãos. Então o homem cobriu­-lhe os cabelos com o xale, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e viraram a esquina.

Durante algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silêncio.

Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.

Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.

Fonte:
Sophia de Mello Breyner Andresen. Histórias da Terra e do Mar.

Arthur de Azevedo (Às Escuras)


Havia baile naquela noite em casa do Cachapão, o famoso mestre de dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses oferecia uma partida aos seus discípulos, sob condição de entrar cada um com dez mil réis.

D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infalíveis nesses bailes do Cachapão.

D. Maricota era a velha mais ridícula daquela cidadezinha da província; muito asneirona, mas metida a literata, sexagenária, mas pintando os cabelos a cosmético preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta e cinco primaveras – feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era D. Maricota o divertimento da rapaziada.

Em compensação, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores e muito mais criteriosa que a tia.

O Lírio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinário sucesso nos bailes de Cachapão, namorava a Alice, e no baile anterior lhe havia pedido… um beijo.

– Um beijo?! Você está doido, seu Lírio?! Onde? Como? Quando?

– Ora! Assina você queira…

– Eu não dou; furte-o você se quiser ou se puder. Isto dizia ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasião não poderia fazer o ladrão.

Demais, D. Maricota, a velha desfrutável, que andava um tanto apaixonada pelo moço, que aliás podia ser seu neto, tinha ciúmes e não os perdia de vista.

Mas o Lírio, que era fértil em ideias extraordinárias, combinou com um camarada, o Galvão, que este entrasse no corredor do sobrado às 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gás.

Se o Lírio bem o disse, melhor o fez o Galvão; mas ao namorado saiu-lhe o trunfo às avessas, como vão ver.

Faltavam dois ou três minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou
de Alice e murmurou-lhe ao ouvido:

– Aquela autorização está de pé?

– Que autorização?

– Posso furtar o beijo?

– Quando quiser.

– Bom; vamos dançar esta quadrilha.

Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo:

- Perdão, seu Lírio! Esta quadrilha é minha! O senhor já dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice!

E arrastou o Lírio para o meio da sala.

De repente, ficou tudo às escuras.

Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do Lírio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho:

– Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes!

E aqui está como ao Lírio saiu o trunfo às avessas.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

domingo, 12 de maio de 2019

Trova 350 - Nei Garcez


Carolina Ramos (Interlúdio)


Porta aberta. Entrou. Nunca fora chegada a templos. Porta aberta é convite. Os pés, lacerados pela caminhada sem pressa e sem destino, esmolavam repouso. Maltratados pelo pranto, os olhos abençoaram a penumbra suave de um misticismo acolhedor.

Sequer dobrou os joelhos. Largou o corpo moído num dos bancos. Duro, e de encosto reto, mas, sempre um banco. O olhar inexpressivo percorreu, vagarosa e desinteressadamente, o interior da Basílica. Cheia de santos. Vazia de fiéis. Hora não propícia para rezas. Só os infelizes se lembram de Deus nas horas não propícias, ou não convencionais.

Pincéis de luz, através da paleta dos vitrais, criavam, no piso austero, abstrações coloridas. Tentou descobrir formas. Não deu. Ergueu a cabeça. Reencontrou os mesmos altares. Os mesmos santos. A mesma nave por ela mesma percorrida, vinte anos antes, levada pelo braço do pai… o longo véu arrastado atrás de si — alva nuvem de sonhos ingênuos e de ilusões, as mais puras. Os mesmos vasos floridos de branco… rendas, laços de cetim. Outra noiva deveria chegar, ainda naquela tarde. Tudo o sugeria. Nem o tapete parecia outro. Talvez fosse o mesmo. Deveria ser o mesmo: noivas não pisam... flutuam... não desgastam. Sim, seria a mesma passadeira rubra que guiara seus passos até o portal da "felicidade"! Sorriu com amargura. Ainda conseguia sorrir! Mais uma noiva a pisaria, levando nas mãos, trêmulas e frias, o poético ramalhete de sonhos. Seriam trêmulas e frias, ainda, as mãos das noivas de agora? Esta, a chegar, talvez não usasse véu tão longo. Talvez, nem usasse véu. Quem sabe, apenas uma grinalda florida lhe ornasse os cabelos. Ou nem isso! Os costumes mudam. Os sonhos, estes sim, seriam iguais. Os sonhos não mudam nunca! — Toda mulher só tem um único objetivo, quando chega ao templo nupcial: — oficializar um direito. O direito de continuar a sonhar com a felicidade. Depois… bem, depois... somente a vida decide os rumos de um depois.

— "Meus Deus... e agora?" Vinte anos compunham o seu depois e rompia-se o vínculo.

— "E agora, meu Deus?!" — Quase inconscientemente, deixou-se escorregar, caindo de joelhos e ocultando o rosto entre as mãos nervosas.

Muita luta, muita amargura, muita angústia calada e o desquite, finalmente, assinado. — "Livre! Livre!" Tinha vontade de gritar a Deus e a todo mundo, para que todos se conscientizassem da verdade que custava a aceitar. Livre afinal! Aguentara demasiado! Suportara o máximo!

— "E agora?!" — Olhou a Virgem, no altar mor. Era mulher e santa, compreenderia. Queria pedir... precisava pedir... pedir o quê?!

Queria uma esperança... precisava de uma esperança... mas, esperança de quê?! Sentia-se só. Só e minúscula, dentro de um mundo enorme e repleto de gente estranha e adversa. Sentia-se indefesa! Não só isto, indefesa e, acima de tudo, aterrorizada!

Tentou rezar —"Ave Maria"… Palavras… palavras que nada lhe diziam de especial. Por que não — "Salve Maria?" — Saudação e pedido de socorro, a um tempo. E era de socorro, urgente, que carecia! Completou: — "Salve, Maria, a minha fé em Deus. Minha fé nas criaturas. Minha fé na vida!"

Ouviu pios e bater de asas aflitas, perto do púlpito.

Chegou-se para a ponta do banco, procurando melhor visão. Uma filhote de andorinha debatia-se, desastradamente, ensaiando o primeiro voo. Caíra do ninho, do telhado, ou de algum nicho. Junto, o carinho materno estimulando esforços; mostrando como a coisa deveria ser feita; depositando no bico faminto, ávido, a força indispensável para não ser vencido. Andorinhas, certamente, têm vocação religiosa, gostam de igrejas e vestem batina preta, de peito branco. Alguém já teria dito isto. Esquecida dos próprios problemas, a mulher solitária, ligou-se, com emoção, ao esforço aflitivo das duas avezinhas. O afã de arrancar ao solo o filhote indefeso, emprestava vigor sobrenatural ao empenho materno. No chão, o perigo, a morte, ou, pior que ela, o cativeiro.

No espaço, a amplitude, a vida, a liberdade! Inúmeras tentativas falhas. Saltos e quedas frequentes. E, afinal, o voo gratificante da vitória!

Respirou, aliviada, retornando a si mesma.

Há quanto tempo ali estava?! As horas também têm asas, voam!

Não rezara uma Ave Maria, sequer! Tornou a fitar a Virgem. Também mulher. Também mãe. Também amarga conhecedora do mundo, de suas infâmias e cruezas.

Desistiu das fórmulas. Quase num suspiro, balbuciou:

— "Senhora, estou aqui. Peço forças. Preciso, urgentemente, de forças!"

Duas lágrimas mornas, deslizaram devagarinho, acariciando a face ainda jovem, mas, sofrida. Ergueu-se, atirando um beijo à Virgem, com as pontas dos dedos.

Fora, o sol ainda queimava. Do mar, logo à frente, vinha uma canção travessa. Cruzou a avenida. Descalçou as sandálias, antes de pisar a areia. Praia deserta. Após o ardor natural, os pés feridos agradeceram o beijo salgado das ondas. Caminhou ao longo da orla, chapinhando espumas, catando búzios e conchas rosadas.

Lavou a alma. O mar tem sabor de pranto, ou o pranto tem sabor de mar?

No azul, gaivotas, ou albatrozes, planavam aparentemente descompromissados, flechando, de imprevisto, o dorso arrepiado das águas, em busca de alimento. A velha luta pela sobrevivência! O galope do pensamento trouxe, na garupa, a realidade de volta. Essa mesma luta, também era agora, sua. Só, e inteiramente sua!

Lembrou-se do templo. Da avezinha e seu filhote.

Sentiu-se um pouco andorinha, Não um, mas, três irrequietos filhotes a esperavam no lar. Lar que pedia continuidade e reconstrução.

Encheu o peito de decisão. Sacudiu as "penas" e, sem mais delongas... "voou" para o ninho.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) X


FATALISMO

 Se eu for contar, hão de sorrir talvez...
- é o fim de um grande amor sereno e nobre
que um fatalismo estranho já desfez
com razões torpes que este mundo encobre...

Morreu... e que se apague de uma vez,
- que dele nada subsista ou sobre...  
- onde a pureza e o amor?... se a vida fez
um nascer rico e o outro nascer pobre.

Que guardem esse amor. Eu o desconheço!
Não tenho em moedas o seu alto preço
e sou feliz por ser tão desgraçado !

Que o guardem!.. . Para os ricos! Para os reis!
- o amor que eu quero não tem preço ao lado,
não tem correntes, nem conhece leis!

FIM...

Nem foi mesmo preciso que você falasse,
era um pressentimento antigo dentro de mim,
há muito, na expressão que havia em sua face
via que o nosso amor ia chegando ao fim...

Hoje, para encontrá-la, eu quase que não vim...
Era o medo covarde deste desenlace...
E tudo terminou... e foi melhor assim
talvez, para você, que tudo terminasse...

Nosso amor, - e ninguém há de saber por que,
morreu (bem que o sentimos pelo nosso olhar),
e não somos culpados nem eu, nem você...

E o que é estranho afinal é que tudo acabasse,
sem que nenhum de nós falasse em terminar,
- e assim como se tudo ainda continuasse...

FRAQUEZA

Espero-te... E sei bem que eu só que te espero...
Aqui me tens... Constante e eterna é a expectativa!
Por que hei de ser assim sempre ingênuo e sincero
por mais que experiência eu tenha, e a vida eu viva?

Chegarás... e terás uma resposta esquiva
ao que te perguntar... E eu que tanto te quero
renderei novamente a minha alma cativa,
enquanto sorrirás feliz... e eu desespero...

Há um imenso poder nessa tua humildade,
e esse teu ar de mansa ternura e meiguice
estraçalha aos teus pés toda a minha vontade...

Que fazer? Hei de sempre perdoar o que fazes...
E se choras, nem sei... Esquecendo o que disse
sou eu que enxugo o pranto e ainda proponho as pazes!

FREIRA

Em teu calmo semblante e em teu olhar parado
há perdido -  bem sei - um mistério qualquer...
- quem sabe se pecaste... e se foi teu pecado
quem te fez esquecer que és bela e que é mulher...

Hoje és santa... O passado passou --- é passado...
- dele já não terás uma ilusão sequer,
e o amor que se tornou funesto e amargurado,
sepultas no silêncio... e em teu árduo mister...

Mais à frente está a vida... a vida humana e bela!
- teu presente é uma prece; teu passado: um poema;
teu futuro: um rosário, um altar, uma cela...

Evadida do mundo - ao ver-te, à luz do dia
- não sei se te admiro a renúncia suprema,
ou se lastimo a tua imensa covardia!

FUGA

Amo um lugar assim, amo os lugares
onde há montanhas, selvas, passarinhos...
- onde o giz alvacento dos luares,
à noite, faz rabiscos de caminhos...

Que bom ficarmos sempre assim, sozinhos...
quantas coisas depois, para lembrares!
Esta calma varanda... os meus carinhos...
Um silêncio... que é música, nos ares...

A porteira lá embaixo... a estrada, o fim...
Ah! Se pudéssemos nos esquecer
para onde segue aquela estrada, assim...

Ah! Se pudéssemos pensar que aquela
estrada , ali adiante vai morrer...
- Como a vida, meu Deus, seria bela!

GATA ANGORÁ

Sobre a almofada rica e em veludo estofada
caprichosa e indolente como uma odalisca
ela estira seu corpo de pelúcia, - e risca
um estranho bordado ao centro da almofada...

Mal eu chego, ela vem... ( nunca a encontrei arisca)
-sempre essa ar de amorosa; a cauda abandonada
como uma pluma solta, pelo chão deixada,
e o olhar, feito uma brasa acesa que faísca!

Mal eu chego, ela vem... lânguida, preguiçosa,
Roçar pelos meus pés a pelúcia prata,
como a implorar carícias, tímida e medrosa...

E tem tal expressão, e um tal jeito qualquer,
- que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata
traz no corpo escondida uma alma de mulher!

IDEAL DE AMOR

Odeio aquelas almas onde encontro escrita
uma história que um outro antes de mim viveu...
Dentro de um grande amor, o amor-próprio se irrita
encontrando um romance que não seja o seu ...

Quero uma alma que seja inteiramente pura,
simples, e onde não haja escrita uma só linha,
onde possa ir deixar um poema de ventura
aquela que procuro e que há de ser só minha...

Quero um amor de egoísta todo meu, inteiro,
que não traga um vestígio de afeição sequer...
- se para ele eu não for o seu sonho primeiro
desde já renuncio a outro lugar qualquer...

Somente assim desejo e quero ser amado
e um grande amor somente assim posso sentir...
- hei de ser seu presente... hei de ser seu passado
e a esperança feliz que doure o seu porvir...

Para um perfeito ideal... para encher a minha vida
ser toda a minha crença em meu viver de ateu,
não quero a alma que foi por outro amor possuída
nem quero aquele amor que um dia não foi meu!

Quero o amor em botão... fechado, pequenino,
e ao calor do meu beijo há de florir então,
- para ser a razão do meu próprio destino
e a grandeza imortal da minha inspiração!…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Leonardo Boff (A Águia e a Galinha)


Certa vez, um camponês andando pela floresta, encontra caído ao chão um ninho de águia, com um filhote bastante machucado, que havia caído junto com o ninho do galho mais alto, de uma das árvores mais altas do local.

Com pena da ave, levou-a para sua casa e tratou-a dia a dia. Aos poucos foi se recuperando, e o nosso camponês, sem ter onde deixá-la, acabou colocou-a no galinheiro, junto com as suas galinhas.

E, assim, a aguiazinha foi crescendo e aprendeu a se comportar exatamente como as galinhas.

Os anos se passaram. Certo dia, o camponês recebeu a visita de um naturalista que, ao ver a águia no galinheiro, afirmou:

"Este pássaro não é uma galinha, é uma águia, a rainha das aves, aquela que voa mais alto e que mais perto chega do céu e do sol. A maior de todas as aves".

O camponês confirmou o que ouviu, mas retrucou:

"Não. Ela já foi uma águia. Ela foi águia quando nasceu, mas hoje é uma galinha. Veja, ela se comporta exatamente igual às galinhas".

O naturalista não se conformou e pediu ao camponês para deixá-lo libertar a águia. O camponês não tinha nada a opor, mas advertiu:

"Não adianta. Você verá que ela não é mais uma águia, pois eu não sei há quanto tempo ela já está aqui e durante todos esses anos ela sempre se comportou como uma galinha".

O naturalista pegou a águia e disse:

"Você sempre foi, é e sempre será uma águia. Você nasceu para voar muito alto, para ser a maior de todas as aves, a mais poderosa. Você não é uma simples galinha. Vamos, voe em direção ao céu e ao sol, pois é o seu destino".

A águia olhou para baixo, viu as galinhas e pulou para o chão, ficando entre elas. O camponês comentou:

"Não lhe disse? Ela perdeu o espírito de águia e agora é uma simples galinha".

O naturalista não se conformou e retrucou:

"Não. A natureza dela não é essa. Amanhã vamos levá-la para o alto da montanha mais alta, lá ela verá o sol e voará como uma águia que é".

E assim fizeram. No dia seguinte levaram a águia até o alto da montanha mais alta e o naturalista repetiu:

"Vamos! Você é uma águia, uma das mais belas criações de Deus. Você foi feita para vencer, não pode continuar agindo como uma simples galinha. Voe. Observe o céu e o sol, eles são os seus objetivos, e não a terra, o chão de um galinheiro".

A princípio a águia, de forma muito medrosa, procurou as galinhas, mas como não as encontrou por perto, passou nervosamente a bater as suas enormes asas, com quase 3 metros de envergadura; aos poucos foi criando coragem e depois de algumas tentativas frustradas e de muito medo conseguiu alçar pequenos voos. Mais um pouco e ela se sentiu com a coragem necessária para voar em direção ao sol e ao céu; e lá foi ela, galhardamente, realizar o seu projeto de vida, para o qual havia sido criada.
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Nós, seres humanos, também viemos ao mundo para realizar todos os nossos projetos e sonhos...

Ao longo da vida, entretanto, alguns perdem essa coragem e desistem de buscar a sua própria realização, desfigurando-se completamente.

Acomodam-se e se deixam levar pelos obstáculos e dificuldades que a vida apresenta. Não conseguem reter o espírito de luta que faz de alguns os grandes vencedores, mas que nasceu com todos nós.

A águia é uma ave de rapina e nisto ela é exatamente o oposto do que temos de ser ao longo da nossa vida e da nossa profissão, porque não nascemos para viver de "expedientes de rapina", mas sim da nossa maravilhosa capacidade de construir sempre um mundo melhor para todos, sejam eles nossos familiares, clientes ou empresas, pois ao produzir, seja o que for, estamos melhorando a vida de todas as pessoas.

Mas, assim como a águia, viemos ao mundo para realizar grandes e bonitos "voos ao longo da vida", transformar os nossos sonhos em realidade e . . . vencer.

Às vezes, a vida nos apresenta situações em que é difícil ser águia e sairmos "voando" em direção ao céu dos nossos sonhos e ao sol das nossas realizações, mas temos de ACREDITAR SEMPRE que isto é uma situação passageira e que logo voltaremos a ter o espírito de vitória com que nascemos, lutando para buscar sempre a plena realização de todos os nossos sonhos.

Assim como a águia, viemos ao mundo com a missão de superar todos os obstáculos que se apresentarem, pois temos de, todos os dias, começar sempre tudo de novo -- não adiantará absolutamente nada o sucesso ou o fracasso...de ontem -- e não importa o que já aconteceu, tenha sito ótimo ou péssimo, pois o que importa mesmo é ... o que você fará acontecer hoje !!!

Semelhante à águia, busque ser a realização da obra maior de Deus e lute sempre, pois é isso que diferencia os que vencem... dos que se lamentam..

Fonte:
Leonardo Boff. A Águia e a Galinha.