quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Ruth Farah (Jardim de Trovas)


1
A bonança desejada,
além da paz mundial,
é ver a fome zerada
com justiça social.
2
A cidade que conserva
o coreto do jardim,
seu patrimônio preserva
uma riqueza sem fim.
3
Amizade, realmente,
que faz a gente feliz
- saber o que um outro sente
e, humildemente, não diz...
4
A “muralha” mais temida
é o desprezo que se tem 
desgastando a nossa vida
pelos caprichos de alguém.
5
A necessidade faz
do cidadão um artista.
Na “corda bamba” é capaz
de ser um equilibrista.
6
Ante às agruras da vida,
não se entregue facilmente.
Após batalha vencida,
o “sol” brilha novamente.
 7
Ante o terror das queimadas
na floresta, com carinho,
as árvores abraçadas
tentam proteger os ninhos.
8
Antes de Cristo Jesus
tratamento era Doutrina.
E Hipócrates fez jus
ser o “Pai da Medicina”!
9
Ao contrário da humildade
que aceita sugestão,
todo orgulho, por vaidade,
não muda de opinião.
10
Ao contrário de um lamento
que uma lágrima alivia,
um magoado sentimento
só amor perdoaria.
11
As lágrimas cristalinas
são fantasias matreiras,
rompendo espessas neblinas
de uma ilusão passageira.
12
Assustado, vi no mar
dois carecas se afogando.
Mas sorri, ao constatar:
um nudista mergulhando...
13
Atingindo o apogeu,
é verdade bem sabida:
Noel Rosa não morreu:
 – mudou o estilo de vida...
14
A verdadeira amizade
aconselha o que convém:
despreza a comodidade
que a tudo só diz Amém!
15
Bem te vi, após cantares
de manhã no meu jardim,
vai alegrar outros ares,
mas não te esqueças de mim.
16
Casamento, na verdade,
se não for bom para os dois,
põe em risco a liberdade
e o mais triste vem depois.
17
Cidadania é saber
manter a honra constante,
ser sincero no dever
e servir ao semelhante.
18
Concedido por esmola
o perdão não traz fiança.
Dificilmente consola
tendo sabor de vingança...
19
Confirmando a aliança
de sonho e realidade,
o Sol é o pai da Esperança
e a Lua, mãe da Saudade... 
20
Contou vantagem o Zezé,
palestrante do Limeiras:
- Fui aplaudido de pé!!!
(Claro, não tinha cadeiras...)
21
Deixou-me louco, de vez,
o meu dentista Tinoco:
Sem precisar tirou três
dentes, por falta de troco...
22
Desejando muitos anos
de existência bem vivida,
esquivo-me dos enganos
 surfando as “ondas” da vida...
23
Disfarçando em lance astuto
minha vida amargurada,
eu mostro o olhar enxuto
com a alma despedaçada.
24
É crime fazer queimadas.
- a terra corre perigo:
vidas são ameaçadas
de fome ou de desabrigo.
25
Educação garantida
“vem do berço” - o próprio lar
 (melhor escola da vida).
Não há quem possa negar…
26
É mais amigo quem fala
a dura e cruel verdade
do que um outro que se cala
por mera comodidade.
27
É por Deus abençoada
a mãe que um filho gerou.
Porém, não menos louvada
aquela que o adotou.
28
Espelhando-se no Mar,
que ardentemente a deseja,
a Lua apaga o luar
para que o Sol não a veja....
29
Estando muito apertado,
não notei a porta errada.
Paguei um mico danado
aos gritos da mulherada.
30
Euclides em “Os Sertões”,
mostrou a realidade:
Canudos sob opressões
de fraterna crueldade...
31
Eu faço um pé de moleque,
de tão bom, não vejo igual.
Mas, por causa de um pileque,
troquei o açúcar por sal...
32
Fim de solo ressequido,
cai a chuva no sertão.
O caboclo agradecido
louva a Deus em oração.
33
Fraternidade  no lar
prova a presença do amor,
dando exemplo singular
de família de valor.
34
Havendo a chuva descido
fininha, qual branco véu,
o caboclo agradecido
rudes mãos eleva ao céu.
35
Idade não é velhice
 – poesia  nos comprova
quando idosos, com meiguice,
fazem da vida uma trova.
36
Longe de qualquer engano,
por ser gesto muito fino,
pedir perdão é humano,
mas perdoar é divino.
37
Meu amor pelo Brasil
somente Deus o comprova.
Mostrá-lo? Nem de perfil,
pois não cabe numa trova…
38
Mulher de rara beleza
não deve, jamais, pintar-se,
pois obra da natureza
não necessita disfarce.
39
Na minha Escola de samba
o enredo, por tradição,
são trovas de gente bamba
alegrando a multidão.
40
Não lhe dou o meu perdão
porque, mais que insensatez
é achar que ainda tem razão
depois do que você fez...
41
Não se deve macular
a inocência da criança
proibindo-a de sonhar
por maldade ou por vingança.
42
Natal! É rico o menu...
Mas, por ser justo, não calo:
Quem sempre morre é o peru,
por que a Missa é do Galo?
43
Nem sempre nós percebemos,
mas disto ninguém duvida:
somos, enquanto vivemos,
artistas da própria vida...
44
No enterro do Geraldão
joguei flores no defunto.
Dando um tropeço no chão,
por bem pouco não fui junto...
45
Nosso amor é tão sublime
que até nos leva à loucura:
as nossas almas redime
e faz da vida... doçura!
46
No velório do Tião,
por causa de uma topada,
caí dentro do caixão.
Só ele não deu risada...
47
Num arbítrio de questão,
é amigo de verdade
quem, de fato, dá razão
usando sinceridade.
48
O amor faz passar o tempo
- não há quem possa negar.
Mas, se o amor é passatempo,
o tempo é que o faz passar.
49
O belo na juventude
traz orgulho, por costume.
Mas beleza sem virtude
é qual rosa sem perfume.
50
O galo foi defender
sua honra na cozinha:
depois de tanto cozer,
vira caldo de galinha.
51
O Deus Pai, só por bondade,
manda Hipócrates, de Cós,
tratar da humanidade
pensando, talvez, em nós.
52
Ó Deus Pai, todo bondade,
cessai a guerra voraz
fazendo da humanidade
celeiro de amor e paz.
53
O galo foi defender
sua honra na cozinha:
depois de tanto cozer...
vira caldo de galinha?!!!
54
O indivíduo sem virtude
não se faz acreditar,
pois caráter não ilude:
o nobre tem seu lugar...
55
Oprimido na gaiola,
lamentando a escravidão,
o sabiá cantarola
para o algoz sem coração.
56
O silêncio, embora mudo,
quando bem interpretado,
nada diz mas fala tudo
decidindo qual jurado.
57
O uso dos celulares
tornou-se prioridade,
pois até em nossos lares
não há mais fraternidade.
58
O vento, por peraltice,
leva folhas pelo espaço.
Que bom se um dia o sentisse
levando as trovas que faço...
59
Para selar nosso amor
melhor quesito não vejo:
ter nos lábios o calor
e a delícia do teu beijo.
60
Penetrando, lentamente,
na choupana esburacada,
banha a cabocla dolente
tênue raio da alvorada.
61
Perdoe compadecido
qual o sândalo, coitado,
que deixa, embora ferido,
seu perfume no machado.
62
Pessoa sem segurança
que faz promessas a esmo,
não merece confiança
e prejudica a si mesmo.
63
Portadora de elegância
e esmerada equilibrista,
a garça exibe arrogância
na tela do grande artista.
64
Qual a brisa, calmamente,
ou ligeira ventania,
passa o tempo indiferente
dia e noite... noite e dia...
65
Quando o amor é verdadeiro,
não importa a “estação”.
Os amantes, por inteiro,
vivem num só coração.
66
Quando o jovem tem, por norma,
ser um homem de valor,
seu próprio caráter forma
sendo um exímio escultor.
67
Quando o poeta falece
junto à Lua vai ficar
mergulhado em doce prece
eternamente a sonhar.
68
Quando o prêmio é merecido,
tem doce sabor de glória;
por trapaça recebido,
não é nenhuma vitória.
69
Quando o santo é de madeira,
no velho estilo barroco,
não encontra rezadeira
que tenha fé em pau oco.
70
Quando povos e nações
se consideram irmanados,
não há discriminações
- direitos são respeitados.
71
Quem não procura plantar
o que deseja colher,
não deve se lamentar
do que pode acontecer.
72
Quem não tem superstição
faz da crença privilégio:
não corre de assombração
nem receia sortilégio.
73
Que sonhos não sejam mais
as esperanças de outrora:
ver o mundo em plena paz
e a miséria indo embora...
74
Salário Mínimo faz
do cidadão um artista
na corda-bamba capaz
de ser bom equilibrista!
75
Se acaso a justiça humana
cai nas mãos de um canalha,
pensa que a todos engana,
mas a divina não falha!
76
Se alguém lhe fizer um mal,
mesmo sem justa razão,
pessoalmente ou virtual,
abrace-o, de coração...
77
Seja de frente ou perfil,
jamais consegue o pintor
mostrar o quanto é sutil
a beleza interior.
78
Se na vida tudo passa,
da diferença me esgueiro.
Não importa a cor ou raça
quando o amor é verdadeiro.
79
“Sorrir é o melhor remédio”
- é receita garantida.
Não respire o próprio tédio;
abra a cortina da vida!
80
Sorriso simples, sincero,
contagia e dá prazer.
Até um indivíduo austero
se deixa corresponder.
81
Surgindo meiga, serena
e por muitos esperada,
tão formosa, a Lua Plena
em serenata é cantada.
82
Tive um trabalho danado
com a vaca, hoje cedinho:
não deu leite empacotado
nem quis sentar no banquinho...
83
Toda honestidade tem
o grande e forte poder
que faz o brio de alguém
bom crédito merecer.
84
Um céu de rara beleza,
a invejar o mundo inteiro,
nos dá a plena certeza
de que Deus é brasileiro.
85
Uma praça sem coreto,
mesmo pintada em painel,
é não ter rima em soneto
ou a pedra num anel.
86
Um dentista experiente
quis da sogra se vingar:
quando foi tirar-lhe o dente,
tentou a língua aparar.
87
Um disfarce satisfaz
até que chegue a verdade,
provando ser eficaz
manter autenticidade.
88
Um título de nobreza
garante reputação.
Entanto, é maior riqueza
ser nobre de coração.
89
Vencendo o mar e procelas,
veio Cabral confiante
nas mais rudes caravelas
tomar posse de um “gigante”!
90
Vi em sonho a Mãe do Céu
ostentando alvissareira
na cabeça, em vez do véu,
a Bandeira Brasileira!

Ruth Farah (1932 - 2017)


Ruth Farah Nacif Lutterback nasceu em Cantagalo/RJ, em 11 de abril de 1932 e faleceu em Nova Friburgo/RJ, a 21 de fevereiro de 2017. Filha dos libaneses Assad Miguel Nacif e Anna Farah Nacif.

Foi Rainha dos Estudantes e Rainha da Primavera de Cantagalo. Estudou em Cantagalo e fez vários Cursos de Especialização para o Magistério Primário em Niterói e Rio de Janeiro. Lecionou e dirigiu várias Escolas do Município,vindo se aposentar com 39 anos de efetivo exercício. 

Participou do Colóquio Internacional “Caminhos da Memória” a convite da UNESCO. 

Fez parte da Coletânea “DEVEMOS VER COM OS OLHOS LIVRES” da ABL e FD (75º lugar dos 6000 professores concorrentes) e de várias Antologias Literárias, entre as quais,“BRAZILA ESPERANTO PARNASO”, de Syla Chaves
e Neide Barros Rego. 

Obteve aproximadamente duzentas premiações em prosa e verso.

Delegada da UBT (União Brasileira de Trovadores), realizava anualmente os Jogos Florais de Cantagalo.

Responsável pelo Departamento Cultural da ASSEXCA (Associação dos Experientes de Cantagalo) em parceria com a JUVENTROVA, promovia concurso para estudantes a fim de despertar novos talentos trovadorescos.

Escreveu “Um pingo de OS SERTÕES” a fim de facilitar o entendimento do fato que deu origem à grande obra de Euclides da Cunha.

Em sua homenagem, a biblioteca da escola municipal Ewandro do Valle Moreira foi batizada com o nome "Sala de Sonhos Ruth Farah Nacif Lutterback".

Fontes:
União Brasileira de Trovadores - Seção Porto Alegre/RS. Trovas de Ruth Farah e Milton Nunes Loureiro. 
Coleção Terra e Céu LIV. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.


Mario Quintana em Prosa e Verso 7



A BELA E O DRAGÃO

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos... Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLÍ, o dragão te seguirá por toda parte como um cachorrinho...

APARIÇÃO

Tão de súbito, por sobre o perfil noturno da casaria, tão de súbito surgiu, como um choque, um impacto, um milagre, que o coração, aterrado, nem lhe sabia o nome: a lua! - a lua ensanguentada e irreconhecível de Babilônia e Cartago, dos campos malditos de após-batalha, a lua dos parricídios, das populações em retirada, dos estupros, a lua dos primeiros e dos últimos tempos.

EPÍLOGO

Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade.

ESTUFA

Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo...

INFERNO

Em suave andadura de sonho, sob uma infinita série de arco-íris celestiais, anjos me conduziam num palanquim dourado, entre um curioso povo de profetas e virgens, que formavam alas para me ver passar. Mas eu me debruçava inquieto a uma e outra janela: faltava-lhe alguma coisa. Faltava... Faltavam os meus desafetos. Eu só queria era ver a cara deles, ver a cara que eles fariam quando me vissem passar, tirado por anjos num palanquim de ouro!

O ESPIÃO

Bem o conheço. Num espelho de bar, numa vitrina ao acaso do footing, em qualquer vidraça por aí, trocamos às vezes um súbito e inquietante olhar. Não, isto não pode continuar assim. Que tens tu de espionar-me? Que me censuras, fantasma? Que tens a ver com os meus bares, com os meus cigarros, com os meus delírios ambulatórios, com tudo o que não faço na vida!?

TRÁGICO ACIDENTE DE LEITURA

Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÔNDITO. Que momento passei!... O momento de imobilidade e apreensão de quando o fotógrafo se posta atrás da máquina, envolvidos os dois no mesmo pano preto, como um duplo monstro misterioso e corcunda... O terrível silêncio do condenado ante o pelotão de fuzilamento, quando os soldados dormem na pontaria e o capitão vai gritar: Fogo!

Fonte:
Mario Quintana. Sapato florido. São Paulo: Globo, 2005.

Vinicius de Moraes (Batizado na Penha)



Eu sou um sujeito que, modéstia à parte, sempre deu sorte aos outros (viva, minha avozinha diria: "Meu filho, enquanto você viver não faltará quem o elogie..."). Menina que me namorava casava logo. Amigo que estudava comigo, acabava primeiro da turma. Sem embargo, há duas coisas com relação às quais sinto que exerço um certo pé-frio: viagem de avião e esse negócio de ser padrinho. No primeiro caso o assunto pode ser considerado controverso, de vez que, num terrível desastre de avião que tive, saí perfeitamente ileso, e numa pane subsequente, em companhia de Alex Viany, Luís Alípio de Barros e Alberto Cavalcanti, nosso Beechcraft, enguiçado em seus dois únicos motores, conseguiu no entanto pegar um campinho interditado em Canavieiras, na Bahia, onde pousou galhardamente, para gáudio de todos, exceto Cavalcanti, que dormia como um justo. 

Mas no segundo caso é batata. Afilhado meu morre em boas condições, em período que varia de um mês a dois anos. Embora não seja supersticioso, o meu coeficiente de afilhados mortos é meio velhaco, o que me faz hoje em dia declinar delicadamente da honra, quando se apresenta o caso. O que me faz pensar naquela vez em que fui batizar meu último afilhado na Igreja da Penha, há coisa de uns vinte anos. 

Éramos umas cinco ou seis pessoas, todos parentes, e subimos em boa forma os trezentos e não sei mais quantos degraus da igrejinha, eu meio céptico com relação à minha nova investidura, mas no fundo tentando me convencer de que a morte de meus dois afilhados anteriores fora mera obra do acaso. Conosco ia Leonor, uma pretinha de uns cinco anos, cria da casa de meus avós paternos. 

Leonor era como um brinquedo para nós da família. Pintávamos com ela e a adorávamos, pois era danada de bonitinha, com as trancinhas espetadas e os dentinhos muito brancos no rosto feliz. Para mim Leonor exercia uma função que considero básica e pela qual lhe pagava quatrocentos réis, dos grandes, de cada vez: coçar-me as costas e os pés. Sim, para mim cosquinha nas costas e nos pés vem praticamente em terceiro lugar, logo depois dos prazeres da boa mesa; e se algum dia me virem atropelado na rua, sofrendo dores, que haja uma alma caridosa para me coçar os pés e eu morrerei contente. 

Mas voltando à Penha: uma vez findo o batizado, saímos para o sol claro e nos dispusemos a efetuar a longa descida de volta. A Penha, como é sabido, tem uma extensa e suave rampa de degraus curtos que cobrem a maior parte do trajeto, ao fim da qual segue-se um lance abrupto. Vínhamos com cuidado ao lado do pai com a criança ao colo, o olho baixo para evitar alguma queda. Mas não Leonor! Leonor vinha brincando como um diabrete que era, pulando os degraus de dois em dois, a fazer travessuras contra as quais nós inutilmente a advertimos. 

Foi dito e feito. Com a brincadeira de pular os degraus de dois em dois, Leonor ganhou momentum e quando se viu ela os estava pulando de três em três, de quatro em quatro e de cinco em cinco. E lá se foi a pretinha Penha abaixo, os braços em pânico, lutando para manter o equilíbrio e a gritar como uma possessa. 

Nós nos deixamos estar, brancos. Ela ia morrer, não tinha dúvida. Se rolasse, ia ser um trambolhão só por ali abaixo até o lance abrupto, e pronto. Se conseguisse se manter, o mínimo que lhe poderia acontecer seria levantar voo quando chegasse ao tal lance, considerada a velocidade em que descia. E lá ia ela, seus gritos se distanciando mais e mais, os bracinhos se agitando no ar, em sua incontrolável carreira pela longa rampa luminosa. 

Salvou-a um herói que quase no fim do primeiro lance pôs-se em sua frente, rolando um para cada lado. Não houve senão pequenas escoriações. Nós a sacudíamos muito, para tirá-la do trauma nervoso em que a deixara o tremendo susto passado. De pretinha, Leonor ficara cinzenta. Seus dentinhos batiam incrivelmente e seus olhos pareciam duas bolas brancas no negro do rosto. Quando conseguiu falar, a única coisa que sabia repetir era: "Virge Nossa Senhora! Virge Nossa Senhora!" 

Foi o último milagre da Penha de que tive notícia.

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Nilto Maciel (O Fim do Mundo de Sinhá)


A peste havia levado para a terra dos pés juntos quase todo o povo do lugar. Menos os filhos ingratos, sem amor ao chão, e os mais duros, de corpo fechado. Muita carniça para os urubus. Uma praga de bicho morto. Plantação nenhuma resistiu. A terra se esturricou. Quem escapou e não esperou pela morte, fugiu para bem longe, tomou o oco do mundo. Menos Sinhá. Essa ficou para enfrentar o cão. Comia raiz, qualquer coisa da terra nascida. Gafanhoto, formiga, besouro. Depois apareceram, não soube ela como, pés de pau, porco, galinha, toda sorte de bicho. Porém de quase nada disso ela se servia. Continuava a enfiar as mãos trêmulas na terra, à cata de comida do chão. Se enxergava ainda? Divertia-se a espiar as galinhas comerem minhocas, os porcos fuçarem a lama e os frutos apodrecerem em cima da terra. Sozinha no sitiozinho, na choupana velha, dos bons tempos, conversava com os bichos, a chuva, os ventos, a noite, os meninos que malinavam no terreiro e metidos no mato. Não haverá de abandonar a terrinha, porque, o que de que carecia, ela dava em abundância. Dava e levava. Nas suas falas, porém, Sinhá muito se queixava de abandono e rogava pragas aos que a deixaram só, como se estivesse leprosa. Maldizia-se dia e noite, a gritar e blasfemar em miúda voz. Talvez não a ouvissem. Certamente viviam por ali, enfiados nas cabanas escondidas ou nas roças distantes. Tangiam porcos e galinhas, que não cessavam de fuçar o chão, em tempo de derrubar as casas. Ouvia de madrugada o canto dos galos. Sim, eles viviam por ali. E nunca se mostravam. Tinham medo da lepra que ela não carregava. Orgulhosos! A terra havia de papar um a um amanhã, antes da safra, depois de São João.

Passo manso e torto, olhos nas pontas dos pés, amaldiçoava os bichos que a perseguiam, encostada na bengala lisa e ensebada. Pela primeira vez, depois de tanta solidão, pisava novos rastros. Vontade doida de dar um passeio, conversar de frente, recordar o antigamente, até aquela peste danada e tão passada, falar da chuva que sempre vinha e sempre ia. Buscou as veredas cobertas de mato, para cá e para lá, avistou a cabana de Meranda. Por que aquela criatura nunca mais havia aparecido? Oi de casa. Nem um só pio. Apurou os ouvidos. Pio, pio, pio. Escancarou a porta, passou, passou, trambecou, perguntou pelo café, nada de fogo nem de lenha. Decerto o povo andava na roça ou na cidade a comprar fazenda por mor de fazer roupa para os meninos. O mofo no canto da cozinha cobria o pote. Fogão apagado, panela nenhuma. De tamborete só a sombra. Esburacadas as paredes, furado o céu no telhado.

Sem jeito, saiu pela porta dos fundos, a tropeçar no passado. Essa Meranda! Cansada de carregar o tino, grudou-se à bengala lisa e vergou o corpo, murcho e leve, e só não conseguia voar, feito os passarinhos que beliscavam a mata branca de sua cabeça, porque nada a despegava da terra. Nem mesmo o abandono de parentes e aderentes. Fugir também? Não, não sentia medo de nada. Ora, se já ninguém existia no mundo, nada de fazer medo havia. Tudo morto, até o tempo. Fim de mundo, sim senhor. Pois donde nascer curumim, se não se via mais homem nem mulher? Ela? Não, nada daquilo era, nem mulher nem homem. Nem nunca tinha sido. Então só queria a fianga para se estender, descansar e dormir. Bem muito.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

ACLAPTC-CTC (Programação Março/Abril)


ACLAPT-CTC - Academia Capixaba de Letras e Artes de Poetas Trovadores -Clube dos Trovadores Capixabas

Dia 14 de março  
Data de nascimento do Poeta Castro Alves

Início às 18 (Dezoito) horas. 

Início das atividades Acadêmicas da ACLAPT-CTC em 2019. 

Comemoração do Aniversário de Castro Alves, 

Posse Acadêmica e Juramento e Posse dos Acadêmicos Infanto Juvenis da ACLAPTCTC. 

Sessão Magna da Saudade homenageando os Acadêmicos Falecidos: Vera Maria da Penha e Agostinho Rodrigues. 

Lançamento do Concurso Nacional e Estadual de Poesias com o tema, “Maravilhas da Cidade de Anchieta” e 

Concurso Nacional e Estadual de Trovas, “Anchieta Berço da Cultura”, com obrigatoriedade apenas da colocação das palavras Anchieta e Cultura, com a entrega de prêmios no XVI Congresso Brasileiro de Poetas Trovadores. 

Local do Evento : 
Auditório do Centro Cultural Frei Ubaldo Favagallo da Civitella Del Trento, na Avenida Expedito Garcia, próximo ao supermercado Carone, Campo Grande, Cariacica, ES.  

Dia 29 de Março, sexta feira. 

Data destinada a Visitas Técnicas, pelos Historiadores da ACLAPT-CTC, em Edificações históricas e erguidas pelos Jesuítas em Viana, Cariacica, Serra e Vila Velha. 

Aberta a participação de todos Acadêmicos. 

IGREJA DE NOSSA SENHORA DA AJUDA DE ARAÇATIBA. Edificada sobre uma colina às margens do rio Jacarandá. A igreja apresenta, de um lado, as ruínas do antigo convento, onde, há séculos passados, teriam vivido os jesuítas que plantaram em nossas plagas a árvore da civilização cristã. 

Contatos: robertovasco@hotmail.com – 9 9963 0471.

ABRIL

06 de abril. 
Início: 19 horas.

Auditório do Teatro Municipal de Vila Velha, "Elio de Almeida Vianna", localizado no prédio da antiga sede da Prefeitura, na Praça Duque de Caxias, Centro de Vila Velha. 

Evento: Show “Poemas Musicados” constante do CD de mesmo nome, do compositor e cantor Carlos Bona, em Parceria com 13 Acadêmicos da Academia de Letras de Vila Velha e ACLAPT-CTC. 

Dia 13 de abril, em Belo Horizonte 
Primeiro encontro de Escritores e Delegados Culturais. 

Local: Inconfidente Mineiro 

(Contato: Lea Lu: 31-99665-0965 e 31-3396-0206).

Final de Abril em data a ser informada. 
Cerimônia de Posse acadêmica na ACL – Academia Cariaciquense de Letras, dos novos acadêmicos Correspondentes: Roberto Vasco, Edilson Celestino, Magnólia Pedrina Silvestre. 

27 de Abril, Sábado 
Início às 16 horas

Segunda Reunião Trimestral da ACLAPT-CTC 
Rua dos Pombos, 2 Eurico Salles, Carapina, ES.

Fonte:
Clério Borges
Presidente da ACLAPT-CTC,

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) II



NO SEU TÚMULO

Sobre o seu frio berço sepulcral,
Meu espirito reza ajoelhado;
E sente-se perfeito e virginal
Na sua dor divina concentrado.

Caí, gotas de orvalho matinal!
Astros, caí do céu todo estrelado!
Secas flores do zéfiro outonal,
Vinde enfeitar-lhe o túmulo sagrado!

Ó luar da meia noite, encantamento
De sombra, vem cobri-lo! Ó doido Vento,
Dorme com ele, em paz religiosa...

Sobre ele, ó terra, sê brandura apenas;
Faze-te luz, toma o calor das penas;
Sê Mãe perfeita, boa e carinhosa.

DELÍRIO

Não posso crer na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo...
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dor sofrida, o meu cansaço.

Delírio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?

Mistério! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho medo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?

Ah, que a dor infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra criatura!

REMORSOS

Onde contigo, um dia, me zanguei,
É hoje um sitio escuro que aborreço;
E sempre que ali passo, eu anoiteço!...
Ah, foi um crime, sim, que pratiquei!

Quantas negras torturas eu padeço
Pelo pequeno mal que te causei!
Se, ao menos, pressentisse o que hoje sei?
Mas não; fui mau; fui bruto; reconheço!

E sofro mais, por isso, a tua morte,
E dou mais choro amargo ao vento norte,
Mais trevas se acumulam no meu rosto...

Ó vós que neste mundo amais alguém,
Seja linda criança ou pai ou mãe,
Não lhe causeis nem sombra de desgosto!

NO CREPÚSCULO

Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Ermos, soturnos píncaros sozinhos...
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz... e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros...

Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepúsculo, desmaiam
E assim como os seus cânticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragorosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, bocas de terra, murmurantes,
Arvoredos extáticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam também no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado...

E eu choro sobre um monte abandonado...

E o Fantasma divino da Criança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dor!

E choro; e além das lagrimas, eu vejo
Aquele doce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e sofrimento;
Jesus martirizado, inda Menino...
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!

Depois, a sua Imagem sofredora
Regressa á Vida, veste-se de aurora;
Os seus lábios sorriem para mim...
E aqueles verdes olhos cristalinos
Abrem-se radiosos e divinos,
E vejo-o então brincar no meu jardim!

Vejo-o como ele foi, como ele existe
No coração da Mãe por toda a vida!
Anjinho tutelar da nossa casa!
A divina Esperança florescida,
Brilhando além de tudo quanto é triste...
Longínquo Alívio, protetora Asa!

Mas de que serve? Eu choro sem descanso,
No meio da tristeza indiferente
Das Cousas que têm a alma sempre ausente...

Só eu na minha dor nunca me canso.

Ó bruteza das Coisas! No infinito
E gélido silencio, eu ouço um grito!
Na funda solidão que me rodeia,
Um ser apenas, tétrico, vagueia...

Quem grita? O meu espirito. E que importa?
É ele a errar no mundo solitário,
Sem principio nem fim, sem pai nem mãe!

Ó céu indiferente! Ó terra morta!
Ó grito de Jesus sobre o Calvário,
A subir no Infinito, cada vez
Mais cercado de trágica mudez,
Mas aflito, mais alto, mais além!...

Cousas que já fizestes companhia
A este espirito meu que, em vós, se via,
Porque me abandonastes? Ermo Vento,
Insonia do ar correndo o Firmamento,
Só vejo, em ti, loucura inanimada,
Revolta inconsciência destruidora!

Alta estrela, na noite, incendiada,
Passarinhos do céu, cantos da aurora,
Já não palpita em vós meu coração...
Sois o silencio, a treva, a solidão.

Além de mim já nada avisto. As cousas,
Arvores, nuvens, serras pedregosas,
São penumbras que á luz do meu olhar
Se dissipam, de súbito, no ar.

De tal forma meu ser se concentrou
Na visão da Criança, que além dela,
Não vejo flor ou ave ou luz de estrela,
Límpido céu azul, verde paisagem!
Dir-se-á que o seu Espectro reencarnou
Em mim, - que não sou mais que a sua Imagem!

SOBRESSALTO

Quantas horas passava contemplando
Seu pequenino Vulto. Era um Anjinho
Dentro de nossa casa, abençoando...
Era uma Flor, um Astro, um Amorzinho.

Um dia, em que ele, ao pé de mim, sozinho
Brincava, estes meus olhos inundando
De graça, de Inocência e de carinho,
De tudo o que é celeste, alegre e brando,

Vi tremer sua Imagem, de repente,
No ar, como se fora Aparição.
E para mim eu disse tristemente:

"Pertences a outro mundo, a um céu mais alto;
Partirás dentro em breve." E desde então
Eu fiquei num constante sobressalto!

ENCANTAMENTO

Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua doce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlevo perfeito e graça pura!

E á força de sorrir, de me encantar,
Diante de ti, mimosa Criatura,
Suavemente sentia-me apagar...
E eu era sombra apenas e ternura.

Que Inocência! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,

E até meu próprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!

O QUE EU SOU

Noturna e dúbia luz
Meu ser esboça e tudo quanto existe...
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste...

Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas...
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.

E tu, Sombra infantil do meu Amor,
És o Ser vivo, o Ser Espiritual,
A Presença radiosa...
                        Eu sou a Dor,
Sou a trágica Ausência glacial...

Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti...
                        Mas quem morreu?
Foste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!

Horrível cataclismo e negra sorte!
Tu foste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apos a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o lugar
Da minha espiritual, futura imagem...
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.

Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Vento de eternidade,
Arrebatou meu sonho! E fugitiva
Deste mundo se fez minha alegria;
Mais morta do que viva,
Partiu contigo, Amor, à luz do dia
Que dourou de tristeza o teu caixão...
Partiu contigo, ao pé de ti murmura;
É magoada voz na solidão,
Doce alvor de luar na noite escura...
E beija o teu sepulcro pequenino;
Sobre ele voa e erra,
Porque o teu Ser amado é já divino
E o teu sepulcro, abrindo-se na terra,
Penetrou-a de luz e santidade...
E para mim a terra é um grande templo
E, dentro dele, a Imagem da Saudade...
E reso de joelhos, e contemplo
Meu triste coração, saudoso altar
Alumiado de sombra, escura luz...
Nele deitado estás como a sonhar,
Meu pequenino e mistico Jesus...
Lagrimas dos meus olhos são as flores
Que a teus pés eu deponho...
Enfeitam tua Imagem minhas dores,
E alumia-te, ás noites, o meu sonho.

Todo me dou em sacrifício á tua
Imagem que eu adoro.
Sou branco incenso á triste luz da lua:
Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro...

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.