quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Olga Agulhon (Feita de Luz)


Expulsa da cidade, acusada de atrapalhar o sono dos justos, roubando-lhes a negritude da noite, onde todos os gatos são pardos, abrigou-se no campo, num pequeno sítio ao pé da serra, longe de vilarejos e longe de gente de todos os tipos.

Deixou, no antigo apartamento, quase toda a mobília, as roupas de seda, os saltos altos, as lembranças inúteis.

Com o pequeno filho sempre junto ao peito, carregou consigo apenas o necessário, as roupas de algodão, uma botina, algumas recordações agradáveis, não muitas; e seus livros, todos, sem esquecer nenhum título.

No meio do caminho, deu carona a um tipo estranho, grande, negro, mudo, que, por assim o ser, não pôde dizer como era chamado.

Chegando àqueles campos, que seriam seu refúgio, respirou o ar puro da natureza que os acolhia sem pudores ou preconceitos. Cumpriria naquele lugar o seu destino. Desceu para abrir a porteira, carregando o filho, junto ao peito como sempre o mantinha. Mais tarde, ao fechá-la, deixaria definitivamente para trás todo o seu passado de busca e escuridão.

Ao descarregar as malas, dispensou imenso cuidado a uma delas, por conter seu último par de asas.

O negro carregava os livros que não sabia decifrar.

Na casinha branca, de varanda, aguardou o motorista do caminhãozinho que havia transportado a pequena mudança. Antes de ir, após receber seu pagamento, não se conteve e perguntou à mulher sobre os livros, tantos eram.

Ela respondeu que eram o seu alimento; e ele foi-se embora sem entender, mas sem disposição para mais questionamentos.

Há louco pra tudo, mesmo... Livros, pra que tantos livros nesse fim de mundo, ficou pensando o motorista, que de leitura nada sabia.

Sem ter para onde ir, ou quem por ele esperasse, o negro ficou por lá, mudo, arando o campo, tentando descobrir os segredos da terra e da mulher.

Ela também cultivava o solo, descobria os seus desejos, fecundava suas entranhas.   

Cuidava do filho com esmero e amor.

Mantinha a casa limpa e arrumada.

Criava pequenos animais, fazia o pão.

De dia era assim. Parecia uma mulher comum, porém dotada de especial brilhantismo, inteligente, dessas heroínas que existem em todo o mundo e que conseguem assumir tantas funções, porque aprenderam a mágica e se duplicam; ou até mesmo se transformam em muitas, sem que os homens se deem conta da magia realizada.

De noite era outra. Abandonava os trapos de algodão; vestia-se de luz. Bebia o estrato dos imortais e inalava seus perfumes. Nutria-se de poemas.

Espargindo um líquido denso, que brotava ritmado, dava de mamar ao filho e fazia-o dormir ouvindo doces palavras.

O negro, mudo, assistia a tudo como se sonho fosse e, sem acreditar que pudesse existir mulher assim, feita de palavra e luz, em todas as noites era tomado por uma agradável sensação e adormecia, sentindo um cheiro muito bom e sonhando o mesmo sonho.

Depois de adormecidos, o menino e o negro, a mulher ainda permanecia acordada, devorando incontáveis páginas.

Quando se sentia extasiada, vestia seu par de asas e sobrevoava as cidades, como verdadeira heroína alada, exorcizando as dores e a ignorância do mundo, espargindo sobre os homens um pouco de si, noite após noite.

Nada mais tendo a doar e estando leve como uma pluma, não mais batia as asas, flutuava. E, nesses instantes, olhava o mundo por cima dele; e chorava. Chorava porque via o quanto os homens ainda precisavam de poemas, de magia, de sonhos. Ainda havia muito o que salvar...

Então voltava, recolhia as asas e deitava-se para repousar em pouco e recomeçar outro dia, sugando da terra e dos livros novas energias.

Em suaves momentos, observava os primeiros passos do filho. Preparava-o para ser seu sucessor. Mesmo sabendo que, por ser homem, o filho teria mais dificuldades, desejava passar-lhe toda a sua heroica sensibilidade, toda a sua mágica e toda a sua luz. Tinha esperanças.

Assim se passaram os anos.

Depois de toda uma vida feita de luz, a mulher entregou a asa ao filho e adormeceu para sempre, amparada pelo bom amigo negro e inculto, que se despediu falando com os olhos.

Foi tranquila, conhecendo o futuro que dera ao filho.

De longe, ainda pode ver quando ele pôs a velha asa na mala, disse até logo ao negro, e saiu para percorrer o mundo; e ser poeta.

Fonte:
Olga Agulhon. Germens da terra. Maringá/PR: Midiograf, 2004.

Samuel C. da Costa (Série Amor em Vermelho) 1


A CIDADE DAS CHUVAS

Na cidade das chuvas
Ela decidiu ganhar as ruas
Em um ledo dia de sol

Aquela jubiloso dia de sol
Ela toda radiante
Vestiu o que de melhor tinha
Seu sorriso perolado
Em um diáfano vestido floral

Na cidade das chuvas
Justamente naquele dia de sol
Ela ganhou as ruas dissolutas
E foi se reunir
Com o que melhor existe
Na vastidão cósmica sem fim
Foi se encontrar consigo mesma

A NEGRA AURORA AUSTRAL

Toque-me!
Como se eu fosse de aço.

Toque-me
Como se tu fosses de vidro!

Toque-me
Como se eu não fosse nada.

Toque-me
Como se tu soubesses de tudo!

Toque-me
Como se eu fosse um poema
Inacabado sem poesia

Toque-me
Como se não houvesse amanhã

Toque-me
Antes que o mundo acabe

AS LUZES DA RIBALTA
De tudo que eu sou
E de tudo
Que eu sou capaz
De ser

Que as cósmicas
Luzes da ribalta
Façam-me brilhar
Mais e mais
Para além das múltiplas
Inexistências reinantes

De tudo que eu posso ser
E do muito que eu sou
Capaz de ser

Que as milenares
Luzes da ribalta
Façam-me trespassar
A realidade fluída
Em que vivo

CANDURA (ELOGIO A LIBERDADE)

Naqueles turbulentos dias
De abissais confusões inexatas
Ela decidiu quebrar
Os milenares grilhões

Naquele entardecer sem fim
Tempo de dores infindas
Ela se rebelou por completo

Naquele anoitecer sem fim
A manopla deixou de sufocá-la
Aquela negra alma sofrega
Mergulhada em infindáveis dores

Naquela alvorada
Ela simplesmente sorriu para a vida

EPIFANIA ABSTRATA
Para o jornalista Luiz Gonzaga Mattos

O palco é o habitat
Dos artistas

Ah as luzes
As luzes da ribalta
A ciclorama
Os aplausos
Os gritos
Os vivas efusivos
E a saudação curvilínea
Dos artistas ao público
Que pede estridente
Um bis
Ao ver descerrar a cortina

Eu?
Eu fico na porta de entrada
Uniformizado estático
À espera por tudo que não vem

O palco é o habitat natural
De todos os artistas
O microfone
Os alto-falantes
E voz estridente
Que retumba para o além
Da infinitude cósmica

Eu?
Eu esqueço o texto

Eu?
Eu destoa de tudo
E de todos
Com a voz embargada
Olhando para a público sentado
Que espera e espera
Por aquilo que não vem
E que nunca virá

Eu?
Sou eu tentando ser maior
Que a censura cibernética
Facebookiana
E não consigo

Eu?
Eu admiro extasiado
A artista no palco
A minha vaporosa negra musa
Distante de tudo
E de todos

Eu?
Eu tomo a pena
E o mata-borrão
A hialina folha em branco

Eu?
Tento compor um poema
Com poesia abstrata
E não consigo

Eu?
Eu martelo o teclado
Com fúria titânica
Tento compor uma prosa simbolista
E não consigo

Eu?
Tento me exilar
Na arte absoluta
E não consigo

Eu?
Tento esquecer de mim mesmo
Mas não consigo

GAIA ( MAIS PROFUNDA QUE O MAR)

Queria fazer amor perdidamente
Tendo o astros-mortos
Como testemunhas
E com as bênçãos de Gaia

Não! Não queria viver enclausurado
Em um níveo mundo
De sonhos vagos
Presa ad aeternum
Em contemplações quiméricas furtivas

Queria arder em chamas
Entregar-se por inteiro
Na mais profundas das fossas abissais

Qualquer coisa que faça quase sentido
Olho para o mar
Na minha frente
E desejo perdidamente
Que qualquer coisa
Nesta vida
Faça quase sentido

Olho para o mar
E desejo desesperadamente
Que eu possa
Tirar o meu traje de civilizado
De usar somente as roupas
Que Deus me deu
E caminhar celestialmente
Pelas hialinas areias
Da praia

Olho para o mar revolto
Sinto o álgido vento
Revoltar-me o cabelo
E desejar
Que qualquer coisa faça
Realmente sentido
Na minha vida

Olho para imensidão azul
Para o céu sem nuvens
Na esperança vil
Que qualquer coisa faça
Quase sentido
Nesta vida apoplética

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta

Manuel de Oliveira Paiva (Dona Guidinha do Poço)

Manuel de Oliveira Paiva (CE, 1861 -1892)

Sua única obra importante Dona Guidinha do Poço ficou ignorada até 1952 quando foi editada, sessenta anos após a morte do autor. Coube a Lúcia Miguel Pereira redescobri-la, fazendo na primeira edição uma elogiosa (e merecida) apresentação.

Obra do autor cearense Manuel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço resgata elementos da cultura nordestina e pormenores da vida interiorana, na história de uma mendiga que, no final do século XIX, era alvo de piadas nas ruas, por ter sido condenada pela Justiça de Quixeramobim pelo assassinato do próprio marido. A tragédia inclui elementos de vingança, prisões e mortes.

Obra de profundidade psicológica vale-se de um estilo vivo, na qual se fundem poesia, reflexão, senso de humor e a presença do falar regional. Há o aproveitamento das tradições orais e dos contadores de história.

RESUMO

É uma história de adultério e crime passional, que escapa ao lugar-comum por dois motivos essenciais; o poder do romancista de levantar o perfil vigoroso do homem como expressão moral e telúrica de determinada região; e as qualidades da linguagem ou do estilo, refletidas nas características orais do processo narrativo.

A paisagem é o Nordeste, e os elementos de psicologia humana e social explorados definem o homem da zona sertaneja. Os detalhes característicos de ambiente, os padrões e valores apontados nos deixam antever um misto de pseudo-aristocracia e rusticidade de costumes, numa fase avançada de definição do patriarcalismo e coronelismo sertanejo, em pleno sistema escravocrata. E ainda aquele período que nos deu lenda e evocações, envolvendo escravos, crimes aprazados, vinganças, assassinatos, muitas vezes sob a inspiração passional ou sob paixões e orgulhos em conflito. Bem próximo do português pioneiro na região, reflete o instante ultimo do seu processo de aclimatação, do que resultou o autêntico fazendeiro das zonas agrestes do Nordeste,

O fundamento dramático da obra repousa em fatos reais, romanescamente tratados em virtude da intuição e poder do romancista de reconstituir no tempo e no espaço, sem se deixar contaminar pelo momento presente em que reelabora.

É o caso em que a técnica e a linguagem foram poderosos auxiliares. É provável a sugestão atuante nele dos processos de contadores de história ou das tradições orais da região.    Relata linearmente, comentando e ilustrando, fatos, tipos, circunstâncias enquanto enriquece o detalhe descritivo com elementos plásticos contidos no termo adequado ao linguajar regional. É este explorado essencialmente nos seus aspectos definidores da capacidade aguda de observação do homem na paisagem, num misto de poesia, percepção rápida e raciocínio crítico repassados de senso de humor.

A frase é contida e objetiva, direta, sem retórica, apesar dos elementos sensoriais e do espírito comentador que se entrosam com as imagens e os fatos. Por tudo isso, pelo seu realismo feito de observação perspicaz dos acontecimentos e de análise de caracteres assim como pela sua linguagem elaborada no sentido da experiência estilística, ele se destaca no romance pseudo-regionalista de fins do século. E, até o pouco desconhecido, assume agora um lugar importante em nossa ficção, bem próximo das melhores realizações do grupo modernista do Nordeste (Antônio Cândido).

A seca, pois, e o regionalismo margeiam o tempo todo a saga trágica acontecida na fazenda Poço da Moita. A linguagem do povo está tão presente que necessária se tornou a elaboração de um glossário no final do livro. Com cerca de quinhentos verbetes esse glossário de termos bem demonstrativos do falar do sertão cearense comprova a preocupação do autor em devassar a vida daquela gente sofrida a partir da sua linguagem. Prova é que a partir da primeira expressão do livro “De primeiro” esse falar já se apresenta. Depois disso vão se configurando cenas e temperamentos entrevistos sem a crueza naturalista em moda, mas deixando-os subentendidos como na estética realista.

Dona Guidinha do Poço é, portanto, um romance comprometido com a estética realista, resgata a linguagem regionalista do centro sul cearense, apresenta uma história de paixão e morte que traz, secundando-a, o fenômeno climático da seca, tão marcante na região Nordeste como nos romances da geração de 30. Daí que o embrião para o romance de seca da segunda fase do nosso modernismo finca-se, segundo Alfredo Bosi, em Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, Luzia-Homem, de Domingos Olímpio e A fome, de Rodolfo Teófilo. Esses três autores cearenses foram testemunhas da grande seca dos anos de 1877, 1878 e 1879. Essa temática aliada ao resgate que faz do regionalismo, faz com que se afirme que nenhum escritor cearense soube trabalhar com tanta felicidade a nossa linguagem do povo - sem desfigurar o conteúdo literário como Oliveira Paiva. Além disso há a técnica narrativa empreendida pelo escritor quando ele consegue tornar sugestiva qualquer minúcia, valendo-se de indicações objetivas para reforçar indiretamente o sentido da narrativa ou insinuar o caráter de um personagem.

Dona Guidinha do Poço, considerado por José Ramos Tinhorão como um clássico da literatura brasileira. Obra de profundidade, psicológica e sociológica, vale-se de um estilo vivo, onde se fundem poesia, reflexão, senso de humor, a presença do falar regional nordestino, além do aproveitamento das tradições orais e das narrativas dos contadores de história.

Tempo

Dona Guidinha do Poço passa-se em dois anos, distribuídos ao longo dos 5 Livros: dois meses para o Livro I (o amor despontando); um mês para o Livro II (o amor se consuma em posse); onze meses para o Livro III (a paixão cega); novamente um mês para o Livro IV (o drama) e um mês ou mais para o Livro V (desenlace). Um preâmbulo de abertura completa a conta.

O tempo cronológico, convencional e linear, com discretos flashbacks, é altamente marcado, em dias, meses e até, por vezes, horas. Uma precisão, a mais óbvia, é, no entanto, insidiosamente escamoteada: o ano dos acontecimentos. Sabe-se que Guida era pequena na seca de 25 (“em 25, ela era ainda pequenota...” p. 56) e que tem, no momento da narrativa, mais de 30 anos. Essa inesperada imprecisão aponta para um desdobramento temporal entre o enunciado e o narrado: na verdade, a história de Guida pertence ao passado, é um “causo”, contado em outro momento. Aconteceu, “foi verdade” (a prova, as marcas de datas), no tempo da história.

Ao tempo cronológico, exterior e ao tempo psicológico, interior, soma-se um tempo cósmico, cíclico, marcado pelas estações. Assim o Livro I é o da seca, em março; no Livro II vêm as chuvas de abril e maio; o Livro III, o mais extenso, cobre as quatro estações – primavera, verão, outono, inverno e novamente as chuvas; o Livro IV retorna à primavera e o Livro V, ao verão.

Tempo cósmico, que é o tempo real do sertão e também o do mito e que, como as outras dimensões, dilui-se no final.

Foco narrativo

Em função do tempo, o narrador é a voz que conta um “causo”. Jogral contador, assegura, através de sua narração, o tempo cósmico-simbólico e restaura, no jogo de corda bamba, o equilíbrio. Narrador sem rosto, voz discretamente onisciente e onipresente, porque situada em outro tempo: a história contada já aconteceu. Mas, se algumas pistas são maliciosamente jogadas cá e lá, ele guarda a surpresa do final (que conhece), mantendo o ouvinte-leitor preso ao narrar.

Narrador popular, oral, que pouco intervém e que tem sua fala própria – e não é de espantar que, como Flaubert, use e abuse do estilo indireto livre.

Alguém conta uma história: o clássico narrador na terceira pessoa vai nos narrar o que sucedeu no Poço da Moita. Vemos na narrativa outras vozes surgirem e vários narradores proliferarem. O narrador de Dona Guidinha é um homem culto, com belo manejo de língua, conhecedor do latim e que julga desabusadamente a sociedade.

Observações:

Nada há, antes de Graciliano Ramos, algo tão denso como Dona Guidinha do Poço, quanto à linguagem incisiva na caracterização dos tipos humanos, e na transposição do latifúndio nordestino, com seu ritmo vegetativo, seus agregados, retirantes e fazendeiros,

Enredo

É a saga da fazendeira Marica Lessa. Essa via foi devassada pelo historiador Ismael Pordeus que teve acesso em cartório de Quixeramobim, ao processo em que a poderosa fazendeira Marica Lessa respondeu pelo assassinato de seu marido o Cel. Domingos d´Abreu e Vasconcelos por volta de 1853. A fazendeira poderosa amasiou-se com um sobrinho do marido, Senhorinho Pereira, e contratou o executante do crime contra seu consorte. Descoberta a trama, a desditosa dama foi condenada a muitos anos de prisão, vindo a cumprir sua pena na cadeia pública de Fortaleza. Ao ser solta, semi-enlouquecida e depauperada, perambulava pelas ruas da capital até quando morreu como indigente. Foi nessa história real que se baseou Oliveira Paiva para escrever Dona Guidinha do Poço.

É um romance modelar do realismo brasileiro. Compromissado com a realidade, ele mostra uma história que realmente aconteceu, mudando os nomes dos personagens e acrescentando alguns detalhes ficcionais e ilustrativos. Depois há a coragem do autor em introduzir na sua linguagem o rico latifúndio linguístico regional. O falar da região aparece como forma de trazer não só o homem mas principalmente sua fala para dentro do enredo. Além disso há outra realidade cruciante no romance, que ainda hoje se faz presente na região do semiárido nordestino que é a seca.

Narra a história da poderosa Margarida Reginaldo de Oliveira Barros, dona de cinco fazendas, prédios, gado, prataria e muitos escravos. Mulher bravia e apaixonada envolve-se por um sobrinho de seu marido, soldado elegante e vaidoso. Este acusado de homicídio esconde-se na casa do tio, que desconfiado de seus amores com a mulher, Dona Guidinha, resolve entrega-lo a polícia.

Como vingança Dona Guidinha manda matar o próprio marido, e como sempre altaneira, é conduzida à prisão, sob vaias da população.

Fontes:
- Joel Cardoso. Literatura Brasileira: resumos para vestibular e Enem. 2.ed. Maringá/PR: Massoni, 2018.
- Passeiweb

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 59


Antonio Carlos de Barros (Tropeiro de Sorocaba)


Salve todos os tropeiros,
protagonistas da história,
foram valentes pioneiros
incrustados na memória.
José Feldman


Tropeiro é o condutor de tropas, do gado vacum, cavalares ou muares. É a pessoa que se ocupa em comprar ou vender as tropas, ou a que ajuda a conduzir a tropa, seja ela xucra ou arreada (cargueira).

O escritor Sorocabano Francisco Luiz D’Abreu Medeiros, descreveu com muita propriedade o que foi a epopeia das tropas, como era a vida de Tropeiro.

Romper sertões extensos, só habitados por indígenas e feras bravias, penetrar até os mais recônditos lugares do Rio Grande do Sul, e, se necessário, transpor os limites da Província, ir até os castelhanos em busca da melhor fazenda e de negócio mais vantajoso; voltar debaixo de rigoroso sol e copiosas chuvas, com uma tropa de quinhentas, oitocentas ou mil bestas; correr a extensão dos campos, penetrar pelas espessas matas após aqueles animais que fogem da ronda, que se extraviam continuamente, e que, por um pequeno descuido, se entreveram com tropas de outros donos, atravessar com grande risco de vida os rios caudalosos que cortam as estradas, comer ao romper do dia e à noite o mal cozido feijão de caldeirão e o velho churrasco; ver-se obrigado por diversos motivos dormir ao relento, sem outro teto mais que a abobada celeste, estendido à beira de um arroio, sobre um chão duro, apenas forrado do xergão* e da carona*, repassadas de suor do matungo* lerdo e cansado, tendo por travesseiro o lombilho*, único arrimo que se conhece por esses despovoados para amparar a cabeça e um pobre corpo alquebrado pelas fadigas do dia.

Uma Quadrinha popular da época definia muito bem o que era a vida de Tropeiro:

“Triste vida a do tropeiro
que nem pode namorar.
De dia – reponta* o gado,
de noite – toca a rondar*”.

Já o poeta José Barros Vasconcellos, em sua obra, Rodeio Emotivo, nos conta:

“Não se perturba nem teme
A chuva, o frio, a geada,
Que são ônus da tropeada,
No cavalgar cotidiano,
O tropeiro é um bravo, um forte
Que enfrenta tranquilo a sorte
E no pampa é soberano”.

E o grande poeta Guilherme Schultz Filho, em sua obra Galponeiras, com saudade recorda:

“Relembro os velhos tropeiros
Da legendária Laguna
Rasgando a pampa reiúna* 
das extensões infinitas,
onde ficaram escritas
tantas páginas de glória,
que ainda refulgem na história
destas paragens benditas”.

Biriva, Beriba ou Beriva era esse o nome dado aos habitantes de Cima da Serra, descendentes de Bandeirantes, ou aos Tropeiros Paulistas, os quais geralmente andavam em mulas e tinham um sotaque especial diferente do da Fronteira ou da Região Sul do Estado.

Dos muitos Festivais de músicas do Rio Grande do Sul, destaco a cidade de Carazinho, onde lá acontece a SEARA DA CANÇÃO, Festival Nativista. O poeta, autor de grandes sucessos no Rio Grande do Sul, Aírton Pimentel, compôs a Canção BIRIVAS e deu para o jovem RUI DA SILVA LEONHARDT, defendê-la nesse Festival. O resultado foi esplendoroso, a música Birivas foi a grande vencedora do festival Seara da Canção Gaúcha, isso em 1982. O sucesso foi enorme e, como ninguém sabia pronunciar o nome Alemão do Rui, ele ficou sendo chamado e conhecido por todos como RUI BIRIVA, e até hoje, mesmo depois do seu prematuro falecimento, é chamado de RUI BIRIVA.

Letra da música Birivas**

Descendo a serra
Pra subir na vida
Abrindo estrada
Cheio de bruacas*
Tropeando mulas para Sorocaba
E semeando por onde passam
Versos, violas, chulas e guaiacas*
Chegando a alma do vale das antas
Domam feras de rio de corredeiras
Rasgam picadas* pra juntar lonjuras
E muitas das cidades do presente
Vem dos pousos birivas o tropeiro
Vem dos pousos birivas o tropeiro

Daqui miles e mulas para feira
De lá mascatarias regionais
Juntando o norte e o sul num vai e vem
Sem saber de que fato ele, o tropeiro
Intercambiava traços culturais
Por isso é que o biriva não morreu
Mudou foi seu produto de tropear
O tropeiro está vivo em todo aquele
Que traz ideias boas ao Rio-grande
E ideias também sabe levar.

Encerro este texto, prometendo escrever mais, pois o tema é de fundamental importância para nossa amada Sorocaba Tropeira, e também para o Rio Grande do Sul, com este verso do escritor amigo, poeta, Mário Mattos:

“Sou Tropeiro Nativista
Da Sorocaba Paulista
Igual a tu meu irmão
Carrego comigo a herança
O que aprendi desde a infância
Nas grandes Feiras da Integração”.
________________________________
* GLOSSÁRIO:
Bruacas – espécie de mala de couro cru, com alças laterais, apropriada para ser conduzida em lombo de animal, pendurada à cangalha, uma de cada lado.
Cangalha – peça do arreamento do animal de carga, constante de uma armação de madeira acolchoada.
Carona – peça dos arreios, constituída de couro, de forma retangular, composta de duas partes iguais cosidas entre si, em um dos lados, a qual é colocada por cima do baixeiro, xergão ou xerga.
Guaiacas – cinto largo de couro macio, às vezes com porte de armas e para guardar dinheiro e pequenos objetos.
Lombilho – é uma espécie de sela, usada no Rio Grande do Sul.
Matungo – cavalo velho, ruim, imprestável.
Picadas – caminhos geralmente estreitos, que se faz no mato, para transito de cavaleiros.
Reiúna – animal reiúno é aquele que pertence à Nação ou ao Estado e tem, para distingui-lo dos demais, a ponta de uma das orelhas, em geral da direita, cortada.
Reponta – tocar o gado por diante, de um lugar para outro.
Rondar – vigiar os animais nos pousos.
Xerga – tecido de lã grossa, que se coloca no lombo do animal.
______________
** Nota do Blog:
A música Birivas, interpretada pelo próprio Rui Biriva está disponível no youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=dcuKvS9yIGY
 
Fonte:
Texto enviado pelo autor

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) II

 
CRIANÇA

Teus olhos são janelas
por onde entra cada dia
o sol da sabedoria e vida.

Tuas mãos inquietas
devem abarcar o mundo inteiro
como um gigante balão
que consente o tato
de tua mágica inteligência.
Criança, teu poder
é ilimitado e fecundo.

Aprende a caminhar
pela senda da humanidade
e a amá-la como toda tua.

ESPERANÇAS?

Um momento, por favor!
A noite dorme tranquila:
porque queres anular
o silêncio do infinito?
Deixa-me em paz
com minha angústia!
Deixa que me proteja
de tuas pérfidas esperanças!

MUDANÇAS

É muito difícil
re-inventar a vida.
A gente carrega
nos ombros
a natureza de nossos erros.

Os que falam deles
ajudam a mudar
a vida dos outros.

NA PRAIA

Uma imensa estrela
cruzou a noite
e caiu na cidade fria.
Na praia seca e vazia
sonho à mercê
do vento e do frio.

Um dia fui sereia
despreocupada e doce
passeando pelos oceanos
onde bosques de peixes bravios
cresciam como segredos,
como imagens que permaneciam
invisíveis com sua beleza e esplendor.

Agora nada mais sou
que o sonho de alguém,
um fantasma de água
e de palavras,
entre o mar e o medo,
luzes e sombras,
e alguns raios de lua
sem destino próprio.

O OLHO

O olho não pode esconder
nossa subjetividade,
mas é um farol invisível
pelo qual percebemos
a supremacia
da natureza,
o mistério da humanidade
e a beleza das flores.

O olho tem o poder
de nos fazer sonhar
com a liberdade
do firmamento.

SECRETA INTRANSIGENTE CÓLERA

Cada vez que eu falo
sinto teu vigilante
e imaginário lápis
apontando palavra
por palavra
meus pecados.

Tua secreta
e intransigente cólera
é uma intrusa
em nosso destino.

Mas o amor não tem
couraças, e das veias
não se podem extrair
impulsos secretos
de censura.

Ao fim e ao cabo,
como viver totalmente
puro das gangrenas
do discurso?

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa

Renato Frata (Estrelas Pisadas)


Acordou pisando estrelas, estendeu a mão direita no peito apertando o coração descompassado, abriu o sorriso motivado pelo sonho cortado ao meio, respirou fundo com os olhos semicerrados e instintivamente fez um pensamento positivo. O dedão da mão esquerda se enfiou entre o indicador e o pai-de-todos construindo uma figa. O dia prometia. Cobriu melhor Pedrinho que dormia, correu para a pequena sala e com um toco de lápis anotou as dezenas.

Era dia de mega-sena e sonho sonhado em que números que rolavam ao seu encontro era mais que um sinal positivo.

- É hoje que a onça perde as pintas! - Disse ao encostar o joelho no chão diante de Mãe Aparecida. Botou a marmita em banho-maria, terminou de se arrumar e conferiu as horas: cinco e dois. 52!

Pensou e anotou os números. Logo correria a se juntar no ponto dos cortadores de cana, e ouvir a tagarelice das companheiras, as piadas porcas dos homens; sentir o vento gelado cortar-lhe o rosto e o carinho do sereno de fim de noite a lamber seus cabelos formando neles cristais de cobre. Mas seria o dia da redenção: o sonho fora real por demais, diferente de todos os sonhos.

- Vou ganhar na mega! E como primeira coisa comprarei a caixa de lápis de 72 cores para Pedrinho... ~ Prometeu no momento em que o remorso calou na consciência e a fez engolir saliva engrossada com fel por não ter dado ao filho todos os materiais da lista da escola; e acabou com uma caixa de 12 cores no pacote.

Os olhos tristes do menino disseram tudo, mas o que fazer se a grana curta mal dava para o armazém e a farmácia? Fuçou na bolsa, catou a única nota de R$ 2,00, enrolada, tomou o facão e, com farnel às costas fechou a porta. Entregaria o dinheiro ao motorista que era encarregado das apostas do pessoal.

Pedrinho acordaria com o despertador e iria sozinho para a escola; e só o veria de novo na boca da noite quando estaria quem sabe, a pintar as tarefas escolares com 12 cores ao invés de 72. Menino bom, sem maldade no pensar e no agir. O filho que toda mãe gostaria ter.

- O que faria com o prêmio? - Pensava nos solavancos da condução. - Uma casa linda com uma amoreira na janela de onde pudesse dali catar frutas sem ter que ir ao quintal. E uma tonelada de lápis de cor ao Pedrinho para compensar a caixa de 72 que não pôde dar. Melhor, compraria lápis às crianças da cidade, para que não sentissem a vergonha que o filho passara ao ser repreendido por se apresentar com o material escolar incompleto.

- Liga não, filho, - teria dito - dia haverá em que um arco-íris pousará nas mãos e te trará um pote de ouro - e limpou as lágrimas do rosto.

- Só queria os lápis, mãe. - respondera Pedrinho.

Deu de ombros para a lembrança e: - se sonho vale, que se vá o último tostão para conseguir o intento - e o barulho do ônibus abafou sua doideira.

Imaginou-se num quarto lindo, de paredes forradas com papel colorido e um lustre pendente sobre a cama.

Sonho simples como ela.

Lembrou-se dos buracos do zinco que o barraco real carregava desde sempre; e da luz do poste lá fora, quarada da lâmpada de mercúrio, injetada na escuridão do aposento lançando estrelas pelo chão. - Pisava nelas.

Sorriu enviesado entre a certeza do resultado de logo mais e a realidade do aconchego pobre, mas seguro.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. Azaringo e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Paranavaí Ed. Gráfica, 2014.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XVI


Olga Agulhon (Magro Zé)


Dias atrás, desses de ficar remexendo nos baús guardados no sótão de nossa memória, lembrei-me, com saudade, do Magro Zé, um personagem que está presente nas minhas recordações de infância.

Bom lembrar do Magro Zé. O seu nome de batismo eu nunca soube. Tinha esse apelido porque era mesmo muito magro, não tinha muita saúde, pouco comia, bebia muito; acho que o seu primeiro nome nem era José. Era primo de minha mãe, a quem chamava de comadre, sem que houvesse motivo para isso. Viúvo, tinha duas filhas, que não ficaram com ele. Foram criadas por uma tia. Não sei se já bebia ou se o vício começou a partir da viuvez.

Minhas recordações são um tanto vagas e nunca me falaram dele depois que cresci. A única coisa que me contaram é que uma das filhas casou-se, mas me parece que o genro não o quis morando junto. E Magro Zé continuou sozinho.

Talvez ninguém o quisesse porque bebia. Ou, então, bebia porque ninguém o queria. Na verdade, acho que nem ele mesmo sabia por que se embriagava a ponto de vez por outra ser encontrado largado em qualquer canto, com uma garrafa de pinga vazia na mão, tal como um indigente. Era nisto que se transformava o Magro Zé quando bebia: um indigente, sem lar, sem parentes, sem amigos, sem sonhos, sem esperança, sem vontade de viver; um farrapo humano.

Quando estava sóbrio, ele era a pessoa da qual me lembro com carinho. Para a família, devia dar muito desgosto; mas, para mim, ele era legal. Magro Zé tinha inclusive profissão. Era um excelente mestre de obras, daqueles que constroem uma casa, um armazém, uma igreja, sem necessidade de instruções de nenhum engenheiro. Era mesmo bom no serviço, mas nunca teve nada na vida, nem ao menos um emprego seguro, um trabalho fixo. Bebia.

Numa certa altura de sua vida, a pedido de meu pai, veio fazer um trabalho na fazenda onde morávamos, hospedando-se em nossa casa. Terminou o serviço, mas foi ficando, ficando, ficou.

Pegava pequenos serviços por perto, para ir levando a vida. Às vezes, ia mais longe e demorava a voltar, mas voltava. Quando retornava, chegava de braços abertos e me mandava procurar balas e bombons nos bolsos do seu casaco; eu adorava aquilo. Também cuidava de mim quando minha mãe estava muito atarefada, mas não era de todo confiável, porque, de uma hora para outra, bebia.

Foi nessa época que minha mãe pôs na cabeça que iria fazê-lo parar de beber e ele prometeu que iria tentar, fazer de tudo para deixar o vício.

- Comadre, se você encontrar, de hoje em diante, alguma garrafa nesta casa, pode jogar fora.   

E era isso que ela fazia. Encontrava garrafas embaixo da cama, no guarda-roupa, atrás do sofá, na casinha do cachorro, nos mais diversos lugares; esvaziava todas, mas não se zangava com ele e não ralhava; e ele, por sua vez, também não reclamava.

Certo dia, chegou com a perna e o pé direitos engessados, pois havia quebrado um osso da coxa e o tornozelo ao cair de um telhado que estava cobrindo. Veio ajudado por um amigo, não podia andar sozinho.

- É agora que você para de beber, Magro Zé. Não se levanta sozinho e ninguém vai dar-lhe um pingo sequer de álcool.

- Pelo amor de Deus, Comadre, espere eu ficar bom... Como vou parar de beber logo agora que estou doente, entrevado, sem ter o que fazer?

– É uma boa hora!

Eu lhe fazia companhia, mas, para mim, ele somente pedia água e comida. Vivia me aconselhando para que nunca fumasse ou bebesse bebida alcoólica. Hoje, penso em quanto ele sofria e não me deixava perceber. Comigo, era sempre contente e estava sempre disposto a brincar.

No segundo dia, à tarde, toda a família foi até a cidadezinha mais próxima e, quando voltamos para casa, ao entrarmos pela cozinha, vimos um rastro branco de gesso pelo chão, que se estendia pelo corredor. No fim daquele rastro, lá estava Magro Zé bêbado, segurando uma garrafa quase vazia.

Depois do porre, a bronca:

- Quem lhe arrumou pinga, Zé?

- Ninguém, Comadre.

-Alguém tem que ter trazido para você. Aqui em casa é que não tinha nenhuma garrafa. Quem foi?

A explicação, porém, só pôde ser dada no dia seguinte, quando, do álcool, só restava, a ressaca:

- Ninguém, Comadre. Antes do acidente eu tinha escondido a garrafa dentro de uma panela, aquela que você só usa para fazer feijoada. Como está fazendo muito calor, achei que você não iria fazer feijoada tão cedo... Quando não aguentava mais, me virei até cair da cama e me arrastei até o armário; não sei como não bebi lá mesmo.,.

- Você não toma jeito, Zé! Mas foi a última vez. Vou revirar essa casa e não vou deixar uma gota de álcool para você.

Assim o fez. Encontrou mais uma garrafa dentro do saco de arroz guardado na despensa. Esvaziou-a.

Sem a bebida, Magro Zé foi ficando nervoso, não comia quase nada, gritava, xingava. Chegou a tentar se arrastar para fora de casa, mas meus pais o impediram. Por maior que fosse o seu desespero, não ousou enfrentá-los; tinha por eles muito respeito e gratidão, devia-lhes muitos favores. Afinal, eram as pessoas que o tinham acolhido, apesar do parentesco distante.

Voltou para a cama e, não se sabe como, ficou quarenta e cinco dias sem beber. Todos ficamos contentes.

- Se você aguentou todo esse tempo, pode ficar sem beber pelo resto da vida...

- Eu prometo, Comadre. Nunca mais vou pôr álcool na boca. Acho que agora estou curado.

Tirou o gesso. Nos dias que se seguiram, realizava longos passeios pela fazenda, dizendo que precisava fazer exercícios.

A alegria durou apenas mais uma semana; começou a aparecer bêbado todos os dias, apesar de ter ido á venda apenas uma vez. Ninguém sabia onde ele arrumava a bebida, já que não estava saindo da fazenda.

Foi aí que minha mãe resolveu seguir o Magro Zé. Ele atravessou a porteira e entrou no pasto. Daí em diante não deu para continuar, pois certamente ele a veria; o capim estava muito baixo. Observou-o de longe até perdê-lo de vista. Passou-se uma hora e ele não voltou. Fomos procurá-lo, eu e minha mãe, seguindo a direção que ele tinha tomado.

Encontramos o Magro Zé dormindo. O cheiro de pinga impregnava o ar. A seu lado, no meio de uma moita, uma caixa de cimento, feita com muito capricho. Estava destampada e cheia. Era um quadrado com cerca de cinquenta centímetros cada lado. Ainda havia, lá dentro, quatro garrafas de pinga.

Enquanto pensávamos que ele passeava pela fazenda para exercitar-se, ele estava trabalhando na tal caixa, que ainda lhe dava pinga fresquinha. Havia, com certeza, dado dinheiro para que alguém dos sítios vizinhos lhe trouxesse as garrafas da maldita, pois nenhum conhecido nosso o ajudaria em tal ato.

Dessa vez minha mãe ficou furiosa e ele, envergonhado por sua fraqueza, acabou indo embora, mesmo contra a nossa vontade.

Na partida, choramos. Vendo-o partir, acenando e querendo esboçar um sorriso, minha mãe comentou:

- Aquele corpo franzino, derrotado pelo vício, não parece conter uma alma tão grande... tão boa e generosa... Parece uma alma aprisionada.

Eu apenas observava seus olhos; e nunca mais vi tanta dor num olhar.

Nos primeiros tempos, escrevia. Chegou a nos visitar uma vez e me trouxe balas nos bolsos, como sempre fazia. Mas continuava constrangido; não nos olhava nos olhos, não se demorou. Com o tempo, parou de escrever. Ficamos sabendo, anos depois, que ele estava bem. Havia conseguido um bom emprego, era responsável pela construção de casas populares em uma cidade do interior de São Paulo. Tinha criado jeito.

Tempos depois, outra notícia: Magro Zé voltava para o alojamento na carroceria do caminhão que transportava os empregados da construção; já estava bêbado, caiu do caminhão em alta velocidade, quebrou-se todo. Fraco e também com o pâncreas debilitado, morreu na enfermaria de um hospital qualquer. Morreu sozinho, como vivera durante quase toda a sua vida.

Mas ao enterro todos compareceram: amigos, conhecidos, parentes e curiosos, daqueles que gostam de frequentar funerais.

Saudades do Magro Zé.

Fonte:
Olga Agulhon. Germens da terra. Maringá/PR: Midiograf, 2004.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXII


EGOÍSMO... NA NOITE DE CHUVA...

Bem que gosto da chuva a escorrer dos telhados...
a olhar-me com seus olhos vagos e molhados,
e a cirandar com o vento, e a cantar nas esquinas...
E gosto de espiar ao longe, as ruas curvas,
pelo olhar das vidraças molhadas e turvas
embuçadas no véu friorento das neblinas...

Paro de ler as vezes, esquecido, um instante,
e olho a rua estirada... a rua que está morta...
Chove... que há de fazer aquele vulto adiante,
encolhido e encostado ao vão daquela porta ?

Nesses dias assim eu me sinto sozinho...
Egoísmo o meu talvez, só penso em meu conforto...
E o homem que se foi, molhado, no caminho ?
e o barco que sumiu na neblina, sem porto ?

Sinto-me bem... Lá fora pelas ruas quietas,
pelas ruas molhadas, úmidas, sombrias,
passam sombras fugazes, rápidas, discretas
e erradias...

Ouço a chuva que chove... A chuva cai nas ruas.
Aqui dentro, que íntimo bem-estar me invade !
Mas... por onde andarão aquelas crianças nuas
que eu vi num bairro triste e longe da cidade ?

Mas eu gosto da chuva, a chuva me faz bem...
Há dias em que a dor da minha alma é cinzenta,
tenho uns vagos desejos de escutar Chopin
enquanto a chuva chove, enquanto o vento venta...

Tão bom a gente ouvir a chuva assim lá fora
e encolher-se entre quentes lençóis, inconsciente,
sem pensar.. . sem pensar... como eu pensei agora
que há alguém num vão de porta a tiritar doente...

Meu Deus, por que hei de estar me entristecendo à toa
se essa chuva que canta é tão suave... é tão boa...

ELEGIA

Ontem                                         
dando-te o verde dos meus olhos,
quis pintar de esperança o nosso sonho
que hoje morre... sem cor...           

Dá-me pois agora o negro dos teus olhos,
quero vestir de luto o nosso sonho
de amor...

ESPERA...

Se tivesse mandado uma palavra: - "espera!"
Sem mais nada, nem mesmo explicar até quando,
eu teria ficado até hoje esperando...
- era a eterna ilusão de que fosses sincera...


Que importa a vida, o Sol, a primavera,
se eras a vida, o Sol, a flor desabrochando?
Se tivesses mandado uma palavra: - "espera!"
eu teria ficado até hoje esperando...

Não mandaste, tu nada disseste, e eu segui
sem saber que fazer da vida que era tua
procurando com o mundo esquecer-me de ti...

E afinal o destino, irônico e mordaz,
ontem, fez-me cruzar com o teu olhar na rua,
ouvir dizer-te: - "espera!..." E ser tarde demais...

ESPERANÇA

Morre o sol, - quando sobre o verde travesseiro
das montanhas além, retintas no seu sangue,
pende a cabeça, tonto, num delíquio, exangue,
como quem chega enfim ao sono derradeiro...

Morre o rio no mar. E o pássaro ligeiro
ao despencar no espaço,- e a flor, num gesto langue
ao se despetalar aos poucos num canteiro
ou a manchar curvada as pétalas num mangue!
que muita vez soltava sem querer

Morre o passado em sombras, longe, na lembrança,
- a saudade de alguém que ainda hoje se ama
e às vezes morre mesmo um verdadeiro amor...

Só não morre a esperança, enfim, porque a esperança
na brasa onde expirou a derradeira chama
ainda vive... ainda vive e espera!... ainda é calor !

ESTÓRIA ANTIGA

Vendo-a, fico a pensar que entre nós, certo dia...
Mas, para que falar desse tempo feliz?
Eu a quis – nem eu sei dizer como a queria!
Ela – Quem poderá dizer quanto me quis?!

Foi romance talvez, foi talvez fantasia,
vida que quase chega, e foge, por um triz...
Nosso amor, mas nem eu me lembro o que dizia!
Quem há de se lembrar do que a sonhar se diz!

Era um misto de sonho e tímido desejo:
eu – temendo manchar uma afeição tão bela!
ela – a entregar-me a vida e a boca num só beijo!

Ah! a Vida... Afinal quem a vida adivinha?
Nem eu – que tanto a quis – sei por que não sou dela!
nem ela, há de saber por que nunca foi minha!

ESTRANHO DESTINO ...

Ficará ressoando indefinidamente
no bronze de tua carne moça de adolescente
essa música infinita
que ainda às vezes escuto, e ainda às vezes me agita
na lembrança das horas distanciadas. . .

Eu fui no bronze vivo de teu corpo, o primeiro
som!
- o toque matinal e alvissareiro
das primeiras badaladas!
  
Que a tua carne morena, esplêndida e tropical
trouxe o estranho destino
musical
de um sino!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

João do Rio (A Noiva do Som)


Estávamos na sala malva, a sala das recepções íntimas, das conversas leves em torno da mesa do chá. Mme de Sousa, linda no seu “ teagown”[vestido para o chá das cinco] cor de pêssego, posava entre a trêfega mme. Werneck e a sisuda viscondessa de Santa Maria, e nós, eu e o barão Belfort, já tínhamos esgotado o ataque à música italiana, quando mme. Werneck deu conta da sua última descoberta:

— O barão está triste.

— Pois se venho de acompanhar um enterro.

— Triste por isso? O barão, o homem sem emoções, triste porque acaba de fazer a coisa mais banal desta vida, entre pessoas de sociedade!

— Não é propriamente por isso. Estou triste porque vi enterrar a última mocinha romântica deste agudo começo de século. Se lhes contasse a história da pobre Carlota Paes, ficavam para aí todos a chorar, e antes de tudo, nesta hora agradável, nunca me perdoariam ter envermelhecido os lindos olhos de mme. Werneck.

— Mas, pelo que vejo, a sua história tem a propriedade do dilúvio! fez asperamente a viscondessa.

— Conte-nos isso, barão, disse mme. Werneck; com a sua história contemporânea do dilúvio faremos decididamente coleção de antiguidades sisudas.

Houve um aproximar de cadeiras. O barão bebeu um gole de chá.

— Não conheceram a Carlota Paes? Pois a pobre Carlota Paes, coitada! já com um começo de tísica e um perfil romântico, dava mesmo pena, à noite, no parapeito da janela, muito branca, como desmaiada. Ninguém lhe sabia da vida, e vendo-a assim, à janela daquela velha casa, todos a deploravam. Quando a Carlota atravessava a brutalidade do bairro pobre, com a apagada dor dos humildes aristocratas, trazia no rosto um tal desgosto que era por quantos a conheciam um só lastimar. Também saía apenas para acompanhar a mãe, uma senhora escalavrada e roída como um vaso antigo, para acompanhar com o seu passo de visão a pobre velha carregada de pesadas costuras. Fora assim desde nascida! Olhava os pobres e os parentes como se guardasse na alma a recordação de um mundo melhor, alheava-se deles, e quando a viam recolher ao sobrado em ruína, já todos tinham a certeza de vê-la aparecer à janela, muito loura, e muito branca.

Que fazia ela, assim, por longas horas, alheia à rua, olhando o céu, como um personagem de romance? Coitada! Era o único meio de esquecer a miséria da casa, a miséria que embota a alma e engrossa as delicadezas. Carlota ficava ali, numas atitudes serenas de pássaro triste, com o olhar cravado no infinito, e toda a suavidade sensitiva, quebrada pela incompreensão dos outros, mucilaginava [ruminava, remoía] uma dolorosa expectativa.

Parecia um tipo de lenda à espera da fada que o fosse salvar do bairro escuro e daquela pobre senhora sempre a trabalhar e sempre de preto.

Como estão a ver, era uma menina romântica, e que romantismo, minhas senhoras! Até eu cheguei a admira-la. Tossia mais, estava diáfana, parecia uma ninfa virada em anjo da saudade — porque, decerto, quem lhe visse o olhar e os irresolutos gestos, julga-la-ia perdida de um paraíso artificial. Não lhe pude saber a origem desse esquisito feitio, e certa vez que lhe levava “bombons" e lhe falei em paixão, ela teve um gesto tal, que me esfriou a alma. Também, como sumida da realidade, nunca ninguém a tinha visto à janela baixar o seu severo perfil às vulgaridades do namoro.

Esperava, nada via, e com a sua ansiedade, assim ficava até tarde, muito branca e muito loura, olhando o céu.

Uma vez, no mês de junho, a Carlota estava a chorar, nem sabia bem porque, diante da álgida luz do luar, quando na casa junto, o harpejo brusco e sonoro de um piano sobressaltou-a. Do outro lado lentas espirais melódicas espraiavam-se, envolviam-na. Era, num turbilhão contínuo de notas, de expressões súbitas e diversas, a expressão persistente, torturante do desejo que não se termina e se preludia, do amor cuja volúpia jamais alcança o paroxismo. Ela ficou presa, estarrecida. Quem seria? Nunca ouvira aquilo, nunca sentira os nervos tocados daquele brusco quebranto, daquele epidérmico encanto do som, exprimindo o inexprimível. Os sons, como carícias de rosas, iam a pouco e pouco desfibrando-a, envolvendo-lhe a alma, machucando-a. toda ela palpitava agora com uma tremura de folha ao vento. Teria chegado a felicidade, o impalpável prazer até então vedado? Aconchegou-se mais ao xale, com um arrepio de gozo que lhe subia pelos braços e lentamente se irradiava pela nuca.

Do outro lado a música, velada, num resumo de mil emoções, esboçava paisagens sutis e esfumadas, desfiava risos perlados, cavava-se em soturnas mágoas, e como se a vida extra-humana fosse um só gemido de amor, toda ela espiralava tormentosos queixumes, endechas dolorosas, perdidos soluços de paixão. Para os grandes sensuais só ha um gozo integral que exprimia a ânsia de acabar e a fraqueza humana — o som, a vibração de uma corda na lamentável evocação de vidas que se não realizam.

Para que o sentir da pobre criança fosse mais intenso, no espaço, as estrelas palpitavam e a luz do luar lustrando as casas com o seu misericordioso brilho, entrava pela janela num retângulo de ouro que parecia milagre. Oh! nunca a doce Carlota se sentira tão emocionada, ela que sempre vivera na expectativa do bem!

Essa noite passou-a à janela até muito depois do piano calar, ouvindo-lhe o último som perdido na cinza avelhada do luar, e desde então andava o dia à escuta e toda a noite passava, em que o oculto pianista tocava, presa ao parapeito, entre a luz dos astros e os sons misteriosos. Nós já ríamos da paixão.

— Então a Carlota?

— Ai! meu senhor, continua a viver dos sons, está de todo virada!

E quando eu lhe levava alguma coisa:

Então a sra. d. Carlota sempre com os sons?

Ela pendia na cadeira sussurrando

É tão bom!

Aqueles sons, como um rosário sem fim, que se desfiasse, iniciavam-na numa religião de amor desencarnado, e quando qualquer dificuldade emperrava do outro lado a mão do tocador, a Carlota sentia uma agonia como se hesitasse em compreender todo o alcance pecaminoso da frase.

Vinha-lhe às vezes a curiosidade de saber quem era esse tocador. Passava os dias à espreita; a casa ao lado, uma pensão, não lhe deixava adivinhar, entre as muitas pessoas que entravam, o artista estranho da noite. Perguntou à mãe se a informavam e a velha senhora respondeu que não sabia, que não era possível saber.

Bruscamente, então, perdeu esse desejo. Conhece-lo para que? Bastava a delícia de ouvi-lo, bastava a inconsútil paixão que a rojava a seus pés! E perdia totalmente as noites, essas noites de agosto, traidoramente frias, em que a luz brilha mais, há mais perfume no ar e as brumas, ao longe, parecem sudários consoladores. Era um inebriamento até ao romper da alva. No fim, quase se arrastando, ia para o peitoril, como para uma tortura e do outro lado, a música inquisidora amortalhava-a desabridamente no delirante tropel do amor!

Ah! o gozo do som! Os seus nervos sensíveis chegavam ao pranto, ao soluço, ao sorriso, como hipnotizados. Cada nota já lhe exprimia um sentimento; os trechos repetidos pelo artista ela os seguia, adivinhando acordes, adivinhando sons, como se fizesse o exame da sua alma de amorosa, e de cada vez, mais maravilhada ficava, bebendo a pleno trago o delírio, a morte, o êxtase da música encantada. Decerto, ninguém, ninguém no mundo amava, sentia-se ainda com esse sagrado e impalpável amor. Encostava-se ao parapeito, esperava e era sempre com um susto que, de repente, ouvia abrir-se uma escala, como acordando o piano, e as duas vibrações de bordão, dois acordes de contrabaixo, pesados e sonoros. Depois, um som subia, outro respondia, o aviário se encadeava num trinado. Muita vez, o pianista que fundia a alma com as notas, tocava várias árias simples, com um ar velho, como se os séculos todos chorassem a vida; de outras, eram trechos modernos, trançando no ar uma flora bizarra de nervosos acordes e era então uma revoada de dores, ais sem fim, queixas em arpejos arquejados, rugidos rubros de ciúme, em que o piano parecia abalado e a musica estrebuchava...

Nos últimos dias, a coitada ardia em febre, plenamente fora do mundo, gozando com um gozo feroz de agonizante, o amor incorpóreo, enquanto ao lado, noites em fora, as mãos invisíveis soluçavam a mágoa e a tristeza.

Ora, ontem, quando eu subia a escada íngreme da sua velha casa, d. Ana apareceu-me desgrenhada.

— Venha, acuda, a Carlota morre...

— Como foi isso?

-— Sei lá! Passou toda a noite à janela; o músico não tocou, a chuva, hemoptises*, sangue...

Na sala de visitas, a pobre Carlota, coitada! estava caída numa cadeira de braços, entre as bacias, as botijas, os panos, a lúgubre confusão que precede o eterno descanso. Fez um esforço, estendeu a mão.

-— Estou à espera da música...

Deixei-a, despreguei-me pelas escadas. Era preciso que a música lhe levasse o supremo consolo. Entrei pela casa ao lado.

— O pianista? perguntei ao encarregado.

— O maluco? No primeiro andar, à direita, quarto n°. 5.

Subi, bati com força no quarto, empurrei a porta, desesperado. Encontrei um velho homem, magro e adunco.

— É o senhor o pianista?

— Sou.

— Há aqui ao lado uma criança que agoniza. Vinha pedir...

— Para não tocar hoje. Vá com Deus.

— Não. Venho pedir que toque. Não é possível explicações. Essa menina vive há um mês de ouvi-lo. Está morrendo. Pede-lhe que toque.

O homem passou a mão pelos cabelos.

— Escute, é uma loura, muito loura? Meu Deus! Pobre pequenina! Então ela me ouvia? Vá, eu toco, vou tocar, vá.

Depois, agarrou-me o braço.

— Mas escute, não lhe diga como eu sou. Eu sou feio, perdia o encanto!

Quando outra vez entrei na sala, a Carlota morria. Como a querer beija-la, o luar entrava pelas janelas, num golfão de ouro, e ela, com as mãos de magnólia cruzadas sobre a peito, tinha na face a tortura da agonia.

Mas, subitamente, teve um estremeção. Ao lado, como uma ronda de astros que se despregassem do infinito, o piano explodia uma indizível revolta. Um tropel de sons reboou, entrechocou-se, deslizou, rasgando o ar, da terra as estrelas, com uma dor infinita. Depois, pareceu parar, tremulou brevemente, abrindo um paraíso, onde os arcanjos cantassem e, enquanto Carlota sorria, os acordes, como um coro de rosas, envolveram-na, beijaram-na. E ela morreu, docemente, sem uma contração, ouvindo a música do amor...

         Houve um longo silencio na sala malva, onde há conversas tão alegres, à hora suave do chá. O barão limpou o monóculo:

— Ora, aqui está porque eu estou triste!

— Coisas da sua fantasia macabra, fez a severa viscondessa de Santa Maria.

— Para entristecer a gente, acrescentou mme. de Souza, linda e sentimental.

E, de novo, enquanto mme. Werneck fazia um grande esforço para não chorar, todos nós, com afinco e erudição, atacamos a música italiana.
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*Hemoptise – expectoração de sangue proveniente dos pulmões, traqueia e brônquios, mais comumente observável na tuberculose pulmonar.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 58


André Kondo (A Pétala)


Akemi e Jiro se conheceram durante o hanami*, o tão aguardado encontro com a primavera, sob as floridas cerejeiras. Dentre milhares de pétalas que choviam naquela tarde, sopradas pelos ventos do destino, Akemi e Jiro acompanharam, com o olhar, apenas uma. E o cair dessa pétala, traçando sentimentos no ar, uniu suas primaveras ao repousar no colo de Akemi. Como se estivesse diante do mais incrível espetáculo, Jiro aplaudiu aquele momento, porque lhe pareceu o mais belo de sua vida.

Jiro, com seus 17 anos, sonhava em conhecer o mundo. Queria ser explorador, mesmo sabendo que o mundo já havia sido explorado à exaustão. Porém, para ele, sempre sobrava a esperança de que ainda haveria alguma coisa nova a descobrir. Akemi, com seus 15 anos, sonhava em ser conhecida pelo mundo. Queria ser artista, mesmo consciente de que o mundo tem mais aspirantes a artistas do que pessoas interessadas em ser plateia. Porém, para ela, sempre restava a esperança de que ainda haveria lugar para mais uma estrela no céu.

Nem Jiro tornou-se explorador, nem Akemi artista. Naquele singelo voo de uma única pétala, que atraiu seus olhares e corações, Jiro descobriu que o mundo poderia se resumir em um sorriso de moça. E Akemi, que apenas um único homem poderia ser o seu mundo.

Vieram as primaveras, mas não os filhos no verão. Anos se passaram e a primavera da vida foi se distanciando. Mas em momento algum Jiro e Akemi deixaram de ansiar pelo hanami, quando voltavam para o mesmo parque, para contemplar as flores que desprendiam alegres lembranças.

Após anos de dedicação, haviam construído um lar. Akemi cantava em seu aparelho de karaokê. Jiro descobria, em cada canção de Akemi, uma nova alegria, e logo aplaudia o talento da esposa. Akemi cumprimentava, agradecida, como uma artista agradece a sua plateia. Eram felizes.

Longos anos se passaram, repletos de alegrias efêmeras, mas que pareciam valer por eternidades. Entretanto, por mais longo que seja o voo de uma pétala de cerejeira, chega o momento em que ela chega ao chão. Akemi caiu.

No hospital, Jiro encontrou a esposa em sono profundo, Quando ela acordou, não se lembrou do marido. Não se lembrava de mais nada. Era como se cada primavera fosse a primeira, como se cada pétala fosse igual a qualquer outra, que tenha caído ontem, hoje ou que ainda caísse amanhã. Nada mais era e nem seria lembrado.

Jiro queria levar a esposa para casa, mas os médicos disseram que seria perigoso, pois ambos já estavam velhos demais. Como se a velhice fosse uma doença.

Todos os dias, Jiro visitava Akemi. Falava com ela sobre coisas novas, porque qualquer coisa seria novidade para ela, que nada retinha em sua memória. Animava-se com a proximidade do hanami, quando as cerejeiras estariam floridas. Porém, os médicos não deixavam Akemi sair. A primavera passava.

Anos foram arrancados pela ventania da vida. "O senhor não precisa vir todos os dias aqui", dizia o médico. "Não posso deixar Akemi sozinha", respondia Jiro. "Mas ela não irá notar. Ela sequer se lembra do senhor”. E Jiro respondia: "Mas eu me lembro dela".

Assim, as lembranças de ambos eram guardadas apenas por um. Todavia, por mais persistente que seja a alma de um homem, o corpo não pode resistir para sempre. Sentindo as pernas fraquejarem, decidiu que era hora de prosseguir com o sonho de explorar o desconhecido, antes que fosse tarde demais. Era preciso viver novamente...

Jiro se preparou. Dirigiu-se ao hospital, com a consciência de que aquela seria a última vez. Akemi estava apática, como em todos os anos em que passou ali. Como sempre, não reconheceu Jiro. Mesmo assim, ele tomou a sua mão, a beijou e disse: "Akemi, chegou a hora de partir. Os sonhos não podem morrer".

Beijou carinhosamente o rosto da esposa e fugiu do hospital.

Jiro se sentiu feliz. Mais uma vez, comemorava o hanami. As flores de cerejeira traziam novos significados, novas vidas. Em cada pétala que partia de cada galho, via uma nova possibilidade. Imaginou como teria sido a sua vida, se não tivesse seguido a mesma pétala de Akemi. Teria se tomado um grande explorador? Teria conhecido o mundo? E Akemi? Teria se tomado uma grande artista? Teria sido reconhecida pelo mundo?

Jiro sorriu. Naquele instante, uma pétala caía no colo de Akemi, sentada em uma cadeira de rodas, ao seu lado. Ele a aplaudiu, sabendo que, a partir daquele momento, cada dia seria uma descoberta a ser explorada. E como uma grande artista, Akemi recebia os aplausos de Jiro, o seu mundo. Um mundo que a conhecia e a admirava. Jiro aplaudia.

Aplausos de uma desconhecida plateia, mas que, mesmo anônima, se sente feliz, amando a artista que voa em seu palco... Como uma pétala ao vento, efêmera, mas com o perfume das coisas eternas.

[Vencedor do XIX Concurso de Contos Washington de Oliveira – Fundart (SP)]
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Nota:
* Hanami (literalmente "contemplar as flores") é costume tradicional japonês de contemplar a beleza das flores, sendo que "flor" neste caso quase sempre significa sakura ou umê. Do fim de março ao começo de maio, o sakura floresce por todo o Japão, e por volta de primeiro de fevereiro na ilha de Okinawa. A previsão de florescimento é anunciada todo ano pela Agência Meteorológica do Japão e é observada cuidadosamente por aqueles que planejam fazer o hanami, visto que ela floresce por apenas uma ou duas semanas. No Japão moderno, o hanami consiste basicamente de realizar festas ao ar livre embaixo do sakura durante o dia ou a noite. O hanami à noite é chamado de yozakura (sakura noturno). Em muitos lugares, como o Parque Ueno, lanternas de papel temporárias são presas para realizar o yozakura. Na ilha de Okinawa, lanternas elétricas decorativas são presas nas árvores para o divertimento noturno, tais como nas árvores do Monte Yae, perto da cidade de Motobu, ou no Castelo Nakajin.
Uma forma mais antiga do hanami também existe no Japão, que é a contemplação do florescimento da ameixeira (ume). Este tipo de hanami é popular entre as pessoas mais velhas, pois elas são mais calmas do que as festas do sakura, que normalmente envolvem pessoas mais jovens e podem às vezes ser lotadas e barulhentas. (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Caldeirão Poético XXX


ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA
São Paulo/SP

Tempo Presente


— Discutir o Presente? É falar de utopia!
Ele é simples bocal de acanhada abertura
que a matéria do Tempo, em veloz travessia,
do Futuro ao Passado, esfaimada perfura!

O lampejo fugaz de uma luz fugidia
é esse vulto que passa e passando fulgura,
ao tomar-se um "já fui" na roldana macia
que impulsiona ao Passado a existência futura.

Ao dizeres "eu sou!", já não és! Terás sido!
O que foste partiu nos embalos da voz,
mero "z" de um corisco entre o antes e o após...

Na ampulheta, é o gargalo, o funil reduzido
que as areias do Instante, ansiando viver,
atravessam fulgindo e... deixando de ser.

 ANALICE FEITOZA DE LIMA
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP

Espiando Estrelas


Somente em sonhos, posso ver estrelas,
por ser minha visão, um véu espesso,
fico feliz, se em sonhos volto a vê-las,
e quando as vejo, logo me enterneço.

Por as querer, tentando merecê-las,
ao infinito, em preces agradeço,
e por não descobrir como entendê-las,
a minha pequenez eu reconheço.

Sei que os meus dedos jamais vão tocá-las,
por isso é que emoção, nos versos deixo,
tentando aos poucos, quase desvendá-las.

E se fazer poema, é ser esteta,
jamais dos contratempos eu me queixo,
porque Deus deu-me o dom de ser poeta...

ANTONIO CARLOS FONTES
Santos/SP

Bastidores


Não sou um vencedor, falando claro.
Não tenho a contundência da conquista.
Isolam-se de mim, num fato raro,
O prático viver e a larga vista.

Nem sei a substância de que é feito
O anseio de se expor à luz intensa?
Pois vale para mim, como perfeito,
O gosto de viver da só presença.

Eu vejo-me de estar em outra cena,
No reverso do palco engalanado,
Onde o silêncio é vivo e a luz amena.

Mas é, então, que eu sei onde me ponho,
Ser, assim, como alguém visto de lado,
Preso do fogo interno do seu sonho.

ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

Saudade... Eterna Saudade


Reclamas que a saudade te arrebata,
te traz recordações desagradáveis.
Tu dizes que a saudade em ti desata
velhas lembranças quase insuperáveis.

E faz sangrar as chagas incuráveis
dentro de um peito que se fez sucata
para abrigar lembranças incansáveis
de uma paixão que agora te maltrata.

Mas a saudade, amor, é, na verdade,
um prêmio dado àqueles que se amaram
numa paixão que não sobreviveu.

Querida, tu te esqueces que a saudade
acende luzes que já se apagaram
nas sombras de um amor que já morreu!

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Bendito Seja...


As palavras o tempo apaga e arrasta
— pétalas soltas ao sabor do vento...
O livro é escrínio, que resguarda e engasta
as joias perenais do pensamento!

O livro é amigo silencioso. E basta,
em si trazer as luzes do talento,
para, banindo a dúvida nefasta,
mentes clarear e aos sonhos dar alento!

Bendito o livro que mantém o lume
do saber, que impulsiona e orienta o povo
que na cultura o seu lugar assume!

Bendito seja quem imita os astros,
valorizado a cada instante novo,
à luz dos livros, que lhe doura os rastros!

DIVENEI BOSELI
São Paulo/SP

A Ponte


Eu ia pela ponte estreita, longa e erguida
e, olhando o sol se pôr, eu chorava baixinho,
levando uma incerteza há muito conduzida
na concha destas mãos, vazias de carinho.

Tu vinhas pela ponte, a mão enrijecida,
armada de um gatilho, ao modo de um bentinho,
trazendo no semblante a marca umedecida
de quem, no pôr do sol, duvida do caminho.

Cruzando-se no ocaso, as nossas incertezas
pesaram por demais e a ponte, combalida,
me fez estremecer ao rés das correntezas...

Mas, firme, a tua mão alçou-me para a Vida,
enchendo as minhas mãos das supremas belezas
contidas neste amor, do qual nem Deus duvida!

GLORINHA VELLOSO
Santos/SP

Aconteceu!


Nosso amor, uma cálida paixão,
levando-me a viver um doce encanto,
paixão febril, prenúncio de ilusão,
sem que eu pudesse perceber o quanto,

arrebatou-me a alma e o coração,
fazendo-me cantar um acalanto!
Em palavras e gestos, num clarão
tão assustador, cheio de espanto,

não mais que de repente se findou
aquele amor e tudo se acabou;
restou uma lembrança, uma saudade,..

E hoje, lembrando aquele desalinho,
tento outra vez, seguir novo caminho,
procurando encontrar felicidade!

 IDALINA APPARECIDA COTRIN APPES
Ribeirão Preto/SP

Arrebol Gaúcho


O pôr do sol no Guaíba caindo,
mesclando as águas turvas do estuário,
vai este espelho todo colorindo,
no extasiante, belo relicário!

Eis o horizonte, todo engalanado
de cores mil co'a noite se encontrando,
no rubro traço mostrando encantado,
a mão de Deus, na tela pincelando!

Fim da tarde! Lá se foi mais um dia,
que ao calendário vai e já se integre,
marcando tempo, dor, mais alegria,

nesta querida e sempre Porto Alegre!
Mas... se este dia já se torna outrora,
novo amanhã, virá em nova aurora!

Fonte:
Cláudio de Cápua (editor). Itinerário Poético II: coletânea. São Paulo: EditorAção, 1996.

Carlos Drummond de Andrade (Iniciativa)


É sina de minha amiga penar pela sorte do próximo, se bem que seja um penar jubiloso. Explico-me. Todo sofrimento alheio a preocupa, e acende nela o facho da ação, que a torna feliz. Não distingue entre gente e bicho, quando tem de agir, mas como há inúmeras sociedades (com verbas) para o bem dos homens, e uma só, sem recursos, para o bem dos animais, é nesta última que gosta de militar. Os problemas aparecem-lhe em cardume, e parece que a escolhem de preferência a outras criaturas de menor sensibilidade e iniciativa. Os cães postam-se no seu caminho, e:

— Dona, me leva — murmuram-lhe os olhos surrados pela vida mas sempre meigos.

Outro dia o cão vinha pela rua, mancando, amarrado a um barbante e puxado por um bêbado pobre, mas tão bêbado como qualquer outro. Com o aperto do laço, o infeliz punha a alma pela boca. E o bêbado resmungava ameaças confusas. Minha amiga aproximou-se, com jeito.

— Não faça assim com o pobrezinho, que ele sufoca.

— Faço o que eu quero, ele é meu.

— Mas é proibido maltratar os animais.

— Eu não vou maltratar. Vou matar com duas navalhadas.

Minha amiga pulou como Ademar Ferreira da Silva:

— Me dá esse cachorro.

— Dar, não dou, mas vendo.

Dez cruzeiros selaram o negócio, e, livre do barbante, o cachorro embarcou no carro de minha amiga. Felizmente, anoitecia — e ela penetrou no apartamento, sem impugnação do porteiro. Que prodígios não faz para amortecer o latido dos hóspedes, lá dentro! (Uma vez, ante a reclamação do vizinho, explicou que era disco de jazz.) Já havia três cães instalados, não cabia mais. Tratou do bicho, chamou-lhe veterinário, curou-lhe a pata, deu-lhe vitamina e carinho. Só depois começou a providenciar uma casa de confiança para ele. Seu método consiste numa conversa mole com a pessoa: tem cachorro em casa? Por que não tem mais? Fugiu? Morreu de velho? (Se o cão fugiu, o dono não presta.) Conforme a ficha da pessoa, minha amiga lhe oferece o animal, ou não, e passa adiante.

Desta vez o escolhido foi José, contínuo de autarquia (não carece ser rico, mas bom, paciente, bem-humorado). José tem crianças, espaço cercado e vocação para dedicar-se. Minha amiga ofereceu-se para levar o cachorro ao longe subúrbio, José disse que não precisava, ela insistiu, ele idem. Afinal foram juntos, o carro subiu ladeira, desceu ladeira, e no alto do morro desvendou-se a triste casa de José, que não era casa cercada, era um corredor de cabeça de porco, com cinco crianças, mulher e sogra de José empilhadas.

Minha amiga compreendeu. José era mais pobre do que o cachorro e sem um mínimo de dinheiro não se compra ar livre e espaço para brincar. Seria cruel dizer a José: “Volto com o cachorro”. Felizmente o animal salvou a situação, tentando morder um dos garotos que lhe fizera festa. Minha amiga iluminou-se: “Está vendo, José? Ele não se acostuma. Vou te trazer outro, novinho”. José, desolado, aquiesceu. Minha amiga saiu voando para a cidade, entrou numa dessas casas onde se martirizam animais à venda, e resgatou o menor dos cachorrinhos recém-nascidos, que já penava numa jaula sem água e alimento, a um sol de fogo. “Para este, qualquer coisa é negócio, e melhora a vida.” Levou-o rápido, para José, que o recebeu de alma embandeirada.

Agora, minha amiga tem dois problemas: arranjar um dono para o cachorro do bêbado, e dar um jeito nos cinco filhos de José. Mas resolve, não tenham dúvida.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

domingo, 11 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XIV


Olivaldo Júnior (Três microcontos sobre o vento)


Agosto: mês dos ventos

O VARAL DE ROUPAS DA MINHA MÃE
Quando chega o mês de agosto, o varal de roupas da minha mãe, que vive cheio de roupas, já sabe o que lhe cabe: balançar ao pé do vento, que corre solto em suas cordas.

Não é de hoje a novidade. Basta um pequeno sopro, e as camisas se entrelaçam, e as calças se embaraçam, cuidando de misturar as cores, provocando nosso “mini arco-íris”.

Dia desses, porém, o pé do vento foi mais forte, e as roupas do varal da minha mãe renderam-se às forças da natureza e, uma a uma, desprenderam-se e foram para o céu.

O QUE O VENTO UNIU...

Foi na praça, aquela ali, perto de casa. Um menino chamado Joca, do “alto” de seus quinze anos, passeava de bicicleta, quando viu Aninha, de quatorze, na sua bike também.

Conversa vai, conversa vem, o tempo mudou de repente e, para se protegerem de uma rajada de vento capaz de arrancar-lhes a alma, correram, voaram até o coreto da tal praça.

Magrelas para trás, deitadas, inertes, na calçada, ambos, tremendo de medo, se abraçaram instintivamente sob a abóbada do coreto, que timidamente balançava ao vento...

AS FOLHAS SECAS DA MINHA ALMA


Não que eu seja uma árvore, mas também tenho minha época de trocar as folhas. Agosto chega, ou qualquer outro mês em que haja vento, e me ponho a trocar as folhas da alma.

Passo entre outras almas no meio da rua e sei que, secas, minhas folhas vão caindo e se perdendo dentre as folhas que outras almas vão perdendo. Todo mundo tem seu tempo.

Por isso, quando chega o mês de agosto, conhecido “mês dos ventos”, deixo as folhas da minha alma em meio aos sonhos que se foram, que voaram para longe, e me renovo.

Fonte:
Colaboração do Autor

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas)1


AMIZADE

Por mera e singular curiosidade
quis eleger a coisa mais preciosa.
Que ela tivesse a beleza da rosa,
da violeta a real simplicidade;

do ouro tivesse a maleabilidade
e do diamante a força poderosa;
da árvore a acolhida deliciosa,
do sol o alento, da chuva a bondade.

Tudo encontrei. Ao longo dos caminhos,
fui recolhendo, entre pedras e espinhos,
uma porção de cada qualidade.

E de tudo o que enfim juntei, contente,
uma palavra só surgiu-me à frente,
a mais terna entre todas: Amizade!

ESPAÇONAUTA E A TERRA

Às vezes me surpreendo imaginando
o que deve sentir um astronauta
a olhar, da altura, a Terra divagando,
seguindo a órbita, no espaço, incauta...

Quem sabe há de cismar: “Como é pequena!
Que interesse terão os homens nela?
Guerras, paixões a fervilhar na arena,
longe assim, não são mais que bagatela.

A ambição a exigir supremacia,
autos, litígios e burocracia...
que imporiam as urgências do planeta?

O tempo aqui é inócuo e sem remissa...
Não se discute a pressa ou a preguiça
com que a areia se esvai pela ampulheta.”

FANAL

Vagando pelas ondas da poesia,
procurando entre escolhos, a passagem,
eu nem sequer supunha que haveria
de encontrar um amigo na viagem.

Em volta, o oceano... e só monotonia,
e eu tinha tanto verso na bagagem...
Soava em mim tão doce melodia,
mas era apenas minha cada imagem.

Até que a asa do vento transportou-me
à ilha onde um fanal resplandecia,
pondo fachos de luz sobre a paisagem.

Cheguei. Um novo alento arrebatou-me,
e ali deixando quanto verso havia,
eu encontrei meu porto de ancoragem.

MEU PEDACINHO DE CAMPO

Tive ao alcance da vista paisagens,
cada qual em seu gênero tão bela,
mas que o progresso extinguiu em voragens
onde até uma lembrança se esfacela.

Hoje, em novo painel, verdes ramagens
e árvores densas vejo da janela;
cavalo branco solto nas pastagens,
montanhas do outro lado da cancela.

E pensativa, a olhar essa beleza,
eu procuro iludir-me na certeza
tão vaga quanto a luz de um pirilampo,

de que o progresso pare de repente,
e poupe, compreensivo e conivente,
o pedacinho alegre do meu campo.

RETALHO DE PAINEL

O bairro sujo e pobre, a rua esburacada,
a água livre a correr no esgoto a céu aberto,
urubus em disputa à sobra já estragada
de um animal qualquer caído ali por perto…

Um garoto esgravata, em lixo descoberto,
uns restos de alimento e uma bola rasgada,
enquanto um menorzinho, andando a passo incerto,
rói o miolo doentio de uma fruta mofada.

Retalho de painel, comum país afora,
milhares que a cruel desigualdade explora
e que a Morte esqueceu, ao passar, distraída.

Ficamos lastimando o país do hinduísmo,
sem lembrarmos que aqui, bem ao nosso egoísmo,
nossos párias também tem seu direito à vida!

SENTINELAS

O carro deslizando velozmente
e eu, ligado. às mudanças na paisagem,
deparo novo quadro, de repente,
que me insinua singular imagem.

Lá no topo de um morro, lentamente,
três palmeiras agitam a ramagem,
embaralhando as palmas levemente,
somo leques abertos pela aragem..

Três atalaias na torre, em seu posto,
impassíveis nos gestos e no rosto,
desfraldando as bandeiras tremulantes,

tão firmes, tão altivas e tão belas,
parecem-me três vivas sentinelas
velando a segurança dos viajantes.

“ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO”

Nossa língua tão bela, tão sonora,
tem sofrido agressão tão aviltante
que nem se sabe como, rude, embora,
ela resiste à investida constante.

Agride-a barbarismo malsonante...
gíria e baixo calão... é o que vigora;
e quem repele a insensatez reinante,
magoado assiste à invasão que deplora.

Onde a joia de arrulhos e de brados
que inspirou poemas e canções e fados,
e o vale renitente ainda cultua?

"Última flor do Lácio”, eu te lamento,
mas sofrendo a teu lado esse tormento,
te espero ainda encontrar... talvez na lua…

Fonte:
Livro enviado pela poetisa.
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.

Leandro Bertoldo (Mapinguari)


Conta a lenda que existia na floresta um bicho esquisito que, dizem, comia gente... Chamava-se Mapinguari! Esse bicho eu sei que ninguém conhece, mas ele é conhecido de outro bicho que esse... Também ninguém conhece! Sabe que bicho era? Nada mais, nada menos do que o Rei Zilá, o Rei da escuridão... Bem, se isso é verdade eu não sei... O que eu sei é que essa história é mesmo de assustar, e começa assim...

Quero levantar da sombra
e o mundo dominar.
Quero fazer do escuro
um lugar pra se morar.
Quero um mundo diferente,
quero todo mundo respeitando a gente.
Quero um planeta sem cor,
quero que o perfume abandone a flor.
Eu sou Zilá, há, há, há, há!
Eu sou a sombra, há, há, há, há!
Faço do escuro um medo engasgado
e acato o lamento do choro vingado!
A sombra me aquece,
o terror engrandece,
a feiura estremece...
Eu sou o mestre!
Eu sou Zilá, há, há, há, há!
Eu sou a sombra, há, há, há, há!
Eu sou Zilá!

Só que nessa história não tem Zilá nenhum... Ele é só conhecido do Mapinguari, o tal bicho de nome esquisito que vivia na floresta! Ele era grande... Quase quatro metros! Tinha os cabelos vermelhos e as orelhas pontudas. Vivia no meio das árvores e imitava o pio dos pássaros... Fiu, fiu... prrrrit, prrrrit!

Em noite de lua cheia ele se transformava em menino, saia e entrava no terreiro das casas à procura de comida. Todos tinham medo dele, tinham medo da noite e tinham medo da lua...

— Besteira! Isso não existe... — diziam os mais jovens.

— Cuidado, meninos, com o bicho... — diziam os mais velhos.

Um dia, apareceu no terreiro da casa de um caçador um menino estranho. O caçador, ouvindo um barulho, foi até a janela, mas não viu ninguém. Até que ouviu um batido na porta...

TOC, TOC, TOC!

O caçador foi andando até a porta...

— É... Quem está aí?

— É o bich... Quer dizer, é um menino...

— Menino?!

O caçador, então, lembrou que aquela noite era noite de lua cheia! E já meio amedrontado, perguntou:

— E o que você quer, me-me-menino?

— Ah, apenas um pouco de comida!

Comida? Menino?! Lua??!! E o caçador já bastante amedrontado, perguntou:

— E o que, vo-você co-co-come, me-menino?

— Ah, qualquer coisa... Até mesmo um pedaço de pão!

Ah, que alívio! Não era o bicho, pois esse comia gente! O caçador, então, cheio de coragem abriu a porta...

NHÉÉÉÉÉÉ....

Quando ele abriu a porta... Sabe o que ele viu? Viu que, de fato, era um menino, e que ele tinha os cabelos vermelhos e as orelhas pontudas...

— Ai, meu Deus do céu!! É o bicho! É o bicho! Socorro, meu Deus do céu! Ai, ai, ai, ai, ai... Socorro! É o bicho, meu Deus!

— Sim, sou o bicho! Transformei-me em menino e vim me encontrar com o senhor!

— E vai me comer, bicho do mato?

— Do mato eu sou, do mato em vim, mas não vou comer ninguém... Vim para dizer que existo, mas não sou mal como dizem que sou!...

— Veio para dizer isso?! — perguntou o caçador admirado.

— Vim para pedir uma coisa! Não tenham medo de mim, como a todos os meus amigos animais. Vocês é que nos caçam, vocês é que nos comem e, muitas vezes, não por fome...

O caçador ouvindo isso abaixou a cabeça e, envergonhado, pediu desculpas pelas atitudes malvadas dele. Quando levantou a cabeça não mais viu o menino-bicho, que já havia voltado para a floresta. Ouviu apenas um som longo e fino sumindo pela noite.

Fiu, fiu... prrrrit, prrrrit!
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Para ouvir o conto narrado:
https://www.youtube.com/watch?v=vibok8YknYk&w=676&h=381

Fonte:
Colaboração do Autor