quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Ialmar Pio Tressino Schneider (Melhor Idade)


Para voltar a escrever
Meus versos de campo e mato
Em minha mente retrato
Histórias do meu rincão,
Onde ao redor do fogão
Ouvia-as em noites frias,
Qual se fossem elegias
De nobre Revolução!

Nascido lá em Sertão,
Distrito de Passo Fundo,
Saí para rolar mundo,
Mas nunca tive coerência,
Pois não deixei a querência
E fui levando meus dias,
Curtindo minhas poesias,
Motivo desta existência.

É preciso ter paciência
E sempre confiar em Deus,
Porque nos desígnios Seus,
Só nosso Bem Ele quer;
Vamos cumprir o mister
De atingir os ideais,
Sem esmorecer jamais,
Para o que der e vier.

Nem esqueçamos sequer
De Sua bênção pedir,
Sabendo-se que hão de vir
Coisas boas pra o destino,
Pois nosso ser é divino
Nas Sagradas Escrituras;
Sejamos as criaturas
Sem cometer desatino.

E para entoar este hino
Em louvor ao Pai Supremo,
Aqui me encontro e não temo
Alguma contrariedade,
Pois me acompanha a saudade
De tudo quanto já fiz,
E espero viver feliz,
Hoje, na Melhor Idade...

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Arthur de Azevedo (Paulino e Roberto)


O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.

Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, – possuir um escrínio de magníficas joias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – frequentar bailes e espetáculos, – tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho.

O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou sem dote.

Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:

– Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto!

– Oh! Vespasiano! não digas isso!…

– Digo, sim!, senhor! digo e redigo… – Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!.

– Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.

– Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?

– Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

– Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!

– Exageras.

Pode ser; mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.

* * *

Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida.

Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro.

Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.

Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

* * *

Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.

– Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes… – Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.

Escusado é dizer que mudou de nome.

Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o "encabulasse", arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio.

* * *

Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide.

Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora.

O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.

Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio Apa; ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto.

Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: – Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! -; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.

– Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.

* * *

Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem pôr.

Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição. 

Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e disse-lhe:

– Eu logo vi que você me dizia que não!

Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

– Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!

Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:

– Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!

– Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim!

Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.

(Correio da Manha; 5 de abril de 1903)

Fonte:
Arthur Azevedo. Contos Vários.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVII


PRELÚDIO DA GOTA D' ÁGUA

Cheio da tua ausência me angustio
a cada hora que passa... a cada instante...
- pelo meu pensamento, como um fio,
és uma gota d'água, tremulante...

 Uma gota suspensa e cintilante,
 límpida e imóvel como um desafio...
 Tua ausência, - é a presença triunfante
 daquela gota que ficou no fio. . .

 As outras todas, céleres, pingaram,
 e caíram na terra onde secaram,
 só tu ficaste, última gota, assim

 como uma estrela sem ter firmamento,
 suspensa ao fio do meu pensamento
 e a brilhar, sem cair... dentro de mim...

PROCURA

Vou seguindo meu caminho
a procurar-me.

Estarei na estrela?  Na vaga do mar? 
Atrás da montanha?  Na água que corre
estarei?

Na rua, no avião, no pássaro livre
no gesto do galho, na gota de chuva,
na rosa vermelha, no canto da criança
estarei?

Difícil é achar-me
disperso me encontro
na face das coisas
que chegam, que passam

Um olho no rio, um pé no caminho,
o sangue na aurora, as mãos pelo mar,
quem sabe onde estou?

Talvez passe junto a mim mesmo, quem sabe? 
Me olho nos olhos, me toco nas mãos,
me falo e respondo
não me reconheço.

Vou seguindo meu caminho
a procurar-me.

PROFECIA

Enamorada de ti mesma,
- no espelho das águas que refletem tua beleza,-
enamorada da vida,
tu te ofereces ousadamente e te debruças distraída
sobre a correnteza...

Um dia, tuas ramagens ferirão o espelho das águas
e tudo se nublará,
teu corpo sem firmeza tombará finalmente,
e a correnteza há de te arrebatar
indiferente
e má...

Só então, quando te fores arrastada, em desvario,
vendo a terra fugir, sem poderes voltar,
sentirás como é fria a água turva do rio
e inquietante a ameaça, o mistério do mar!

QUE IMPORTA SE CHOVE?

Que importa se chove?  Eu não vejo a tristeza do céu
eu vejo é a alegria da terra.

Que importa se a chuva nos espia curiosa
com seus olhos nublados, nas janelas. . .

Eu não vejo a tristeza do céu, eu sinto é a alegria da terra
que exulta no teu corpo,
eu vejo é o Sol que brilha nesta noite de chuva
em teu olhar ...

Eu não ouço a música da chuva na noite
nem o vento a bater nas arestas das casas
- ouço é a alegria das folhagens inquietas
batendo as asas ...

Que importa se chove, e se há vento, e se há frio,
- se aqui no nosso leito há carinho e calor?

Minha alma não quer sentir a chuva,
nem olhar com tristeza os que passam na rua
ao relento,
porque minha alma se comove.

Neste momento
minha alma quer ficar é juntinho da tua...
- e ... que importa se chove?

RAZÕES
    
Pensarás que é mentira e é no entanto verdade
- mas me afasto de ti, propositadamente,
pelo estranho prazer de sentir que a saudade
ainda torna maior o coração da gente...

Parto! Bem sei que parto sem necessidade!
Quero ver os teus olhos turvos, de repente,
embora não compreenda essa felicidade
que assim te faz sofrer comigo inutilmente!

Quero ouvir-te na hora da despedida
que eu volte bem depressa para a tua vida,
- quero no último beijo um soluço interior...

Que enquanto ficas só, e enquanto vou sozinho,
sabemos que a saudade vai tecendo o ninho
que há de aquecer na volta o nosso eterno amor!

RECEIO
    
Receio  de que o anos passem, - e eu sozinho
me deixe para trás, e reconheça então
que fiquei sem ninguém a meio do caminho
e meu sonho de glória esboroou-se no chão

Receio de ser tarde,  e quando erguer a mão
a flor cair... cair a flor... ficar o espinho...
Receio de que seja apenas ilusão
a ilusão que ideei a afago com carinho...

Receio de que tudo afinal seja nada,
- e a noite, a grande noite inesperada e escura
me atropele o percurso em meio da jornada...

Receio de que um grito estrangule o meu hino,
- e eu tenha que parar, na infinita amargura
de não ter completado o meu próprio destino!

ROSA DE VIDRO

Rosa de Vidro
límpida rosa
mistério puro
imagem só.
Quem te plantou?
Quem te regou?
Na luz flutuas
na sombra és luz!
Rosa de vidro
do pensamento.

Tão transparentes
são tuas pétalas
como o ar de ouro
na alta montanha.
Súbita imagem
de escuro abismo,
no alto da rocha
cheia de sol
toca-te o vento
oscilas, cantas.

Rosa de Vidro
doce mistério
da fixa ideia,
estrela mágica
de cinco pétalas
que os cinco dedos
querem tocar.

Rosa de Vidro
Minha obsessão,
que no mistério
da criação
brotou, brotou.
Louco alpinista
quero alcançar-te,
raro Edelweíss
quem sabe, quando?

Quem sabe, a queda
antes de ver-te
e de tocar-te
Rosa de Vidro.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. 
SP: Ed. Theor, 1965.

David Martins (O Alcaide do Castelo de Faria)


Convido-o, caro leitor, a empreender uma viagem no tempo. Assim, imagine-se transportado ao ano de 1373 da era cristã. A paisagem que o rodeia é aquela que ainda hoje é típica do Norte de Portugal, serranias atrás de serranias, ora áridas e pedregosas, ora vastidões de prados e florestas a perder de vista na lonjura do horizonte.

No cimo de um ermo monte, ergue-se uma fortaleza de grossas e altas muralhas de escuro granito encimadas de torres e ameias. Não lhe faltam alçapões, postigos, a ponte levadiça e o fosso circundante.

Você encontra-se diante do Castelo de Faria, uma construção fortificada muito antiga.  Às pedras dos seus robustos muros não faltam recordações de glórias passadas.

O Reino de Portugal é governado pelo rei Dom Fernando, um homem cujo caráter não prima nem pelo cumprimento das promessas feitas nem pelos compromissos assumidos. Foi, assim, que em vez de se casar com a filha do rei de Castela conforme tinha sido acordado entre os dois soberanos, Dom Fernando decidiu casar com Leonor Teles, uma mulher muito bela, mas casada, que se tornara sua amante.

Com o pretexto de vingar tão grave e ofensiva afronta pela quebra do contrato, o exército do rei de Castela invade o território de Portugal, atravessando a fronteira em locais distintos. Um desses batalhões castelhanos composto por muitos soldados, uns a pé, outros a cavalo, entra pela fronteira Norte. À sua passagem, os soldados vão incendiando, saqueando, violando e matando tudo e todos os que se deparam no seu caminho, deixando atrás de si um rasto de destruição e sofrimento nos aldeões e camponeses que não têm culpa das desavenças contratuais entre os dois reis vizinhos.

Os exércitos particulares comandados pelos senhores feudais daquelas terras, súditos do rei de Portugal, não são suficientes para fazerem frente aos espanhóis, a quem nada nem ninguém consegue deter o avanço por terras de Portugal. Num destes confrontos participou o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves, que caiu prisioneiro das tropas castelhanas.

Na ausência do alcaide, o castelo é governado pelo seu filho. O pai teme que, sabendo da sua desgraça, o filho ofereça o castelo ao inimigo para resgatar a liberdade do seu progenitor. Este receio fez com que o velho alcaide se lembrasse de montar um ardil para impedir que uma tal situação viesse a acontecer: Nuno Gonçalves pede ao comandante das tropas castelhanas que o conduza até às muralhas do seu castelo para que ele fale ao filho e, assim, possa convencê-lo a entregar a fortificação sem derramamento de sangue para nenhum dos lados.

Diante dos seus olhos, caro leitor, desfila agora um numeroso grupo de homens que acompanha o velho alcaide. Chegam às cercanias do castelo e formam como que um cordão humano que rodeia completamente a construção. O exército vitorioso prepara-se para tomar posse do castelo, conforme lhe prometeu o prisioneiro.

Agora você usa as roupas de lã, iguais às de todos os habitantes da aldeia de Faria. São vestimentas grosseiras de gente que apenas vive daquilo que a terra lhes dá. De facto, neste momento, você é um deles. Vê brilhar ao longe, tal como os seus vizinhos, o metal das armaduras dos soldados inimigos, refulgentes sob a luz intensa do Sol, e as suas coloridas bandeiras que esvoaçam ao vento. Você, juntamente com todos os seus companheiros, homens, mulheres e crianças, está assustado e juntamente com eles, todos abandonam os campos e as vossas casas e correm a refugiar-se dentro das muralhas, num terreiro onde toscas choupanas de teto de colmo se apoiam umas nas outras.  Todos pensam que aí vão encontram proteção contra a violência e a brutalidade que sempre acomete os homens quando lhes põem uma arma nas mãos e lhes dão impunidade para cometerem toda a espécie de atrocidades.

Sobre as muralhas, os sitiados desenvolvem intensa atividade. Os homens que estão de atalaia nas torres vigiam atentamente os movimentos do inimigo, enquanto outros correm ao longo das ameias, colocando-se em posições estratégicas de defesa.

Um grupo de castelhanos armados aproxima-se das muralhas levando consigo o velho alcaide. Os besteiros do castelo, escondidos por detrás das ameias, retesam as bestas e apontam-nas na direção da comitiva. Os homens que acionam as armas de arremesso e outros engenhos bélicos preparam-se para cumprir a sua tarefa. 

Do grupo de combatentes castelhanos, destacou-se um arauto que se aproximou das muralhas exteriores.  Nas ameias as bestas inclinaram-se para o chão e ouviu-se o ranger das máquinas de lançar projéteis. Fora isto, o silêncio é profundo.  Por fim, ouve-se, ao longe, a voz grossa e altissonante do arauto que chama o filho de Nuno Gonçalves, bradando-lhe que saia do castelo e vá até junto de seu pai que quer falar-lhe.

O filho do velho alcaide, de nome Gonçalo Nunes, aparece no alto da muralha exterior e responde-lhe:

- Diz a meu pai que eu o espero aqui e que Nossa Senhora o proteja.

O arauto regressa para junto dos seus superiores e, após alguma agitação entre eles, o grupo aproxima-se da muralha ladeando o alcaide-mor que fala ao filho:

- Sabes tu, meu filho, de quem é este castelo?

- Sei que é de El Rei de Portugal, que o confiou à vossa guarda.

- Então se sabes, com Judas o traidor sejas tu sepultado no inferno se os castelhanos entrarem nele sem passar primeiro por cima do teu cadáver.

Compreendendo o sentido do diálogo entre os dois, logo ali o comandante castelhano ordena que matem o velho alcaide, que caiu trespassado por muitas espadas.

- Defende-te, alcaide! - tem ainda forças para gritar ao filho o pai moribundo.

O novo alcaide corre como um louco ao longo das muralhas, gritando por vingança.

Do alto das muralhas chovem flechas sobre os soldados castelhanos, que atingem mortalmente muitos deles.

O batalhão castelhano reúne todas as suas forças e ataca o castelo. As casas de colmo onde os mais desprotegidos, você e os seus vizinhos da aldeia se abrigaram, começaram a arder, resultado das flechas incendiadas desferidas do exterior do castelo. A confusão é enorme. Por todo o lado se ouvem os gritos das mulheres, o choro das crianças, as imprecações dos velhos. Um homem em chamas sai a correr, desvairado, dos abrigos de colmo e rebola-se no chão a gritar por socorro. Despejam-lhe baldes de água em cima, mas tudo o que fica é um corpo enegrecido, a estrebuchar, agonizante. Os gritos de terror dos feridos elevam-se no ar juntamente com os rolos de fumo do incêndio e o forte e repugnante cheiro a carne carbonizada.

O jovem alcaide não consegue esquecer a terrível visão do seu pai, morto a golpes de sabre, nem as últimas palavras que ele lhe gritou antes de entregar a alma ao Criador: - “Defende-te, alcaide!”

O cerco dura vários dias. A carnificina de ambos os lados das muralhas foi atroz, o sofrimento é indizível. Tanta dor e destruição que razão alguma justifica. Você e todos dentro das muralhas deambulam exaustos, esfomeados e com sede, revoltados por terem sido os peões no tabuleiro de xadrez onde se jogaram questões que não vos dizem respeito. O orgulhoso comandante das tropas invasoras acaba por ver a sua soberba abater-se contra os muros do castelo de Faria, quando o desalento atinge os poucos homens que lhe restam. 

Você e os seus companheiros de infortúnio regressam à aldeia de Faria onde encontram as vossas casas assaltadas, o gado tresmalhado pelos campos ou roubado para alimentar os sitiantes. O desânimo é grande, mas a vida tem que continuar e está tudo para refazer quase a partir do nada.

Passados dias, o jovem alcaide recebe um mensageiro do rei que muito o louva pela sua tenacidade e feitos guerreiros na defesa do castelo. Sensível e impressionável, ele não consegue esquecer as imagens horrorosas, dignas do Inferno, que durante dias presenciou. Troca as vestes de cavaleiro pelas de monge, troca o mundo conturbado regido pelas leis dos homens pela paz do convento e da oração.

Terminou, caro leitor, a sua viagem no tempo. Você está de regresso ao presente. Do sofrimento e da glória deste acontecimento não ficou para a posteridade uma pedra que os testemunhe, apenas sobrevivem ainda na memória dos historiadores.

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

David Martins (O Sacristão e o Diabo)


Era uma vez um sacristão que, todas as noites, se dirigia ao altar da sua igreja e acendia velas diante das imagens dos santos para que as trevas não invadissem o local e as santas criaturas não deixassem de proteger o povo daquela vila.

Um dia, lembrando-se de ter ouvido dizer que o Diabo está sempre atrás da porta, pensou: “Se for verdade que o Diabo está atrás das portas e que ele, quando quer, não é tão mau rapaz como dizem, então deixa-me cá pôr-lhe também uma vela, que às vezes... ainda pode ser que algum dia me ajude”.

Alumiou uma vela e foi colocá-la atrás da porta da igreja.

Findo o seu trabalho, dirigiu-se à estalagem onde jantou ovos cozidos. Quando ia pagar, pediram-lhe seis mil réis. Voltou-se, então, para o estalajadeiro e disse-lhe:

- Olhe lá, seis moedas por três ovos cozidos não é muito dinheiro?

- Não é, não! - respondeu o outro.

- Não é? Então, como é isso? - perguntou o sacristão.

- É que você não está a pagar só o preço dos ovos que comeu. Você tem também que pagar os pintos que de lá haviam de sair, haviam de crescer e tornar-se galinhas que valeriam bom dinheiro. E agora, vossemecê já está a perceber quanto valiam os ovos que comeu?

- Esta agora, não querem lá ver! Mas se eu só comi os ovos, não comi nem pintos, quanto mais galinhas... E logo seis moedas... eu tenho lá seis moedas!

- Ah, não tem? Vocemessê não quer pagar? Então amanhã vamos ao juiz, que ele logo lhe diz quem é que tem razão.

O sacristão estava estupefato, tanto mais que o estalajadeiro era considerado um homem rico, que na igreja oferecia esmolas para os pobres com gestos largos para que todo o povo o visse. E agora, estava a exigir-lhe, a ele, um pobre sacristão, que pagasse por três ovos o preço de um lauto banquete. Como é que aquilo podia estar a acontecer-lhe?

O sacristão não tinha aquele dinheiro todo, foi-se embora muito aflito. Dirigindo-se para casa, saiu-lhe ao caminho um homem muito alto, envolto numa capa preta. O sacristão recuou, assustado, mas o outro disse-lhe:

- Nada receies, não estou aqui para te fazer mal. Sei o que se passou na estalagem e quero dizer-te que não precisas de te preocupar. Confia em mim. Eu posso muito, acredita que posso. Amanhã vou ao tribunal defender-te. Espera lá por mim, que à hora marcada eu apareço.

O pobre homem ficou todo contente por ter aparecido alguém que iria intervir a seu favor. 

No dia seguinte, quando chegou ao tribunal já lá se encontravam o juiz e o estalajadeiro. Só faltava o homem que lhe tinha prometido que iria defendê-lo. Esperaram, esperaram, mas o outro continuava sem aparecer. O juiz estava a ficar muito aborrecido com aquela demora. Era quase hora da janta, e ele não conseguia pensar noutra coisa que não fosse a paparoca que o esperava lá em casa, até já lhe estava a crescer água na boca, e que aborrecimento, a defesa tardava em chegar... se é que viria! O juiz começava a ficar de muito mau-humor, que isto de uma pessoa sentir o estômago vazio era o diabo.

Eis que entra na sala o embuçado da véspera, dando grandes passadas.  À luz do dia, o homem ainda parecia maior. As tábuas do chão do tribunal vibravam e rangiam sob as sua botas pesadas.

Dirigindo-lhe a palavra, o juiz perguntou:

- Olhe lá, então isto é que são horas de você aparecer? O que é que você esteve a fazer até agora para chegar tão tarde?

- Estive a cozer favas para os meus criados semearem - respondeu o homenzarrão, com a sua voz de timbre profundo.

- Ah, sim? E onde é que já se viu favas cozidas a germinarem? - perguntou o juiz.

- Então, e onde é que já se viu ovos cozidos darem pintos? - perguntou o outro à laia de resposta.

O juiz não sabia o que responder. Olhou para o estalajadeiro que estava boquiaberto.

O homem da capa preta deu meia volta sobre os tacões das pesadas botas e saiu majestosamente.

Na rua, riu-se para o sacristão, deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe:

- Estás a ver? Eu quando quero também sou um rapaz simpático. E também ficaste a saber por mim que há gente que, embora pareça praticar o bem e querer ajudar os seus semelhantes, não perde uma oportunidade para os enganar e roubar. Neste mundo é preciso ter sempre os olhos bem abertos!

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 2


ASILO OU EXÍLIO?

Os chinelos não produzem som.
Nem o rádio tocando baixinho.
Mas a respiração se ouve do lado de fora.
E o sonho de ainda poder tocar as estrelas
talvez chegue até Deus.

DIMENSÃO DA NOITE

Teu olhar mudo.
Uma sombra toma-me pelo pulso.
Réstias de luz são meus vultos,
meu país é o crepúsculo.

Derrubo os muros,
mendiga de sol e ventos
que tragam lá do futuro
fontes pro pensamento...

Cai a noite, noite inquieta...
suspeita de mil anjos adormecidos
Nenhum portal, nenhuma seta.
Só um silêncio vivo.

E a última estrela no céu
é acendedor dos esquecidos.

ESSA PAZ DOLOROSA

Essa paz dolorosa,
perfume que no vento
traz espinhos
e não a rosa.

Essa paz cansada
de escolher um novo caminho
e sempre e de novo
errar a estrada.

Essa paz que nos vãos da noite
procura estrelas nos abismos
onde elas brilham tão fortes.
Sentinelas do deus destino.

Paz dolorosa e imensurável
e por demais amiga:
minha mesa, meu vinho,
meu pão.

Deixarei que nela
minha alma  refaça caminhos,
vertendo saudade nos linhos
aonde um dia pousei
o teu coração.

ROSAS BRANCAS

Rosas brancas do santuário,
são como cristais em manhã de inverno.
Refletem o encanto dos campanários,
e têm um rosto de sonho eterno.

Dou-te um buquê de brancas rosas
para que te adornem por toda a vida.
No teu puro linho, em verso e prosa,
borde-as sempre, pela alma florescidas.

Que pelos mares da vida, em sábio norte
naveguem teus poemas a mágicos horizontes
encantando ondinas, estrelas...imensidão.

São rosas brancas que o universo doa
esses teus versos em cujas asas voam
os mais belos sonhos do coração.

SOBRE OS LÍRIOS

Esta Tua mão se abaixa
e toca o lírio do campo.
Me dás o fruto dos Teus gestos
ao tecer meu sorriso
ao determinar meu pranto.

Teus pés caminham firmes.
Cidadela em torno d'alma,
de minha alma que vestistes
sob o contorno de Tua palma.

Tu te abaixas e persistes
a acolher lírios dos campos.
Neste meu tão breve céu
sou lírio asilado sob Teu manto.

TEMPO DE EXISTIR

Ainda recordo meu tempo de fé:
O movimento das horas
cinzelando meus sonhos.
As palavras sem travas,
as ossadas das lembranças
mergulhadas nas sombras.
Um canteiro de cânfora
perfumando as mãos.

Meu tempo de esperança
não era essa caricatura de estrelas
que borram o céu dos sentidos.
Era um rosto organizando a vida.
Era um culto velando o sono,
um oráculo em vestes amarelas,
fomentando o divino,
nas pequeninas coisas.
Uma semente, um sorriso,
uma palavra dispersa que nutria.

Medito sobre estes restos de caminhos
que me chegam,
sobre esse tempo que se estende
diante da colina:
um tempo inanimado em seu degredo,
mas que, vez ou outra, acende uma luz
a serviço dessa minha noite
de vigília eterna.

UM DIA…

Um dia o mundo abriu-se em uma página,
despontando o sol do sonho no papel.
E num impulso ao mar azul soltei a lágrima
pra que fosse navegando até teu céu.

Deste, à noite escura o que importava:
mil estrelas que foram portas concebidas
pra passagem de minh’alma que andava
perdida em si mesma, procurando a vida.

Mas o destino traçou seu rumo ao léu
e quis que o tempo falasse como um deus
pra levar o coração a canto algum...

Meus olhos, de cansados, ferem lágrimas
pra um destino ignorado e em brancas páginas
escrevem para ti ou talvez pra céu nenhum!

Fonte:
http://asasonoras.blogspot.com

Lenda Guarani (Erva Mate)

Há muitos e muitos anos, uma grande tribo guarani, por se nômade precisavam encontrar um outro lugar para morar onde a caça fosse farta e a terra fértil. Lentamente os índios foram deixando a aldeia onde haviam vivido tantos anos.

O povo migrou, mas sem que ninguém soubesse um velho índio que dormira tapado por couros ao acordar se viu só, sem seus descendentes para cuida-lo.

É obrigado a levantar-se e agarrando-se as árvores se põem a caminhar, nisto surge uma bela e jovem índia que se coloca atrás dele.

Ela chamava-se Yari e era sua filha mais nova, que não teve coragem de abandonar seu velho pai, que sozinho iria morrer.

Numa triste tarde de inverno, o velho entretido colhendo algumas frutas, assustou-se quando viu mexer-se uma folhagem próxima. Pensou que fosse uma onça, mas eis que surge um homem branco muito forte, de olhos cor do céu e vestido com roupas coloridas.

Aproximou-se e disse-lhe:

- Venho de muito longe e há dias ando sem parar. Estou cansado e queria repousar um pouco. Poderia arranjar-me uma rede e algo para comer?

- Sim, respondeu o velho índio, mesmo sabendo que sua comida era muito escassa.

Quando chegaram à sua cabana, ele apresentou ao visitante a sua filha.

Yari acendeu o fogo e preparou algo para o moço comer. O estranho comeu com muito apetite. O velho e a filha emprestaram a cabana e foram dormir em uma das outras abandonadas.

Ao amanhecer o velho índio encontrou o homem branco, pediu que ele descansasse um pouco mais. Porem, respondeu-lhe que tinha percebido a necessidade dos dois, ninguém o tinha ajudado e acolhido tanto então. 

Embrenhou-se em direção à floresta. Depois de algum tempo retornou com várias caças.

- Vocês merecem muito mais! explicou o homem – me darem o que não tinham e foram de grande bondade. Tupã está preocupado com a saúde de vocês e por isto me enviou. E em gratidão a tanta bondade lhe concedo um pedido.

O pobre velho queria um amigo que lhe fizesse companhia até o findar de seus dias, para que pudesse deixar de ser um fardo para sua doce e jovem filha. O estranho levou-lhe então até uma erva mais estranha ainda dizendo:

- Esta é a erva-mate. Plante-a e deixa que ela cresça e faça-a multiplicar-se. Deve arrancar-lhe as folhas, fervê-las e tomar como chá. Suas forças se renovarão e poderá voltar a caçar e fazer o que quiser. Sua filha poderá então retornar a sua tribo. 

Yari resolveu que de qualquer jeito jamais deixaria de fazer companhia ao pai. Pela sua dedicação e zelo, o enviado do tupã sorriu emocionado e disse:

- Por ser tão boa filha, a partir deste momento passará a ser conhecida como Caá-Yari, a deusa protetora dos ervais. Cuidará para que o mate jamais deixe de existir e fará com que os outros o conheçam e bebam a fim de serem fortes e felizes.

Logo depois o estranho partiu, mas deixou na cabeça de Yari uma grande dúvida: como poderia ela, vivendo afastada das demais tribos divulgar o uso da tal erva? E o tempo foi passando...

Em uma tribo não muito distante dali, os índios estavam contentes com a fartura das caçadas.  Organizaram uma grande festa para comemorar, não faltava comida e muita bebida. Mas a bebida demais levou dois jovens índios a começaram a discutir e brigar. Tratava-se de Piraúna e Jaguaretê.

No furor da briga Jaguaretê empunha um tacape e bate na cabeça de Piraúna, matando-o. Jaguaretê foi então detido e amarrado ao poste das torturas. Pelas leis da tribo, os parentes do morto deveriam executar o assassino. Trouxeram imediatamente o pai de Piraúna para que ordenasse a execução. Muito consciente que a tragédia só aconteceu por estarem os jovens sob o efeito da bebida, liberou o Jaguaretê, que foi então expulso da tribo e foi buscar sua sorte na floresta e quem sabe nos braços de Anhangá, espírito mau da mata. Conforme caminhava e o efeito do álcool era amenizado, mais se arrependia do mal que fizera.

Passadas muitas décadas, alguns índios daquela tribo, aventuravam-se na mata fechada em busca caça que já estava rara no local em que viviam. Entrando no sertão, no meio da floresta, encontraram uma cabana e foram aproximando-se com cuidado, mas mesmo assim foram pressentidos e saiu da cabana um homem muito forte e sorridente. Muito embora seus cabelos fossem totalmente brancos, sua fisionomia era de um jovem e ofereceu-lhes uma bebida desconhecida. Identificou-se então como sendo Jaguaretê, o índio expulso de sua tribo e que a bebida desconhecida era o mate.

Contou que quando foi abandonado a sua sorte, muito andou e quando estava apertado de cansaço e remorso, jogou-se ao chão e pediu para morrer. Acordou-se com a visão de uma índia de rara beleza que apiedando-se dele disse-lhe:

- Meu nome é Caá-Yari e sou a deusa dos ervais. Tenho pena de você, pois não matou por gosto e agora arrepende-se amargamente pelo que fez. Para suportar seu exílio, eis aqui uma bebida que o deixará forte e lhe esclarecerá as ideias. 

Levou-o até uma estranha planta e voltou a dizer:

- Esta é a erva-mate. Cultive-a e a faça multiplicar. Depois prepare uma infusão com suas folhas e beba o chá. Seu corpo permanecerá forte e sua mente clara por muitos anos. Não deixe de transmitir a quem encontrar o que aprendeu com o mate.

- Por tanto, jovens guerreiros, quero que leve alguns pés da erva-mate para a sua tribo e que nunca deixem de transmitir aos outros o que aprenderam.

Aqueles índios voltaram e contaram aos outros os que haviam ouvido. O mate foi plantado e multiplicou-se. Outras tribos apreenderam e foi desta forma que seu uso chegou até nós.

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