terça-feira, 3 de setembro de 2019

Arthur de Azevedo (Os Dois Andares)


Um dos mais importantes estabelecimentos da capital de província onde se passa este conto, era, há vinte anos, a casa importadora Cerqueira & Santos, na qual se sortiam numerosos lojistas da cidade e do interior.

O Santos era pai de família e morava num arrabalde; o Cerqueira, solteirão, ocupava, sozinho, o segundo andar do magnífico prédio erguido sobre o armazém.

No primeiro andar, que era menos arejado, moravam os caixeiros, e se hospedavam, de vez em quando, alguns fregueses do interior, que vinham à cidade "fazer sortimento", e bem caro pagavam essa hospedagem.

* * *

O principal caixeiro era o Novais, moço de vinte e cinco anos, apessoado e simpático.

De uma janela do primeiro e de todas as janelas do segundo andar avistavam-se os fundos da casa do Capitão Linhares, situada numa rua perpendicular à de Cerqueira & Santos.

Esse Capitão Línhares tinha uma filha de vinte anos, que era, na opinião geral, uma das moças mais bonitas da cidade.

Helena (ela chamava-se Helena) costumava ir para os fundos da casa paterna e postar-se, todas as tardes, a uma janela da cozinha, precisamente à hora em que, fechado o armazém, terminado o jantar e saboreado o café, o Novais por seu turno se debruçava à janela do primeiro andar.

O caixeiro pensou, e pensou bem, não ser coisa muito natural que, desejando espairecer à janela, a rapariga deixasse a sala pela cozinha, a frente pelos fundos, e logo se convenceu de que era ele o objeto que a atraía todas as tardes a um lugar tão impróprio.

As duas janelas, a dela e a dele, ficavam longe uma da outra, e o Novais, que não tinha olhos de lince, não podia verificar, num sorriso, num olhar, num gesto, se efetivamente era em sua intenção que Helena se sujeitava àquele ambiente culinário.

Uma tarde lembrou-se de assestar contra ela um binóculo de teatro, e teve a satisfação de distinguir claramente um sorriso que o estonteou.

Entretanto, a moça, desde que se viu observada tão de perto, fugiu arrebatadamente para o interior da casa.

O Novais imaginou logo que a ofendera aquela engenhosa intervenção da ótica; ela, porém, voltou à janela da cozinha, trazendo, por sua vez, um binóculo, que assestou resolutamente contra o vizinho.

* * *

Ficou radiante o Novais, e lembrou-se então de que certo domingo, passando pela casa do Capitão Linhares, a filha, que se achava à janela, cuspiu-lhe na manga do paletó. Ele olhou para cima, e ela, sorrindo, disse-lhe: – Desculpe.

Agora via o ditoso caixeiro que aquele cuspo tinha sido o meio mais simples e mais rápido que no momento ela encontrou para chamar-lhe a atenção.

Não era um meio limpo nem romântico; original, isso era.

* * *

A princípio, não passou o namoro de inocentes sorrisos, porque os binóculos, ocupando as mãos, impediam, naturalmente, os gestos; mas, passados alguns dias, tanto ela como ele pegavam no binóculo com a mão esquerda e com a direita atiravam beijos um ao outro.

* * *

Aconteceu que o Novais apanhou um resfriado e foi obrigado a ficar alguns dias de cama, ardendo em febre. Quando se levantou, pronto para outra, o seu primeiro cuidado foi, necessariamente, mostrar-se a Helena. Esperou com impaciência pela hora costumada, que nunca lhe tardou tanto.

Afinal, às cinco e meia correu à janela; mas, antes de abri-la, ocorreu-lhe espreitar por uma fresta… Ficou pasmado! A moça lá estava, de binóculo, a atirar beijos de longe!. – Mas a quem?… Ela não o via, não o podia ver: a janela estava fechada!… Quem era o destinatário daqueles beijos?…

Uma ideia atravessou-lhe o cérebro: o Novais debruçou-se a janela contígua e olhou para cima… O seu patrão, o Cerqueira, na janela do segundo andar, munido também de um binóculo, namorava a sua namorada!…

A coisa explica-se:

O negociante, surpreendendo, alguns dias antes, os beijos da rapariga, supôs que eram para ele e correspondeu imediatamente.

Helena, que era paupérrima e ambiciosa, fez consigo esta reflexão prática:

– Que feliz engano! Apanhei um marido rico! O Novais é um simples caixeiro… o Cerqueira é o chefe de uma firma importante. . . Aquele namora para divertir-se… este casa-se…

E o seu coração passou com armas e bagagens do primeiro para o segundo andar.

* * *

Três meses depois, Helena casava-se com o patrão de Novais, e ia morar no segundo andar, convenientemente preparado para recebê-la.

Ela e o caixeiro encontravam-se diariamente ao almoço e ao jantar. Os patrões, a patroa, o guarda-livros, os hóspedes e o Novais comiam em mesa comum.

Durante os primeiros dias que se seguiram ao casamento, não se atrevia Helena a encarar o ex-namorado, mas pouco a pouco foi se desenvergonhando, e por fim já lhe dizia: – Bom dia, seu Novais! – Boa tarde, seu Novais!

* * *

Certa manhã em que o rapaz acordou muito cedo e foi para a janela antes que abrissem o armazém, viu cair-lhe na manga do paletó um pequeno círculo de saliva, muito alvo, que parecia um botão.

Olhou para o segundo andar, e deu com os olhos em Helena, que lhe disse muito risonha: – Desculpe -, e em seguida lhe deu uns bons dias sonoros e argentinos.

O cuspo da moça avivou-lhe as recordações do seu namoro pulha; mas o Novais teve juízo: não abusou da situação…

* * *

O Cerqueira, que um ano depois de casado foi pai de uma linda criança, não gozou por longo tempo as delícias da paternidade; morreu.

Morreu, e a viúva, passado o luto, casou-se com o Novais, que se tornara o "braço direito da casa".

O moço a princípio protestou briosamente, rejeitando a posição que a fortuna lhe deparava; mas, como era feito da mesma lama que a maioria dos homens, cedeu às seduções e às lágrimas de Helena, e passou do primeiro para o segundo andar.

* * *

Aí está por que a casa Cerqueira & Santos é hoje Santos & Novais.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XXII


Caldeirão Poético XXXII


BENI CARVALHO
(1886-1959)

ESSÊNCIA IMPERECÍVEL


De ti, de teu casulo material
Todo o eflúvio de carne embriagador
Há de passar, há de fugir, tal qual
Se vai, da murcha rosa, o aroma e a cor.

De teu olhar o cálido fulgor,
De teus lábios a música auroral,
Tudo se extinguirá, quando se for
De teu corpo a dinâmica vital.

Não morrerás, no entanto; eterna e viva,
Brilharás nos lampejos de tua alma,
Que a Morte não domina, não cativa.

E, então, como Virtude, hás de viver
Desfeita em branda luz, na suave, e calma
E espiritual essência do teu Ser!

BRUNO BARROSA
(1886-1956)

ÂNSIA INFINITA


Alma! sobe, desvenda, alcança outras planuras,
Quebra o grilhão fatal, quebra a maldita algema
Que te prende no chão, e voa nas alturas,
Embora o sol desmaie, embora a nuvem trema.

Povoa a solidão das noites mais escuras...
Tira da luz a crença, esta verdade extrema
Que te falta e, se um deus é o que, ardente, procuras,
Faze um deus que contigo as dores sinta e gema.

Mas, que vejo? Voaste, asas abertas, frio
O ar, a nuvem que passa e foge, a imensidade
Viste e viste sem luz o espaço, ermo e vazio.

Baldado é teu esforço, inútil é teu grito:
És pequena demais, mesquinha humanidade,
E esmaga-te a cabeça o peso do infinito.

COSTA E SILVA
(1885-1950)

EGO


Sou, talvez, o mais triste ser humano
Que vive sob o céu ou sobre o solo,
Porque possuo o espírito de Apolo
Na feia catadura de Vulcano.

Malgrado esta desdita e o desengano
A que Amor me votou, eu me consolo
Na esperança de ainda sobre um colo
De Nereida dormir tranquilo e ufano.

É que, sem mesmo as correções marmóreas
Que teve o deus para os cinzéis helenos,
Com a sacra flama e com os pulmões de Bóreas,

Hei de, em carnes polífonos, ao menos,
Vencendo as glaucas vastidões equóreas,
Enternecer o coração de Vênus.

HEITOR LIMA
(1887-1945)

RENÚNCIA


Fugir, deixando um bem que o braço já tocava
Pela incerteza atroz de uma fé que redime...
Fugir para ser livre, e sentir, na alma escrava,
A sujeição fatal de uma paixão sublime.

Fugir, e, surdo à voz da consciência, que oprime,
Opor diques de gelo a torrentes de lava,
Sentindo, na renúncia, o alvoroço de um crime
Que a ingratidão aumenta e a covardia agrava.

Fugir, tão perto já da enseada, vendo, ao fundo,
Gaivotas esvoaçando entre velas e mastros,
Na glorificação triunfal do sol fecundo.

Fugir do amor - fugir do céu, fugir de rastros,
Sufocando um clamor que abalaria o mundo
E abafando um clarão que incendiaria os astros!

HERMES FONTES
(1888-1930)

IN EXCELSIS!


Glória a ti, que és perfeita, em quanto, humanamente,
possa alguém atingir à perfeição moral!
Glória! Ao desabrochar dessa alma redolente
o incenso do meu culto, o hino do meu ritual!

Glória a Ti, só a Ti, pois é em Ti, somente,
ó Expressão Natural do Sobrenatural,
é só em Ti que encontro a invisível semente
com que, assim, frutifico em pensamento e ideal!

Glória, em Ti, alma irmã! Milagre, que conferes
a todos os que atrais e a mim, que repudias,
a alta revelação da maravilha que és!

Glória, em Ti, ao Amor! Glória, em Ti, às mulheres!
A Ti, que reduziste a glória dos meus dias
a degrau do teu Sólio, a escrínio dos teus pés!...

OSCAR LOPES
(1883-1938)

O FIM


Um de nós morrerá primeiro... Eis a verdade,
Eis o que é natural, sendo embora monstruoso!
Um ficará na terra, envolto na saudade,
Depois de o outro ir buscar o absoluto repouso.

Quem de nós transporá primeiro a eternidade?
Eu ou tu? - Quanta vez, nos momentos de gozo,
Sinto em mim a aflição dessa curiosidade
Devorar o meu ser, como um cancro horroroso!

Tu ou eu? Tu, que és linda, e que és moça, e que és boa,
Ou eu, que não sou mais do que um farrapo humano?
- Não sei o que me diz que irás na minha frente...

Irás... E eu ficarei como uma coisa à toa,
Como um cão para o qual é tudo desengano
E que chora o seu dono inconsolavelmente...

RAUL DE LEONI
(1895-1926)

DESCONFIANDO


Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,
Atento tu me escutas quando falo;
Bem antes que te exponha o meu desejo
Já pronto estás correndo a executá-lo.

Achas em tudo um venturoso ensejo
De servir-me de servo e de vassalo;
Perdoa-me a verdade num gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

Mas não penses que estólido eu te creia
Como um Patroclo abnegado, não:
De todos os excessos se receia...

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;
Odeias-me, que eu sei, mas, histrião,
Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...

RONALD DE CARVALHO
(1893-1935)

AVATAR


Antes, a alma que tenho andou perdida.
Porque mundos rolou, que mão sutil
Pôs tão nobre fulgor, e estranha vida,
Nesse bocado de ouro e barro vil?

Decerto, árvore foi: verde jazida
De ninhos, sob o céu de espuma e anil,
E foi grito de horror, na ave ferida,
E, na canção de amor, sonho febril!

Foi desespero, sofrimento mudo,
Ódio, esperança que tortura e inferna;
E, depois de exsurgir, triste, de tudo,

Veio para chorar dentro em meu ser,
A amarga maldição de ser eterna,
E a dor de renascer, quando eu morrer!

Malba Tahan (O Marido Alugado)


Rachid Biram, homem generoso e rico, que negociava em joias e sedas, procurou-me um dia, muito aflito, em minha tenda.

A sua situação era delicada e, na verdade, apresentava não pequena dificuldade. Dentro de algumas horas, antes de surgir a lua, deveria partir com uma grande caravana de mercadores damascenos para a feira de Hil. Queria, porém, antes de iniciar essa longa jornada, casar-se outra vez com a encantadora Naziha, sua ex-esposa, que oito dias antes, num momento de exaltação, levado pelo ciúme, havia repudiado segundo a fórmula sagrada.

    - Conheço aqui em Kufa - disse-lhe, sem muito hesitar, - um certo Musa ibn-David (1) que se aluga para marido. Por que não o procuras? Deves obter, agora mesmo, um "marido desligador".

Antes de prosseguir, devo um esclarecimento aos leitores que ainda não percorreram, ao passo lento das caravanas, os intermináveis desertos da Arábia.

Segundo as instituições muçulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recuperá-la, sem mais formalidades, ao fim de três meses e dez dias; quando, porém, o repúdio é feito pela terceira vez ou mediante a fórmula: - "Eu te repudio três vezes" - o casamento está definitivamente rompido e o ex-marido só poderá contrair novo casamento com essa mesma mulher, no caso em que ela se case com outro homem, sendo pelo novo marido igualmente repudiada!

Tal exigência do Alcorão - que os doutores afirmam ser justificável em teoria - é na prática uma fonte fecunda de situações cômicas e extravagantes, pois, muita vez, um marido, desejoso de reatar relações com a esposa que repudiou impensadamente, prepara para ela a farsa ridícula de um casamento com um "marido alugado". Homens há que se prestam, mediante boa remuneração, a desempenhar o papel de marido "desligador" - preenchendo as formalidades de um casamento burlesco que dura, às vezes, pouco mais de uma hora.

Musa ibn-David era um dos tais que se "alugavam" para marido. Era provável, pois, que servisse ao rico Rachid Biram.

    "- Já o procurei - declarou Rachid. - Ofereci-lhe uma boa recompensa, mas ele não a aceitou.

    - Por Allah! - exclamei. - Não é possível! Musa sempre se prestou ao ignóbil papel de marido alugado e não será, portanto, capaz de recusar uma oferta desta ordem.

    Montei a cavalo e, acompanhado de um guia negro, dirigi-me no mesmo instante para a tenda do marido mercenário.

    Encontrei sentado à porta um velho de longas barbas brancas. Era o pai de Musa.
      
    - Naharak, sahid, ia qhawaja! (2) - saudei-o, ao chegar. - Onde está Musa, ó David?

    - Partiu há pouco para o deserto de Hajar - respondeu-me o ancião - e só voltará depois da outra lua!

    - Sabes, ó cheique! - Perguntei - por que motivo Musa não quis servir de "marido desligador" ao rico Biram?

    - Sei, sahheb (3) - respondeu-me. -- Meu filho, quando ainda muito jovem, conheceu Naziha e apaixonou-se por ela. E bem sabes que um homem digno não poderia fazer, com a mulher amada, o papel de marido alugado!

    - Uallah! - exclamei. - Ridícula desculpa! Arrojada tolice! Um homem que exerce a degradante profissão de teu filho não pode ter semelhantes escrúpulos! A formosa Naziha conhece-o bem e considera-o, por certo, mais desprezível que o chacal!

    - Por Maomé! - exclamou o velho erguendo-se, colérico. - És um covarde! Procuras ofender meu filho quando sabes que já não tenho forças para repelir os teus insultos! Queira Allah que sejas castigado como mereces, pois o castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras o estão dos olhos!

    E o eco dessa praga terrível acompanhou-me os passos pelo deserto.

    Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, achava-me sentado à porta de minha tenda, meditando sobre o caso de Musa ibn-David, quando de mim se acercou uma jovem, completamente velada, que se fazia acompanhar de duas escravas.

    Saudei-as respeitosamente e perguntei-lhe o que de mim desejava.

    Respondeu-me, com voz terna e maviosa:

    - Que Allah te cubra de dons, ó jovem! Informaram-me hoje, pela manhã, que estavas de passagem por esta cidade com uma caravana de mercadores do Cairo e de Damasco, e que hoje mesmo partirás para Bagdá e daí para Basra. Quero comprar alguns vestidos, peças de adornos e joias.

    E, enquanto falava, a jovem foi pouco a pouco erguendo o seu espesso véu, deixando descoberto o pequenino rosto, em cujas linhas o Divino Artista fizera aparecer os mil segredos da sedução. Fiquei deslumbrado! Exaltado seja Allah, o Único, que soube reunir tanta beleza no olhar e tanto encanto no sorriso de uma mulher formosa!

    Seduzido pela incomparável beleza da jovem desconhecida, prontifiquei-me a mostrar-lhe, no mesmo instante, todos os ricos artigos que levava: sedas, vestidos, tapetes, casimiras da índia, colares, cafetãs de veludo, telas riquíssimas do Industão, véus bordados a ouro, sapatos da Pérsia, peles do Cáucaso e mil outras coisas igualmente preciosas e deslumbrantes.

    Duas horas ficou a jovem em minha tenda a examinar e escolher os objetos que pretendia comprar. Durante todo esse tempo, Hadija - assim se chamava a linda muçulmana - falou-me  de sua  vida  no  harém de seus pais, que eram ricos e viviam num grande serralho junto ao Eufrates.

    - Hadija - declarei, afinal, num ímpeto, tomando-lhe as mãos entre as minhas - devo partir amanhã para Bagdá. Confesso-te, porém, que estou loucamente apaixonado por ti! Queres casar comigo?

    Com um sorriso encantador, que por timidez parecia procurar refúgio nas covinhas das faces, ela assim me respondeu:

    - Ó jovem tão bem dotado! Teu pedido traz grande alegria ao meu coração! As tuas palavras, como o vento no deserto, erguem bem alto a areia ardente dos meus desejos! Quero ser tua esposa e acompanhar-te pelo mundo na tua vida aventureira e incerta de mercador!

    E, como não houvesse tempo a perder, ficou resolvido que o casamento se faria imediatamente.

    Uma hora depois, no grande salão do palácio em que morava Hadija, realizou-se o casamento, segundo os preceitos muçulmanos, na presença do cádi e das testemunhas.

    Terminada a cerimônia, deixei rapidamente o salão e fui falar com alguns amigos e empregados que me tinham acompanhado.

    Quando voltei para junto dos convidados, aguardava-me a mais dolorosa das surpresas. Fui encontrar minha esposa, em um canto do salão reclinada sobre um rico divã que um largo reposteiro ocultava; estava abraçada a um jovem, que a beijava apaixonadamente nos olhos negros e na boca nacarina e fresca.

    - Ó falsa criatura! - bradei, tomando de grande furor. - Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante! Longe de mim, mulher indigna, filha de Cheitã (4)

     E, revoltado com o procedimento da desleal que eu escolhera, para esposa, gritei, cheio de cólera, a fórmula definitiva do divórcio:
   
     - Ó falsa criatura! - bradei, tomado de grande furor. - Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante!

    - De ti me divorcio três vezes!

    Ao ouvir tais palavras, ergueu-se a jovem, e, com voz calma, irônica, disse-me:

    - Julgas então que eu tenho amante? És um tolo, um pateta! Olha! Olha bem! Este "jovem" que me abraçava e beijava é a minha boa escrava Zobeida, que fiz vestir com trajes masculinos! Foste completamente ludibriado e estou de ti para sempre divorciada!

    Foi com espanto que percebi o engano que cometera num momento em que o ciúme e a paixão me haviam tornado cego. A pessoa que estava com Hadija era realmente uma escrava disfarçada com os cabelos cortados e vestida à maneira dos homens.

    - Hadiji! - exclamei. - Não sei como explicar o teu estranho proceder. Se não querias ser minha esposa, por que aceitaste o meu pedido de casamento?

    - Devo-te uma explicação, ó muçulmano - tornou a jovem. - Há dois meses, mais ou menos, meu marido, Salim Hamed, num momento de exaltação, divorciou-se de mim, pronunciando três vezes a fórmula sagrada do divórcio. Ontem, porém, procurou-me e propôs a reconciliação e um novo casamento. Infelizmente, segundo as nossas leis, eu não poderia casar com ele sem ter casado antes com outro homem que me repudiasse. Na falta de um "desligador" de confiança, resolvi lançar mão de um estratagema. Casei contigo e procurei dar-te um pretexto, embora falso, para que me rejeitasses imediatamente. Agora, sim, posso casar com Salim Hamed!

    E voltando-me as costas, deixou-me estupefato diante do cádi e das testemunhas que se riam de mim.

    Eu havia feito, sem querer, o ridículo e ignóbil papel de marido desligador!

    O castigo de Deus está realmente, mais perto do pecador, do que as pálpebras o estão dos olhos!
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Notas:
1- Musa ibn-David. - Musa, filho de David.
2- Bom dia, ó chefe!
3- Sahheb - Título honroso. Corresponde a Senhor.
4 - Cheitã - Demônio.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

UBT Curitiba (Programação)


A União Brasileira de Trovadores Seção Curitiba, tem a satisfação de convidá-lo e a vossa família, para Sessão Magna em comemoração aos 53 anos de sua fundação e premiação nos âmbitos nacional/internacional, estadual, bem como, do Concurso Paralelo dos XX Jogos Florais de Curitiba.

Dia: 13 de setembro de 2019
 
Hora: 19:30h
Local: Plenário da Câmara Municipal de Curitiba - Rua Barão do Rio Branco, 720 - Palácio Rio Branco. Curitiba-PR

Durante a solenidade serão homenageados os trovadores Lourdes Strozzi, Maurício Norberto Friedrich, Nei Garcez, Angelo  Batista, Theresinha Dieguez Brisolla e Vânia Maria Souza Ennes.

Abaixo segue nossa Programação Completa, sua presença é muito importante para nós.

De 10 a 20 de setembro: Exposição de trovas -  Abertura dia 10 às 14h 
Centro Cultural SESI- Casa Heitor Stockler de França. Rua Marechal Floriano Peixoto, 458. Centro.

Dia 12 de setembro: (Quinta - feira)
 
17h00min: Premiação Estudantil. Exposição da Trovas Premiadas
Local: Auditório Paul Garfunkel - 2º andar da Biblioteca Pública do Paraná. - Rua Cândido Lopes, 133 Centro.

Dia 13 de setembro: (Sexta - feira)
 
19h30min: Sessão Magna – Solenidade de Premiação dos classificados nos âmbitos nacional, internacional e estadual. Homenagens especiais.
Local: Câmara Municipal de Curitiba - Rua Barão do Rio Branco, 720, Anexo II. Centro

Dia 14 de setembro: (Sábado)
 
15h ás 18h: Sarau 
Centro Cultural SESI- Casa Heitor Stockler de França. Rua Marechal Floriano Peixoto, 458. Centro.

16h – Lançamento – Magia do Natal, trovas e poemas, organização Vânia Souza Ennes

19h00min: Jantar – por Adesão.
Local: Restaurante do Hotel Del Rey. Rua Ermelino de Leão, 18 – Centro

Dia 15 de setembro: (Domingo)
 
11h30mim – Missa em Trovas 
Santuário Cristo Rei e São Judas Tadeu. Rua Pe. Germano Mayer 410, Alto da XV.

Atenciosamente,
Andréa Motta
UBT-CURITIBA

domingo, 1 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 66


Nilto Maciel (Romos)


Os teus príncipes são como os gafanhotos, e os teus chefes como os gafanhotos grandes, que se acampam nas sebes nos dias de frio; em subindo o sol voam embora e não se conhece o lugar onde estão. Os teus pastores dormem, ó rei da Assíria; os teus nobres dormitam; o teu povo se derrama pelos montes, e não há quem o ajunte.
Naum, 17.18.


Chamou-nos de lá, do alto ou do fundo da terra, um Messias novo, uma voz interior apocalíptica, a necessidade de salvação urgente ou seja lá o que for. Abrimos os olhos, avistamos a névoa misturando-se às nuvens, o verde empalidecendo, e corremos irmanados pela estrada que leva aos píncaros da serra, lá onde os jesuítas ergueram um castelo no meio de seu feudo.

Já pisamos meio caminho de subida. Ainda avistamos a via-sacra, que não mais tocamos com os pés, para não nos comprometermos com as obras dos que fabricaram nossa desgraça. As borboletas ainda pousam sobre nossas cabeças, enchendo-as de fantasia. Recordamos as mãos invisíveis que nas noites intermináveis suspendiam nossas redes até as telhas. Embora nos firamos nas urtigas traiçoeiras, estamos catando flores silvestres, para não nos esquecermos destas cores, quando penetrarmos as grutas sem luz. Já chupamos todas as mangas que o tempo derrubou no meio do caminho e debaixo das mangueiras dos sítios que ladeiam a estrada. Já nos lavamos dez vezes nas águas apressadas e frias das levadas. Descemos, os mais afoitos, ao Poço da Moça, para nos banharmos de coragem, e pulamos as altas e gigantescas pedras por onde as águas do rio deslizam e onde as lavadeiras passam seus dias. Penetramos as hortas e devoramos as verduras que os moradores cultivam para a ceia dos padres. Como se para assistir à destruição das cidades da campina, voltamo-nos de defronte ao castelo para uma última visão da nossa, sem medo de nos convertermos em estátuas de sal. Tudo pequeno e distante.  Uma nódoa esbranquiçada no meio do verde do vale. Decididos e medrosos do passado e do embaixo, vasculhamos os três pavimentos do velho seminário e escutamos as vozes perdidas dos meninos que lá brincaram, rezaram e estudaram. Na saída, batemos a cachorra, para assustar os fantasmas que habitam a tristeza das noites. Corremos, suados e sedentos, para a bica da barragem e nos lavamos um a um. Subimos a parede e nos ensopamos de sujeira. Pelas enormes fendas as águas escorriam, ameaçando estourar a sólida parede. Por precaução, voltamos à estrada e tomamos o rumo de Caridade. Não mais uma estrada, apenas uma vereda. Cansamos mais e parávamos de instante a instante. Entretinhamo-nos a ver as grandes formigas pretas, chupávamos os coquinhos das babaçus descomunais que nascem no fundo dos abismos e vêm mostrar suas folhas no alto onde a vereda se fez, e escutávamos os cantos dos pássaros, para esquecermos os ferimentos que as pedras faziam em nossos pés. Mil vezes cansamos, mil vezes descansamos. Quando lá chegamos, mal tivemos curiosidade de escancarar as portas e janelas do casarão. Acampamos nos treze degraus e na calçada em sombra, voltados para o vale já muito distante e já muito embaixo. No quintal, porcos comiam jaca, galinhas beliscavam o chão, laranjas e tangerinas apodreciam nas árvores. Mais adiante, engenhos de cana tomados de mato. Um abandono completo. Estávamos novamente suados e sedentos. Sabíamos que havia uma bica mais no alto. Subimos por outra vereda. Encontramos uma casinha de taipa, a casa do antigo morador, desabitada e prestes a cair. No chão, uma baladeira. Voando e cantando, pássaros variados. Bebemos água límpida que escorria de um cano. A bica estava cercada. Nada mais havia a ver sobre o chão. Restava buscar as grutas. Regressamos para tomarmos a vereda perigosa que leva à Gruta dos Morcegos. Outro abismo nos esperava. Seguimos, prudentes. Tropeçamos em árvores caídas, em galhos ressequidos, em folhas de palmeiras. Chegamos à gruta e tratamos de escalá-la. A areia era negra e fina como pó de carvão. Sujos, arrastamo-nos sobre a grande pedra e partimos em busca da caverna. Espantamos os morcegos e as cordas que pendiam dos tetos de monólito e descemos pela profunda grota que leva ao interior da terra.

Nós já fomos pacatos, trabalhadores e puros. Construímos esta cidade em mais de cem anos. Alimentamos meio sertão de frutas e legumes. Exportamos café para os brancos do Sul e gênios a quem nunca erigiram uma estátua. Outrora aqui os primeiros homens da terra viviam no Éden. Depois vieram os portugueses e os jesuítas e começou nossa ruína. Odiamos-nos, matamos-nos, roubamos-nos, caluniamos-nos, atraiçoamos-nos, tornamos-nos madalenas, traímos nossos esposos e nossas esposas. Nossos comerciantes faliram nos bares, cassinos e cabarés. As moças foram desvirginadas e os moços se entregaram à vadiagem. De adoradores da Natureza, passamos a adoradores de estátuas. E, não suportando mais nossa traição, assaltamos os altares e profanamos os templos, mesmo antes da fuga dos padres, que abandonaram os conventos, os seminários e as igrejas. Esquecemos o latim, a missa, as orações e a Bíblia. E, inexplicavelmente, pisoteamos os jardins, desfolhamos os benjamins, desmatamos a serra, sujamos de sabão e sangue as geladas e límpidas águas de nossos rios, agora divididos por cercas de pau e arame aqui e acolá, margeados por cruzes e monumentos aos que roubaram os pobres, queimamos os cafezais e nos alimentamos hoje unicamente de banana e manga, que mal alimentam os poucos pássaros que não fugiram para o sertão. Derrubamos os velhos casarões ou deles fizemos bares e albergues de mulheres longínquas para nossos homens corrompidos. Erigimos por todas as cercanias casebres de taipa, fazendo de nossa cidade uma Canudos pequena. E, num passado recente, adoramos os ditadores europeus e nos destroçamos em defesa de ideais diabólicos, esquecidos de nosso verde e de nossos cento e tanto anos. Hoje, morremos raquíticos aos trinta anos, quando não nos assassinamos aos vinte ou somos levados pelas águas ardentes aos quinze, frágeis que já somos, degenerados que já estamos.

Por tudo isto, estamos fugindo, por tudo isto, temos que fugir, abandonar esta Sodoma serrana, esta Jerusalém de taipa, e nos refugiar nas grutas mais escuras e mais profundas desta serra farta.

Estamos descendo este rio, sem rumos, sem ramos, sem remos, mas rimos, rimos, rimos.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

sábado, 31 de agosto de 2019

Isabel Furini (O Círculo do Poema)


Carlos Drummond de Andrade (A Viúva do Viúvo)


Conheceram-se, namoraram, amaram, casaram, tiveram filhos, desamaram, separaram-se, depois de tanto verbo conjugado em comum. Ele sumiu por aí, no anonimato sem responsabilidades. Ela ficou criando a trinca sem pai. Sem notícia um do outro, tempo passando, acontecimentos acontecendo, vida no corre-corre.

Ela até nem se lembrava mais de que fora casada. Eis que o marido reaparece na lembrança, quando uma filha lhe diz:

— Mãe, o pai está no hospital.

Que pai? Não sabia de pai nenhum, o seu morrera há tanto tempo, depois de dar tanto trabalho. (Descansa em paz, deixando a família descansada.) Há outros pais vivos por aí? De quem?

— O meu, uai.

Ah, sim. O pai dessa moça que está à sua frente, essa moça que é sua filha, e que antigamente tivera um pai. Um pai que fora seu marido, e que nunca mais aparecera, jogando sobre suas costas a obrigação de criar e educar os filhos.

Como as coisas emergem de um poço escuro, de repente! Pois não é que o ex-marido voltava à tona, com seus sinais particulares, seu modo de falar, seu jeito de ser e viver? Tão antigo, tão inexistente — mas ali.

Ela parecia não dar mais atenção ao que a filha ia dizendo.

— Escutou o que eu disse?

— Hem?

— O pai está no hospital.

— Que é que ele foi fazer lá? Vender seguro de vida aos doentes? (Agora se recordava de que ele fora corretor de seguros.)

— Está doente.

— Como você soube?

— Mandou me avisar. Não tem ninguém com ele, só a gente do hospital.

Então estava sozinho, depois de muitos anos, e se lembrava da filha para ter companhia no hospital. Não chegou a ter pena. Estavam tão distanciados os dois, que era como se soubesse que um japonês em Yamagata sofria de dor de dentes. A filha esperava um comentário, uma reação.

— Vai lá, querida.

Mais do que isso não poderia dizer, porque não havia nada mais a exprimir. Amores fanados não reverdecem, quando a vida caprichou em esmagá-los bem.

Se alguma coisa tivesse ficado exposta à luz, se um gesto dele, mínimo que fosse, ao longo de tanto tempo, alimentasse um resto possível de sentimento, ela agora teria pena. Mas pena de quê? de quem? se nem de si mesma sentia mais pena, conformada que estava com o irremediável das coisas, e refugiada, também, no pequeno mundo que se construíra e em que convivia com artistas obscuros do passado, através de estudos e pesquisas que eram uma fonte de prazer, compensador de alegrias que não tivera no casamento?

— Vai, minha filha, e vê o que ele precisa.

A filha foi e voltou contando que ele estava mal, parece que dessa não escapava. Como de fato não escapou. Sem pessoa alguma para cuidar do enterro, nem bens que pudessem custear a despesa, quem tomaria providências?

Então a ex-esposa, pessoa decidida, acostumada a fazer na hora certa o que é necessário fazer, decidiu presentear o ex-marido com o enterro decente que ele não tinha merecido, e que a ela custaria uma nota desarrumadora do seu orçamento modesto. Procurou a funerária, disse que pagaria tudo.

O empregado perguntou-lhe, entre xereta e reticente:

— A senhora… era companheira do falecido?

— Companheira? Sou viúva dele!

— Perdão, mas o falecido, quando se internou no hospital, declarou que era viúvo. A senhora quer ver? Vamos lá na Secretaria.

— Pois eu sou a viúva do viúvo, entende? E não estou fazendo nada para ficar com a herança dele, que não deixou um tostão de seu, além de me matar no papel. E vamos com esse serviço depressa, que eu preciso cuidar da minha vida de viúva-desquitada há muito tempo, tá bom?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Antonio Cabral Filho (Colar de Trovas) Dia do Nordestino


Tema: O Dia do Nordestino, 08 de outubro

01
Oito de outubro hoje é dia
De velho,  moço e menino,
saudar com toda alegria
*o dia do nordestino.*
Marcos Medeiros

02
O dia do nordestino,
como data especial,
merece ganhar um hino
e *feriado nacional*.
Antônio Cabral Filho
Jacarepaguá/RJ


03
Feriado nacional,
é um dia festejado;
nordestinos em geral
*curtem esse dia amado.*
M. Zilnete de M. Gomes
Campos dos Goytacazes/RJ

04
Curtem esse dia amado
os nordestinos felizes,
levando pra todo lado
*cultura em suas raízes.*
Aurineide Alencar
Dourados/MS


05
Cultura em suas raízes
o Nordeste tem demais,
muitos atores e atrizes
*que nos tratam como iguais.*
Antonio Francisco Pereira
- MG


06
Que nos tratam como iguais
sempre da melhor maneira
seus feitos são triunfais
*nação humilde e guerreira.*
Adriano Bezerra
Sta.Cruz/RN


07
Nação humilde e guerreira,
na luta por seu destino,
luz da nação brasileira,
*viva o povo nordestino!*
Antonio Cabral Filho
Jacarepaguá/RJ


08
Viva o povo nordestino,
que à nossa pátria dá vida!
Ser guerreiro é seu destino;
*sua luta é destemida!*
Oliveira Caruso
Niterói/RJ


09
Sua luta é destemida
no passado e no presente.
Jamais fugindo da lida
*nordestino é boa gente.*
Antonio Francisco Pereira
- MG


10
Nordestino é boa gente
tem um grande coração,
carrega vivo na mente:
*cultivar sua tradição.*
Aurineide Alencar
Dourados/MS


11
Cultivar sua tradição
é fator edificante,
para essa jovem nação
*pois, o Nordeste é importante!....*
Luiz Cláudio
 – RN


12
Pois, O Nordeste é importante,
também outras regiões;
é orgulho do habitante 
*das cidades e rincões.*
M. Zilnete de M. Gomes
Campos dos Goytacazes/RJ


13
Das cidades e rincões
chamo essa gente querida,
pra soltamos foguetões
*que meu Nordeste convida!...*
Luiz Cláudio
– RN

14
Que meu nordeste convida
terra do Luiz Gonzaga!
essa gente mui querida
*o meu coração afaga.*
Madalena Cordeiro
– ES


15
O meu coração afaga
todo o povo nordestino
e em mim nunca se apaga
*as lembranças de menino.*
Adriano Bezerra
Sta.Cruz/RN


16
As lembranças de menino
nas cantadas do Nordeste
têm cunho quase franzino
*quando vaqueiro se veste.*
Prof. Roque
- RS


17
Quando o vaqueiro se veste,
sua alma se contagia,
nordestino se reveste
*de orgulho e de alegria!*
Talita Batista
Campos dos Goytacazes/RJ


18
De orgulho e alegria
se encobre toda a nação,
sempre uma boa companhia
*nordestino coração.*
Prof. Roque
- RS


19
Nordestino Coração
Celebre com euforia
Com festa e muita emoção
*Oito de outubro é o dia.*
Adriano Bezerra
Sta.Cruz/RN


Fonte:
Trovadores do Brasil

João do Rio (História de Gente Alegre)


O terraço era admirável. A casa toda parecia mesmo ali pousada á beira dos horizontes sem fim como para admira-los, e a luz dos pavimentos térreos, a iluminação dos salões de cima contrastava violenta com o macio esmaecer da tarde. Estávamos no Smart-Club, estávamos ambos no terraço do Smart-Club, esse maravilhoso terraço de vila do Estoril, dominando um lindo sítio da praia do Russel — as avenidas largas, o mar, a linha ardente do cais e o céu que tinha luminosidades polidas de faiança persa. Eram sete horas. Com o ardente verão ninguém tinha vontade de jantar. Tomava-se um aperitivo qualquer, embebendo os olhos na beleza confusa das cores do ocaso e no banho viride [1] de todo aquele verde em de redor. As salas lá em cima estavam vazias; a grande mesa de baccarat [2], onde algumas pequenas e alguns pequenos derretiam notas do banco — a descansar. O soalho envernizado brilhava. Os divãs [3] modorravam em fila encostados às paredes — os divãs que nesses clubes não têm muito trabalho. Os criados, vindos todos de Buenos Aires e de S. Paulo, criados italianos marca registrada como a melhor em Londres, no Cairo, em New York, empertigavam-se. E a viração era tão macia, um cheiro de salsugem [4] polvilhava a atmosfera tão levemente, que a vontade era de ficar ali muito tempo, sem fazer nada.

Mas a noite já estendia o seu negro brocado picado de estrelas e no pleinair do terraço começavam a chegar os smart-diners. Que curioso aspecto! Havia franceses condecorados, de gestos vulgares, ingleses de smoking e parasita à lapela, americanos de casaca e também de brim branco com sapatos de jogar o football e o lawn tenis [5], os elegantes cariocas com risos artificiais, risos postiços, gestos a contragosto do corpo, todos bonecos vítimas da diversão chantecler, os noceurs [6] habituais, e os miches [7] ricos ou jogadores, cuja primeira refeição deve ser o jantar, e que apareciam de olheiras, a voz pastosa, pensando no bacchemin-de-fer[8], no 9 de cara e nos pedidos do último béguin [9]. O prédio, mais uma “ vila ” da bacia do Mediterrâneo, ardia na noite serena, parecia a miragem dos astros do alto; as toalhas brancas, os cristais, os baldes de christofle [10] tinham reflexos. Por sobre as mesas corria como uma farândola [11] fantasista de pequenas velas com capuchons [12] coloridos, e vinha de cima uma valsa lânguida, uma dessas valsas de lento enebriar, que adejam vôos de mariposas e têm fermatas que parecem espasmos. No meio daquela roda de homens, que se cumprimentavam rápidos, dizendo apenas as últimas sílabas das palavras: — B’jour, Plo... deus! goo, iam chegando as cocottes [13], as modernas Aspásias [14] da insignificância. Algumas vinham a arrastar vestidos de cinco mil francos; outras tinham atitudes simplistas dos primitivos italianos. Havia na sombra do terraço, um desfilar de figuras que lembravam Rossetti e Heleu, Mirande e Herman-Paul, Capielo e Sem, Julião e também Abel Faivre, porque havia cocotes gordas, muito gordas e pintadas, ajaezadas de jóias, suando e praguejando. Falavam todas línguas estrangeiras — o espanhol, o francês, o italiano, até o alemão com o predomínio do parigot, do argot, da langue verte [15]. Só se falava mesmo calão de boulevard [16]. Fora, à entrada, paravam as lanternas carbunculantes [17] dos autos, havia fonfons roucos, arrancos bruscos de máquinas H. P. 60. Aquele ambiente de internacionalismo à parisiense cheio do rumor de risos, de gluglus de garrafas, de piadas, era uma excitação para a gente chique. O barão André de Belfort, elegantíssimo na sua casaca impecável convidara-me para um jantar a dois em que se conversasse de arte antiga — porque ele tinha estudos pessoais sobre a noção da linha na Grécia de Péricles. Evidentemente, antes de terminar o jantar teríamos a mesa guarnecida por alguma daquelas figurinhas escapas de Tanagra [18] ou qualquer dos gordos monstros circulantes...

De súbito, porém, na alegria do terraço ouvi por trás de mim uma voz de mulher dizer:

— Pois então não sabes que a Elsa morreu hoje de madrugada?

Não me voltei. A mulher conversava noutra mesa. Mas senti um pasmo assustado. Elsa! Seria a Elsa d’Aragon, uma carnação maravilhosa de dezoito anos, lançada havia apenas um mês por um manager [19] de music hall, cuja especialidade sexual era desvirginar meninas púberes? Seria ela com os seus olhos verdes, a pele veludosa de rosa-chá e aquela esplêndida cabeleira negra de azeviche? E morrer em plena apoteose, cheia de joias e de apaixonados! Indaguei do meu conviva:

-— Morreu a Elsa d’Aragon?

O barão Belfort encomendava enfim o car­dápio. Acabou tranquilamente a grave operação, descansou o monóculo em cima da mesa.

— Exatamente. Parece que a apreciavas? Pobre rapariga! Foi com efeito ela. Morreu esta madrugada.

— De repente?

— Com certeza. Devia ter sido uma linda morte. Beleza horrível. Não se fala noutra coisa hoje nas pensões de artistas, em todos os conventilhos elegantes patronados pelas velhas cocotes ricas, nas rodas dos jogadores. A Elsa era muito nature [20], com a fobia do artifício, mas soube morrer furiosamente.

— Como foi?

Neste momento chegara a “bisque” [21] e o balde com a Môet, brut imperiale [22], que o velho dandy [23] bebe sempre desde o começo do jantar.

O barão atacou a “ bisque”, deu não sei que ordem ao maître-d’hôtel, e murmurou:

— É uma história interessante. Você de certo ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por enervamento de não ter o que fazer? Quase todas essas criaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são, como direi? as excedidas das preocupações. Estão sempre enervadas, paroxismadas. O meio é atrozmente artificial, a gargalhada, o champanhe, a pintura encobrem uma lamentável pobreza de sentimentos e de sensações. Ao demais, a vida tem um regulamento geral de excessos, e elas fatalmente pela lei, têm que fazer pagar caro e arruinar os idiotas, têm de amar um rapazola miserável que lhes coma a chelpa [24] e as bata, têm que embriagar-se e discutir os homens, os negócios das outras, tudo mais ou menos exorbitando. Uma paixão de cocote é sempre caricatural, é sempre para além do natural, do verdadeiro, e a sua pobre vida, tenha ela centenas de contos ou viva sem um real pelas bodegas reles, é sempre uma hipótese falsificada de vida, uma espécie de fiorde num copo d’água, à luz elétrica. Todas amam de modo excepcional, jogam excessivamente, embriagam-se em vez de beber, põem dinheiro pela janela à fora em vez de gastar, quando choram, não choram, uivam, ganem, cascateiam lágrimas. Se têm filhos, quando os vão ver fazem tais excessos que deixam de ser mães, mesmo porque não o são. Duas horas depois os pequenos estão esquecidos. Se amam, praticam tais loucuras que deixam de ser amantes, mesmo porque não o são. Elas tem varias paixões na vida. Cinco anos de profissão acabam com a alma das galantes criaturinhas. Não há mais nada de verdadeiro. Uma interessante pequena pode se resumir: nome falso, crispação de nervos igual à exploração dos “gigolôs” e das proprietárias, mais dinheiro apanhado e beijos dados. São fantoches da loucura movidos por quatro cordelins da miséria humana.

— A Elsa, então?

— A Elsa foi atirada subitamente numa pensão do Catete. Sabes o que é a vida em casas de tal espécie. Elas acordam para o almoço, em que aparecem vários homens ricos. O almoço é muito em conta, os vinhos são caríssimos. A obrigação é fazer vir vinhos. Desde manhã elas bebem champanhe e licores complicados. Nesses almoços discute-se a generosidade, a tolice, ou a voracidade dos ma­chos. A tarde é dada a um ou a dois. Às cinco, toilette e o passeio obrigatório. À noite, o jantar em que é preciso fazer muito barulho, dançar entre cada serviço ou mesmo durante, dizer tolices. Depois o passeio aos music-halls, com os quais tem contrato as proprietárias, e a obrigação de ir a um certo clube aquecer o jogo. Cada uma delas têm o seu cachê por esse serviço e são multadas quando vão a outro — que, como é de prever, paga a multa. O resto é ainda o homem até dormir. Nesse fantochismo lantejoulado há vários gêneros: o doidivana, o sério, o reservado, o nature, o romântico, e para encher o vazio, os vícios bizarros surgem. Elas ou tomam ópio, ou cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda assim, nos paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas! mais malucas no manicômio obrigatório da luxúria. A Elsa era do gênero nature. Ancas largas, pele sensível, animal sem vícios. Tentou os petimetres, [25] os banqueiros fatigados, os rapazes calvos e, com oito dias estava com os nervos esgarçados, estava excedida. Mesmo porque, desde a primeira hora olhava-a com o seu olhar de morta a Elisa, a interessante Elisa.

— Ah!

— Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa eternamente um gorro de lontra. Nunca a vi com uma joia e sem o seu tailleur cor de castanha. É feia, não deve agradar aos homens, mas presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas. Escreve cartas, arranja entrevistas, tem conhecimentos, e dizem-na com todos os vícios, desde o abuso do éter até o unissexualismo [26]. Ora, era Elisa com os seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, e Elsa sentia uma extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com o seu corpo de andrógino morto. E era em toda parte aquele mesmo olhar acompanhando Elsa, pregando-se a todos os seus gestos, lambendo cada atitude da criatura. Uma noite, as duas Lacroix Ducerny, as que vestem sempre iguais e fazem fortuna em comum, asseguraram-me que Elisa já não servia para nada, perdida, louca de paixão; e, com grande pasmo meu ao entrar num clube ultra infame, eu vi a Elsa com um conhecido banqueiro e, muito naturalmente, Elisa ao lado. Era a aproximação...

— Safa!

— Meu caro, nada de repugnâncias. Prove este faisão. Está magnífico. Ora, ontem, no Casino, como a pobre Elsa estava totalmente fora dos nervos e com um vestido verdadeiramente admirável, tive prazer em ir apertar-lhe a mão. — “ Então, como vai com esta vida?” — “ Como vê, muito bem.” — “ Mas está nervosa.” — “ Há de ser de falta de hábito. Acabo por acostumar.” —“Com um tão belo físico...” — “Não seja mau, deixe os cumprimentos.” E de súbito — “ Diga-me, barão, não há um meio da gente se ver livre disto? Não posso, não tenho mais liberdade, já não sou eu. Hoje, por exemplo, tinha uma imensa vontade de chorar.” — Chore, é uma questão de nervos. Ficará de certo aliviada.” — “Mas não é isso, não é isso, homem!” — “ Se a menina continua a gritar, participo-lhe que vou embora.” —“Não, meu amigo, perdoe. É que eu estou tão nervosa! tanto! tanto... Queria que me desse um conselho. — “Para que?” — “ Para aliviar-me.” — “É difícil. Você sofre de um mal comum, a surmenage [27] do artifício. Eu podia dizer-lhe: re­colha-se a um convento. Mas pareceria brincadeira e talvez viesse a morrer mística, a conversar com os anjos, como Swedenborg [28]. Conheci algumas que acabaram assim. Podia também, se fosse um idiota, aconselhar a vida honesta. Mas isso seria impossível porque o pesar de ter saído desta em que o desperdício é a norma, a saudade e as lembrança deixá-la­iam amargurada. Depois não tem recursos e teria sempre que pôr em circulação o seu lindo capital.” — “ Barão, por quem é, fale-me sinceramente.” —“Então, minha filha, aconselho uma paixão ou um excesso, um belo rapaz ou uma extravagância.” —. “ Nesta roda não há belos rapazes.” — “ De acordo, há quando muito velhos recém-nascidos. Mas é recorrer à multidão, passar uma noite percorrendo os bairros pobres, experimentar. Ou então, minha cara, um grande excesso : champanhe, éter ou morfina...” Voltei-me para a sala. Num camarote fronteiro a Elisa olhava com os seus dois olhos de morta. “ E se não a repugna muito uma grande mestra dos paraísos artificiais, a Elisa”. — “ Não fale alto, que ela percebe.” — “Então já a sabia lá?”. — Corri-a ontem do meu quarto. É um demônio.”— “ Mas você precisa de um demônio.” — “ O que ela faz...” — “ Já sei, toda a gente faz. Mas naturalmente ela é excepcional.” — “ Barão, vá embora.” — “ Adeus, minha querida.” Quando dei a volta para falar a Elisa, já esta deixara vazio o camarote.

— E então, como morreu a linda criatura?

—- Aceitando o meu conselho. A sua morte pertence ao mistério do quarto, mas devia ser horrível. Elsa partiu do music-hall diretamente para casa, pretextando ao banqueiro que lhe ia pôr um pe­queno palácio, a forte dor de cabeça — a clássica migraine [29] das cocotes enfaradas ou excedidas E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir champanhe por conta própria. Quando por volta de uma hora apareceu a figura de larva [30] da Elisa, deu um pulo da cadeira, agarrou-lhe o pulso: “ Vem; tu hoje és minha!” Houve uma grande gargalhada. Essas damas e mais esses cavalheiros tinham uma grande complacência com a Elisa, e aquela vitória excitava-os. Elisa molemente sentou-se ao lado da Elsa, que bebia mais champanhe, sentia afrontações e torcia os dedos da apaixonada por baixo da mesa. Era o desespero. Mimi Gonzaga assegurou-me que ela recebera uma carta da mãe logo pela manhã. No fim, Elsa, pálida e ardente, dizia: “Viens, mon cheri, que je te baise!” e mordia raivosamente o pescoço da Elisa. Via-se a repugnância, a raiva com que ela fazia a cena de Lesbos — pobre rapariga sem inversões e estetismos à Safo [31]... A ceia acabou em espetáculo, e acabaria com todos os espectadores, se algumas mulheres com ciúmes dos seus senhores — ah! como elas são idiotas! — não os tivessem levado. Elsa às duas e meia fez erguer-se a Elisa, calada e misteriosamente fria. “Vão tomar morfina? interrogou um dos assistentes, cuidado, hein?” Elsa deu de ombros, sorriu, saiu arrastando a outra. E a desaparição foi teatral ainda. Os olhos verdes da Elsa bistrados [32], a sua cabeleira desnastra [33], agarrando com um desespero de bacante a pastosidade oleosa e alourada da miserável que a queria.

Que horror!

— A coitadinha aturdia-se. É o processo habitual. Para mostrar a sua livre vontade caía na extravagância, agarrava o tipo que a repugnava, para mergulhar inteiramente no horror. Estive quase a acreditar que tivesse recebido alguma lembrança dos parentes, e imaginei um instante a cena sinistramente atroz do quarto em que enfim, como uma larva diabólica, o polvo louro da roda iria arrancar um pouco de vida àquela linda criatura ardente, ainda com uns restos de alma de mulher... Nunca porém pensei no fim súbito.

Pelas cinco horas da manhã, a pensão acordava a uns gemidos roucos, que vinham do quarto de Elsa. Eram bem gritos estertorados de socorro. As mulheres desceram em fralda, os criados ergueram-se com o sorriso cínico habituado àquelas madru­gadas agitadas de ataques e de delírios histéricos. A porta do quarto estava fechada. Bateram, bateram muito, enquanto lá dentro o som rouco rouquejava. Foi preciso arrombar a porta. E a cena fez recuar no primeiro momento a tropa do alcouce. Como luz havia apenas a lamparina numa redoma rosa. O quarto. cheio de sombra, mos­trava, em cima das poltronas, as sedas e os dessous [34] de renda da Elsa. Um frasco de éter aberto, empestava o ambiente. A Elisa, o corpo da Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d’Aragon, as pernas em compasso, a face contraída, ainda sentada agarrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. Era Elisa que rouquejava. Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loura e por fim sem fim até a morte, enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabelos, machucava-lhe o rosto — aquele horror. Elsa entrara no nada debatendo-se, vítima de um suplício diabólico, mas no último espasmo as suas mãos agarram a assassina. Quando esta afinal satisfeita quis erguer-se, sentiu-se presa pelos cabelos, tentou lutar, viu que a pobre era cadáver. E passou-se então para o monstro o momento do indizível terror, o momento em que se vê para sempre o mundo perdido porque ficou imóvel rouquejando, de joelhos, a cabeça no regaço do cadáver, que mantinha nas mãos cerradas a massa dos seus cabelos de ouro. Os dedos de resto pareciam de aço. Uma das mulheres recorreu à tesoura para despegar a cabeça de Elisa das mãos do cadáver. Quando o corpo tombou no leito com o punhado da cabeleira nas mãos, o bando estremunhado viu surgir a face de Elisa, tão decomposta, tão velha, que parecia outra, como que aparvalhada.

Houve um silêncio. O criado servia frutas geladas, esplêndidas peras de Espanha e uvas das regiões vinhateiras da Borgonha, grandes uvas negras. O barão trincou de uma pêra.

— Foi uma complicação para afastar a polícia e impedir notícias nos jornais que desmoralizariam a casa. Elisa seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando. A Elsa devia ter sido enterrada hoje á tarde. Estive lá a ver o cadáver. Tinha ainda nas mãos cerradas fios de cabelos louros, como se quisesse arrancar para o túmulo a prova desesperada da sua morte horrível.

E mordeu com apetite a pera. No salão de cima uma valsa lenta, chorada pelos violinos, enlanguescia o ar. Das mesas do terraço entre a iluminação bizantina das velas de capuchons coloridos subia o zumbido alegre feito de risos e de gorjeios de todas aquelas mulheres que o jantar alegrava.
______________________
Notas:
[1] Verde, esverdeado.
[2] Jogo de cartas de origem francesa, em que tomam parte um banqueiro e vários jogadores, ganhando o grupo que com duas ou mais cartas, perfizer o total de pontos mais próximo de nove. Bacará.
[3] Espécie de sofá ou canapé de origem persa, sem encosto ou braço.
[4] Maresia.
[5] Tênis de gramado. Em inglês no texto.
[6] Pessoa de vida dissoluta, boêmio.
[7] Michês. Diz-se de quem paga ou recebe por favores sexuais. Em francês no texto.
[8] Modalidade do bacará. Em francês no texto.
[9] Flerte. Em francês no texto.
[10] Aplicação ornamental de ouro em cristal, vidro ou metal, que recebeu o nome de seu criador, o industrial francês Charles Christofle (1808-1863).
[11] Tipo de dança popular provençal.
[12] Protetor de velas de cera, que as impede de serem apagadas pelo vento. Em francês no texto.
[13] Mulheres de vida alegre. Em francês no texto.
[14] Companheira de Péricles, governante de Atenas durante o século V AC., o período áureo do cultura clássica.
[15] Parigot, argot e langue verte são denominações da gíria parisiense do baixo mundo.
[16] Rua larga e arborizada, símbolo da modernidade de Paris após a reforma urbana de Haussmans. No Rio de Janeiro, o prefeito Pereira Passos realizou reforma semelhante entre 1904 e 1909, inaugurando a Avenida Central ( Rio Branco), um típico boulevard carioca. Em francês no texto.
[17] De carbúnculo, ou rubi. Da cor vermelha.
[18] Relativo à cidade grega de Tanagra, célebre por suas esculturas de linda mulheres esbeltas.
[19] Empresário. Em inglês no texto.
[20] Mulher que dispensa os artifícios da maquiagem. Em francês no texto.
[21] Sopa de frutos do mar. Em francês no texto.
[22] Marca nobre de champanhe. Em francês no texto.
[23] Tipo de homem elegante e refinado, com senso de humor debochado e iconoclasta, típico do período entre 1870 e 1918 (Bele-époque). Oscar Wilde e João do Rio foram típicos dândis. Em inglês no texto.
[24] Dinheiro.
[25] Indivíduo vestido com apuro exagerado. Janota. Novo-rico.
[26] Homossexualismo.
[27] Exagêro.
[28] Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista e filósofo sueco, que também estudou o mundo sobrenatural. Suas ideias influenciaram muito o Romantismo. Uma seita de seus seguidores foi estudada por João Rio in As religiões no Rio (1904).
[29] Enxaqueca. Em francês no texto.
[30] Fantasma. Espírito malfazejo que vaga entre os vivos para fazer o mal.
[31] Poetisa da Grécia clássica, que instituiu na ilha de Lesbos uma escola apenas para moças. Originou-se daí a denominação de lesbianismo ou safismo para o homossexualismo feminino.
[32] Olhos bistrados: com olheiras.
[33] Destrançada.
[34] Roupas de baixo. Em francês no texto.


Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 65


Francisca Júlia (Anacreonte)


Em Téos, na Grécia antiga, havia um poeta que se chamava Anacreonte.

Era velho, tinha os cabelos inteiramente brancos e as barbas aneladas e longas, que lhe cobriam o peito e lhe davam um aspecto simpático e venerando.

Era o homem mais feliz que havia. Como todos o amavam e o distinguiam com uma admiração sem limites, nada lhe faltava.

Sua habitação ficava à beira do mar, cujas ondas, na enchente, vinham até à sua porta, quebrando-se em espumas alvas.

Pela manhã, mal a aurora tinha nascido, as camponesas de Téos vinham em grupo trazer ao poeta o sustento do dia. Uma trazia um cântaro de barro cheio de leite gordo, outra um púcaro de saboroso vinho espumante e frutas de todas as qualidades; outra ainda um vaso de água pura para as abluções matinais do poeta. Depois untavam-lhe as barbas e cabelos com óleos aromáticos, perfumavam-lhe os pés com mirra sândalo, e esperavam, sentadas no chão, os agradecimentos do velho.

Anacreonte ficava em pé, majestoso na sua inspiração poética, e, com largos gestos e voz grave, ia cantando as odes que tinha composto durante a noite, fazendo-se acompanhar a uma lira de prata, cujas cordas desferiam os mais melodiosos acordes.

As raparigas sabiam em seguida e atravessavam o campo em direção às suas casas, cantando as odes do poeta com suas vozes juvenis. Os camponeses, que não podiam ir fazer ao velho a visita matinal, porque os impedia o trabalho da lavoura, a criação das ovelhas e o fabrico do vinho, contentavam-se com vir ao encontro das moças, para ouvir dos seus lábios as últimas composições de Anacreonte.

Assim vivia ele, absolutamente feliz, querido e admirado por todos, preocupando-se apenas com seus .versos, indiferente a outros afazeres.

Policrato, porém, tirano de Samos, curioso por conhecer o poeta, ouvir-lhe dos próprios lábios a poesia das suas odes, mandou chamá-lo.

Anacreonte, uma bela manhã, sobraçando a sua lira de prata encordoada de novo, com sua túnica de púrpura preza aos ombros, uma coroa de pâmpanos e heras em torno afronte, embarcou numa galera, e partiu mar fora.

Policrato tinha ordenado que se preparasse um banquete real para festejar-lhe a recepção. Anacreonte apareceu.

Todos os que estavam ao redor da mesa, onde se ostentavam as mais extraordinárias iguarias, levantaram-se com as taças transbordantes e gritaram:

— Evohé! — que era o grito de satisfação dos gregos.

Anacreonte, então, em pé no meio dos convivas, admirável na sua roupagem de púrpura, empunhou o instrumento sonoro, arrancou um acorde e começou a entoar um hino de louvor a Policrato. Seus versos eram tão belos, tão inspirados, sua voz tão clara, que todos estavam suspensos de admiração, embriagados de poesia. Policrato aproximou-se do poeta, curvou-se em sinal de admiração ao seu gênio, deu-lhe uma bolsa cheia de moedas de ouro, e disse-lhe:

— Toma esta bolsa; é tua; contém uma fortuna. Quero que sejas o homem mais poderoso de Samos. Amanhã cantar-me-ás uma ode igual a essa.

Anacreonte agradeceu. À noite, quando se retirou para os seus aposentos, começou a pensar na fortuna que lhe pertencia, nas terras que havia de comprar à beira mar, plantadas de vinha, nas ovelhas brancas pastando pelos outeiros, no cortejo de escravos que havia de ter, na felicidade, enfim, que lhe dariam aquelas pesadas moedas de ouro. E não pode dormir, tal era a satisfação de que se achava possuído.

Pela manhã tinha um aspecto doentio, os olhos amortecidos.

Procurou Policrato e disse:

— Senhor! aqui está a vossa bolsa e o ouro que ela contém. Não a quero. Desde que a poesia bafejou minh'alma, ainda se não passou uma noite em que não compusesse uma ode; ontem, porém, a riqueza que me destes preocupou tanto minha imaginação, que não consegui dormir nem compor a ode que me pedistes. Adeus. Quero partir para Téos, pobre como vim, porém feliz na minha pobreza. Para que servem fortunas? Nada me falta: tenho o bom leite, o excelente vinho, a água fresca para as minhas abluções e a amizade dos meus vizinhos. Esta é a minha riqueza. Adeus.

Fonte:
O Poeteiro (Iba Mendes)

Caldeirão Poético XXXI


A. J. PEREIRA DA SILVA
(1876-1944)

INCOGNITUS


Anda comigo uma tristeza estranha...
Tristeza? Não. Saudade inconsequente
De um país que uma luz de lua doente,
Como os minguantes outoniços, banha,

Essa ideia imanente me acompanha
De tal maneira o espírito vidente,
Que já sofro da falta desse ambiente
De clima luminoso e ar de montanha.

Vivi alhures? Guardo, impercebida,
Como na calma azul de um céu profundo,
A ingênita memória de outra vida?

Quem sabe? Um senso incógnito me diz
Que de outra forma viva e noutro Mundo
Pode alguém ser feliz... e eu fui feliz.

BONFIM SOBRINHO
(1875-1900)

NOIVADO FÚNEBRE

Negra tristeza meu semblante encova,
Ó noiva amada, lírio meu fanado!
Porque não vamos na mudez da cova
Em círios celebrar nosso noivado?

Nos sete palmos desse leito amado,
Ao frio bom de uma volúpia nova,
Há de embalar o nosso amor gelado
O coveiro a cantar magoada trova.

E os nossos corpos gélidos, inermes,
Em demorados e famintos beijos,
Serão depois roídos pelos vermes...

E do leito final que nos encerra
Em plantas brotarão nossos desejos,
E o nosso amor, em flores, sobre a terra.

FRANCISCA JÚLIA DA SILVA
(1874-1920)

A FLORISTA


Suspensa ao braço a grávida corbelha,
Segue a passo, tranquila... O sol faísca...
Os seus carmíneos lábios de mourisca
Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha.

Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha
Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca,
O pó do chão, pertinho dela, cisca,
Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha...

Aos ouvidos lhe soa um rumor brando
De folhas... Pouco a pouco, um leve sono
Lhe vai as grandes pálpebras cerrando...

Cai-lhe de um pé o rústico tamanco...
E assim descalça, mostra, em abandono,
O vultinho de um pé macio e branco.

HENRIQUE CASTRICIANO
(1874-1947)

A MISSA DO MAR


Eis-nos sós, companheiro! Amargurado Oceano,
Deixa-me descansar ao pé de ti, meu velho...
Depois de ter ouvido o Ritual Romano,
Quero aprender de cor o teu santo Evangelho.

Abre o verde Missal! Como um Padre, de joelho,
Põe nos ombros azuis o manto soberano;
E do Sol preso ao Céu, de seu disco vermelho,
Faze uma hóstia de luz, faze um símbolo humano.

Sobe o dia no Azul. Tontas de amor, no Espaço,
Gaivotas vão subindo... Ergue-se, ao longe, o braço
De um monte secular, entre nimbos risonhos...

E, ao ver tudo ascendendo, eu procuro o infinito
De tua Alma sem fim, para esconder, num grito,
Minhas queixas! meus ais! minhas penas! meus sonhos!

JONAS DA SILVA
(1880-1947)

Ó LARANJAL SEM FLOR!


Ó laranjal sem flor, ó limeira sem lima,
De braços hirtos como os de um Crucificado,
Talvez S. Sebastião, ao cumprir o seu fado,
Contra vós atirasse a maldição do clima.

Folha a folha, o tufão foi despindo a alta cima
Onde outrora cantava o sabiá namorado;
Hoje apenas lembrais o imortal torturado
Ou um mártir da Ilusão no Calvário da rima.

Como somos irmãos nesta vida em que vamos!
Voltarão pelo inverno os rebentos de outrora,
Os sabiás voltarão a cantar sobre os ramos.

E esta alma encontrará novamente a que estima?
E esta alma encontrará novamente a que adora?
Ó laranjal sem flor, ó limeira sem lima...

JOSÉ ALBANO
(1882-1923)

SONETO

Bom Jesus, amador das almas puras,
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noite e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino.

E, terminado este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, Pastor Divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho.

LUÍS GUIMARÃES FILHO
(1878-1940)

VÊNUS


Lembro-me ainda dessa esbelta e flava
Carícia dos teus braços amorosos...
Por mais que evite o encanto, os impiedosos
Perseguem sempre a minha carne escrava!

Eram suaves, cálidos, cheirosos,
Como doces damascos! Eu beijava
Aquela morna pele que tentava
O paladar! Oh! braços deliciosos,

Como esquecer as núpcias perturbantes,
Os longos desalentos delirantes
Que sem misericórdia vós me dáveis?

Ah! torna, Vênus, para o sacro Elêusis!
Fui condenado à morte pelos deuses,
E quero-a nos teus braços implacáveis

MENDES MARTINS
(1876-1915)

VELHINHOS

E vai fugindo o tempo. E, aos poucos, vem chegando,
Ai, vem chegando a idade em que eu serei velhinho,
Sopra o vento lá fora, as árvores curvando
E, em busca de outro lar, deserta o passarinho

- Ai, que frio! - eu murmuro. E, cheia de carinho,
Te chegas para mim, as minhas mãos tomando.
Ai, que frio, meu Deus! - torno a dizer baixinho,
De teu colo moreno as rugas contemplando.

E a lamparina estala e, trêmula, esmorece...
Lá fora, o temporal, bramindo, recrudesce
E solta, finalmente, os últimos arrancos...

E à luz crepuscular, que te sombreia os traços,
Tenho assomos de moço: aperto-te em meus braços
E beijo, apaixonado... os teus cabelos brancos.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Mensagem na garrafa – 1 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Victor Hugo
França, 1802 – 1885

DESEJO

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.

E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconsequentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra ,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.

Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar.

Monteiro Lobato (Os Perturbadores do Silêncio)


O silêncio em Oblivion é como o frio nas regiões árticas: uma permanente. Não se compreende a segunda sem o primeiro. Ele a completa; ela o define.

Durante a noite aquele silêncio faz-se inteiriço como a escuridão. Por mais que se apurem, os ouvidos nada ouvem a não ser um vago e remoto ressoar, que lembra miríade de grilos microscópicos em imperceptível surdina chiadeira.

Durante o dia, porém, a integridade do silêncio em Oblivion sofre lesões. Uns tantos rumores, sempre os mesmos e periodicamente repetidos, constelam-no de quebras de continuidade. O velho inimigo do Silêncio, o Som, a espaços berra dentro dele gritos sediciosos, tal o relâmpago que momentaneamente destrói o império das trevas. Mas o Silêncio logo subjuga e absorve o intruso.

À frente desse grupo de irreverências está o sino da igreja. Repicando missa aos domingos ou chorando a defunto, alegre ou fúnebre, é o Sino o mais violento perturbador do Silêncio em Oblivion.

Outra, é a capina trimensal das ruas: o raspar das enxadas perturba o silêncio com a insistência do coaxar do sapo-ferreiro.

Outra, é o fim das aulas. Quando soam quatro horas o portão do Grupo Escolar borbota um fluxo de meninos rompidos em algazarra, a berrar, a cantar — e adeus silêncio.

Outra, e esta deveras notável, é o carrinho da Câmara. O carrinho da Câmara constitui o veículo mais importante de Oblivion — que além dele só conta mais um, o Zé Burro, sólido preto-mina empregado no transporte das coisas pesadas. E é o principal por várias razões ponderosas, entre as quais a de ser ele todo de ferro, ao passo que o outro é de carne. Verdade que o carrinho só tem uma roda e o preto tem duas pernas. Mas como a roda do carrinho é bem centrada e as pernas do Zé são cambaias, aquela superioridade desaparece e o carrinho instala-se de vez no primado.

Mas esta questão de primazias não vem ao caso. O caso é a perturbação do Silêncio determinada pelo carrinho, fato que se dá da seguinte maneira. Como o carrinho tem pouco serviço e passa a maior parte do tempo a cochilar no depósito, a ferrugem, insidiosa inimiga da inação, sub-repticiamente vem pintar de vermelho o eixo das rodas, de modo que, mal sai à rua o veículo, o pobrezinho do eixo grita como um gotoso, geme, range, ringe — perturbando lamentavelmente o Silêncio de Oblivion.

Quando Isaac Factótum — um mulato retaco, grosso e curto como certas taturanas — recebe ordem para ir a tal parte formicidar um olheiro de saúvas, o rolete de homem mete as garrafas de formicida, a enxada e o fósforo dentro do carrinho e, imagem da Compenetração, símbolo da Convicção Inabalável, parte nhem-nhim, nhem-nhim, através das vias principais da cidade, em busca do mal aventurado olheiro.

De sobrecenho carregado, Isaac leva o olhar atentamente fito à frente — para “evitar algum desastre”. Nas ruas desertas apenas um ou outro cachorrinho se estira ao sol. Isaac, a vinte passos, divisando o vulto de um, para, ergue a mão em viseira, firma os olhos.

— Diabo! Amode que é o Joli do Pedro Surdo? —, e com uma pedra o espanta: — Sai, porqueira! Não ouve o carro? Não tem medo de morrê masgaiado?

E, convencido de que salvou a vida a um cristão, Isaac-Garrafa-de-Licor-de-Cacau retoma os varais e lá segue por Oblivion afora, nhem-nhim, nhemnhim, com solenidade de dalai-lama do Tibete.

Às janelas acode gente. Crianças repimpadas no peitoril gritam para dentro:

— Mamãe, o carrinho “evem”* vindo!

Muita moça nervosa deixa a costura e tapa os ouvidos:

— Que inferneira! Não se pode com essa barulhada!

Não obstante, o terrível veículo passa, indiferente à admiração como à censura, garboso, todo de ferro e ferrugem, nhem-nhim, nhem-nhim, empurrado pela dignidade infinita de Isaac-Toco-de-Vela.

E enquanto o carrinho da Câmara não torna ao depósito municipal, o Silêncio não reentra na posse dos seus domínios.
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Glossário:
* Evem – Expressão correspondente às locuções verbais lá vem, ali vem, já vem. Muito utilizada no interior de Minas Gerais.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.