terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 3


CORES NA PRAÇA

Manacás floridos fazem companhia aos bancos vazios da praça...
O colorido das flores embeleza a manhã de quem passa…
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ESCRITO NO CORAÇÃO...

Na capa do disco antigo
escreveu uma declaração de amor.
O tempo, quase apagou as palavras, a data...
Mas, no coração ainda permanece lindo o amor!
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GOTAS DE EMOÇÃO

Em cada lágrima, retratos de emoção...
Em cada retrato:
um rosto, lembranças e sonhos,
desenhados pela saudade:
nas telas pequenas  e mágicas das lágrimas…
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HÁ DIAS ASSIM...

A lembrança do seu olhar,
Do perfume permanece.
A música da última dança...
E a saudade insiste!
Há dias assim
E noites também…
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JANELAS...

Das janelas vejo as estações dos anos...
A lua e as estrelas.
Admiro as gotas de chuvas...
Folhas secas, flores...
Da janela, ouço os pássaros.
Sonho...
De uma dessas janelas vi o Amor chegar!
Janela mágica que encantou e inspirou o brilho no olhar,
Com as cores da felicidade...
Da janela do Tempo veio a despedida
E com ela, a saudade a espreitar...
Fecho a cortina e finjo que não a vejo.
A Janela da Saudade, tento fechar...
Mas ela é intensa, e mais forte que minhas mãos,
Desisto e deixo-a entrar...
Empresto da janela da Primavera, às flores.
Enfeito a saudade, que iluminada  e decidida
Desenha lembranças nas janelas do meu coração…
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NUM PISCAR DE OLHOS

Num piscar de olhos...
Um amor se conhece,
Abraços e beijos...
Num piscar de olhos,
Sonhos são desenhados,
Aquarelados.
Num piscar de olhos,
A despedida acontece.
A saudade permanece...
Refletido nas lágrimas,
Vejo seu rosto,
Num piscar de olhos...
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O DESPERTAR DA NATUREZA

Os sons da casa ao acordar...
Indicam que um novo e belo dia irá começar!

O sol que entra pela janela,
Na sala, aquece três lindos  e sonolentos gatos...

E lá fora...
Deixa as flores das floreiras, mais belas!
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O ÚLTIMO OLHAR...

Impossível foi evitá-lo...
Não havia mais como fugir, fingir sua ausência.
O último olhar se fez necessário.

A despedida de cor cinza com gosto de saudade,
Como entender e aceitar o fim do amor,
A sensação de vazio, de tempo perdido...

De um amor  que não pode ser esquecido?
Como viver sem seu olhar?
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POSES DE GATO

    Atento
Sentado
    Brincando
  Deitado
   Dormindo
     Espreguiçando...
         Lambendo a patinha.
            Gato preto em sete poses
        deixa linda e misteriosa a caneca branca: encanta!
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REFLEXOS EM MEU OLHAR...

Ao olhar-me no espelho vejo um pouco dos seus olhos...
Ainda lembro-me do dia do seu aniversário, do seu signo,
Do seu doce preferido, de como gostava do café…
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TRAÇOS DA TUA AUSÊNCIA

Tua ausência tem nome, perfume e cor.
Além de senti-la posso até desenhá-la...
Às vezes, tão real é o desenho que quase acaricio teu rosto…
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TRISTE ROTINA

O relógio na parede marca as horas e observa silencioso,
o encontro dos camponeses à mesa,
depois de um dia exaustivo de trabalho, a rotina continua,
a vida prossegue sem a esperança de um futuro mais digno...

O cômodo rústico revela as poucas posses, poucos direitos.
As roupas escuras e gastas pelo constante uso, se completam
com as mãos grandes, ideais para trabalhar a terra...
Olhares sem brilho, revelando tristeza e conformismo.

Cada personagem perdido em seu próprio mundo: como se
seus destinos estivessem traçados muito antes de nascerem.
Olhares sem brilho, refletindo almas sem vida, sem cores,
faltando-lhes vontade e coragem de mudar.

Liberdade, alegria, dignidade para os trabalhadores da terra,
só em sonhos...

* Poesia inspirada no quadro “Os Comedores de Batata”, de Vincent Van Gogh (1885)

Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa

Rachel de Queiroz (Os Passarinhos)

    

De manhã, com escuro, é o trocado da graúna, bem debaixo da janela. Canta cristalino, dobrado e redobrado, como polca de piano, daquelas do tempo de Chiquinha Gonzaga. Mas aí a graúna para e quem faz o solo são os cabeças-vermelhas que outros chamam de galos-de-campina. Eu disse solo mas não é um só que canta; são duetos e tercetos, com primeira voz, segunda e terceira. A graúna vem então e faz o contraponto e por trás de tudo os golinhas sustentam o coro.

Isso é a alvorada. Depois do primeiro café é a vez dos canários que fizeram ninho nos frechais da casa. São dois ninhos no frechal e outro no pé de jucá que dá sombra ao alpendre. Mas esses já são cantores líricos, não se metem com amadores. Esperam que haja silêncio, não toleram nem o rádio. Vem um, se acomoda no galho do jasmim-laranja, verifica a assistência, vira a cabeça para trás e solta o gorjeio. Os demais passarinhos raramente se metem — salvo outro colega canário. E aí temos desafio de tenores e só não tem soprano porque canário faz discriminação de sexo: fêmea não canta. Depois do desafio lírico eles saem mesmo para o duelo e brigam até fazer sangue; chegam a rolar feridos no terreiro. Uma vez apanhei um morto. Canário leva ópera a sério.

O rouxinol daqui que, segundo penso, é a garrincha daí, vem logo depois dos canários; tem uma cantiguinha afinada, mas leve, assim como quem trabalha assobiando. Esse rouxinol uma vez me quebrou um espelho com ciúme do sósia que lhe aparecia no vidro. Bicava o cristal com tanta fúria que ensanguentava o bico. Botei um pano por cima do espelho e ai o rouxinol vinha devagarinho, enfiava a cabeça por baixo do pano, espiava — e lá estava o desgraçado de olho arregalado para ele! O rouxinolzinho avançava para o espelho com uma fúria matadora; e de tanto bater deslocou o prego e o espelho foi se arrebentar no chão. E ele, do parapeito da janela, olhava os cacos de vidro, vingado.

Pelas dez e onze da manhã tem uma calma; a juriti aproveita e fica de longe: vu ... vuu ... vuuu ... ! ... E a rolinha fogo-pagou responde mas há sempre então um bem-te-vi mal-educado que interrompe e estraga a poesia das duas.

Na hora da sesta aparece, mas não é todo dia, um sabiá cantador. Vem por ali, senta no cajueiro, solta o canto. Mas assim que a gente se aproxima, embelezada, ele sai para mais longe, nas algarobas; esse tem temperamento e não gosta de estranhos,

Saindo pelo mato, depois que o orvalho enxuga, a gente vai descobrindo. Se tem sorte até avista corrupião, mas é raro. Os vem-vem são por toda parte: e um passarinho de cabeça encarnada e cantiguinha moderna, por nome abre-e-fecha. Papa-arroz toma voo do capim de lagoa em bandos tão compactos que chega o ar a ficar encaroçado deles; e o pai-luís não levanta do chão e enfrenta a gente zangado, resmungando.

De repente se escuta um tarrafeado, aquela zoada curiosa, meio estridente, meio abafada: é bando de cancão acuando bicho. Acuam cururu, cobra, cachorro. Ficam aos saltos em redor do inimigo, a pena azul furtacor, o bico cor de fogo, os olhos que são como uma joia amarela. Cancão é bonito mas é sem-vergonha. Ladrão de roçado e plantador de milho. Plantam de doidos, porque já no fim das águas, quando tem semente seca, é que eles plantam. Nasce tudo, chega a crescer dois palmos de altura, mas daí não medra, porque é o fim do inverno. Raro é o roçado que não tem pelas beiras de cerca suas carreiras de milho de cancão.

Agora, quando a tarde cai é que é triste. Do outro lado do açude a mãe-da-lua, que já foi moça, ainda espera pelo noivo embarcado e fica chamando e se lastimando:

— Paulo, ôô Paaulo! Foi-se! Foi-se! Foi-se!

E mais triste é a coã, que em outros lugares também chamam acauã, Minha ama me embalava com uma cantiga que imitava o cantar da coã; e ainda recordo um verso que dizia assim: “Adeus, coã, que me vou! / Saudades, coã, de amor!...”

Ah, são muitos passarinhos. E sempre tem um cantando, as mais das vezes nem se identifica qual é.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 192


Monteiro Lobato (O Pito do Reverendo)


Itaoca é uma grande família com presunção de cidade, espremida entre montanhas, lá nos confins do Judas, precisamente no ponto onde o demo perdeu as botas. Tão isolada vive do resto do mundo que escapam à compreensão dos forasteiros muitas palavras e locuções de uso local, puros itaoquismos. Entre eles este, que seriamente impressionou um gramático em trânsito por ali: Maria, dá cá o pito!

Usado em sentido pejorativo para expressar decepção ou pouco-caso, e aplicado ao próprio gramático, mal descobriram que ele era apenas isso e não “influência política”, como o supunham, descreve-se aqui o fato que lhe deu origem. E pede-se perdão aos gramaticões de má morte pelo crime de introduzir a anedota na tão sisuda quão circunspecta ciência de torturar crianças e ensandecer adultos.

O reverendo tomou do estojo os velhos óculos de ouro, encavalgou-os no batatão nasal e leu pausadamente a carta do compadre, que dava notícias, pedia-as, e comunicava a próxima ida para ali do doutor Emerêncio do Val, “nosso ministro em Viena d’Áustria, homem de muito saber e distinção de maneiras, um desses diplomatas à antiga, como já os não há nesta república que etc. etc.”, em viagem de recreio pelo interior, a matar saudades do país.

O reverendo coçou o toitiço com dedos sornas e releu a carta demorando o pensamento nos trechos que pintavam o alto figurão itinerante, em via de honrar-lhe a casa com a sua nobilíssima presença.

Verdade é que dispensava tal honraria, boa seca à pacatez do seu viver abacial, repartido entre missinhas de cinco mil-réis (mais um frango), cachimbadas de muito bom fumo de corda e os pitéus (senão ainda a ternura, como propalavam as más-línguas) da ótima caseira e afilhada, a Maria Prequeté. Culpa toda sua, aliás. Quem lhe mandara a ele possuir a melhor casa de Itaoca e ser, modéstia à parte, um homem de luzes notórias, autor de vários acrósticos em latim?

Já doutra feita hospedara um eloquente inspetor agrícola e, logo depois, o tal sábio que colecionava pedrinhas — grande falta de serviço! Um diplomata agora... Ahn! A coisa variava…

Que viesse, respondeu ao compadre, mas não esperasse encontrar na roça desses “confortos e excelências de vida que é de hábito nas grandes terras”.

Escrita a resposta, foi o reverendo à cozinha conferenciar com a caseira sobre a hospedagem e longamente confabularam sobre o pato a sacrificar-se (se o patão de peito branco ou aquele mais novo com que a viúva do João das Bichas lhe pagara a missa, a gatuna); sobre a toalha de mesa e a roupa de cama; sobre o tratamento a dispensar — Vossa Excelência, Vossa Senhoria ou Vossa Diplomacia.

Após longo bate-boca, salpicado de injúrias em calão e algum latim, assentaram no pato da missa, na toalha de renda e no Vossa Excelência. Combinadas essas minúcias, uma nuvem de nostalgia ensombrou a nédia cara do reverendo. Os olhos penduraram-se-lhe no vago, saudosos, e de lá só desciam para envolver, com ternura viciosa, o velho pito de barro que lhe fedia na mão.

Notou a Prequeté aquelas sombras e:

— Acorda, boi sonso! Amode que está ervado?...

O reverendo abriu-se. Era o pito. Eram já saudades do velho pito... Pois não ia privar-se desse amigo de tantos anos durante a estada do “empata”? Tinha educação. Não desejava impressionar mal a um homem de raro primor de maneiras. E o pito, se é bom, é também plebeu e, mais que plebeu, chulo.

Reconhecia-o, reconhecia-o…

Entretanto, três, quatro dias — sabia lá a quantos iria a seca? — de abstenção forçada, sem que a boca sentisse o bendito contato do saboroso canudo amarelo de sarro?... Doloroso…

E o reverendo sorveu com delícia uma baforada maciça. Tragou-a. Depois, recostada a cabeça ao espaldar, semicerrados os olhos, semiaberta a boca, deixou-se fumegar gostosamente, como piúca de queimada. Coisas boas da vida!...

Mas que remédio? O homem fora diplomata e em Viena d’Áustria!

Confabulara com arquiduques e cardeais. Homem de requintes, portanto. Era forçoso transigir com o pito, o rico pito, o amor do pito. Sim, porque a dignidade do clero antes de tudo! Lá isso…

Uma semana depois nova carta anunciava que “o tal das Europas” em tal data repontaria por ali.

Grande alvoroço de saia e batina. A Prequeté arregaçou as mangas — braços a Machado de Assis tinha a morena! — e pôs de pernas para o ar a casa. Varreu, esfregou, escovou tudo, demoliu teias de aranha, limpou o vidro do lampião, matou o pato e desfez com decoada os muitos pingos de gema de ovo que constelavam a batina do padrinho.

— Arre, que até parece uma gemada! — reguingou ela, entre repreensiva e caçoísta. Depois, relanceando-lhe o olhar pelo alto da cabeça:

— Chi!... A coroa está que é uma tapera! — exclamou.

E, expedita, zás! zás! deu nela uma alimpa de tesoura.

— E o breviário? — inquiriu de súbito o padre.

Andava de muito tempo sumido, o raio do livro; procura que procura, descobrem-no afinal no quarto dos badulaques, feito calço duma cômoda capenga. A Prequeté — maravilhosa caseira! — com uma dedada de banha pô-lo escorreito e envernizado, a fingir com tanta perfeição uso diário que nem Deus desconfiaria da marosca.

— Que mais? — disse ela depois, plantando-se a distância para uma vista de conjunto no seu restaurado padrinho. E como de alto a baixo tudo estivesse a contento: “Está mesmo pshut!”, concluiu, brejeira, borrifando-lhe por cima um chuvilho de Água Florida, para disfarçar o ranço.

Ficou o padre um amor de reverendo, liso e bem amanhado como cônego de oleografia. Ele próprio o reconheceu ao espelho e, nadando nas delícias daquele carinho sem par — e muito agradável a Deus, pois não! —, sorriu-se babosamente, acariciando-a no queixo:

— Esta marota!

Conclusa a arrumação, da coroa do padre à cozinha, postou-se a Prequeté de vigia à janela, indagando os extremos da rua, enquanto o reverendo, lindo como no dia da sua primeira missa, passeava pela saleta a chupar as derradeiras cachimbadas.

Súbito:

— “Evem” vindo o reis! — exclamou a atalaia.

O reverendo meteu o pito na gaveta, passou a mão no breviário e assumindo cara de circunstância rumou para a porta da rua. Instantes depois defrontava-o um cavaleiro. O padre correu a segurar-lhe a rédea e o estribo.

— Queira apear-se vossa excelência, que esta choupana é de vossa excelência. Sou o padre vigário de Itaoca, humilde servo de vossa excelência.

O diplomata, como que ressabiado com tão respeitosa acolhida, deixou-se descavalgar. Mas sem garbo, esquerdão e reles, como aí um pulha qualquer. Entrou. Trocaram-se rapapés, palacianos da parte do reverendo, mal achavascados (quem o diria?) da parte do cortesão que conversara arquiduques e cardeais. Houve etiquetas revividas, sempre claudicantes do lado diplomático. Houve cerimônia.

Mas o doutor não era positivamente o que se esperava. Já no físico desiludia. Em vez duma fina figura de mundano, saíra-lhes um magrela de barba recrescida, roupa surrada, chambão e alvar. Enfim, pensou lá consigo o reverendo, o hábito não faz o monge. Quem sabe, sob aquelas aparências vulgares e talvez rebuscadas, não luzia o espírito de um Talley rand ou as manhas dum Metternich?

Foram para a mesa e no decurso do jantar acentuou-se a desilusão. O homem comia com a faca, baforava no copo, chupava os dentes. Um puro pai da vida.

Observando-o por cima dos óculos, o reverendo piscava para a caseira, que, da cozinha, pela fresta da porta, torcia o nariz à pífia excelência excursionista. Ao trincar o pato, desastre. O doutor deixou cair no chão um osso, que logo apanhou, muito encalistrado. Depois, às voltas com a asa do palmípede, falseou-se-lhe a faca, resultando espirrar-lhe à cara um chuvisco de arroz. A Prequeté por sua vez espirrou lá dentro uma risadinha de mofa, acompanhada dum mortificante ché!...

O reverendo entrou-se de dúvidas. Era lá possível que o doutor Emerêncio do Val fosse um estupor daqueles?

À sobremesa caiu a conversa sobre a política, e o doutor desmanchou-se em bobagens graúdas. Enquanto asneava, o padre ia matutando lá consigo: “E eu com cerimônias, e eu com bobices, e eu querendo até privar-me do pito por amor a um cretino destes! Fumo-lhe nas ventas e já!”

Nisto veio o café. Enquanto o ingeriam, o doutor entrou a falar de remédios, farmácias e projetos de estabelecimento. O reverendo, decifrando o mistério, deteve a xícara no ar.

— Mas... mas então o senhor...

— Sou farmacêutico, e vim estudar a localidade a ver se é possível montar aqui uma botica. Portei em sua casa porque…

O padre mudou de cara.

— Então não é o doutor Emerêncio, o diplomata?

— Não tenho diploma, não senhor, sou farmacêutico prático...

O padre sorveu dum trago o café e refloriu a cara de todos os sorrisos da beatitude; desabotoou a batina, atirou com os pés para cima da mesa, expeliu um suculento arroto de bem-aventurança e berrou para a cozinha:

— Maria, dá cá o pito!

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

José Maria de Heredia (Poemas Recolhidos)


A CONCHA

Depois de tanto inverno, a que gelado oceano
foste, quem saberá, ó concha nacarada?
Das correntes do mar ao poder soberano,
no abismo verde andaste sempre abandonada?

Um leito agora tens sobre a areia dourada,
sob o infinito céu, longe do horror insano;
mas, esperança vã, geme desesperada
em ti, da voz do mar, o misterioso arcano.

Minha alma se tornou uma prisão sonora:
como no seio teu ainda suspira e chora
ecoando sem cessar todo o antigo clamor,

assim no coração, que por ela palpita,
como a voz que há em ti, surda, lenta, infinita,
ruge em mim tempestuoso o longínquo rumor.

(Tradução de  Luís Franco)
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A FEITICEIRA

Em toda parte, até nos altares sagrados,
vejo-a que por mim chama e alvos braços me lança.
Pai venerável! Mãe que me embalou criança!
De uma execrável raça expio hoje os pecados?!

O Eumólpide* não quis na sede de vingança
os mantos sacudir ao solo, ensanguentados.
E eu fujo, sem querer, exausto, os pés cansados;
e dos sagrados cães o rude uivar me alcança.

Aonde vá, sinto, aspiro, a mim mesmo odioso,
o sinistro feitiço, o encanto tenebroso
com que, dos Deuses ainda, a cólera me esmaga,

pois puseram-lhe os céus, como supremo encanto,
esses olhos de sombra e essa boca que embriaga,
armando contra mim seus beijos e seu pranto.

(Tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça)
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* Eumólpide ou hierofante = é o termo usado para designar os sacerdotes da alta hierarquia dos mistérios da Grécia e do Egito. É o sacerdote supremo, que pode ser chamado também de Sumo Sacerdote.
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A FLAUTA

A tarde já chegou. Revoam pombos no ar.
Não dá nenhum encanto à paixão amorosa,
cabreiro! a gaita com que estás a acompanhar
a água que, entre juncais, desliza sonorosa.

Deste plátano à sombra, onde viemos deitar
a relva é mais macia. Amigo, a cabra ociosa
surda a seu cabritinho a fim de o desmamar,
deixa que aos morros trepe e aos brotos busque, ansiosa.

A minha flauta de sete hastes de cicuta
feita, unidas a cera aguda, ou grave, escuta!
Ou chore, ou gema, ou cante, é sempre ao meu sabor.

Vem conosco aprender a arte do deus Sileno!*
Deste sagrado tubo irão pelo ar sereno
como aladas canções, teus suspiros de amor!

(Tradução de  Freitas Guimarães)
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* Deus frígio, companheiro de Dionísio. Atribuíram-lhe a invenção da flauta.
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O BANHO DAS NINFAS

N'um canto da floresta escura e densa
por sobre a fonte curva-se um loureiro.
Nua, à ramada a Oréade suspensa sobre
a água dependura o corpo inteiro.

Ao banho, as ninfas; rápido e ligeiro!
E ei-las, as manchas de brancura intensa
dos corpos nus, levípedes; e o cheiro
que nuvem de ouro do cabelo incensa! . . .

Lançam-se a nado as deusas em peleja
mas súbito, rompendo os negros flancos
do bosque, o olhar de um Sátiro flameja. . .

E, nuas, elas trepam-se aos barrancos...
Tal à vista de um corvo que fareja
debanda a multidão dos cisnes brancos!

(Tradução de  João Ribeiro)
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O ESCRAVO

Escravo sujo e nu, sem teto, esfomeado,
no meu corpo há sinais flagrantes do que digo.
Livre, ao fundo nasci do belo golfo antigo,
onde reflete o Hibla o píncaro azulado.

Deixei meu lar feliz, eu! Se fores amigo,
ao mel de Siracusa e ao ninho embalsamado
pelo bando vernal de cisnes transportado,
procura essa que traz meu coração consigo.

De novo os olhos seus verei, de azul tão puro,
sorrindo ao sol natal que neles se reflete
sob o arco triunfal do supercílio escuro.

Ai, tem piedade, parte; e à meiga Cleariste
que vivo a ver, só para a ver, repete;
hás de saber quem é, porque está sempre triste.

(Tradução de  Melo Leitão)

SEGUINDO PETRARCA
                                                                 
Saíeis de uma igreja e, num gesto apiedado
as vossas nobres mãos abriram-se à pobreza;
à sombra do portal vossa clara beleza
mostrava o ouro dos céus ao mendigo extasiado!

E quando, humilde como um cortesão curvado,
eu vos saudei com toda a graça e gentileza,
puxastes a mantilha aos olhos, com presteza,
desviando-vos de mim, com ar de desagrado.

Mas, Amor, que domina o peito mais altivo,
- menos terna que linda - ah! não quis que uma graça
me não desse a piedade, um doce lenitivo! -

porque fostes tão lenta o véu baixando, oh bela!
Que entre os cílios passou um clarão como passa
dentre a folhagem negra o raio de uma estrela!

(Tradução de Álvaro Reis)
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O grande sonetista de “Les Trophées” livro que lhe abriu as portas da Academia Francesa, nasceu em Cuba, descendendo de sangue francês, em 22 de novembro de 1842, e morreu em 2 de outubro de 1905 na França, no castelo de Bourdonné. Viveu desde os 8 anos na França. Fez parte do grupo dos “parnasianos” sob a chefia de Leconte de Lisle. Seus sonetos, obra de puro artesanato, verdadeiros medalhões, mereceram de François Coppée, a designação de “a legenda dos séculos em sonetos”, parafraseando Victor Hugo.
É talvez dos poetas franceses, ao lado de Hugo e Baudelaire, um dos mais traduzidos.

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. Poesia Universal.  Européia e Americana. Vol. III. Ed. Theor, 1970.

Arthur C. Clarke (Não Haverá Outra Manhã)


– Isto é terrível! – exclamou o Cientista Supremo. – Certamente poderemos fazer algo!

– Sim, Seu Conhecimento, mas será extremamente difícil. O planeta se acha a mais de quinhentos anos luz e é difícil manter contato. Entretanto, acreditam poder estabelecer uma cabeça de ponte. Por desgraça, não é este o único problema. até agora não conseguimos nos comunicar com os seres. Seus poderes telepáticos são extremamente rudimentares... talvez inexistentes. E se não podermos falar com eles, não poderemos lhes ajudar.

Houve um comprido silêncio mental enquanto o Cientista Supremo analisava a situação e chegava, como sempre, à resposta correta.

– Uma raça inteligente tem que possuir alguns indivíduos telepáticos – murmurou. – Teremos que enviar centenas de observadores, sintonizados para captar o primeiro espionar de pensamento, Quando acharem uma só mente sintonizada, que concentrem nela todos seus esforços. Temos que lhes transmitir nossa mensagem.

– Muito bem, Seu Conhecimento. Assim se fará.

No outro lado do abismo, no outro lado do golfo que a mesma luz demorava quinhentos anos em cruzar, os intelectos inquisitivos do planeta Taar estenderam seus tentáculos do pensamento, procurando desesperadamente um só ser humano cuja mente pudesse perceber sua presença. E, felizmente, encontraram o William Cross.

Ao menos, no primeiro momento o consideraram uma sorte, embora depois já não estiveram tão seguros. De todos os modos, não ficava outra eleição. A combinação de circunstâncias que abriram a mente do Bill a eles só durou uns segundos e não é fácil que voltem a ocorrer neste lado da eternidade.

O milagre constou de três ingredientes e é difícil dizer que agente foi mais importante que o outro. O primeiro foi o acidente de posição. Um frasco cheio de água, ao incidir em cima da luz do sol, pode converter-se em uma lente tosca, concentrando a luz em uma pequena zona. Em escala muitíssimo maior, o núcleo denso da Terra fazia convergir os feixes de ondas procedentes do Taar. Na forma ordinária, a radiação do pensamento não fica afetada pela matéria, já que aquela passa através dele com a mesma facilidade com que a luz atravessa o cristal. Mas em um planeta há muita matéria e toda a Terra atuou como uma lente gigantesca. Parece que isto situou o Bill em seu foco, ali onde os débeis impulsos mentais do Taar se concentravam as centenas.

Não obstante, outros milhões de homens estavam igualmente bem situados, mas não receberam nenhuma mensagem. Claro que não eram engenheiros de foguetes nem tinham acontecido anos pensando e sonhando com o espaço, até formar esta ideia, parte de seu próprio ser.

Nem estavam, como Bill, totalmente bêbados, vacilando já no último bordo da consciência; tratando de escapar da realidade para um mundo de sonhos onde não existissem desalentos nem fracassos.

Naturalmente, compreendia a opinião do Exército.

–... lhe pagam, doutor Cross – tinha dito o famoso general Potter, com uma ênfase inútil  – para planejar foguetes, não... ah... naves espaciais. Faça o que queira em suas horas livres, mas tenho que lhe rogar que não utilize os instrumentos de nosso estabelecimento para seus caprichos. A partir de agora, eu mesmo comprovarei todos os projetos da seção de cálculo. Nada mais.

Naturalmente, não podiam lhe despedir; era muito importante. Mas ele não estava seguro de querer ficar. Em realidade, não estava seguro de nada, salvo do trabalho que lhe tinham atribuído e de que Brenda se largou definitivamente com o Johnny Gardner... para pôr os sucessos em sua ordem de importância.

Cambaleando ligeiramente, Bill apoiou o queixo entre suas mãos e olhou a parede de tijolos caiados ao outro lado da mesa. O único intento de adorno era um calendário da Lockheed e uma foto seis por oito de um aerojet mostrando o “Li'l Abner Mark I” efetuando um atrevido separe. Bill olhava tristemente o espaço compreendido entre ambos os adornos e esvaziou sua mente de todo pensamento. As barreiras caíram...

Naquele momento, os intelectos do Taar lançaram um inaudível grito de triunfo e o muro que Bill tinha diante se dissolveu lentamente em uma forma de redemoinhos de névoa. Ao Bill pareceu estar olhando dentro de um túnel que se alargava até o infinito. E isto é o que fazia em realidade.

Bill estudou o fenômeno com escasso interesse. Era uma novidade, embora não chegasse à altura de alucinações anteriores. E quando a voz começou a falar em sua mente, ressonou algum tempo antes de que entendesse algo. Inclusive bêbado, Bill possuía um preconceito antiquado a respeito de conversar consigo mesmo.

– Bill – murmurou a voz – ouça atentamente. Temos grandes dificuldades para contatar com vós e isto é extremamente importante.

Bill duvidava desta declaração sobre princípios gerais. Não há nada tremendamente importante.

– Falamo-lhe de um planeta muito distante – prosseguiu a voz em tom amistoso. – Você é o único ser humano com o que conseguimos entrar em contato, de modo que tem que compreender o que dizemos.

Bill se sentiu algo inquieto, embora de maneira impessoal, posto que agora resultava mais difícil concentrar-se em seus próprios problemas. Às vezes a gente está muito grave, se começar a ouvir vozes. Bom, era melhor não excitar-se. “Doutor Cross, disse, pode tomá-lo ou deixá-lo. Tomarei até que resulte incómodo.”

– De acordo –- respondeu com indiferença. – Adiante, me fale. Embora seja longo, sempre pode resultar interessante.

Houve uma pausa. Logo a voz continuou em forma um pouco preocupada.

– Não entendemos. Nossa mensagem não é só interessante. É vital para toda sua raça e deve notificá-lo imediatamente a seu governo.

– Estou esperando – assentiu Bill – Isto me ajuda a passar o tempo.

A quinhentos anos luz de distância, os taars conferenciaram apressadamente entre si. Parecia passar algo inoportuno, mas ignoravam exatamente o que era. Não havia dúvida de que tinham estabelecido contato, mais não era esta a reação que esperavam. Bem, não tinham mais remédio que prosseguir e esperar o melhor.

– Escuta, Bill. Nossos cientistas têm descoberto que seu sol está a ponto de estalar. Isto acontecerá dentro de três dias a partir de hoje... dentro de setenta e quatro horas, para ser exatos. Nada pode impedi-lo. Mas não têm que lhes alarmar. Nós podemos lhes salvar, se fizerem o que diremos.

– Adiante – repetiu Bill.

A alucinação era engenhosa.

– Podemos criar o que se chama uma ponte... uma espécie de túnel através do espaço, como este pelo que agora olha. É difícil explicar uma teoria tão complicada, inclusive para um de seus matemáticos.

– Um momento! – protestou Bill. – Eu sou matemático, terrivelmente bom, inclusive quando estou sereno. E tenho lido todas estas coisas nas revistas de ficção científica. Suponho que se refere a certa classe de atalho através de uma dimensão mais elevada do espaço. Isto já era velho, na época anterior ao Einstein.

Na mente do Bill se introduziu uma sensação de enorme surpresa.

– Não sabíamos que estivessem tão avançados cientificamente – responderam os taars. – Mas agora não há tempo para discutir essa teoria. Só isto importa: se te introduzires pela abertura que há diante de ti, instantaneamente te acharias em outro planeta. Como disse, é um atalho, neste caso, através da dimensão trinta e sete.

– E isto conduz a seu mundo?

– Oh, não, não poderia viver aqui. Mas no universo há muitos planetas como a Terra e achamos o que lhes convém. Estabeleceremos cabeças de ponte como esta em toda a Terra, de modo que a gente só terá que entrar nelas para se salvar. Claro está, terão que voltar a forjar uma civilização em sua nova pátria, mas esta é sua única esperança. Tem que transmitir esta mensagem e lhes dizer o que têm que fazer.

– Já lhes vejo me escutando – resmungou Bill – por que não falam vós com o Presidente?

– Porque só pudemos entrar em contato com sua mente. As outras estão fechadas para nós; embora não entendamos por que.

– Eu lhes poderia contar isso –  respondeu Bill olhando a garrafa vazia que tinha diante de si.

Certamente, valia o que custava. Que notável era a mente humana! Naturalmente o diálogo não era original e era fácil ver de onde procedia a ideia. Na semana anterior tinha lido um relato sobre o fim do mundo e todos estes pensamentos a respeito de pontes e túneis através do espaço era só uma compensação para todo aquele que levava cinco anos lutando com os recalcitrantes foguetes.

– Se o sol estalar – perguntou Bill bruscamente, tratando de pilhar por surpresa a sua alucinação – o que acontecerá?

– Seu planeta se fundirá instantaneamente. Em realidade, todos os planetas até Júpiter.

Bill teve que admitir que esta era uma concepção grandiosa. Deixou que seu cérebro jogasse com a ideia e quanto mais a considerava, mais gostava.

– Minha querida alucinação – observou piedosamente – se te acreditasse, sabe o que diria?

– Tem que nos acreditar! - foi o grito desesperado através de quinhentos anos-luz.

Bill ignorou o grito. Estava gozando com o tema

– Dir-te-ei uma coisa. Seria o melhor que poderia ocorrer. Sim, economizaria muitos pesares. Ninguém teria que preocupar-se com os russos, a bomba atômica ou o elevado índice da vida. Oh, seria maravilhoso! É justamente o que todos desejam. Obrigado por nos haver isso dito, e agora volte para casa e leve essa ponte.

No Taar reinou a consternação. O cérebro do Cientista Supremo, flutuando como uma grande massa em sua tanque de solução nutritiva, amarelou ligeiramente pelas bordas... coisa que não tinha ocorrido da invasão Xantil, cinco mil anos atrás. Ao menos quinze psicólogos sofreram desenquadramentos nervosos e jamais se recuperaram. O principal computador da Faculdade da Cosmofísica começou a dividir cada número de seus circuitos de cor por zero e não demorou para danificar todos seus fusíveis.

E na Terra, Bill Cross expôs seus pontos de vista.

– Me olhe – dizia apontando seu peito com um dedo vacilante – passei muitos anos tentando construir foguetes que fossem úteis para algo e agora me dizem que só posso desenhar projéteis dirigidos, a fim de podermos destruir uns aos outros. O sol poderá, então, fazê-lo melhor e mais depressa e se nos entregasse outro planeta, voltaríamos a começar com o mesmo afã destruidor.

Fez uma triste pausa, acariciando seus mórbidos pensamentos.

– E Brenda partiu da cidade sem me deixar nenhuma nota. De modo que tem que perdoar minha falta de entusiasmo por sua amável oferta.

Bill compreendeu que não podia pronunciar a palavra “entusiasmo” em voz alta. Mas ainda podia pensá-la, o qual era um interessante descobrimento científico. À medida que se embebedasse talvez só acertasse a pensar palavras monossílabas.

Em um intento final, os taars enviaram seus pensamentos pelo túnel formado entre as estrelas.

– Não pode falar a sério, Bill! Todos os seres humanos são como você?

Vá, uma pergunta filosófica muito interessante Bill a considerou atentamente... ou ao menos com a atenção de que era capaz em vista do quente e rosado resplendor que começava a lhe envolver. Ao fim e ao cabo, as coisas poderiam ser piores. Podia achar um novo emprego, embora só fosse pelo prazer de lhe dizer ao general Potter o que podia fazer com suas três estrelas. E quanto a Brenda... bom, as mulheres eram como os bondes: cada minuto passa um.

Mas o melhor era que havia uma segunda garrafa de uísque na gaveta de MÁXIMO SECRETO. Oh, maravilhoso dia! Ficou em pé com dificuldade e cambaleou pela habitação.Pela última vez, os intelectos do Taar se comunicaram com a Terra.

– Bill! Todos os seres humanos não podem ser como você!

Bill se voltou para o túnel do tempo. Era estranho... parecia iluminado por pontos estrelados... era realmente magnífico. Sentiu-se orgulhoso de si mesmo; poucas pessoa podiam imaginar tal coisa.

– Como eu? – repetiu. – Não, não o são.

Sorriu através dos anos luz, ao tempo que a maré crescente de euforia apagava seu desalento.

– Pensando bem – acrescentou – há muitos indivíduos muito piores que eu. Sim, acredito que, apesar de tudo, eu ainda sou um dos felizes.

Piscou levemente surpreso, já que o túnel acabava de voltar-se sobre si mesmo e ali estava de novo a parede caiada, exatamente igual a sempre. Os taars sabiam que estavam derrotados.

– Adeus, alucinação – murmurou Bill. – Vejamos como será a próxima.

Em realidade, não houve nenhuma mais, porque cinco segundos mais tarde perdeu o conhecimento, enquanto estava marcando a combinação da gaveta do arquivo.

Os dois dias seguintes resultaram vagos e injetados em sangue e Bill esqueceu todo o referente à alucinação.

Ao terceiro dia algo começou a envenenar a mente, como se tivesse recordado a advertência dos taars, e não ter tornado a ver Brenda, lhe pedindo perdão.

Naturalmente, não houve um quarto dia.

Fonte:
Arthur C. Clarke. Histórias de dez mundos. In Biblioteca Sem Limites.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 191


Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: A História da Pequena Pic-Pic)


Quando a jovem Pic-Pic foi, um dia, ao bosque, caiu-lhe na cabeça uma bolota e supôs que o céu estava a desmoronar-se.

- Tenho de procurar o rei a todo o custo, para lhe comunicar que o céu está a cair. - decidiu imediatamente.

Deu meia volta e, pouco depois, cruzou-se com a senhora Put-Put.

- Aonde vai, senhora Put-Put?

Esta respondeu com prontidão:

- Ao bosque, procurar comida.

E a jovem Pic-Pic replicou:

- Não pense mais nisso. Eu estava lá, quando o céu começou a cair-me na cabeça, pelo que vou já informar o rei.

Em face disso, a senhora Put-Put deu meia volta, e acompanhava a jovem Pic-Pic, quando encontraram o senhor Quiquiriqui.

- Aonde vai, senhor Quiquiriqui?

E este respondeu:

- Ao bosque, procurar comida.

- Eu também ia lá com a mesma intenção, mas encontrei a jovem Pic-Pic, em cuja cabeça acabava de cair um pedaço do céu - explicou a senhora Put-Put. - Agora, vamos comunicá-lo ao rei.

O senhor Quiquiriqui deu meia volta e cruzou-se com a senhora Pil-Pil.

- Bom dia, senhora Pil-Pil. Aonde vai?

- Ao bosque, procurar comida.

- Eu também ia lá com essa intenção, mas encontrei a senhora Put-Put, que se tinha cruzado com a jovem Pic-Pic, a qual vinha do bosque, onde lhe tinha caído um pedaço do céu na cabeça - informou o senhor Quiquiriqui. - Agora, vamos comunicá-lo ao rei.

A senhora Pil-Pil deu igualmente meia volta e cruzou-se com o senhor Quac-Quac.

- Bom dia, senhor Quac-Quac. Aonde vai?

- Ao bosque, procurar comida.

E ela anunciou:

- Volte para trás, pois eu estava animada de idêntica intenção, mas encontrei o senhor Quiquiriqui, que, por sua vez, tinha encontrado a senhora Put-Put e esta a jovem Pic-Pic, em cuja cabeça caiu um pedaço do céu, fato que vamos agora comunicar ao rei.

O senhor Quac-Quac apressou-se a dar meia volta e, um pouco adiante, cruzou-se com a senhora Chis-Chis.

- Aonde vai tão cedo, senhora Chis-Chis?

- Ao bosque, procurar comida.

- Deixe-se disso, pois eu tinha a mesma intenção, mas encontrei a senhora Pil-Pil, que encontrara o senhor Quiquiriqui, este a senhora Put-Put e esta, por sua vez, a jovem Pic-Pic, que esteve no bosque, onde lhe caiu um pedaço do céu na cabeça, pelo que vamos todos procurar o rei para o informar.

A senhora Chis-Chis também deu meia volta e em breve se cruzou com Sir Graj-Graj.

- Pode saber-se aonde Vossa Excelência vai?

- Ao bosque, procurar comida - disse ele.

E a senhora Chis-Chis informou-o:

- Eu também ia lá, mas encontrei o senhor Quac-Quac, que tinha encontrado a senhora Pil-Pil, esta por sua vez o senhor Quiquiriqui, este a senhora Put-Put e esta, finalmente, a jovem Pic-Pic, que vinha de lá, onde lhe caiu um pedaço de céu na cabeça. Por conseguinte, vamos comunicar o fato ao rei.

Sir Graj-Graj apressou-se a dar meia volta e não tardou a deparar-se-lhe o senhor Cuá-Cuá.

- Bom dia, senhor Cuá-Cuá. Aonde vai?

- Ao bosque, buscar comida.

E Sir Graj-Graj revelou-lhe:

- Dê já meia volta, porque eu também ia para lá, mas encontrei o senhor Chis-Chis, que tinha encontrado o senhor Quac-Quac, que por sua vez se encontrara com a senhora Pil-Pil, que se cruzou com o senhor Quiquiriqui, que havia falado com a senhora Put-Put, a qual lhe comunicou que a jovem Pic-Pic estivera no bosque, onde lhe caíra um pedaço do céu na cabeça, fato que vamos transmitir ao rei.

O senhor Cuá-Cuá deu também meia volta e acompanhou Graj-Graj, Chis-Chis, Quac-Quac, Pil-Pil, Quiquiriqui, Put-Put e Pic-Pic. Enquanto percorriam a estrada surgiu o senhor Raposo-Raposo, que perguntou:

- Onde vão estas belas damas e distintos cavalheiros?

E eles responderam:

- A jovem Pic-Pic esteve o bosque, onde lhe caiu um pedaço do céu na cabeça, pelo que vamos informar o rei.

Em face disso, o senhor Raposo-Raposo indicou:

– Venham comigo, que lhes mostrarei o caminho. No entanto, conduziu-os ao seu covil, onde ele e os seus distintos filhos comeram a jovem Pic-Pic, a senhora Put-Put, o senhor Quiquiriqui, a senhora Pil-Pil, o senhor Quac-Quac, a senhora Chis-Chis, Sir Graj-Graj e o senhor Cuá-Cuá, os quais não tiveram, pois, a oportunidade de se avistar com o rei para lhe comunicar que o céu se estava a desmoronar.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

A. A. de Assis (Trovas do Mestre Trovador) 3


A idade é, por excelência,
a grande mestra do amor.
– É no outono da existência
que a paixão tem mais calor!
*
A mais bonita homenagem,
concede-a Deus, qual troféu,
a quem completa a viagem,
sem mancha, do berço ao céu!
*
Aos bons sonhos agradeço,
mas às insônias também...
– Ah, quantos versos eu teço
enquanto o sono não vem!
*
A saudade sintetiza
sonhos, glórias, sentimentos,
como um filme que eterniza
nossos melhores momentos.
*
Brilha sempre em nossa vida
alguma luz: a do sol
ou no mínimo a emitida
por um mínimo farol.
*
Com que ternura e altivez
luta a mãe pobre e sem brilho
para ao fim de cada mês
pagar os sonhos do filho!
*
Corações apaixonados
não aceitam repressão.
Explodem, se condenados
a engaiolar a emoção!
*
Cuidemos, irmãos, da imagem;
sem exagero, contudo.
– Muito mais do que a embalagem,
o que conta é o conteúdo.
*
Densas nuvens ameaçam
o futuro da criança.
Mais que as da chuva, que passam,
as nuvens da insegurança.
*
Dê-se ao jovem liberdade
para sem medo ele ousar.
– É no ardor da mocidade
que o sonho aprende a voar!
*
Doce, amigo e generoso,
quis Deus se configurar
no abraço do pai saudoso
no filho que torna ao lar.
*
Entre a inocência e a esperteza,
é da inocência o troféu.
O esperto ganha a riqueza,
o inocente ganha o céu.
*
Feliz o povo que pensa
e que se expressa à vontade.
– Onde amordaçam a imprensa
morre à míngua a liberdade.
*
Há de, enfim, vir o momento
da correção dos papéis:
mais valor terá o talento
que os diplomas e os anéis!
*
Mantenha a esperança alerta,
por mais que lhe pese a cruz.
– Há sempre uma porta aberta
para quem procura a luz.
*
Minha amada é meiga e doce,
dela emana a luz do bem.
Ela é assim como se fosse
minha estrela de Belém!
*
Na era do “ponto.com”,
voa o sonho mais ligeiro:
– um clique... e, qual vento bom,
chega a trova ao mundo inteiro!
*
Não chamem de mundo-cão
o feio mundo do mal.
No cão pulsa um coração
melhor que o nosso, em geral.
*
Nos passos do bailarino,
na garganta do cantor, 
em cada tango argentino
geme uma história de amor.
*
Por mais singela, a pessoa
terá sempre algo a doar.
– A Lua é uma rocha à-toa;
nos dá, no entanto, o luar!
*
Que bom que ninguém mais usa
consagrar heróis de guerra...
– Hoje herói é quem recusa
macular com sangue a Terra!
*
Quer sonhar?... Faça turismo
no coração de um poeta.
É o refúgio onde o lirismo
seus enredos arquiteta!
*
Se as moquecas saem boas,
vão para o “chef” os louvores.
– Nunca ouvi cantarem loas
ao labor dos pescadores…
*
Seca e enchente são recados
aos povos de toda a Terra:
– alerta contra os pecados
do fogo e da motosserra!
*
Solitário coração
abandonado num canto...
Ninguém com um lenço à mão
para lhe enxugar o pranto!
*
Ter mil bens sem ser do bem,
que triste prazer produz...
– É ter tudo, sem, porém
ter nada que leve à luz.
*
Vênus, Marte, o Sol e a Lua
talvez sejam mais vizinhos
que os que compõem na rua
a multidão dos sozinhos.

Fonte:
Vida, Verso e Prosa.

Literatura Hindu Através dos Tempos


Algumas das obras que são conservadas da literatura hindú do III milênio são escritas em sânscrito, a língua mais antiga da árvore indo-europeia.

Durante o primeiro período, foram escritos textos religiosos divididos em diferentes grupos. Vamos ver:

1. Veda: palavra que significa "ciência". Dentro deste grupo, encontramos textos como

Rigveda (Veda dos hinos),
Atharvaveda (Veda dos feitiços),
Samaveda (Veda dos cânticos) e
Yajurveda (Veda das fórmulas sagradas).

São coleções de hinos, orações, canções para a liturgia, invocações aos deuses, etc.

2. O Brahmana: coleção de ensinamentos de gênero religioso e filosófico.

3. O Sutra: são séries de aforismos sobre os mais diversos assuntos.

Mais tarde, grandes poemas épicos da literatura sânscrita começam a aparecer:

o Mahabharata e
o Ramayana.

O primeiro é o poema mais longo escrito no mundo, pois consiste em duzentos mil versos. O tema central deste trabalho são as lutas entre os descendentes dos irmãos Kuru e Pandu. O segundo é mais curto e narra as façanhas do rei Rama. É escrito por Valmiki.

O budismo, a religião por excelência da Índia, deu origem a literatura canônica, que foi preservada em uma grande obra chamada Tripitaka. Seu conteúdo é basicamente religioso, há fábulas e lendas do tipo romancesco.

Na era cristã, o teatro alcança seu maior sucesso graças a Kalidasa, com sua obra-prima Sakuntala, drama de intrigas amorosas intrigantes do Mahabharata. No entanto, o teatro também teve outros criadores menores, como Bhasa (século 2), autor de Carudala, uma comédia emaranhada, e Vishakhadatta (século 5), autor de Mudraraksasa, drama político.

As coleções mais antigas de poesia lírica são Sattasai e reúnem poemas amorosos.

A narrativa indiana é muito importante nesse período, porque é influenciada pela literatura e pelo folclore universal. Uma amostra disso é o Panchatantra (os cinco livros), conjunto de setenta histórias ou fábulas.

Após um período de crise literária, a literatura indiana renasce no século XIV através de diferentes veículos de expressão. Por exemplo, o sânscrito é traduzido por diferentes idiomas modernos, principalmente tâmil, bengali e hindi. O tema principal é amor e religião.

O autor mais universal da literatura indiana é Rabindranath Tagore (1861-1941), que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1913. Embora esse autor escreva em bengali, seus trabalhos traduzidos para o inglês são divulgados.

Fonte:
Traduzido de Mailxmail = Literaturas del Mundo
Fonte da imagem = Literatura Universal