segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Amélia Luz (E o livro o que é?)


Este ensaio tem como objetivo mostrar a importância do livro ao longo dos anos, desde Gutenberg até a era da Informática como parceiros aliados à informação e à cultura universal.

Importante destacar o valor da iniciação à leitura para os pequeninos, mesmo em escolas públicas, pelo poder transformador que as letras têm aos olhos de uma criança que desenvolve seus estudos. Tesouro da Juventude, O Almanaque do Tico-Tico, Sítio do Picapau Amarelo e outros tantos mais que li quando criança ainda fazem parte de mim como mananciais de sabedoria e criatividade.

O livro exerce papel fundamental nos pilares da cultura brasileira. Sabemos da sua importância na construção histórica do país e, sem dúvida, ele é um instrumento especial na formação do cidadão consciente, socialmente produtivo, preparado para enfrentar e discutir a problemática do nosso tempo.

Questionamos frequentemente porque no Brasil lê-se tão pouco. Preocupamo-nos com os nossos jovens que, divorciados do hábito de uma boa leitura, poucas chances têm na construção do futuro. Os índices de aprovação nos vestibulares, lamentavelmente, nos mostram esta realidade. Entretanto, os livros influenciam, mexendo com coisas importantes. Nossas obras consagradas registram estudos da nossa sociedade. Análises e interpretações de fatos históricos definem um interesse em diagnosticar nossas mazelas, nosso subdesenvolvimento, suas causas e consequências.

Com o cultivo do conhecimento através da leitura, ampliam-se as fronteiras do saber, expande-se a capacidade da imaginação criadora e alarga-se o desenvolvimento do campo de informações, propiciando ao leitor condições para a formação de opiniões, posicionamentos que advêm da crítica, capaz de lhe dar suporte para conviver no mundo que instantaneamente se transforma em função da aldeia global em que vivemos. Ressaltamos a importância do diálogo autor x leitor em que o primeiro influi decisivamente no campo das ideias, atingindo a consequência do segundo.

Um livro fechado é um “pororoca represada”, é um rio de leito enxuto onde as águas não podem abruptamente jorrar e correr na força da natureza. O texto é instigador e na consciência humana funciona como ponto de partida, para que o cidadão cresça, se estabeleça e se faça construtor da própria história. Apontamos sempre a educação como base para ao futuro país, mas destacamos o livro como ferramenta básica para levar o nosso povo a sair do atraso cultural e alcançar melhores condições nos árduos caminhos que o levam a uma sociedade moderna e esclarecida, mais justa e progressiva. É dos livros que vem nossa herança cultural. Estimulados por eles saímos da ignorância em busca do saber que ilumina.

Do prefácio à conclusão, o livro é sempre a grande e sedutora aventura, oferecendo ao leitor requisitos básicos que o levam a compreender, analisar, criticar e relacionar dados, fazendo suas próprias inferências no sentido de fazê-lo consciente e participativo. Textos literários, jornais, instrucionais, científicos, informativos e até humorísticos, num trabalho intertextual norteiam sempre para a reflexão construtiva de um país preocupado com o crescimento cultural. Daí, as campanhas do Ministério da Educação levando nossas escolas a repensarem a respeito dos hábitos. O livro é o sacerdote cultural do povo!

Da leitura de literatura de informação, a começar pela carta de Caminha, às obras literárias contemporâneas percebe-se a trajetória histórico-literária do Brasil, observando-se em quinhentos anos a velocidade da evolução cultural, destacando o livro como a principal fonte divulgadora de ideias na expansão da consciência e da consolidação desta terra como nação independente no “verde-amarelismo”, do nosso próprio jeito de agir e pensar.

É necessário frisar a influência da Semana da Arte Moderna (1922), que veio tirar o país do atraso cultural em que se encontra, levando a inteligência brasileira a refletir sobre seus problemas, libertando o Brasil do vinculo europeu. Dos manifestos polêmicos, recheados de lutas ideológicas, o país tem se firmado com homens e livros. Num processo natural de transformação vão incorporando à mentalidade do nosso povo condições de descobertas, visando preservar tradições culturais num país multirracial onde, por milagre, convivem harmoniosamente índios, portugueses, negros e povos oriundos da imigração. Cada um com seu rosto étnico, suas influências culturais de origem, numa miscigenação de corpo e alma que resulta nos mais diferentes tipos humanos e populares. Nesse contexto, assistimos a um desfile de desigualdades num país continente cheio de problemas político-sociais onde o livro, carregador, formador e transmissor de opiniões vale mais que armamentos sofisticados de guerra. Ele exerce a função de integrador cultural de norte a sul do país em tão vasta extensão territorial.

Criador da nossa consciência histórica é no “Era uma vez...” de cada dia que o livro continuará a relatar os episódios que marcaram a história da sociedade brasileira, narrando nossa verdade, realçando nossa essência de povo, mostrando nossos valores, decidindo nosso destino como nação soberana nas diversas exigências deste século que iniciou-se há pouco.

Definitivamente é preciso que abandonemos nossas “grutas particulares”, que através do livro saiamos das cavernas do subdesenvolvimento para nos entregarmos à missão participativa da evolução cultural brasileira, que nas suas bases filosóficas já possui suas características próprias num perfil que vai se definindo, digno de ser visto no cenário das grandes nações.

O livro, sem sombra de dúvidas, é a alavanca que impulsiona num processo crescente o desenvolvimento das artes e das ciências, num envolvimento produtivo com a sociedade, determinando a consciência nacionalista de um novo Brasil.

Fonte:
A autora

domingo, 26 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 171


Alba Krishna Topan Feldman (Falando Bemtevinhês)


Andava apressada na calçada
Queria chegar à lida
Loucura do dia-a-dia
Sem ouvir a árvore que ao som do vento ria.

Sem ouvir dos pássaros o arrulho certo.
Nenhuma pessoa humana por perto,
Só as outras pessoas,
Que eu fingia não ver.
Porque estava com pressa de trabalhar 
até enlouquecer.

Três bem-te-vis na calçada
Tomavam sol na manhã fria
Com aquela conversa de amigos,
Aqueles que aproveitam o dia.

Até chegar a gigante que atrapalhou
Um voou para lá,
Outro para cima voou,
E o terceiro gritou
Em alto e bom tom
–  Estou saindo porque é bom,
Para que você não me pise,
Mas não saio feliz
Por você se achar a dona da rua e da calçada
E atrapalhar a mim e meu camarada.
– BEM-TE-VI
Sua gigante humana irritante.

Ouvi a conversa e pedi desculpa,
Mas tarde se fez
Levei muita bronca na vida
Mas de Bem-te-vi foi a primeira vez.

____________________________

Alba Krishna Topan Feldman é natural de Ubiratã/PR, radicada em Maringá. Professora de Língua e Literaturas de Língua Inglesa e Coordenadora do Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual de Maringá, formada em letras na Faculdade de Ciências e Letras de Campo Mourão. mestrado na Universidade Estadual de Maringá, doutorado em letras na UNESP, de São José do Rio Preto e Louisville University (EUA), pós doutora na Universidade Estadual de Londrina e na Simon Fraser University (Toronto/Canadá), poetisa, escritora e trovadora, foi uma das fundadoras da ALIUBI, membro da Ordem Nacional dos Escritores.

Fernando Sabino (Obrigado, doutor)


Quando lhe disse que um  vago  conhecido  nosso  tinha  morrido, vítima de tumor no cérebro, levou  as  mãos  à  cabeça: -  Minha  Santa Efigênia!

Espantei-me que o atingisse a morte de alguém tão distante de nossa convivência mas logo ele fez sentir a causa da sua perturbação:

- É o que eu tenho, não há dúvida nenhuma: esta dor de cabeça  que não passa! Estou para morrer.

Conheço-o desde menino, e sempre  esteve  para  morrer.  Não  há doença que passe perto dele  e  não  se  detenha,  para  convencê-lo  em iniludíveis  sintomas  de  que  está  com  os  dias  contados.  Empresta dimensões de síndromes terríveis à mais ligeira manifestação de azia  ou acidez estomacal:

        - Até  parece  que  andei  comendo  fogo.  Estou  com  pirofagia crônica. Esta cólica é que é o diabo, se eu fosse mulher ainda estava explicado. Histeria  gástrica.  Úlcera  péptica,  no duro.

Certa ocasião, durante um mês seguido, tomou injeções diárias de penicilina, por sua conta e risco. A chamada dose cavalar.

- Não adiantou nada - queixa-se ele: - Para mim o médico que  me operou esqueceu alguma coisa dentro de minha barriga.

Foi operado de apendicite quando ainda criança  e  até  hoje  se vangloria:

- Menino, você precisava de ver  o  meu  apêndice:  parecia  uma salsicha alemã.

No que dependesse dele, já teria passado por todas as  operações jamais registradas nos anais da cirurgia: "Só  mesmo  entrando  na  faca para ver o que há comigo". Os médicos lhe asseguram que não há nada, ele sai maldizendo a medicina: "Não descobrem o que eu tenho, são uns charlatões,  quem  entende  de  mim  sou  eu". 

O  radiologista,  seu   amigo particular,  já  lhe  proibiu  a  entrada  no  consultório:    tirou-lhe radiografia até dos dedos do pé. E ele sempre  se  apalpando  e  fazendo caretas: "Meu fígado hoje está que nem uma esponja, encharcada de bílis. Minha vesícula está dura como um lápis, põe só a mão aqui".

- É lápis mesmo, aí no seu bolso.

- Do lado de cá, sua besta.  Não  adianta,  ninguém  me  leva  a sério.

Vive lendo bulas de remédio: "Este é dos bons"- e seus olhos se iluminam: "justamente o que eu preciso. Dá licença  de  tomar  um,  para experimentar?" Quando visita alguém e lhe  oferecem  alguma  coisa  para tomar, aceita logo um comprimido. Passa todas  as  noites  na  farmácia: "Alguma novidade da Squibb?"

Acabou num psicanalista: "Doutor, para ser sincero  eu  nem  sei por onde começar. Dizem que eu estou doido. O que eu estou é podre".

Desistiu logo: "Minha alma não tem segredos para ninguém arrancar. Estou com vontade é de arrancar todos os dentes".

E cada vez mais forte,  corado,  gordo  e  saudável.  "Saudável, eu?"- reage, como a um insulto: "Minha Santa Efigênia! Passei a noite que só você vendo: foi aquele bife que comi ontem, não posso  comer  gordura nenhuma, tem de ser tudo na água e sal".

No restaurante, é o  espantalho dos garçons: "Me traga um filé aberto e batido, bem passado na  chapa  em três gotas de azeite português, lave bem a faca que não posso nem sentir o cheiro de alho, e duas batatinhas cozidas até começarem a  desmanchar, só com uma pitadinha de sal, modesta porém sincera".

De vez em quando um amigo procura agradá-lo: "Você está pálido, o que é que há?"

Ele sorri, satisfeito: "Menino, chega aqui que eu vou  lhe contar, você é o único que me compreende". 

E  começa  a  enumerar  suas mazelas - doenças de toda espécie,  da  mais  requintada  patogenia,  que conhece na ponta da língua. Da última vez enumerou cento e três.  E  por falar em língua, vive a  mostrá-la  como  um  troféu:  "Olha  como  está grossa, saburrosa. Estou com uma caverna no pulmão, não tem dúvida: essa tosse, essa excitação toda, uma febre capaz de arrebentar o  termômetro. Meu pulmão deve estar esburacado como um queijo  suíço.  Tuberculoso  em último grau". E cospe de lado: "Se um mosquito pousar nesse cuspe,  morre envenenado".

Ultimamente os amigos deram para conspirar, sentenciosos: o  que ele precisa é casar. Arranjar uma  mulherzinha  dedicada,  que  cuidasse dele.

"Casar, eu?"- e se abre numa  gargalhada: "Vocês  querem  acabar  de liquidar comigo?".

Mas sua aversão ao casamento não pode ser  tão  forte assim, pois consta que de uns dias para cá está de namoro sério com  uma jovem, recém-diplomada na Escola de Enfermagem Ana Néri.

Fonte:
Para Gostar de Ler. Volume 5. 1998.

A. A. de Assis (Trovas do Mestre Trovador) 1


Ah, quantos lindos castelos
põe a vida em nossa mão,
lembrando os sonhos mais belos
que temos no coração!

A saudade é a companhia
mais doce que Deus nos deu.
Sem ela, o que restaria
aos velhinhos como eu?...

A vida nem sempre é encanto;
para alguns é injusta e inglória...
– Quanta gente corre tanto,
porém perde o trem da história!

Brincante como um garoto,
planas no espaço sem fim...
– Só o poeta, irmão piloto,
consegue voar assim!

Canoando mar afora,
a esperança me conduz.
Já vejo lá adiante a aurora
trazendo uma nova luz.

Decerto, como um deserto
criado pela ambição,
deserto é também, decerto,
hoje o humano coração.

Deixando a infinita altura
e as honras da eternidade,
fez-se o Criador criatura,
por amor à humanidade.

Dê-se ao jovem liberdade
para sem medo ele ousar.
– É no ardor da mocidade
que o sonho aprende a voar!

Foi noite de lua cheia,
e que saudade deixou...
- Em dois corações, na areia,
sinais do que ali rolou!

Gondoleiro, meu amigo,
por favor, vai devagar...
Com minha amada comigo,
quero perder-me em teu mar!

Há celulares à farta,
iphone, computador...
Mas nada se iguala à carta
para os recados de amor!

Lei antibeijo é, no fundo,
uma forma de terror:
ajuda a matar, no mundo,
o que ainda resta de amor.

Mantenha a esperança alerta,
por mais que lhe pese a cruz.
– Há sempre uma porta aberta
para quem procura a luz.

Movido a sonho, eu poeta,
porque amo a estrada, não canso.
– Mais importante que a meta
é cada passo que avanço.

Nada na vida é mais triste
nem dói mais que a solidão:
– sentir que em redor existe
um mundo... e ouvir dele não!

Não chamem de mundo-cão
o feio mundo do mal.
No cão pulsa um coração
melhor que o nosso, em geral.

Nós dois num banquinho tosco,
num sítio sereno e lindo...
O amor se envolveu conosco,
e o sonho se fez infindo!

Nossa vida é um filme assim:
um roteiro abrasador...
Tem beijos do início ao fim,
cada qual com mais calor!

O rio, língua da serra,
se alonga abrindo uma trilha;
e afaga a face da terra,
qual fêmea lambendo a filha!

Poeta nenhum se priva
de certos dengos vitais:
– Sem pão talvez sobreviva,
mas sem ternura... jamais!

Que pena que a vida passa
sem que a gente, na corrida,
desfrute, com tempo, a graça
do tempo melhor da vida!

Que será que esse recado
na garrafa traz, e a quem?
– Vem de alguém que, apaixonado,
tem saudade do seu bem!...

Segura, peão, segura,
que a vida é um grande rodeio...
– É luta bela, mas dura,
com muitos trancos no meio!

Uma boca em cada ponta
de um fio de macarrão...
Ao fim, o encontro que conta:
boca na boca... e um beijão.

Venha, amor, vamos dançar
em meio à chuva, ao relento...
Sem medo, vamos deixar
que às nuvens nos leve o vento!

Vênus, Marte, o Sol e a Lua
talvez sejam mais vizinhos
que os que compõem na rua
a multidão dos sozinhos.

Fonte:
Vida, Verso e Prosa.

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 13


I
Em Laristã, na Pérsia, reinava, há muitos séculos, um monarca famoso e rico chamado Senedin. Esse rei (Alá se compadeça dele!) era dotado de uma memória tão perfeita que repetia, sem discrepância da menor palavra, o pensamento, em prosa ou verso, que ouvisse uma só vez. Essa prodigiosa faculdade do soberano os súditos de Laristã ignoravam completamente.

O rei Senedin tinha um escravo, chamado Malik, igualmente possuidor de invulgar talento. Esse escravo era capaz de repetir, sem hesitar, a frase, o verso ou o pensamento que ouvisse duas vezes.

Além desse escravo, o poderoso senhor do Laristã tinha também uma escrava não menos inteligente. Leila - assim se chamava ela - podia repetir, facilmente, a página em prosa ou em verso que tivesse ouvido três vezes.

Quis a vontade de Alá (seja o Seu nome exaltado!) que o rei Senedin tivesse uma filha de peregrina formosura. Segundo os poetas e escritores do tempo, a princesa do Laristã era mais sedutora do que a quarta lua que brilha no mês do Ramadã (1).

Embora vivesse fechada no harém do palácio real, entre escravos que a vigiavam, a fama da encantadora Roxana se espalhou pelo país, atravessou os desertos, transpôs as fronteiras e foi ter aos reinos vizinhos.

Vários príncipes e xeques poderosos vieram a Laristã pedir a formosa princesa em casamento.

O rei Senedin era pai extremoso; tinha pela filha enternecido afeto, e não queria, portanto, separar-se dela, o que fatalmente aconteceria se a jovem e encantadora criatura casasse com um príncipe estrangeiro da Arábia, da Síria ou da China.

Negar, porém, sistematicamente a todos os numerosos pretendentes era um proceder que não convinha à boa política diplomática do Laristã. Na verdade, alguns apaixonados de Roxana eram abastados e poderosos, e faziam-se acompanhar de cortejos tão pomposos e tão bem armados, que menos pareciam caravanas do que exércitos!

À vista de tão respeitáveis e valorosos pretendentes - que uma recusa formal poderia ferir ou melindrar - declarou o rei Senedin que só daria a sua filha em casamento àquele que fosse capaz de recitar, diante dele, uma poesia inédita, desconhecida e original!

Curiosíssimo foi esse certame que agitou durante muito tempo a população inteira do velho país do Islã.

Apresentou-se, em primeiro lugar, o famoso Al-Tamini Ben-Mansul, príncipe de Tlemcen, moço de grande talento, que podia perfilar entre os mais eruditos de seu tempo.

O príncipe Al-Tamini recitou, diante do rei, uma bela e inspirada poesia intitulada “A Estrela”, que havia feito em louvor da princesa:

Vi uma estrela tão alta,
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão fria!
 Era uma estrela tão alta.
 Era uma estrela sozinha
 Luzindo no fim do dia.

Por que de sua distância
 Para a minha companhia
 Não baixava aquela estrela?
 Por que tão alto luzia?

Eu ouvi-a na sombra funda
 Responder-me que assim fazia
 Para dar uma esperança
 Mais triste ao fim do meu dia. (2)


Ouviu o rei, com grande atenção, a poesia inteira. Mal, porém, o príncipe Al-Tamini havia recitado o último verso, o inteligente monarca observou num tom em que a naturalidade aparecia sob a máscara da ironia:

- É realmente bela e benfeita essa poesia, ó príncipe! Infelizmente, porém, nada tem de original! Conheço-a, já há muito tempo e sou até capaz de repeti-la de cor!

E o rei repetiu pausadamente, sem hesitar, a poesia inteira, sem enganar-se numa sílaba.

O príncipe, que não podia disfarçar a sua imensa surpresa, observou respeitoso:

- Podeis crer, Vossa Majestade, que há forçosamente, nesse caso, um engano qualquer. Tenho absoluta certeza de que essa poesia é inédita e original. Escrevi-a faz dois ou três dias apenas! Juro que digo a verdade, pela memória de Mafoma, o santo profeta de Deus!

- A verdade é amarga! - exclamou o rei. - Há coincidências que perturbam e desorientam os mais prevenidos! Muitas vezes uma poesia que julgamos nova e completamente original já foi escrita, cem anos antes de Mafoma, por Tarafa ou Antar! Quer ter agora mesmo, ó príncipe!, uma prova do que afirmo? Vou chamar um escravo do palácio que talvez já conheça, também, essa poesia.

- Malik!

O escravo que tudo ouvira, escondido cautelosamente atrás de um reposteiro, surgiu, inclinou-se respeitosamente diante do rei, beijando a terra entre as mãos.

- Dize-me, ó Malik!, se não conheces, por acaso, uma ode formosa e popular, cheia de imagens, na qual um poeta beduíno canta uma estrela que luzia no fim do dia?

- Conheço muito bem essa belíssima ode, ó rei dos reis!

O escravo, que já tinha ouvido a poesia duas vezes, repetiu-lhe todos os versos, com absoluta segurança:

Vi uma estrela tão alta.
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia.
 ........................................
 ........................................
 ........................................

Em seguida o rei mandou que viesse a sua presença a escrava Leila, que se conservara também escondida em discreto recanto do salão.

A esperta rapariga, que três vezes ouvira a poesia do apaixonado príncipe, sendo interrogada, repetiu por seu turno todos os versos do príncipe, do princípio ao fim, com fidelidade impecável:

Vi uma estrela tão alta,
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia.
 ........................................
 ........................................
 ........................................

Diante de provas tão seguras e evidentes retirou-se humilhado o rico Al-Tamini Ben-Mansul, príncipe de Tlemcen.

II

Muitos outros pretendentes - xeques, vizires, cádis e poetas - foram ter à presença do rei Senedin, mas todos, graças aos recursos e estratagemas do monarca, voltavam desiludidos e convencidos de que os versos que haviam escrito eram velhos, velhíssimos e andavam na boca de soberanos e vassalos! Eram - afirmava sempre o rei - anteriores a Mafoma! (Com Ele a oração e a glória.)

Entre os incontáveis apaixonados da formosa Roxana, havia, porém, na Pérsia um jovem e talentoso poeta chamado Ibrahim Ben-Sofian.

Não podia ele admitir que o rei Senedin conhecesse de cor todos os versos que os inúmeros pretendentes escreviam.

“Há aí algum misterioso estratagema”, pensava ele cogitando o caso.

A desconfiança sugere muitas vezes ao homem ideias e recursos imprevistos; é como a luz do sol, que empresta às nuvens colorações que elas não possuem.

Bem dizem os árabes: “Aquele que desconfia vale sete vezes mais do que qualquer outro.”

Resolvido, portanto, a desvendar o segredo, o poeta Ibrahim escreveu uma longa poesia intitulada “A lenda do Vaso Partido”, empregando, porém, as palavras mais complicadas e mais difíceis do idioma persa. Gastou nessa paciente tarefa muitos meses. Terminado o trabalho, o talentoso poeta apresentou-se à prova diante de Senedin, senhor do Laristã.

Em dia marcado, na presença de vizires e nobres, o rei Senedin recebeu o poeta Ibrahim Ben-Sofian.

O monarca tinha a convicção de que venceria o novo pretendente empregando o mesmo modo e o mesmo artifício com que soubera iludir todos os outros.

Ibrahim leu com vagar os versos tremendos e complicados que compusera com vocábulos quase desconhecidos. Não havia memória capaz de conservar por um momento sequer as palavras esdrúxulas que o poeta proferia.

O rei, ao perceber o recurso singular de que lançara mão o poeta, sentiu que sua privilegiada memória fora, afinal, vencida; não quis, entretanto, confessar-se derrotado.

- Ouvi com agrado os teus versos - declarou com visível constrangimento. - Devo dizer que não os conheço. São certamente originais. E como a minha palavra foi dada, casarás com a minha filha. Desejo, entretanto, fazer-te um pedido. Quero conhecer “A lenda do Vaso Partido”, tantas vezes citada em tua poesia.

- Escuto-vos e obedeço-vos - respondeu o poeta. - Para mim nada mais simples do que narrar essa belíssima história.

continua…
___________________________
Notas
1 Ramadã - mês da quaresma muçulmana. Durante esse mês (28 dias) o jejum é obrigatório desde as primeiras horas do dia até o cair da noite.
2 De Manuel Bandeira, Poesias Completas (pág. 167).


Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. 1928.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 170


Rachel de Queiroz (Ai, Amazonas)


Um nordestino que subia conosco o Amazonas olhava a imensidão do rio alagando a terra plana a caminho de se perder no mar, e deu um suspiro sentido:

— Ah, se a gente pudesse tirar uma levada desta água e ir com ela até ao Rio Grande do Norte!

Não sei se pelo resto do Brasil levada tem o mesmo sentido. Para nós, quer dizer o rego d'água da irrigação. Realmente, se a gente pudesse encaminhar uma levada com um pouco do excesso daquelas águas até às nossas terras secas!

Mas só um pouco. Porque, pelo menos a nós, o efeito que nos causa a visão daquele sem-fim de águas é principalmente o medo. Espanto igualmente. porém o medo é maior que o espanto. Ali, sente-se que toda a vida é a água, mas também a água é toda a morte. Tudo vem da água do rio — o alimento, o transporte, a fartura vegetal das margens, a bebida, a fácil limpeza do corpo; e do rio vêm as doenças, a tremura e a febre, a umidade, a lama: do rio parte a rede dos furos recortando a mata, as águas paradas e malsãs dos igapós. No rio, ou à margem do rio, vivem as feras perigosas. Os homens conseguem sobreviver ali, mas sempre de sobreaviso, permanentemente sitiados por milhares de inimigos. As casas de madeira e palha, leves como gaiolas, são erguidas em jiraus de dois metros de altura, por temor das águas que sobem.

Ali não se anda a pé como é o natural do homem, senão praticamente no quintal de casa. Qualquer percurso maior é uma travessia e se faz na pequena embarcação que é um traste mais indispensável à família do que o fogão. Nos tempos de dantes, os paroaras chamavam de montarias a essas canoas domésticas, hoje não sei se ainda se chamam assim.

O povo é cristão, de longe em longe se levanta uma capela, mas se dirá que o Deus dali é o rio, o pai de tudo. Ou pelo menos será o rio o Olimpo amazônico, porque lá nas águas é que moram todas as entidades fabulosas, a cobra-grande, os botos encantados, as iaras, os caboclos d'água que pastoram as piracemas de peixe.

Mas são divindades familiares, quase todas benéficas, algumas graciosas; as divindades do terror são as da floresta, curupiras e onças que riem, e caiporas, ah, ninguém sabe quantas, sendo que o inimigo pior de todos é a floresta propriamente.

O fato é que o homem amazônico é, a bem dizer, um animal aquático. Nasce por cima d'água na sua casa de palafitas, cria-se sobre a água, come da água, vive literalmente da água, e nem sempre quando morre escapa da água, mesmo que não morra afogado. Tive um exemplo disso num daqueles estreitos em que o grande navio passa tão perto da mata que, no convés, quase se toca na folhagem com as mãos. A certa altura avistou-se um pequeno cemitério, a cavaleiro da barranca. Fora defendido por uma cerca forte e, naturalmente, cada morto ganhara a sua cruz de madeira. Mas isso, antes da enchente. Porque a enchente veio, derrubou a cerca, arrancou as cruzes, e carregou consigo os defuntos plantados mais rasos. Nem morto escapa do rio. Hoje, dizem, o lugar é mal-assombrado.

Ah, o mistério amazônico. A gente anda por lá, dias e dias, pensando que o enfrenta e na verdade mal o roça. Aprende uns nomes, navega sobre as águas largas, vê e conversa com os caboclos de fala doce e face de índio. Da floresta só se enxergam os troncos na barranca e as altas copas, além; e os partidos de palmeiras, as castanheiras de folha escura, aquela espécie de mangue que parece plantado de propósito e não sei como se chama. E os troncos navegando o rio como jangadas vivas.

E na cidade um peixe-boi cativo, uns pequenos jacarés; no mercado o estendal de peixes, alguns maiores que um homem, outros pequenos e lindos como uma mão de prata. E o céu perto e forte, vidrento, duro, que o sol do meio-dia transforma em massa de luz violenta, mas que de repente se dissolve em chuva, que cai aos jorros.

Por toda a parte, água; barrenta no rio-mar, dum sépia transparente no Tapajós, dum preto de vidro esfumado no Rio Negro. E os horizontes. Fora do mar, nunca vi tanto horizonte. Decerto para compensar da floresta, onde horizonte nenhum existe, só a abóbada vegetal sufocando os viventes.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Manuel Du Bocage (Sonetos) IV


Os suaves eflúvios, que respira
A flor de Vênus, a melhor das flores,
Exalas de teus lábios tentadores,
Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira;

A que nasceu das ondas, se te vira,
A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores!
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira!

E mil vezes ditoso o que merece
Um teu furtivo olhar, um teu sorriso,
Por quem da mãe formosa Amor se esquece!

O sacrílego ateu, sem lei, sem siso,
Contemple-te uma vez, que então conhece
Que é força haver um Deus, e um paraíso.
* * * * * * * * * * * * * *

Meu frágil coração, para que adoras
Para que adoras, se não tens ventura?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,
Folgando estão das lágrimas que choras?

Os dias vês fugir, voar as horas
Sem achar neles visos de ternura;
E inda a louca esp'rança te figura
O prêmio dos martírios, que devoras!

Desfaz as trevas de um funesto engano,
Que não hás de vencer a inimizade
De um gênio contra ti sempre tirano:

A justa, a sacrossanta divindade
Não força, não violenta o peito humano,
E queres constranger-lhe a liberdade?
* * * * * * * * * * * * * *

Os garços olhos, em que o Amor brincava,
Os rubros lábios, em que o Amor se ria,
As longas tranças, de que o Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava:

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armândia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava;

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço (ai de mim!) como não sigo!

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura?
* * * * * * * * * * * * * *

Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas sutis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura:

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente:

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .
* * * * * * * * * * * * * *

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórridos negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares, co’s Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores -
E meu cioso pranto... oh Jove, oh Nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.
* * * * * * * * * * * * * *

Oh retrato da morte, oh Noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas,ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da obscuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
* * * * * * * * * * * * * *

Vinde, Prazeres, que por entre as flores,
Nos jardins de Citera andais brincando,
E vós, despidas, Graças, que dançando
Trinais alegres sons encantadores:

Deusa dos gostos, deusa dos amores,
Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,
E vem nas asas de Favônio brando
Dar força, dar beleza a meus louvores.

Da linda Anarda minha voz aspira
A cantar o natal; tu, por clemência,
O teu fiel cantor, deidade, inspira;

Do trácio vate empresta-me a cadência,
E faze que mereça a minha lira
Os cândidos sorrisos da inocência.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Sonetos e outros poemas.

Carlos Drummond de Andrade (Jacaré de Papo Azul)


— Jacaré de papo azul, por acaso o senhor já viu um na sua vida? Azul, azulinho ele todo, o papo, não o jacaré. Eu vi. Vi e conferi, que ele ficou meu amigo, pode acreditar. E, eu sei, nesta beira de rio, vez por outra costuma aparecer jacaré-de-papo-amarelo, não faz novidade nisso. A gente está acostumada com ele, sabe lidar com o bichinho, e cai de pau no lombo dele antes que ele ferre a gente com uma dentada ou derrube a canoa com uma rabanada forte. Já experimentou serrilha de rabo de jacaré no corpo, terá coisa pior do que isso neste mundo de coisas piores? Olhe aqui o meu peito, eu falo de jacaré porque jacaré entrou na minha vida desde menino, o primeiro que vi levou a perna de meu pai, outro fez no meu corpo este desenho que o senhor está admirando, pois não é tal qual uma mulher nua costurada na pele, a marca que ele deixou? Se não morri foi porque estava decretado que jacaré nenhum tem poder sobre este afilhado das treze almas sabidas e entendidas, que cortam as forças de meus inimigos. Meu pai, a perna dele não foi propriamente comida por jacaré, ele tirou só um naco, mas o resto apodreceu e no hospital da Januária tiveram que serrar na altura da coxa. E ainda falam que jacaré em terra é uma pasmaceira, não sabe correr nem brigar.

Pois sim. O que aleijou meu pai estava dormindo na quentura da praia, muito do seu natural, como se ali fosse a casa dele. Pai cutucou ele assim com a ponta do pé, fazendo cócega na parte da barriga que estava meio exposta, porque o desgraçado dormia meio de banda, entende. Jacaré fez que não viu nem percebeu, continuou no seu paradeiro, pai cutucou mais, achando graça no sono pesado daquele bicho entregue à vontade da gente, sem defesa, porque jacaré fora d’água… e tal e coisa. Depois de muito cutucar, o velho lascou um pontapé no traseiro do bicho, o bicho achou que aquilo era demais, nhoc! cravou a dentadura afiada na coxa dele. Eu estava perto e disparei porque não sou bobo, pai veio atrás, sangrando e xingando o jacaré, que continuou no mesmo lugar, sem dar confiança. Quando a gente voltou para caçar ele, tinha sumido. Bem, se conto essas coisas ao senhor é pra mostrar como a vida é feita de tira e dá: aqui estou eu ganhando a minha caçando jacaré pra vender o couro. A carne, eu aproveito em casa, o senhor já provou uma boa jacarezada, feita com capricho, muita pimenta e uma branquinha de qualidade pra santificar o total? Lhe ofereço uma se o senhor arranchar aqui mais de uma semana, tempo de aparecer jacaré que anda meio desanimado de descer o rio, sei lá onde se meteu. Não quer? Já sei, o senhor embrulha o estômago só de imaginar bife de jacaré, basta pensar no cheiro, aquele pitiú, e mais o gosto da carne dele. Pois muito se engana, é questão de lavar, salgar, temperar direito. Bem, não se fala mais nisso, não vou lhe oferecer um prato que o senhor não dá o devido valor.

Onde é que a gente estava na direção da conversa? Ah, já sei, na minha vida de caçador de jacaré, que parece feita de aventura e que talvez seja pros outros, pra mim é escrita bem decifrada, não tem mistério, e se ficou esse desenho gozado no meu peito foi porque eu ainda não tinha muita experiência de jacaré, facilitei, pronto: gurugutu, mas aprendi pro resto da vida, é baixo que um me pegue outra vez, minhas treze almas me acompanham no serviço, me adestram na caça, sou capaz até de pegar jacaré a laço de vaqueiro, como diz-que se faz lá no Marajó, me contaram. Ou que nem índio, que pula do galho da árvore em cima do jacaré, monta nele; quando jacaré mergulha, índio mergulha também, com a mão esquerda agarrada na barriga do bicho, com a direita aperta bem os olhos dele e com a terceira mão, que ninguém tem mas nessa hora aparece, amarra o focinho dele com embira que levou presa na boca… O senhor duvida? Quer dizer, isso ainda não fiz, faltou ocasião, mas chegando a hora eu faço. Só que não gosto de judiar dos bichos, mato eles porque o cristão tem de viver à custa de tirar a vida do jacaré, mas no dia que eu achar um diamante, digo até nunca pro meu ofício, por enquanto vou comendo carne, vou vendendo couro. Pagam uma porcaria, sabe? No entanto, qualquer coisa feita de couro de jacaré custa uma nota alta, a vida é assim, também brinca de dá e tira. Estou destaramelando faz tempo e ainda não cheguei ao caso do jacaré de papo azul. Pois eu conto, o senhor fique a cômodo neste tamborete e preste atenção no meu relato.
* * *

Como estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio pra ver se tem jacaré, a gente acaba tendo parte com a água, conhece o que ela esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio não engana, mesmo se toma cautela de esconder no barro o que é de esconder. Mas pros outros é que esconde, não pra quem nasceu junto dele e carece viver dele. De começo fui pescador de peixe, como todo mundo, mas eu queria outra coisa, queria tirar do rio o mais difícil. Minhocão, diz o senhor? Minhocão sabe pra quem aparece. Meu negócio era com o jacaré, o rio entendeu e me dá o jacaré que eu preciso e não abuso. Tanto que de jeito nenhum eu caço filhote. Brigo com jacaré grande, no poder da valentia dele, e se eu venço, fico agradado de mim; se perco e ele foge, a vez era dele, está certo.

Naquele dia foi diferente. Jacaré botava a cabeça pra fora, eu ia pra cima dele, e nada. Aparecia mais adiante, voltava a afundar, tornava a aparecer, a afundar. Brincando. Isso que eu percebi depois de uma meia hora de perseguição. Estava se divertindo comigo, não fugia, também não se entregava. E era engraçado ver o jacaré tão despachado, tão corredor, na correnteza tão devagar, porque o senhor sabe que este rio aqui não tem pressa de chegar, só mais embaixo ele pega numa disparada que o governo aproveita para fazer uma usina gigante.

Aqui o rio é lerdo, a gente sente melhor o rio, dá pra fazer amizade. Então eu percebi que era isso que o jacaré estava querendo, fazer amizade comigo. O senhor já reparou em boca de jacaré? Parece que ele vive rindo de tudo, até sem motivo. Esse que eu falei ria com o corpo inteiro, às vezes chegava à flor d’água o tempo de eu apreciar ele todo, e rabeava com um jeito moleque, tão gozado que só o senhor vendo. Eu doido de aproveitar e cair em cima dele, mas quem disse? Depois de muito dançar e mergulhar, ele deu um salto e virou de barriga pra cima, a uma distância que não dava pra pegar. Ficou assim, boiando satisfeito da vida, que nem flor. Que nem essa flor, o senhor sabe, grandona e redonda, boiando feito bandeja, lá no fim do Norte, que eu nunca vi de perto, só de figura. Aí eu fui chegando perto, chegando perto, bem de mansinho. Se ele vira de repente e me dá uma rabanada, pensei, adeus canoa e eu sou o finado Marcindírio. Ele não virou, cheguei bem perto e vi. Tinha o papo azul, azul deste céu que o senhor está vendo, azul-claro, limpinho, bom de passar a mão…

Passei. O senhor não credita que passei? Pois o danado gostou, deixando eu fazer esse agrado que a gente faz no pescoço do gato, só que mais forte, o couro é o contrário da macieza do gato. Não tive coragem de fazer mais nada. Ele estava tão feliz de ser tratado assim, tão prosa de mostrar seu papo diferente, lindeza de papo. Aí eu falei assim: “Vou m’embora, jacaré; você é livre de morar no rio, que eu não te causo dano”. Voltei sem ofender aquele bicho-irmão, pois pra mim ele ficou sendo um negócio parecido com irmão, não digo filho porque era tão forte quanto eu, se não mais, e filho da gente, por mais que cresça e apareça, é sempre uma plantinha mimosa, sabe como é. Em casa, minha patroa zombou de mim, achou que eu não estava regulando. Não dormi de noite, pensando no jacaré. Dia seguinte, olha ele outra vez me chamando pra brincar, eu disse:

“Calma, jacaré, não posso passar a vida me distraindo com você, não sou mais menino e você também não é filhote. Todos dois têm que cuidar da vida, que a morte é certa”. Até parece que ele entendeu, ficou com ar meio amuado, afundou. Só apareceu muito tempo depois, de longe, experimentando a mesma sorte de molecagem. Fiquei com pena dele: “Tá bom, eu brinco”. Mas tem propósito um barraqueiro como eu alisando papo de jacaré, só porque ele é azul, me diga, tem propósito? Se a gaiola passasse e os passageiros me vissem, que é que haviam de achar? Eu sei, talvez algum quisesse me convencer que eu devia levar o jacaré pra terra e vender ele pra fazer figura no circo, mas o mais certo era que todo mundo caísse de gozação em cima de mim, podiam mesmo me levar amarrado feito doido pra dormir na cadeia, e depois… Isso tudo passou na minha cabeça enquanto eu acarinhava o jacaré, fiquei com vergonha que pudessem me ver naquela hora, depois fiquei com vergonha de ter sentido vergonha, afinal que que tem o senhor se entender com um bicho com fama de malvado e vai ver não é malvado coisa nenhuma e pede à gente pra gostar dele?

O senhor começou a entender, quer mais um gole de café enquanto eu conto o resto? A fome começou a apertar aqui em casa, por causa de que não vinha mais jacaré na descida das águas, só ficava banzando por lá o de papo azul, que eu não tinha coração de pegar. Até parece que ele afugentava os outros, queria reinar sozinho, virar dono e senhor do rio. Mas tão manso e engraçado que não tinha cara de mandão. Traiçoeiro não podia ser, se bem que a Luisona me prevenisse:

“Toma tento com esse bicho que vai te enfeitiçando, alguma ele te prepara, não vejo nada de bom nessa claridade do rio que deu pra acontecer ultimamente”.

Luisona é a minha patroa, ela tem esse nome porque é uma tora de mulher. Acontece que o rio vinha mesmo se lavando de sua cor de barro carregado, e quando o sol batia na neblina do amanhecer e a gente via a água, era uma água quase azulada, não que chegasse a azul, parava no quase, coisa que eu nunca tinha visto antes e era maravilha. “Mau sinal!”, repetia a Luisona, e as boquinhas dos meninos pedindo comida não davam gosto da gente olhar. Diabo de jacaré, pensei, se eu aproveitar uma ocasião da folia dele e chegar de mansinho e dar nele uma machadada bem certeira, será que morre na horinha e eu não sinto remorso porque não teve tempo de sofrer? Mas se eu errar no golpe? Se o golpe não acertar direto no coração dele, e eu tenho de dar outros golpes e ele me reconhece e crava em mim aqueles olhos redondos e espantados de amigo traído, de irmão assaltado pelo irmão? Não, eu não tinha coragem. E tinha precisão de ter coragem. O rio cada vez azulava mais, ou eu é que enxergava nele a miragem do papo do jacaré tornando tudo em redor uma pintura de quadro de Nossa Senhora? Botei o machado na canoa, rezei treze vezes a oração das minhas treze almas sabidas e entendidas e fui vigiar o rio.

O jacaré apareceu longe, veio chegando aos poucos, não tinha pressa. Boiava e sumia, tornava a boiar e sumir, era a festa de sempre. Cada vez mais perto da minha intenção, do meu machado. Quando chegou bem rente, estendi o braço devagar pra lhe fazer o carinho do costume. Deu uma virada brusca e afundou. Tinha percebido? Apareceu mais adiante. Cheguei lá, repeti o movimento. Ele também. Mas não tinha ar de brincadeira nova, inventada por ele. Era desconfiança, era defesa, era também (devia ser) resolução de evitar que eu acabasse me tornando um assassino igual aos outros, pior que os outros. Pois aquele animal de Deus gostava de mim e eu dele. Eu percebia isso, mas cada vez ia ficando mais enquizilado com aquele jogo em que o jacaré era mais forte porque era melhor do que eu. Não queria propriamente escapar de morrer, queria impedir que eu matasse. Mas eu queria matar. Eu precisava matar. Pra sustentar meu povo e agora também por outro fundamento, provar ao bicho das águas que lição eu não recebia dele, minha lei é fruto de minha cabeça, eu sei o que é necessidade e justiça. A raiva contra o jacaré ia crescendo, agora eu queria é ver o sangue dele tingindo o rio, desmaiando aquela azularia que encantava a cara suja e sincera das águas. Não resisti, pulei da canoa com o machado na mão direita e fui perseguindo o desgraçado, que fugia sempre como quem brinca de esconder e não dá confiança a quem quer pegar. No que ele nadava e eu também, fui sentindo uma tristeza de minha vida depender de matar, e a raiva ficava menor, eu tinha é pena de mim, tão precisado de fazer mal aos outros viventes, pena dos jacarés de papo de qualquer cor, pena de tudo, e o jacaré deu um mergulho, soverti com ele, a perseguição continuava, mas era tão triste, me via tão humilhado diante do poder daquele bruto de tamanha simpatia e delicadeza, eu menor do que ele, muito pior do que ele. O machado caiu da mão, me embolei com o jacaré, resolvido a acabar com aquilo de qualquer jeito, me expondo, desafiando ele a me cortar em postas, mas o riso dele me doía mais do que se fossem os dentes retalhando minha carne, que luta! seu compadre. Eu embrabecido, disposto a tudo, ele maneiro, dentro das regras, escorregando feito sabonete, mostrando que não queria, não precisava morder, queria é me cansar… cansei. Tudo ficou completamente azul dentro d’água, o próprio jacaré ficou todo azul-celeste, eu perdia as forças, me sentia azular por dentro, uma bambeira de sono diferente me encheu por inteiro. Então o jacaré, esticado, veio por baixo, me pegou pelas costas e foi me empurrando pra riba, me livrando do afogamento, me deixou estendido e mole à flor d’água, de barriga pro ar, uma coisa frouxa, tábua. E sumiu. Sumiu de sumiço eterno até a presente data. Não sei quanto tempo fiquei assim naquele paradeiro. Sei que a Luisona veio nadando feito gigante e foi me puxando no rumo da praia, dizendo: “Esperta homem!”.

Espertei. Dia claro, o rio outra vez barrento, reuni as forças, fui cair na rede aqui em casa. Dormi dois dias e duas noites. Quando acordei, fui cuidar da vida, arranjar outro machado, outra canoa, pois pra isso me botaram no mundo: pra caçar jacaré.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.