quinta-feira, 5 de março de 2020

Nilto Maciel (O Manuscrito de Yellah)


Por que o manuscrito de Yellah continua inédito? Não me refiro ao meu livro, mas ao documento deixado pelo astrônomo. Não ando à cata de glórias literárias, que certamente o livro me dará, nem sou um explorador do fantástico. Ora, o manuscrito se contém em umas trinta laudas apenas. Eu o teria publicado em jornais e revistas, sem uma só palavra a mais, não fossem as recusas dos editores. Foi esta minha primeira intenção, foi este meu primeiro ímpeto.

A princípio acreditei que as recusas de publicação do estranho escrito se devessem ao desinteresse da imprensa pelo assunto. Dias depois, porém, rememorando os fatos, lembrei-me do entusiasmo do primeiro editor ao ler o texto yellahiano, a emoção com que me agradeceu o fornecer-lhe matéria tão interessante. Prometeu-me boa recompensa, a tiragem do jornal sairia dobrada, podíamos preparar ou­tros textos, explorar o filão. Eu topava a parada? Sim, logicamente. Apareça mais tarde para uma entrevista. E bico calado, nada de procurar outros jornais. Deixasse logo cópia do manuscrito com ele.

Mais tarde, já munido de outras informações para a entrevista do século, custei a acreditar estivesse diante do mesmo editor. Desculpasse, mas o assalto ao banco, no fim da tarde, fato inesperado, não estava sabendo? Havia tomado o último espaço da edição. Ficava para outra oportunidade, ou, então, procurasse fulano, amigão do peito, do jornal tal.

De déu em déu, acabei por desconfiar de outras razões para tantas evasivas tão semelhantes entre si. Ora, mal eu me apresentava, já o sujeito, sem sequer ler o manuscrito, pedia desculpas e me deixava a ver navios.

Na minha ingenuidade, imaginei o mais lógico motivo para o ve­to dos jornais à publicação do documento: o público não iria enten­der neres de neres do texto, se publicado sem uma nota explicativa, uma advertência, um preâmbulo esclarecedor. E pus-me a rabiscar um perfil de Yellah, noções elementares de Astronomia, rápidos passeios pela História, sínteses das teorias dos sonhos, e cada vez me perdia mais nos corredores da informação e da suposição. Súbito, havia escrito um longo texto sobre o manuscrito. Que é meu livro recusado pelas editoras.

Minha luta pela sua publicação pode ser tida como a reedição da que travei pela divulgação do escrito de Yellah. Assim, deixei o primeiro editor cheio de esperanças. Ora, eu lhe fiz uma síntese do livro e o assunto lhe pareceu fadado a grande sucesso de público. Falou-me numa primeira edição de cinquenta mil exemplares. Não autorizava logo a publicação para não fugir à política da casa. Referia-se à leitura dos originais pelo conselho editorial. De qualquer forma, voltasse dali a três dias, para a assinatura do contrato. E deu-me palmadinhas às costas, ofereceu-me café, abraçou-me.

No dia aprazado, lá estava eu de novo diante do velhinho. Não o levasse a mal, compreendesse sua posição, não podia ser contra a opinião do conselho. E voltei às correrias e aos desenganos.

Para uns, todo o meu livro, inclusive o texto de Yellah nele inserido, é pura ficção e, por só publicarem obras científicas ou de informações, se me editassem, estariam enganando o público. Para as editoras de obras de ficção, O Manuscrito de Yellah não passa de um amontoado de pseudo-informações. Existem aquelas, porém, que publicam de tudo. E estas têm também suas razões: não investem em autores desconhecidos, andam às voltas com crises financeiras, seus cronogramas editoriais já estão elaborados para os próximos cinco anos.

Decepcionado com a nossa indústria editorial, fiz das tripas coração e fui bater às portas de editores estrangeiros. E até lá minha má fama já chegou. Ou não se trata disso?

O tal manuscrito que ninguém ousa publicar e mais um telescópio foram encontrados por um camponês de Solenhofen junto às cinzas de Yellah. Adquiri-os por uma ninharia.

Em fins de 1945, muitos camponeses morreram fuzilados na Alemanha. Apesar da rendição dos governos fascistas, atrocidades como estas davam prosseguimento à matança iniciada nos anos anteriores. Famílias inteiras desapareciam ao fogo do desespero nazista. Só por extremos atos de heroísmo, um ou outro conseguiam escapar à morte. Como Elizabeth Stengel. Grávida de oito meses, correu quilômetros da fúria de seus compatriotas ensandecidos. Para trás deixou os cadáveres do marido e dos filhos. E alcançou a França, onde deu à luz um menino, que batizou com o nome de Yellah. Por que não de Peter, Thomas, Karl? Ou de Pierre, Charles, Paul? Nem alemão nem francês.

Não durou muito Elizabeth e a criança terminou num asilo para menores abandonados.

Em 1960, o jovem Yellah sonhou com a própria morte. No sonho, estávamos em 1970 e milhares de monstros alados saltavam de um cometa para a Terra e massacravam a humanidade.

Daí por diante, passou a interessar-se por astronomia e fenomenologia. Descobriu as inexplicáveis coincidências existentes entre Halley e ele mesmo. Seu nome, escrito de trás para a frente, era o do astrônomo inglês. Sua mãe havia nascido em 1910, ano da aparição do cometa de Halley. Ela, sim, poderia ter se chamado Yellah.

Em 1682, aos 26 anos de idade, Edmund Halley viu o cometa que recebeu o seu nome. Em 1970, ano da passagem do cometa de seu sonho, Yellah estaria também com 26 anos de vida.

O cometa de Halley reapareceu em 1758, ou seja, 16 anos após sua morte. Em 1986, reaparecerá o cometa, ou seja, 16 anos após a morte de Yellah.

Segundo o inquieto filho de Elizabeth Stengel, no dia 30 de janeiro de 1970, milhões de seres humanos sonharam com a invasão da Terra pelos superarqueoptérix. Estes monstros alados habitavam o cometa de seu sonho apocalíptico há milênios, quando fugiram da Terra. De volta ao berço natal, devoravam os homens, tomando-lhes o lugar de reis da criação.

Para Yellah, o sonho coletivo de 1970 se concretizará em 1986.

Quem se lembrará de um sonho comum dos anos 1970? Nos apontamentos dos psicanalistas talvez se encontrem versões destes sonhos. Ou todos eles preferiram queimar seus cadernos, a terem de depor como inquisidores?

Na opinião do prodigioso alemãozinho, o sonho está para a realidade como a ficção está para o leitor. Um romance, consoante ele, é um ser de palavras. Cada leitor, no entanto, o lê à sua maneira, de acordo com sua capacidade. Uma realidade em si mesma é imutável, embora os homens a vejam em sonho à maneira de cada um. E vai mais longe: o sonho é sempre mais grandioso do que a realidade, da mesma forma que um romance se enriquece à medida que é lido.

Pela teoria de Yellah, para ele verdade irrefutável, enquanto os homens sonhavam, os superarqueoptérix rondavam a Terra.

Para se defender das acusações de charlatanice filosófica ou científica, o pequeno sábio fundamenta sua afirmação assim: os milhões de seres humanos que não dormiam e, portanto, não sonhavam no momento da passagem do cometa, foram ocasionalmente hipnotizados. E também sonharam. Em hipnose ou sono natural, a humanidade estaria desarmada para qualquer resistência.

O tempo de duração da hipnose coletiva estava previsto para algumas horas, suficientes para o ataque a todos os rincões do planeta. De fato, porém, não passou de segundos. Desentendimento entre os invasores? Arrependimento? Decisão de última hora de adiamento do golpe? Na verdade, segundos após a aspersão do narcotizante sobre a Terra, os estranhos nos bombardearam com outra substância de efeito neutralizante.

Yellah teria sido o único ser humano a ver o cometa pelo telescópio e ao mesmo tempo em estado de hipnose ou sonambulismo. Escrevia a parte final e mais importante de sua pequena obra – justamente a narração do aparecimento do cometa e do ataque dos monstros – quando o raio da morte o fulminou.

Ao texto de Yellah não cabe a mim nem a ninguém chamar de ficção. E se for, por que esse medo deles? Ao manuscrito não compete a ninguém indicar seu autor. Se eu, sou quem? Se Yellah, ele existiu?

Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos n. 6)


quarta-feira, 4 de março de 2020

Varal de Trovas n. 198


Rubem Braga (Os Jornais)


Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um  sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira.  Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime.

"Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz. . ." Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:

"Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se  de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para  abraçá-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: "Meu amor", ao que  ele retorquiu: "Deolinda". Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7,45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal".

A impressão que a gente tem, lendo os jornais - continuou meu amigo– é que "lar" é um local destinado principalmente à prática de"uxoricídio". E dos bares, nem se fala. Imagine isto:

"Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Anafias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar "Flor Mineira", à  rua Cruzeiro, 524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no  mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois   amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu,  seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo  dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14,  senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada".

E meu amigo:

- Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão  banal  de  que ninguém se lembra: a vida...

Fonte:
Rubem Braga. A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956.

Juana de Ibarbourou (Poemas Recolhidos)


A PROMESSA

... E todo o ouro do mundo parecia
diluído na tarde luminosa.
Apenas um crepúsculo de rosa
a alta copa das árvores tingia.

Súbito amor, a minha mão unia
à tua mão morena, carinhosa...
Éramos Booz e Ruth ante a formosa
terra que aos nossos olhos se estendia.

- Me amarás? perguntaste. Lenta e grave
veio-me aos lábios a promessa suave
da amante moabita, tão querida;

e foi como um “Amém!”  que neste instante
se ouviu, num toque de oração, vibrante
bater o sino da pequena ermida!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)
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AMEMO-NOS

Sob o róseo dossel deste loureiro em flor,
amemo-nos. O velho e eterno lampadário
da luz reacendeu seu clarão milenário
e este recanto de erva é um ninho, em seu calor.

Amemo-nos. Talvez haja um fauno escondido
junto do tronco do loureiro, solitário,
a chorar, sem amor, o seu triste fadário,
olhando nosso amor no prado adormecido.

Amemo-nos. A noite, encantada, harmoniosa,
tem não sei que de uma doçura misteriosa...
Somos deuses e estamos sós na paz dos campos.

E, brilhando, por entre os meus e os teus cabelos,
em trêmulos clarões, fugazes, a acendê-los,
joias verdeluzindo, amam-se os pirilampos.

(Tradução de  Mello Nóbrega)
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MONJA NOITE

Monja Noite é gentil, misteriosa, calada,
e traz, no hábito negro, um fulgente rosário.
Monja Noite padece uma pena ignorada
sem saber a razão de seu próprio calvário

Faz o milagre bom de suavizar as dores
com o gesto divinal de pôr as mãos em cruz.
Monja Noite compreende os mórbidos amores,
as misérias da vida e o sofrer de Jesus.

Sempre a espero a sorrir, pois acalma esta pena
de um amor infernal com a piedade serena
que a minha alma compreende, alma enferma e infeliz.

Monja Noite suaviza a aflição do calvário,
com seu hábito negro e o seu lindo rosário,
Monja Noite é uma irmã de Francisco de Assis.

(Tradução de Othon Costa)
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REBELDE

Caronte, quando eu for em teu barco sombrio,
que escândalo eu farei nessa triste romagem!
Temerosas, talvez, do teu olhar tão frio,
outras sombras irão a rezar, como a aragem.

Mas eu irei cantando, alegre pelo rio
e em teu barco porei meu perfume selvagem.
A brilhar me verás nesse arroio sombrio,
como lanterna azul que ilumina a viagem.

Por mais que faças tu, por mais gestos de horror
desses dois olhos teus tão destros no terror,
Caronte, em tua barca, eu serei um escândalo.

E, já farta de sombra e cansada de frio,
quando fores deixar-me à outra margem do rio,
tu me farás descer, qual conquista de vândalo.

(Tradução de Rosália Sandoval)
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VIDA SIMPLES

Iremos pelos campos, mão na mão,
por entre os bosques e os pradais de trigos,
junto aos rebanhos de candura antigos
por sobre a verde maciez do chão.

Comeremos o doce fruto são
das rústicas videiras, os bons figos
que coroam as moitas. Como amigos
partiremos a ceia, o leite, o pão.

E nas mágicas noites estreladas
sob a calma do azul, entrelaçadas
as mãos, lábios em frêmito, ardorosos,

renovaremos nosso morto idílio
que será como um verso de Virgílio,
vivido em frente aos astros luminosos.

(Tradução de Murilo Araújo)
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Juana de Ibarborou
De solteira seu nome era Juana Fernández Morales, porém é mais conhecida como Juana de Ibarbourou, sobrenome de seu marido, o capitão Lucas Ibarbourou,com quem se casou quando tinha vinte anos. Nasceu em Melo, Cerro Largo, Uruguai, a 8 de março de 1895 e faleceu em Montevidéu, em 14 de julho de 1979.

Poesia de notável expressão lírica, muitas vezes mística, luminosa e emotiva Sua poesia enriqueceu a literatura de América marcando-a com sua forte e delicada personalidade plena de amor. Talvez por esta razão o público de língua espanhola tenha lido sua poesia desde sempre com tanto entusiasmo.

Poetisa de grande expressão lírica, seus primeiros livros são de versos exaltados, sensoriais, apaixonados, e em linguagem clássica e pura. Nos últimos anos sua poesia ganhou certa expressão mística e até religiosa. Sua poesia conquistou tão rapidamente a atenção do público em geral e dos entendidos, que em 10 de agosto de 1929, no “Salón de los Pasos Perdidos” do Palácio Legislativo, um grupo de artistas e diplomáticos de diversos países encabeçados pelo célebre escritor Alfonso Reyes, lhe outorgou o título de “Juana de América”.

Outras condecorações:
– Orden Universal del Mérito Humano (em Genebra, 1931),
– Medalla de Oro de Francisco Pizarro (Perú 1935),
– Orden del Cóndor de los Andes (Bolivia, 1937)
– Orden del Sol (Perú, 1938),
– Ordem do Cruzeiro do Sul (Brasil, 1945)
– Primeiro prêmio del Ministerio de Instrucción Pública del Uruguay (medalha de ouro em 1945),
– Cruz de Comendador do Grande Prêmio Humanitário (Bélgica, 1946) etc.

Obras:
“Las lenguas de diamante”, “El cantaro fresco”, “Raiz salveja”, “La rosa de los ventos”, “Estampas de la Bíblia”, e “Su Mejores Poemas”, (coletânea).

Fonte:
J G de Araujo Jorge, Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. Poesia Universal - Européia e Americana  – vol. III. 1a ed, Rio de Janeiro, 1966.

Raul Pompéia (A Cruz da Matriz)


A igreja Matriz de *** está distante uns cinquenta passos do povoado...

É um edifício pobre de arquitetura, mas rico dessas arborizações cor de limo, que a humanidade pinta pelas paredes velhas, como que para suavizar o colorido deslumbrante de uma caiação primitiva. Tem por campanário uma espécie de sótão. Este sótão sobressai no vértice do ângulo de duas cornijas oblíquas, que sobem a unir-se aos pés de uma cruz de ferro escalavrado por uma oxidação antiga. À janela anterior dessa torre está suspensa uma sineta, que atira badaladas alegres aos ecos do sertão quando soa a hora da missa.

Galga três pedras amontoadas, como degraus, quem pretende ter ingresso no santuário. Vê-se então, em uma nave modestíssima, que os esforços dos fiéis conseguiram assoalhar sofrivelmente.

O altar-mor levanta-se fronteiro à entrada. Em nada destoa do aspecto geral da matriz. A cada lado desse altar existe uma portinha. A da direita dá para. um terreiro; a do lado oposto comunica com a sacristia. Triste sacristia que é! Calçada de ladrilhos desnivelados, tem por mobília dois bancos, a que o tempo tirou quase todo o verniz, e um armário, sobre o qual se vê uma imagem poeirenta da Virgem e dois castiçais azinhavrados, de cujas bordas pendem longas estalactites de cera amarela.

A sacristia tem uma janela e uma porta, que se abrem para um terreno plantado de girassóis.

Entre a janela e a porta está um dos bancos de que falei. É aqui que o velho vigário C... passava as suas manhãs e tardes. Manhãs e tardes de tranquila meditação, inspirada menos pelos segredos da ciência, que pelos mistérios da fé. Nesse lugar era visto, os olhos no chão e o pensamento no céu, deixando cair dos joelhos as mãos abandonadas, ou mergulhando os dedos por meio das franjas argentinas, que alguns dissabores e alguma idade lhe haviam feito brotar da fronte.

Ao lado do pároco aparecia às vezes o sacristão. Brício chamava-se ele. Era um rapazola travesso. Os seus treze anos nutriam nele pronunciada disposição para a brejeirada, que, conquanto inofensiva, desgostava bastante o bom do vigário. Diziam uns que o sacristão era afilhado do respeitável sacerdote; outros, porém, os maldizentes, em maior número certamente e, porventura, menos longe do verdadeiro, afirmavam que os afixos do qualificativo eram mero disfarce de um velho pecadinho do vigário.

Milhado, ou não, o certo é que Brício era paternalmente amado pelo padre. Este, não obstante o seu amor, via-se frequentemente forçado a apertar-lhe a orelha, quando o pequeno por qualquer forma fazia conhecer a decidida preferência que dava a um alçapão sobre a campainha. De fato, o menino gostava mais de espreitar, no mato, qualquer volátil do que responder ao Dominus vobiscum, no altar. Era mais passarinheiro do que sacristão. Isto causava certo desgosto ao pároco e o fazia murmurar:

- O brejeiro é levado.

Estes termos traduziam a irritação do sacerdote, pequena trovoada que, descarregando-se às vezes pelas orelhas do brejeiro, se desfazia logo no mais bonançoso esquecimento.

As vezes que as travessuras de Brício ficavam impunes, devia-as ele a um refúgio que possuía, inacessível às punições, pelo menos às do vigário. O refúgio era a torre, ou antes, o sótão da Matriz. Com efeito, o padre C... não era muito idoso, mas... sofria de um reumatismo, que não consentia que ele, na torre, ouvisse de mais perto o repicar do bronze. Uma vez, pois, no campanário, tinha Brício as orelhas livres dos dedos do vigário.

Pela manhã, quando aparecia o padre na sacristia, se o sacristão era detido, passava este os mais desagradáveis instantes da sua existência. Além da missa, que ele ajudava com alguma paciência, outros tormentos lhe eram marcados. Ora, eram dois pombinhos que chegavam a ligar-se perante Deus, ora, um pequeno candidato a um lugar na arca da salvação... E Brício era forçado a postar-se estupidamente ao lado dos pombinhos e ao lado do candidato.

O sacristão vingava-se. Resmungava contra matrimônios e batismos, que tanto tempo lhe roubavam à caça de passarinhos. Se lhe metiam nas mãos alguma vela, partia-a em pedaços, que só o pavio não deixava cair. Estas vinganças eram as brejeiradas com que o vigário menos simpatizava. Eis porque, depois de qualquer ato religioso, uma cabecinha esperta mostrava-se nas janelas do campanário... Lá estava o sacristão esperando que o padre C... esquecesse o seu delito. E pouco esperava.

À tarde, já feitas as pazes com o vigário, Brício o deixava no banco da sacristia. Trocava então o ambiente de flores em decomposição, que tresandavam as melancolias da Matriz, pelo ar puro dos descampados, tão cheio desse perfume indefinível das últimas como das primeiras horas do dia. Ia para o campo armar esparrelas aos pássaros ou rachar taquaras e fazer gaiolas para os íncolas miúdos das selvas.

Uma vez, era ao decair de um belo dia. As cambiantes roxo-negras do crepúsculo vinham ganhando o anilado celeste. As tintas de ouro do Ocaso expiravam afogadas em róseos vapores...

Nessa hora alguns campônios contentes seguiam pela estrada de.... Iam da povoação para a matriz. Havia entre eles duas mulheres, uma das quais carregava risonha uma criança nos braços. A criança ia batizar-se.

O préstito caminhava... De repente parou... Uma exclamação de raiva partira do meio dos silvados, que margeavam o caminho.

Os campônios olharam em redor, talvez assustados. Um menino lhes apareceu então, mergulhado até a cintura em montes de mato rasteiro.

- Ora! dizia ele irado. Espantaram o meu passarinho!

Os rústicos que, sem o saber, haviam afugentado uma avezinha, no momento em que se ia deixar prender pela armadilha do pequeno caçador, riram-se da exclamação e seguiram para a igreja.

Entretanto, o menino aproximou-se da sua armadilha. Estava intacta; porém o passarinho, prestes a cair, voara embora.

Franziu o cenho e pôs-se a olhar alternadamente para o seu alçapão vazio e para o grupo de camponeses, que seguia para a matriz.

Ah! uma boa pedrada!... murmurou ele, com os dentes cerrados.

- Mas não! disse, depois de refletir. Vão batizar o filhote. Não é assim?... Muito bem... Ficarão sem sacristão.

Brício, pois o caçador não era outro, tinha formado o seu plano. Na ocasião em que o batizado chegava à igreja, o sacristão entrava no povoado.

Encaminhou-se este para a casa onde moravam ele e o vigário. Não quis entrar. Assentou-se na soleira da porta e aí ficara alguns minutos, quando um seu amiguinho chegou correndo e gritou-lhe.

- Brício, fuja! O Sr. vigário está lá em casa a perguntar por você e provavelmente virá aqui, vá esconder-se... Ele está furioso... Diz que você o deixou sem sacristão...

Brício soltou uma gargalhada franca e ruidosa:

- Ah! disse ele. Não tiveram sacristão. Nada mais justo...

O amiguinho do sacristão arregalou os supercílios com um ar pasmado.

- Não me entende. Não é?... Eu te explico... Um passarinho, antes de recolher-se ao ninho, pousou no meu alçapão... lá no caminho. Estava a cair, quando uns tratantes apareceram, levando um pequeno para batizar-se. Espantaram-me o passarinho e riram-se de mim... Agora eu rio-me deles... Espantando o passarinho, espantaram o sacristão... Bem feito! Não acha?

- Bem feito! Bem feito... Mas o mau é que os tais do batizado brigaram com o Sr. vigário, por faltar o sacristão, e juraram que se haviam de mudar da freguesia para não voltar a uma igreja tão...

- Oh! oh! Que logro!

- Sim! mas o Sr. vigário está seriamente zangado por isso... com você... E fuja, Brício! Aí vem gente!

Brício sumia-se por um lado, quando por outro mostrou-se o padre C... voltando uma esquina.

Ao ver o amigo do sacristão, o sacerdote dirigiu-se a ele:

- Você viu o Brício?

- Não, senhor, respondeu o menino.

E se afastou do padre, que ficou mordendo o beiço, ante a mentira do pequeno.

- Este é outro, disse ele, a meia-voz. Pensa que eu não ouvi-lhes a conversa...

Tinha já Brício chegado à igreja e se acomodara na torre.

Dentro em pouco avistou, caminho da matriz, o vigário

Vinha devagar, por causa da sua moléstia. Brício teve então umas das suas lembranças... E com elas havia várias vezes apaziguado o sacerdote.

- Bom, disse consigo, ele me há de avistar... Se me mandar descer, eu direi que apanhei um reumatismo que não me deixa andar quase... Ótima razão!

É a mesma que ele tem para não subir. O reumatismo que não o deixa subir, porque não me impedirá de descer?... Mais tarde descerei sem receio...

No princípio de uma cólera, qualquer coisa que devera fazer rir, irrita mais ainda. No fim sucede o contrário: extingue-a de todo.

Parece que o sacristão sabia disto, que cuidou em preparar-se no campanário. Saltou pela janela da frente curvando-se para não esbarrar na sineta, e passava para cavalgar no ângulo das cornijas do frontispício da Matriz, onde seria facilmente visto, apesar da noite que entrava...

Então, debaixo da estrada, se fez ouvir um grito de terror.

Era o vigário C...

Sucedera uma coisa horrível.

O pobre sacristão escorregara para fora e, fiando-se demasiado na segurança da cruz de ferro, agarrara-se a ela. O ferro oxidado vergou, inclinando-se para a frente, e depois abaixando-se.

Brício, com as mãos pregadas na cruz com uma energia desesperada, pedia socorro... suspenso no ar.

A cruz se ia entortando lentamente. Se Brício fosse pesado, o seu suplício não duraria tanto.

O ferro começou a rachar-se.

O menino, aterrado, via como avançava a morte, e ouvia os gritos do pároco abaixo dele...

O mísero vigário estava fora de si. Tinha querido subir ao campanário. Não pudera. Colocara-se então por baixo de Brício e, com os braços abertos, esperava neles recebê-lo.

- Brício! Brício! gritava.

E o ferro da cruz, primeiro devagar... depois, rápido... partiu-se.

Daí a pouco estava no adro da Matriz de*** um pequeno cadáver... A cabecinha, descansada nas lajes da escada, pendia um pouco para trás, com os cabelos a nadar em sangue... O corpo estendia-se inerte sobre a terra, uma das mãos encostada aos olhos, a outra segurando-se a uma cruz de ferro... Era o sacristão Brício.

A porta da igreja estava aberta. A noite enchera de trevas o santuário... Apenas no fundo luzia o clarão baço da lâmpada, com essa expressão sepulcral e triste que se descobre no olhar do moribundo... E este clarão, flutuando naqueles negrumes, deixava ver no meio da nave uma sombra negra.

Dir-se-ia um espectro...

Mas o espectro falou:

- Malfadada criança!

E depois com entonação soturna.

- Eu pecara, meu Deus... E tu me puniste!

Estas vozes perderam-se pelos recantos do templo, e a luz da lâmpada tremulou como em soluços.

Fonte:
Biblioteca Virtual

terça-feira, 3 de março de 2020

Varal de Trovas n. 197


Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 1


UM CORAÇÃO EM TERNURA

Eu trago dentro do peito,
na Ventura ou Desventura,
sem nunca mudar de jeito:
— Um coração em ternura...

Um coração emotivo,
pueril, para muita gente;
mesmo assim, com ele vivo,
feliz, tranquilo e contente.

É um jardim com muitas flores,
de tanta ternura cheio,
que além de ter suas dores,
também sofre o mal alheio…

Vai assim, meu coração,
sentindo dores e provas,
que por um milagre então,
vão se transformando em trovas.

Bendigo pois, satisfeito,
este dom, esta ventura,
de trazer sempre no peito:
— Um coração em ternura…
* * *
 
CANTIGAS COM PROVÉRBIOS

"Recua quem não avança…"
Eu fui avançar, recuei...
Tu me tiraste a esperança
quando um beijo te roubei...

"O cardo que há de picar,
logo nasce com espinhos..."
— Teu amor me fez penar,
e nasceu com mil carinhos...

"Pode se atrever a tudo,
quem tudo sabe sofrer…"
— Não sei sofrer e contudo
me atrevi a te querer…

"Não dá erva o chão pisado..."
Mas no amor não é assim...
Quanto mais sou desprezado,
tu mais versos tens de mim...

"Quem espera sempre alcança.
O que se alcança não sei...
Pois eu de tanto esperar,
só desespero alcancei...

Teu amor é leve, leve...
Longe estás!... — Vais me olvidar
"Barco pequeno não deve
navegar em alto mar..."
* * *

A UM POVO

(Povos felizes e cheios de paz, são arrastados no turbilhão da Guerra. O poeta, neste
verso, tenta traduzir, o que vai n'alma de um homem livre e poeta, ao ver a Guerra se aproximar de suas fronteiras.)


Também terás a tua fase incalma,
cheia de dor e de melancolia…
Para ganhares da vitória a palma,
terás que te bater com energia!

E perderás, esta invejada calma,
que sempre tu tiveste noite e dia...
Por isso deves preparar tu'alma
pois grande Temporal já se anuncia...

E sofrerás por veres tua terra,
cheia de Paz e tão feliz outrora,
lançada assim no turbilhão da Guerra!

Verás Escravidão em cada canto!
— E é por ser livre que já sofro agora…
E é por ser poeta que prevejo tanto!…
* * *

SUPONHAMOS

Suponhamos...
(Vamos apenas supor…)
— que sós assim como nós dois estamos,
estivesse também com meu amor…

Vamos imaginar ainda,
que ela fosse assim como você:
encantadora e linda… muito linda…

Com muito receio...
Trêmulo de emoção...   
Havia de encontrar um meio
para fazer a "minha declaração”…

Suponhamos que estivesse também
a noite fria… muito fria…
Eu pediria a ela então,
para aquecer na sua mão esguia,
a emotiva algidez de minha mão…

E assim tão perto dela eu ficaria,
que oscilar do meu coração,
ela na certa notaria
quando eu pedisse a "sua mão".
…………………………………………

Suponhamos agora
que eu deixasse de supor...
……………………………………….

Mas como você está tão nervosa e corada!
Olhe bem para mim
e não se zangue, por favor!…
…………………………………

— O que?! Não ficou mesmo zangada!?
Você é sublime, meu amor...    '
* * *

ROSAS...

Tão encantadoras rosas,
nunca mais observei,
como aquelas tão mimosas,
que nasceram no teu rosto
quando um beijo te roubei.
* * *

SANTA

Pálida e triste, suavemente bela,
de uma beleza fria, espiritual,
tal como num Crepúsculo, aquela
imagem de Maria num vitral...

… Pálida e triste, o seu olhar revela
candidez e pureza sem igual!
E um olhar ao fitar o rosto dela,
parece ver as santas de um Missal…

Por que trazes assim tristeza tanta,
num fundo misticismo que é de santa,
sem pressentir meu grande amor sequer?!

Tu não vês que a mính'alma te deseja?
— Se és santa, pois que fiques numa igreja.
Se não fores, que sejas mais mulher!...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura. 1a. ed. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1947.

Aparecido Raimundo de Souza (Como Penso, não Sou)


Você me pergunta, minha amiga, como eu sou:

- Como quer realmente que eu seja? Ou melhor; como gostaria que eu fosse? Para que me não tome como um aventureiro, ou descortês, tentarei, em poucas linhas, responder traçando um tiquinho do meu perfil. Para início de conversa, devo dizer que sou viciado em computador. Embora não disponha de uma máquina em casa, para uso pessoal, quando vejo uma dando sopa em lojinhas especializadas, logo me vem a vontade incontida de sentar numa cadeira e colar os olhos de frente pra telinha. Nem que seja para digitar no braço da pessoa que estiver ao lado, o meu nome, endereço de e-mail e telefone para futuros contatos. Sou emotivo, pertinaz, obsessivo, teimoso, não como uma mula sem cabeça, mas como um garanhão selvagem e indomado. Costumo enfatizar que possuo um magnetismo animalesco, vez que, dependendo de como acordo, costumo dar coices em mim mesmo, ou relinchar a torto e a direito. Às vezes, no café da manhã, mando pra dentro uma boa quantidade de alfafa, noutras, me contento com um chumaço de capim fresquinho. Chorão? Você quer saber se sou chorão? Olha minha linda, não muito! Se não me falha a memória, chorei uma única vez. Havia batido com os burros n'água por conta de uma empreitada que não resultou no esperado. Em face desse deslize, quase me vi enjaulado numa delegacia de periferia, acusado por algumas senhoras donas de boutiques de roupas femininas, como ladrão de calcinhas. Faltou bem pouco para que eu acabasse no xilindró, e, pior, nos braços de um negrão duas vezes mais alto que o Sérgio Reis.

Amo a vida. De paixão! Adoro viajar para baixo e para cima. Já rodei o mundo todo nas asas dos meus sonhos junto com minha imaginação. Sou um pouco menino, e, como todo garoto sapeca, corro atrás de pipas, jogo dominó, dama, xadrez, paciência, chuto bolas nas vidraças dos vizinhos e mexo com as meninas. Também tenho mania de levantar as saias das moças que encontro pelas ruas só pra ver a cara de zanga que elas costumam fazer a admoestação desse meu gesto. Espio as minhas irmãs no banheiro lá de casa pelo buraco da fechadura, quando vão tomar banho, ou trocar de roupas, e roubo balas dos velhinhos nos pontos de ônibus. Como homem nunca me achei no caminho almejado. Naquele trilhar que verdadeiramente tracei quando ainda fazia planos e acreditava em Papai Noel. Tampouco me flagrei no lugar em que a tal da sorte me disse ter reservado assento numa cadeira cativa. Sou tolo, fugaz despropositado e desagradável. Às vezes, suponho saber tudo, de repente descubro que não enxergo um palmo adiante do nariz. Faço parte de uma família que não criou raízes, nem correu atrás de algo sólido. Daí, ser assim, destrambelhado, adoidado, tantã. Sem base, sem porto seguro, com um parafuso a menos.

No meu mundinho, amiga, meus pares vivem cada um por si, enclausurados dentro de quatro paredes escuras. Cada consanguíneo, isolado na sua redoma intransponível, procurando ser mais introspectivo que o outro. Todos, sem exceção, aparentam ser desprovidos das ideias (pelo fato de estarem presos a pesadelos mórbidos), perdidos como um bando de cegos em meio de um tiroteio, à cata de uma porta aberta que jamais será encontrada. Não sou feliz, também não sou triste. Não carrego mágoas, nem ódios ou rancores. Apenas vegeto num vazio muito grande que me mata, aos poucos e me definha a alma. Se me casei? Sim, amiga. Duas vezes. Tive uma infinidade de mulheres (amantes, nem se fala) que, por sua vez, me valeu uma penca de filhos espalhados pelos quatro cantos. Não fui um bom esposo, tampouco pai exemplar. E quem não é pai exemplar digno de ser copiado, jamais será considerado um modelo a ser seguido como padrão de comportamento ou de perfeição. Talvez seja por Isso que, nas vezes, em que visito mamãe, perceba que ela deixa transparecer certa contrariedade, como se minha presença a incomodasse de alguma forma. Noto claramente que fica distante, amuada, aborrecida, enfastiada e alheia. Se eu saberia o motivo? Sustento a teoria de que ela tem preferência por outro irmão mais novo. Não que ele seja um galã ou mais bem apessoado que eu. Contudo, quero crer, em vista de ter tido mais sorte, e, em razão desses ares benfazejos, logrado posição financeiramente mais afortunada. Dessa forma, nascido com a “bunda pra lua”, esse meu mano conseguiu dar a ela uma vida mais abastada e sem os transtornos e as correrias de um simples assalariado.

Apesar dos pesares, queria encontrar a felicidade que busquei a vida toda. Desfrutar dessa paz que as pessoas falam e que em nenhum momento se dignou sorrir para amenizar a minha angustia. Adoraria ter um porto amigo, um ombro onde pudesse deitar e falar como foi o meu dia. Sonho, ainda agora, com uma casa, mesmo pobre, uma mulher me esperando, uma criança sorrindo, um quadro na parede, um fogão velho na cozinha. Algumas panelas sobre ele, um prato de comida requentado, servido em cima de uma mesa sem toalha. Um bocado de arroz com um ovo frito não faria a menor importância. Queria, ainda, poder sentar num sofá caindo aos pedaços, ver um pouco de televisão em preto e branco e, depois, dessa via crucis, me dar ao luxo de dividir as alegrias e as tristezas com minha cara metade. Almejaria mais, nesta utópica insensatez; deitar a cabeça num travesseiro sem fronha e saber que dia seguinte, depois que ultrapassasse a porta da rua, nenhuma perspectiva de melhora estaria me esperando na esquina ou me sorrindo com ares de boas vindas. Mas assim mesmo, confesso, do fundo da alma, eu sairia feliz. Sairia de cabeça erguida, alegre, saltitante. Realizado e próspero. Seguiria para o batente como um sortudo afortunado e venturoso, que ganhou na loteria, porque atrás de mim... Atrás de mim havia deixado um lar, uma família, um amor de verdade, um sonho que se renovaria a cada volta no começo da noite.

Você me pergunta minha amiga, como sou. Sou isso, um trapo, um Zé Ninguém. Nem pobre, nem rico. Completamente desprovido do necessário para sobreviver condignamente. Vazio, oco, desiludido. Um idiota em busca de mim, um imbecil planejando ver a tal da esperança (mesmo que por alguns poucos minutos) diante de meus olhos. Sou isso tudo que acabei de dizer, talvez um pouco mais. No fundo, minha querida, um monte de lixo.

Resumindo minha triste existência, não sou nada. Nunca fui. Jamais serei. Na verdade, não existi. Não fiz história. Apenas vegetei uma existência medíocre e barata, me consumi em dissabores, em inconsequências, com gente a toda hora me virando o rosto, em carinhos não recebidos, em mãos acenando adeus. Minha aparência? Acho que nesta altura do campeonato, esse particular é o que menos importa. Não sou nenhuma estrela de televisão. Não tenho o corpo sarado, não trago piercing ou tatuagem que se possa dizer "nossa, que massa". De estatura mediana, não sou nem alto, nem baixo, nem magro, nem gordo. A cabeça sempre vazia, o bolso sem um tostão pra fazer um cego cantar... Na carteira um monte de contas vencidas. Não se iluda se lhe falar que me pareço um pouco com o Tom Cruise. Claro que não me refiro ao famoso ator e produtor americano, e sim ao Tom Cruz Credo que você encontra em qualquer sinaleira espalhada aí pelas ruas. Se fosse me comparar com alguém, diria que me sinto como um daqueles personagens que encantavam os reis e os nascidos em berços de ouro dos tempos de outrora. Lembra dessas figuras? Consegue materializá-las na mente? Pois então: uma miscigenação barata, aperfeiçoada, dos bufões de antigamente. Resumindo amiga, devo terminar num arrulho estrepitoso lhe confessando que me considero uma cópia fiel de Daniel melhorado, circulando por aí. e, a cada novo porvir, tentando não ser arremessado, ou jogado, como alimento, na cova dos leões para servir de tira gosto a jantares exóticos. Acredite minha amiga, adoraria esse negócio de ser devorado por inteiro. Dos pés a cabeça. Não pelos felídeos predadores de caudas longas e jubas felpudas, evidentemente... Ao contrário, me sentiria plenamente realizado se me visse acolhido pelos resguardos bem agasalhadores da vida plena.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP: Sucesso, 2012.