terça-feira, 7 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 232


Francisca Júlia (O Monge)


Uns mercadores, com suas malas às costas, caminhavam em direção à cidade, para vender suas mercadorias. Mas a viagem tinha sido longa e eles estavam cansados.

Tinham atravessado campos, galgado montanhas e sentiam já tanta fadiga, que resolveram sentar-se sobre a relva para descansar. Mas o sol estava muito ardente e eles seguiram adiante. Entraram num bosque onde a sombra era fresca e em cuja entrada havia uma gruta de pedras brutas, iluminada de alvas estalactites.

Penetraram, não sem algum receio, cautelosos, porque podia ser um covil de malfeitores.

Tudo estava às escuras. Mas, logo que se habituaram às trevas s da gruta, viram um monge de joelhos, as mãos postas, a fronte erguida, absorvido nas suas preces.

— Monge, – disse um deles - perdoa-nos ter-te interrompido nas tuas meditações. Entramos em tua habitação para te pedir abrigo contra os ardores do sol.

— Entrai, viajantes, respondeu o monge mal desperto das suas contemplações místicas Todos os peregrinos terão aqui seguro abrigo contra as inclemências do sol e contra as tempestades da noite.

Os mercadores agradeceram, e, como sentissem fome e sede, falaram:

— Na nossa longa e perigosa jornada a fome devorou nossas entranhas e a sede secou nossas gargantas, mas tu deves estar tão acostumado ao jejum, que em tua habitação nada pode haver.

— Nada há, de fato, pobres viajantes, mas o poder de Deus é infinito e a sua misericórdia é sem limites.

Então, de um gesto, fez jorrar de uma fenda da rocha um grosso fio de água clara, onde eles beberam até à saciedade, e, arrancando do chão uns calhaus que se transformaram em pães, entregou-os aos peregrinos, dizendo:

— Tomai! Cumpriu-se a divina vontade.

Os mercadores, homens materiais e rudes, tremeram de susto, receando algum sortilégio diabólico, mas, ao mesmo tempo, diante da religiosa bondade e aspecto humilde do monge, comeram.

E um deles falou:

— Monge, se tu estás revestido de tanto poder e podes, com um gesto apenas, fazer brotar a água e transformar em pães os calhaus brutos, por que não fabricas também o ouro para gozares as delicias da riqueza? E por que vives oculto nas trevas desta gruta, como uma fera, emagrecido pelos jejuns e cilícios?

— Que errada e falsa compreensão tendes da vida, meus amigos! Sabeis que o ouro serve somente para corromper os sentimentos, envenenar a alma, e não poderá dar-me os gozos a que eu aspiro. Ao menos, na pobreza em que vivo e que desprezais, sem as preocupações que acarreta a fortuna e os pecados que ela desperta, posso mergulhar-me inteiramente em minhas preces e na contemplação da divindade.

Os viajantes agradeceram ao monge o generoso acolhimento, beijaram-lhe respeitosamente as mãos e partiram.

Fonte:
Poeteiro Iba Mendes

Casimiro de Abreu (Baú de Trovas)

Barra de São João, hoje Casimiro de Abreu

A borboleta travessa
vive de sol e de flores...
— Eu quero o sol de teus olhos,
o néctar dos teus amores!
- - - - - –

A vida é triste — quem nega?
— Nem vale a pena dizê-lo.
Deus a parte entre seus dedos
qual um fio de cabelo!
- - - - - –

Como a ave dos palmares,
fugindo do caçador,
eu vivo longe do ninho,
sem carinho e sem amor!
- - - - - –

Conchinha das lisas praias,
nasceste em alvas areias;
não corras tu para os charcos,
arrebatada nas cheias...
- - - - - –

Nas horas mortas da noite,
como é doce o meditar,
quando as estrelas cintilam
nas ondas quietas do mar!
- - - - - –

Ri, criança, a vida é curta,
o sonho dura um instante.
Depois... o cipreste esguio
mostra a cova ao viandante.
- - - - - –

Tem tantas belezas, tantas,
a minha terra natal,
que nem as sonha um poeta
e nem as canta um mortal!
- - - - - –

Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha;
nas débeis cordas da lira
hei de faze-la rainha.
- - - - - –

Tudo se gasta e se afeia,
tudo desmaia e se apaga,
como um nome sobre a areia,
quando cresce e corre a vaga.
- - - - - –

Um anjo veio e deu vida
ao peito de amores nu:
Minha alma agora remida,
adora o anjo — que és tu!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Contos e Lendas do Mundo (China: A Mulher Repetida)

por Chen Xuanyu

Esse fato aconteceu no início do reino da Imperatriz Wu, numa cidade de Hunan, onde vivia um funcionário público chamado Zhang Yi. Ele era um homem simples e reservado, de poucos amigos. Ele não tinha tido filhos homens, apenas duas filhas, mas a mais velha tinha morrido quando ainda criança. A mais nova, Qian Niang, era muito bonita.

Zhang Yi tinha um sobrinho, Wang Chu, quase da idade de sua filha, inteligente e também muito bonito. Zhang Yi gostava de falar que esse sobrinho teria um futuro muito brilhante e brincava, dizendo: “no tempo certo, minha filha vai ser uma esposa ideal para ele”.

Nos seus sonhos secretos, Wang Cu e Qian Niang sonhavam com frequência um com o outro. Mas suas famílias ignoravam tudo, e quando, mais tarde, apareceu um rapaz muito distinto, que trabalhava para Zhang Yi e lhe pediu a mão de sua filha, seu pai concordou.

Essa notícia partiu o coração de Qian Niang e Wang Chu ficou muito decepcionado. Ele então disse que gostaria de se mudar do lugar onde trabalhava e aceitou um cargo na capital. Nada conseguiu fazer com que ele mudasse de opinião e foi autorizado então a partir, não sem antes receber muitos presentes.

Depois do último adeus, com o coração mortificado, Wang Chu pegou o barco que ia para a capital. No fim da tarde, o barco já tinha avançado no rio muitos quilômetros, entre colinas muito verdes. Caiu a noite. Wang Chu não conseguia dormir. De repente, ouviu passos na margem. Pouco depois, os passos pararam diante do seu barco. Wang Chu, perplexo, reconheceu Qian Niang, de pés descalços.

Cheio de alegria, ele a tomou nos braços e perguntou de onde ela vinha. Ela respondeu, entre lágrimas:

— A força do teu amor nos uniu em sonho. Agora, contra minha vontade, querem me obrigar a casar com outra pessoa. Eu sei que vais me amar para sempre e eu prefiro morrer que viver sem ti. Por isso eu fugi.

Wang Chu ficou zonzo ao ouvir essas palavras. Jamais ele podia esperar tanto. Ele escondeu Qian Niang dentro do barco e eles partiram juntos, numa longa viagem, dia e noite. Alguns meses mais tardes eles se estabeleceram em Sichuan, bem longe de sua região natal.

Cinco anos depois, Qian Niang teve dois filhos. Ela nunca mais tinha escrito para seus pais, mas pensava sempre neles. Um dia, chorando, ela disse a Wang Chu:

— Para te seguir, um dia, eu faltei ao meu dever filial. Já se passaram cinco anos que não vejo meus pais. Sinto falta do carinho deles e o céu nunca vai me perdoar por viver longe deles.

Emocionado com sua tristeza, Wang Chu respondeu:

— Vamos então voltar para o nosso lugar. Sofrer assim não tem sentido. Eles voltaram então à sua cidade natal. Na chegada, Wang Chu foi sozinho bater na porta de Zhang Yi para lhe contar tudo o que tinha acontecido. Mas Zhang Yi gritou:

— O que está me contando? Minha filha está no quarto, de cama, muito doente, faz anos.

— Mas ela está no meu barco, nesse momento mesmo! disse Wang Chu.

Um pouco perturbado, Zhang Yi enviou um empregar verificar o que estava acontecendo.

De fato, Qian Niang esta lá, radiante e viva, impaciente para rever seus pais.

— Como vai meu pai e minha mãe? — perguntou.

O criado, sem fala, correu para contar a ZhangYi o que acabava de ver.

Logo a jovem doente soube da notícia na sua cama, levantou-se, vestiu suas roupas mais bonitas, seus enfeites e passou pó no rosto. Depois disso, sorrindo e muda, ele desceu para receber a recém-chegada.

As duas avançaram, uma na direção da outra, e logo que se encontraram, seus dois corpos se fundiram em um só, de forma perfeita. No entanto, esse corpo único vestia um conjunto duplo de roupas.

A família preferiu guardar segredo sobre o acontecido. Apenas as pessoas mais próximas ficaram sabendo. Os jovens esposos viveram ainda quarenta anos e seus dois filhos tornaram-se altos dignatários no reino.

Muitas vezes eu ouvi essa história quando era jovem. Há muitas versões e muitos acreditam que isso não aconteceu realmente. De minha parte, mais de 80 anos depois desses fatos, encontrei por acaso o juiz de Lai Wu, cujo pai era primo de Zhang Yi, e é o que ele me contou, de forma detalhada, que reconto aqui.

Fonte:
Sérgio Capparelli

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 231


Contos e Lendas do Mundo (Brasil [Espírito Santo]: O Compadre Invejoso)


Era uma vez dois compadres: um era rico e morava num grande palácio, e o outro era pobre e morava por perto, numa choupana. O compadre rico era muito avarento e não ajudava nada ao compadre pobre, o qual, muitos vezes, não tinha nem o que comer.

Um dia o compadre pobre foi até o alto de um morro, onde havia um pé de coco. Quando pelejava para derrubar um coco, este caiu e rolou morro abaixo, indo parar dentro da casa de um velhinho que morava por ali. O pobre homem desceu o morro e bateu à porta da casa pedindo licença ao velhinho para apanhar o coco e dizendo-lhe que era para alimentar seus filhos, que deixara chorando de fome.

O velhinho disse ao compadre pobre que podia pegar o coco, mas perguntou-lhe se não o queria trocar por três abóboras. O pobre aceitou a proposta e o velhinho então, disse-lhe que fosse à horta e apanhasse aquelas abóboras que lhe dissessem: "Me tira! Me tira!"

Assim fez o pobre homem, mas antes de ir embora foi agradecer ao velhinho, o qual falou: "Quando o senhor chegar com as abóboras no princípio do morro, jogue uma delas ao chão. Quando chegar lá em cima, jogue outra, e quando chegar em casa, jogue a terceira que não se arrependerá."

Quando o compadre pobre ia começar a subir o morro jogou a primeira abóbora ao chão, como o velhinho lhe dissera. Apareceu então um belo cavalo, todo arreado, no qual ele montou e prosseguiu caminho. Ao chegar lá em cima do morro, jogou a segunda abóbora ao chão, e apareceu-lhe uma vaca acompanhada de um bezerrinho, que ele tocou para casa. Ali chegando, jogou a última abóbora. Apareceu-lhe um montão de dinheiro, tão grande que levou dias apanhando-o com a mulher e os filhos e levando-o para dentro de casa.

Com o dinheiro que ganhou, o homem mandou fazer uma bela casa e melhorou tanto sua pequena propriedade que ela parecia até um jardim. Daí por diante passou a viver como homem rico que era, e muito feliz com sua família.

Um dia o compadre rico passou por ali e viu aquilo tudo tão mudado, que se admirou, não resistindo a uma visita a seu compadre, ao qual perguntou como conseguira tal riqueza. O compadre que era pobre contou todo o caso para o outro, sem esconder nada. O rico foi embora, picado de tanta inveja e resolvido a ganhar também uma riqueza de maneira tão fácil.

Assim foi que se encaminhou para o mesmo coqueiro no alto do morro e deixou cair um coco, que rolou direito à casa do velhinho. O homem rico desceu o morro e foi ter com o velho, dizendo-lhe que era muito pobre e que aquele coco que ali caíra ia servir para alimentar os seus filhos. Como o velhinho sabia de tudo, disse ao homem invejoso que se ele quisesse trocaria o coco por três abóboras. Mais do que depressa o rico concordou. Então o velhinho explicou que fosse à horta e apanhasse as três abóboras que falassem: "Me tira! Me tira!"

O compadre rico apanhou as abóboras maiores que ele viu na horta e foi embora sem nem sequer agradecer ao velhinho. Quando começou a subir o morro jogou uma abóbora no chão. No mesmo instante, apareceu um bando de marimbondos que deu em cima dele, picando-o todinho. O homem subiu o morro correndo e lá em cima tratou de jogar outra abóbora fora; apareceu-lhe, então, uma bruta onça, a qual saiu correndo atrás do homem, quase o pegando.

Quando o compadre invejoso chegou à sua casa com a última abóbora em baixo do braço, fugindo da onça, abriu e fechou depressa a porta. Jogou a abóbora no chão, chamou a família toda e mandou que fechassem bem a casa. Assim fizeram. Foi aí que apareceram cobras por todos os lados, mordendo e matando todas as pessoas da casa. Quem mandou o homem ser tão invejoso?

Fonte:
Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Antologia Ilustrada do Folclore Brasileiro 6.

Vinicius de Moraes (Antologia Poética) III


ÁRIA PARA ASSOVIO

Inelutavelmente tu
Rosa sobre o passeio
Branca! e a melancolia
Na tarde do seio

As cássias escorrem
Seu ouro a teus pés
Conheço o soneto
Porém tu quem és?

O madrigal se escreve:
Se é do teu costume
Deixa que eu te leve

(Sê... mínima e breve
A música do perfume
Não guarda ciúme)
- - - - - –

SONETO DE DEVOÇÃO

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
- - - - - -

SONETO DE CONTRIÇÃO

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.
- - - - - –

SONETO À LUA

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas e sem fim
Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tampouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética, indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!
- - - - - -

SONETO DE SEPARAÇÃO

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
- - - - - –

SONETO DE OXFORD
Oh, partir pela noite enluarada
No puro anseio de chegar lá onde
A minha doce e fugitiva amada
Na madrugada, trêmula, se esconde...

Oh, sentir palpitar em cada fronte
O amor, oculto; e ouvir a voz velada
Da última estrela que do céu responde
Numa cintilação inesperada...

Oh, cruzar solidões, viver soturnas
Magias, e entre lágrimas noturnas
Ver o tempo passar, hora por hora

Para o instante em que, isenta de desejo
Ela despertará sob o meu beijo
Enquanto a treva se desfaz lá fora...
- - - - - -

SONETO DO MAIOR AMOR

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer – e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.
- - - - - –

QUATRO SONETOS DE MEDITAÇÃO

I
Mas o instante passou. A carne nova
Sente a primeira fibra enrijecer
E o seu sonho infinito de morrer
Passa a caber no berço de uma cova.

Outra carne virá. A primavera
É carne, o amor é seiva eterna e forte
Quando o ser que viver unir-se à morte
No mundo uma criança nascerá.

Importará jamais por quê? Adiante
O poema é translúcido, e distante
A palavra que vem do pensamento

Sem saudade. Não ter contentamento.
Ser simples como o grão de poesia.
E íntimo como a melancolia.

II
Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da árvore jovem que não ouve o vento
Inconstante e fiel, tardio e doce.

Na sua tarde em flor. Uma mulher
Me ama como a chama ama o silêncio
E o seu amor vitorioso vence
O desejo da morte que me quer.

Uma mulher me ama. Quando o escuro
Do crepúsculo mórbido e maduro
Me leva a face ao gênio dos espelhos

E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.

III
O efêmero. Ora, um pássaro no vale
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.

E uma fonte futura, hoje primária
No seio da montanha, irromperá
Fatal, da pedra ardente, e levará
À voz a melodia necessária.

O efêmero. E mais tarde, quando antigas
Se fizerem as flores, e as cantigas
A uma nova emoção morrerem, cedo

Quem conhecer o vale e o seu segredo
Nem sequer pensará na fonte, a sós...
Porém o vale há de escutar a voz.

IV
Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.

Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como imãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme

Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Livro de Sonetos.

Malba Tahan (O Lao-Yê e a Flor)


Levanta-te, mulher! Levanta-te!
— És a fonte dos jardins, poço vivo das águas que correm do Líbano!
Salomão, Cantares, 4,15.


Recordo-me, e com muita saudade, da última visita que fiz a Damasco. Corria o ano de 1912 e o verão mostrava-se implacável. O meu companheiro de jornada, nesse tempo, era um jovem sírio chamado Omar Rabih, que eu conhecera dois anos antes em Palmira, durante o conflito com os agitadores franceses.

Certa manhã, muito cedo, deixamos a Praça do Serralho, subimos, a seguir, a tortuosa Sandja Kdar, cruzamos o Bazar dos Gregos, e fomos parar junto ao venerável túmulo do sultão Saladino. Era nossa intenção aguardar ali a chegada de dois vendedores de trigo, a fim de concluirmos os últimos detalhes de uma transação de alto interesse para mim, transação que fora iniciada, na véspera, por uma habilidosa proposta de Omar Rabih.

Esperamos, com paciência, cerca de meia hora. E os homens do trigo não apareciam.

— E os teus amigos virão? — indaguei, já preocupado com a demora injustificável dos mercadores.

— Não tenho a menor dúvida — tranquilizou Omar, falando com a maior serenidade. — O negócio ficou ontem bem assentado e deve interessar aos homens de Haourã. Não creio que eles se aventurem a quebrar o compromisso.

Mas o fato é que os mercadores tardavam. O tempo passava, arrastando a sua interminável caravana das horas perdidas. A larga praça que se abria em frente à Mesquita dos Omníadas (Alá que a nobilize cada vez mais!) ia, pouco a pouco, enchendo-se de forasteiros vindos de todos os recantos da Síria. Beduínos maltrapilhos, vendedores de refresco e caravaneiros de folga gritavam, discutiam e praguejavam sem cessar. Drusos arrogantes, com seus imensos turbantes brancos de musselina, cruzavam lentamente junto à fonte das abluções, dardejando para a direita e para a esquerda olhares cheios de rancor e de ameaças.

De súbito, com surpresa, avistei um chinês de semblante mole com um grande casaco amarelo, que descia de Bibars. Não me contive:

— Que maravilha! Um chinês em Damasco!

— Conheço-o de vista — informou, pressuroso, meu amigo Omar. — É um velho e piedoso islamita, da China muçulmana, que foi à Meca com os peregrinos damascenos. É homem culto, chefe de numerosa família e muito rico.

E acrescentou, com vivacidade:

— Aquele bom mandarim, crente de Alá, trouxe-me agora à lembrança uma lenda chinesa muito curiosa. Queres ouvi-la?

E sem aguardar resposta (que seria certamente afirmativa), o talentoso Omar contou-me o seguinte:

— Em Taiwan, na China, vivia (já lá se vão muitos anos) um velho Lao-Yê dotado de grande sabedoria. Cumpre-me esclarecer que Lao-Yê é a designação dada, na velha China, ao sacerdote que o povo respeita por seu saber e admira por suas virtudes.

Um dia, quando esse Lao-Yê se dirigia para o templo, encontrou uma jovem que se ocupava em enfeitar com flores um ídolo de bronze.

— Que estás fazendo aí, minha filha? — indagou o sábio em tom carinhoso.

— Senhor, — explicou a jovem — para exaltar Deus coloco flores em torno deste ídolo. Deus está no ídolo!

— Minha filha — tornou paciente o bom Lao-Yê —, bem longo é o caminho do erro, e ignorados são, por vezes, os atalhos que nos levam à Verdade. Estás agora, sem querer, com a inexperiência da vida, invertendo o significado das coisas e alterando o sentido oculto dos símbolos. É absurdo enfeitar um ídolo com flores, pois Deus está mais nas flores que no ídolo!

E, depois de proferir tais palavras, partiu o sábio para o templo onde se ocupava em ensinar aos moços piedosos, por meio de parábolas e alegorias, o caminho do eterno bem e da eterna verdade.

Quando o velho e judicioso Lao-Yê, algumas horas depois, voltou para sua rústica morada, passou outra vez pela casa da jovem adoradora de ídolos e encontrou-a ocupada em uma estranha tarefa. No alto de uma coluna havia colocado uma flor e, em volta da flor, procurava enfileirar vários ídolos.

— Estais vendo, mestre? — exclamou, dirigindo-se ao sacerdote. — Aprendi a vossa profunda lição. Reparai: agora são os ídolos que “enfeitam” a flor, pois Deus está mais nas flores que nos ídolos!

— Admiro a tua alma ingênua e simples — replicou o sábio, dobrando sua fronte calva. — Aprende, porém, a verdade: sim, Deus está mais na flor que no ídolo; é preciso, entretanto, observar que Deus está mais na mulher que na flor. Deus, ao criar a mulher, pensou nas flores, e por isso na mulher vamos encontrar delicadeza, bondade e beleza!

E, ao cabo de breve pausa, disse:

— Retira daí essa flor, minha filha. Coloca-a em teus cabelos e deixa os ídolos em paz! Mulher! És a fonte dos jardins, poço das águas que correm pelos campos!

Terminada a narrativa, Omar Rabih cruzou os braços e, fitando-me muito sério, disse, num tom que revelava irritação e mau humor:

— Os mercadores de Haourã não virão ao nosso encontro. Fomos ludibriados. Perdemos o negócio. Não conseguirás o trigo que tanto desejavas.

— Não faz mal — respondi tranquilo, plenamente conformado com a sorte. — Perdi o trigo mas ganhei uma lenda. Maktub! Que importa o trigo? Não é só de pão que vive o homem; vive, também, dos pensamentos felizes!

Muitos anos mais tarde, fui encontrar, entre os inesquecíveis poemas de Gibran Khalil Gibran, esta sentença admirável: “Não é só de pão que vive o homem; vive também das fantasias, dos sonhos e dos pensamentos puros que trazem alento e alegria ao nosso coração.”

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

domingo, 5 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 230


Ruth Guimarães (Os Dois Papudos)


Vivia numa povoação um alegre papudo, estimado de todos, muito folgazão e boêmio. Não o impedia o papo de soltar grandes risadas. Pouco se lhe dava que o achassem feio, ou o chamassem de papudo. A verdade é que o tal papo o incomodava, mas o que não tem remédio remediado está, filosofava ele. E vamos tocar viola, e vamos amanhecer nos fandangos, viva a alegria, minha gente, que se vive uma vez só.

Certo dia, foi ao povoado vizinho, a uma festa de casamento, levando embaixo do braço a inseparável viola. Demorou mais que de costume, bebeu uns tragos a mais, porém não deixou de voltar para casa, pois era tão trabalhador quanto festeiro, e tinha que pegar no serviço no outro dia bem cedo.

Havia luar. Num grande estirão avistava a estrada larga, as touceiras de mato. Passava o gambá por perto dele, e o tatu, roncando, e voava baixo, silenciosamente, a corujinha campeira. O papudo não sentia medo. Andava em paz com Deus e com os homens. Os animais, que adivinham nele um homem de coração compassivo, também não tinham medo dele.

De repente, ao virar numa curva, viu embaixo da figueira brava, ramalhuda, uma roda de anões cantando. Todos com capuzes vermelhos, cachimbo com a brasa luzindo, a barba branca comprida, descendo até a altura do peito.

- O que será aquilo?

Por um instante teve algum temor. Mas era tarde para fugir. Os foliões já o tinham visto. E, se tratava de festa, isto era com ele. Saltou decidido para o meio da roda, empunhando a viola.

- Eu também sei cantar.

Enquanto pinicava as cordas, prestava atenção às palavras dos dançarinos. Eles entoavam:

Segunda, terça
Quarta, quinta...

E tornavam ao começo:

Segunda, terça
Quarta, quinta...

E assim sempre, numa musiquinha muito chata. Acostumado aos desafios, a improvisar, o papudo esperou a sua deixa. Assim que os anões começaram:

Segunda, terça
Quarta, quinta...

Ele emendou:

Sexta, sábado
Domingo também

A roda pegou fogo. Os pequenos duendes barbudos gostaram da novidade. Rodopiavam cantando numa animação delirante, e foi assim a noite toda. E o papudo tocando e dançando.

De madrugada, ao primeiro cantar do galo, a roda se desfez. O mais velho deles, e que parecia o chefe, perguntou-lhe:

- Que é que você quer, em paga de ter tocado para nós?

- Eu até que me diverti com esta festa - replicou o papudo.

- Mas peça qualquer coisa.

- Posso pedir seja o que for?

- Pode.

- Eu queria - disse ele, meio hesitante - queria me ver livre deste papo, que me incomoda muito.

Um anãozinho agarrou o papo com as duas mãos, subiu pelo peito do papudo, firmou bem os pés, deu um arrancão.

O papudo fechou os olhos.

- Agora eles me matam.

De repente sentiu o pescoço leve. Abriu os olhos. Os anõezinhos tinham sumido. Não ouviu mais nada. Meio cinzento, despontava o dia.

"Sonhei", pensou ele. "Bebi demais naquele casamento."

Passou a mão pelo pescoço, estava liso, sem excrescência nenhuma.

"Agora fiquei mais bonito", pensou também, muito satisfeito.

E aí deu com o papo jogado em cima do capim.

Agarrou a viola e foi para casa.

Imagine-se a sensação que não foi, o papudo amanhecer, sem mais nem menos, sem o papo.

- Que milagre foi esse? - perguntavam.

Papudo ria, papudo cantava, continuava folgazão como sempre, mas não contava a aventura, de medo que o chamassem de louco, e não acreditassem.

Esse moço tinha um compadre, que também era papudo.

E tanto apertou o amigo, e tanto falou:

- Eu também quero me ver livre desse aleijão. Quero ficar bonito, e arranjar uma namorada. Você não é amigo.

Foi assim, até que o moço lhe contou tudo.

O outro encarou, incrédulo.

- Verdade?

- Verdade.

- O anão falou que você podia pedir o que quisesse?

- Falou.

- E você em vez de pedir riquezas, pediu para ficar sem o papo?

- Ora, pobreza não me incomoda, mas o papo incomodava.

- Mas você é louco. Você é um burro. Pedisse riqueza. Quem é rico, que é que tem o papo? Quem se incomoda com papo? Eu, se fosse rico, me casaria com uma mulher bonita, do mesmo jeito. Você é bobo. Onde é esse lugar, onde você encontrou os fantasmas?

O outro preveniu:

- Compadre, você vai lá com esganação, vai ofender os anõezinhos, e ainda se arrepende.

- Nada disso. Você o que é? É um egoísta. Está formoso, que se danem os outros.

Aí o moço encolheu os ombros e falou:

- Sua alma, sua palma. Vá lá, depois não se queixe.

Ensinou onde era, o compadre invejoso agarrou a viola e foi, noite alta, direitinho como o outro tinha feito. Também era noite de luar. Também dançou a noite inteira, cantando. Ao primeiro cantar do galo a roda se desfez.

- Que é que você quer, em paga de ter tocado para nós?

O papudo deu uma piscadela maliciosa para o anão e falou, esfregando o indicador e o polegar, no gesto clássico, que significa dinheiro:

- Eu quero aquilo que o meu compadre não quis.

Um anãozinho foi ao capim, tirou o papo do outro que estava lá, e grudou em cima do papo do invejoso.

E assim, por sua louca ambição, ele ficou com dois papos.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.