quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 3 –

 

Francisco José Pessoa de Andrade Reis (1949 - 2020)


Com profundo pesar comunico o falecimento esta manhã, devido a problemas cardíacos do poeta, trovador, escritor e oftalmologista Francisco José Pessoa, um amigo com quem trocava emails  "adocicados", por ambos termos diabetes.

Uma grande perda para o mundo literário em geral, em especial para os trovadores. Mal se foi e já deixa saudades.

Abaixo uma parcela ínfima da obra do Dr. Pessoa.
 
 DE PESSOA PRA PESSOA

Poesia é um sonho e, se sonhado,
Sobre nuvens volutas, pictóricas,
Rédeas soltas sem bridas, metafóricas,
Faz do poeta um ser místico e alado.
Quem o lê, leia certo ou leia errado,
Sempre os versos encontram o seu intento…
Lamentar cada um com seu lamento,
E sorrir cada um com seu sorriso,
Coração de poeta é sem juízo
E a razão de fingir é seu talento!

CADA PASSO É MAIS UM SONHO
AO LONGO DO CAMINHAR


Esteja alegre ou tristonho
O poeta enxerga a vida
Tal a terra prometida…
Cada passo é mais um sonho.
Chega ao destino risonho,
Pelo prazer de rimar
E antes mesmo de apear
Em pensamentos, imerso,
Olha pra trás, vê seu verso
Ao longo do caminhar.

Usei todos os atalhos
Que encontrei pelo caminho,
Fiz de quando em quando um ninho,
Fiz de estrelas agasalhos.
Os meus cabelos grisalhos
Tingidos pelo luar,
Retratam bem meu andar…
Embora um tanto tardonho,
Cada passo é mais um sonho
Ao longo do caminhar.


PALHAÇO

A vida se nos faz meros palhaços…
Sorriso solto num choro prendido,
Querer que é dado nunca agradecido
Saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
Embebedar-se tanto pra esquecer,
Sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
No picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
Imagem tão real quanto ilusória
Pranto da morte rindo pra viver!

TROVAS

1
A cobiça sendo um vício
e a renúncia salutar,
nosso menor sacrifício
é saber renunciar.
2
Aconteça o que aconteça
eu nunca vou desistir…
por trás da nuvem espessa,
tem sempre um sol a sorrir!
3
À minha mulher confesso:
- Na atual encarnação,
para apressar teu progresso
sou a tua expiação!
4
Aquele pé de carvalho
plantado em minha lembrança,
cintila gotas de orvalho
quando me vejo criança.
5
À tardinha, todo dia,
assisto o chegar do trem,
esperando por Maria
só que Maria não vem.
6
As estrelas não fenecem
perante à luz que encandeia,
mas docemente adormecem
se a noite é de lua cheia.
7
Eis o grande desafio
para quem se diz cristão:
ter que dizer, renuncio,
em favor de um outro irmão!
8
Esta vidinha da gente
tal a serra é mesmo assim…
ora subida ou vertente
num sobe e desce sem fim.
9
“Faça-se a luz”! e ao fazê-la
com muito amor e carinho,
Deus colocou uma estrela
a clarear meu caminho.
10
Feliz da vida se logra
o Zeca exibe o caneco,
que ele trocou pela sogra
na feira de cacareco.
11
Já que não posso mantê-las
ao alcance do meu braço,
eu canto minhas estrelas
em cada verso que faço.
12
Minha mãe, quanta lembrança,
quem me dera tal jaez…
eu voltar a ser criança
começar tudo outra vez.
13
Minhas lágrimas vertidas
por entre dobras de rugas,
são saudades incontidas
do meu passado... são fugas!
14
Na avenida do fracasso
onde a humanidade avança,
em cada esquina que passo
eu planto um pé de esperança.
15
Não há placa de chegada
na minha estrada da vida…
faço de cada parada
novo ponto de partida.
16
 Nas veredas tortuosas
dessa vida em desalinhos,
nas retas eu colho as rosas
nas curvas tiro os espinhos.
17
Nossas faces, pergaminho,
rastro do tempo que, algoz,
não apagou o carinho
que ainda existe entre nós!
18
Nossa vida não tem prazo
e tal o dia, é assim:
um surgimento, um ocaso,
que por acaso é sem fim!
19
Nos trigais do sentimento
que contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.
20
O inverno se me avizinha
e, no espelho, a contragosto,
vejo que o tempo caminha
deixando o rastro em meu rosto.
21
O meu amor quis safar-se
de mim, então me escondi;
de rosa era seu disfarce…
fui, sorrateiro, e a colhi!
22
O nosso amor passageiro
tal orvalho evaporou…
nasceu e morreu ligeiro,
que nem saudade deixou.
23
Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão…
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!
24
Quem diz ter brilho e alardeia
desdenhando o semelhante,
esquece que a lua cheia
tem seus dias de minguante!
25
Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se
mas não engana a si mesmo!
26
 Quem não quer vencer a estrada
como faz o peregrino,
dobra sempre a esquina errada
na contramão do destino.
27
Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
Nó que se dá, no passado,
e se desfaz no presente.
28
Soluça vazia, a rede,
o armador emudeceu,
marcas de pé, na parede,
choram tanto quanto eu!…
29
Subo às nuvens… fantasia…
e para o amor espalhar,
solto minha poesia
com rimas soltas ao ar.
30
Todo indivíduo que é tolo
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo…
só tem a casca por fora!

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 7: Mala sem alça


— BOM DIA!

— Bom dia. Em que posso ajudar?

— O senhor ainda compra objetos antigos?

— Sim. Este é o meu ramo.

— Tenho uma mesa com quatro cadeiras.

— Teria como dar uma olhada? Trouxe fotos ou filmou os objetos?

— Não, senhor. Fiz melhor. Trouxe no meu carro. Quer dar uma olhada?

— Só se for agora. Onde está o seu automóvel?

— Aqui ao lado.

O dono do topa-tudo levantou de sua mesa cheia de quinquilharias e acompanhou o futuro cliente. Cresceu, claro, os olhos, quando viu que a mercadoria estava em boas condições:

— Quanto quer?

— Diga o senhor.

— Não posso ‘botar’ preço nas bugigangas que meus clientes aparecem por aqui querendo negociar.

— Pensei em duzentos reais.

— Dou cem reais.

— Não dá para melhorar o preço?

— Amigo! Cento e quarenta e cinco reais e não se fala mais no assunto.

— Nem eu, nem o senhor: Cento e cinquenta reais.

— Fechado.

— É toda sua.

***

— Pois não? Posso ajudar?

— Estou vendendo um rádio de pilha e a bateria.

— Se eu puder ver o aparelho...

O cara colocou uma sacola de supermercado sobre a mesa, a mesma, aliás, a única, repleta de pequenas antiguidades:

— Quanto quer?

— Cinquenta reais.

— Vinte e cinco.

— Fechado. O radinho é seu.

***

Entrou um jovem bem apessoado, de terno e gravata:

— Olá!

— Bom dia. Posso ajudar?

— Acho que sim. Ia passando quando vi no seu anúncio, ali fora, dizendo que o senhor compra qualquer coisa.

— Verdade. O que o amigo tem para negociarmos?

— Um troço bem usado. E bem velho também. Do tempo que nossas avós andavam de patinete de uma roda só.

— Ok. Diga ai o que é.

— Tenho certeza que o senhor não tem aqui. Pelo menos, na rápida olhada que dei...

— Tá bom. Diga o que é. E o preço. Quem sabe não fechamos negócio?

— Caso o senhor não queira comprar, poderá trocar comigo numa televisão, estante ou aquele guarda-roupas ali, ou a geladeira. Enfim... Faço qualquer coisa...

— Tudo bem, meu amigo. Só preciso saber o que é que o senhor tem para barganharmos e o valor pretendido.

— A peça tem mais de noventa anos. Apesar da idade, faz tudo: lava, passa, cozinha, joga conversa fora, late, mia, grita...

— Não estou conseguindo acompanhar o seu raciocínio.

— Acho que fui bem claro...

— Pelo que entendi, o senhor tem um gato ou um cachorro... Já que o prezado deixou claro que mia e late!

— Acertou. É um animal. Eu acrescentaria mais. Um animal peçonhento.

— Meu Deus! Um porco? Um leão? Uma cobra? Um elefante, talvez?

— Quase...

O comerciante coçou a cabeça:

— Apesar desses bichos que mencionei não latirem, nem miarem, agora fiquei encucado. Ele lava, passa e etc... Seja mais claro, por favor... Sou meio lerdo, às vezes, no raciocínio...

— Dá uma olhada, por gentileza.

O sujeito entregou um envelope ao dono do comércio. Ao abrir, se deparou com várias fotos de uma senhora em idade bastante avançada:

— Amigo, isto é algum tipo de brincadeira? Não negocio pessoas. Ficou louco?

— Eu sei que não negocia seres humanos, aliás, isso ai nem pode ser considerado um... Mas se abrisse uma exceção, quanto me daria?

— Prezado, tenho mais o que fazer. Passe bem. Bom dia.

Todavia, a criatura insistiu:

— Quanto?

O lojista achou melhor entrar na piração da criatura e ver até onde o chato de galochas chegaria:

— Sua mãe?

— Não.

— Avó?

— Não.

— Tia, irmã, sobrinha... Algum vizinho criador de caso?

— Minha sogra. Se eu lhe trouxer essa desgraça aqui, fechamos na cama de casal com aqueles dois criados-mudos que estão ali naquele canto?

O mercador se enfureceu. Saiu literalmente do sério. Para não partir para as vias de fato, precisou acionar a polícia. Somente desta forma conseguiu tirar o sujeito cara de pau de dentro de seu estabelecimento.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 5 –

Antônio Barbosa Bacelar

 
Lisboa, 1610 – 1663

A UMAS SAUDADES

Saudades de meu bem, que noite e dia
a alma atormentais, se é vosso intento
acabares-me a vida com tormento,
mais lisonja será que tirania.

Mas quando me matar vossa porfia,
de morrer tenho tal contentamento,
que em me matando vosso sentimento,
me há de ressuscitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo
satisfazer com mortes repetidas
o que à beleza sua estou devendo;

vidas me dai para tirar-me vidas,
que ao grande gosto com que as for perdendo,
serão todas as mortes bem devidas.
****************************************
Antônio Barbosa Bacelar nasceu em Lisboa, frequentando o Colégio de Santo Antão e indo depois estudar Direito em  Coimbra. Tendo-se dedicado à magistratura, foi corregedor em Castelo Branco, provedor em Évora, desembargador no Porto e magistrado na Casa da Suplicação em Lisboa. A par do trabalho no âmbito da justiça, dedicou-se à escrita, nomeadamente à historiografia e à poesia. A sua obra poética está essencialmente publicada na Fénix Renascida.
****************************************

Padre Baltasar Estaço
 
Évora, 1570 – 16??

A UM IRMÃO AUSENTE

Dividiu o amor e a sorte esquiva
em partes o sujeito em que morais;
este corpo tem preso onde faltais,
esta alma onde andais anda cativa.

Contente na prisão, mas pensativa,
porque este mal tão mal remediais,
que vós comigo lá solto vivais,
e eu sem mim e sem vós cá preso viva.

Mas lograi desse bem quanto lograis,
que eu como parte vossa o estou logrando
e sinto quanto gosto andares sentindo;

cá folgo, porque sei que lá folgais,
porque minha alma logra imaginando
o que lograr não pode possuindo.
****************************************
Foi Cônego da Sé de Viseu. Dedicou-se à poesia e à filosofia escolástica. Por motivos desconhecidos. foi processado pela Inquisição e preso em julho de 1614. Sabe-se que esteve preso em Coimbra em 1616, onde tentou suicídio, sendo transferido para Lisboa no ano seguinte. Em 1620 é condenado a prisão perpétua, mas é libertado em 1621 com a condição de não voltar a Viseu. Publicou, a pedido de D. João de Bragança, bispo de Viseu, a obra Sonetos, Éclogas e Outras Rimas (Coimbra, 1604), onde glorifica vários santos e condena as vaidades do mundo num estilo em que ele próprio se propõe dar o exemplo de humildade, mas que é sobretudo feito da exploração teológica dos paradoxos e da coincidentia oppositorum no amor a Deus. Deixou diversas obras manuscritas.
****************************************

Luís de Camões
 
Lisboa, c.1524 – c.1580

AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é um fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;

é um não querer mais que bem querer;
é solitário andar por entre a gente;
é um não contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder;

é um estar-se preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é um ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade,
sendo a si tão contrário o mesmo amor?
****************************************
Luís Vaz de Camões foi um poeta nacional de Portugal, considerado uma das maiores figuras da literatura lusófona e um dos grandes poetas da tradição ocidental. Pouco se sabe com certeza sobre a sua vida. Aparentemente nasceu em Lisboa, de uma família da pequena nobreza. Sobre a sua infância tudo é conjetura mas, ainda jovem, terá recebido uma sólida educação nos moldes clássicos, dominando o latim e conhecendo a literatura e a história antigas e modernas. Pode ter estudado na Universidade de Coimbra, mas a sua passagem pela escola não é documentada. Frequentou a corte de D. João III, iniciou a sua carreira como poeta lírico e envolveu-se, como narra a tradição, em amores com damas da nobreza e possivelmente plebeias, além de levar uma vida boêmia e turbulenta. Diz-se que, por conta de um amor frustrado, autoexilou-se em África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Voltando a Portugal, feriu um servo do Paço e foi preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Passando lá vários anos, enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e escreveu a sua obra mais conhecida, a epopeia nacionalista Os Lusíadas. De volta à pátria, publicou Os Lusíadas e recebeu uma pequena pensão do rei D. Sebastião pelos serviços prestados à Coroa, mas nos seus anos finais parece ter enfrentado dificuldades para se manter. Camões foi um renovador da língua portuguesa e fixou-lhe um duradouro cânone; tornou-se um dos mais fortes símbolos de identidade da sua pátria e é uma referência para toda a comunidade lusófona internacional.
****************************************
 
 D. Tomás de Noronha
 
Alenquer, ???? – 1651

A UMA DAMA PRÓDIGA DE FAVORES

Se assim, formosa Helena, como és sol,
não deras tantas mostras de ser lua,
não te tivera o mundo por comua*,
nem quem tanto te quer por caracol.

Olha que já te traz a fama o rol
por ser a tua grandeza a todos nua,
e pode ser que ganhes sendo crua
não acudindo como peixe ao anzol.

Ai! muda, muda, Helena, muda as modas,
e não sejas, oh! não! como é a corça,
que mais corre como a seta que a lastima.

Ama a quem te mais quer, e não a todos,
que repartido o amor tem menos força,
e a coisa que é mais comua não se estima.
*comua = comum
****************************************
Era filho de um fidalgo escudeiro do rei D. Sebastião. Casou com uma prima e, tendo enviuvado, casou pela segunda vez. Jacinto Cordeiro, no seu Elogio dos Poetas Lusitanos (1631), coloca-o entre os mais célebres poetas do seu tempo. Participou no movimento de reação crítica ao estilo poético existente na Fénix Renascida e no Postilhão de Apolo, atacando o ridículo do artificiosismo que se fazia sentir nas composições literárias da época. Podou, em oitavas herói-cômicas, o estilo do seu tempo em autênticas paródias de lugares-comuns gongóricos. Dedicou-se, assim, à sátira caricaturesca dos vícios, vergonhas e torpezas sociais em estilo quase sempre indecoroso e grosseiro. Os versos eram para ele ora uma forma de pedir favores (o que é vulgar até ao Romantismo), ora uma forma de descarregar os seus ressentimentos de fidalgo de alta estirpe sem rendimentos condignos. A sua miséria fê-lo perder todo o respeito às diferentes condições sociais, sem excluir as prestigiadas pela religião ou as que motivam a compaixão, pelo sofrimento que vivem. Desenhou-nos o feroz autorretrato atualizado do escudeiro vicentino, entre outras críticas de tipos e costumes. Conhecido pelo apelido de Marcial de Alenquer devido ao caráter satírico das suas composições poéticas, deixou-nos ótimos exemplos de textos ricos em alusões ao mundo social.
****************************************

Violante do Céu
 
Lisboa, 1602 – 1693

VIDA QUE NÃO ACABA DE ACABAR-SE

Vida que não acaba de acabar-se,
chegando já de vós a despedir-se,
ou deixa por sentida de sentir-se,
ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-se,
pois chega já de vós a dividir-se,
ou procura vivendo consumir-se,
ou pretende matando eternizar-se.

O certo é, Senhor, que não fenece,
antes no que padece se reporta,
por que não se limite o que padece.

Mas, viver entre lágrimas, que importa?
Se vida que entre ausências permanece
é só vida ao pesar, ao gosto morta?
****************************************
Soror Violante do Céu era uma freira dominicana que na vida secular se chamou Violante Montesino. Professou no Convento de Nossa Senhora do Rosário da Ordem de S. Domingos em 1630. Foi uma das poetisas mais consideradas do seu tempo, sendo conhecida pelos meios culturais da época como Décima Musa e Fênix dos Engenhos Lusitanos. É hoje um dos máximos expoentes da poesia barroca em Portugal. Aos 17 anos celebrizou-se ao compor uma comédia para ser representada durante a visita de Filipe II a Lisboa.
****************************************

Ignácio de Loyola Brandão (Lígia, por um momento!)


“Há mais de um ano espero a chance para te fazer uma pergunta”, disse Zé Mário. “Te dou uma carona, vamos conversando.” Aceitei, eram onze da noite, não havia como sair do Ibirapuera, a não ser que se     achasse um táxi, na pura sorte. Ou atravessando as alamedas escuras, se conseguisse chegar ileso a um ponto de ônibus. Confesso, não tinha coragem de passar entre os eucaliptos e as capoeiras de arbustos. Ter medo de assalto é normal, facilitar é suicídio. Esse era o problema da Bienal do Livro. A saída. No final, as pessoas corriam como baratas, ansiosas em busca de amigos que pudessem levar.

Descemos para o estacionamento, Zé Mário me olhava receoso. Que pergunta seria esta que leva um ano a ser feita? Durante este tempo nos encontramos muitas vezes, ele sempre está em lançamento de livros, coquetéis, faculdades onde faço palestras. Frequentamos os mesmos cinemas, as pessoas de um grupo idêntico, ele é professor de Teoria Literária e eu sou jornalista, escrevo uns contos de vez em quando. Circulamos dentro de áreas restritas, dificilmente fugindo a determinados limites. São os mesmos cinemas, teatros, os bares e restaurantes, mesmas pessoas nas mesmas festas. Talvez por isso eu esteja um pouco afastado; me cansa. Não quero que um dia possam dizer: “Ah, está à procura dele? Pois tem um coquetel para a venda de um saco de feijão, ele vai estar lá.” A gente precisa se resguardar um pouco, se conter. Se dar, porém lentamente, com menos sofreguidão.

Gosto de Zé Mário, ele veio do sul, era garoto ainda, estivemos apaixonados pela mesma mulher. Ganhei dele; e não ficou meu inimigo, ao contrário, tentou se aproximar, e conseguiu. “Naquele tempo, você exercia um fascínio sobre as pessoas, escrevia em jornal, era irônico, todo mundo tinha medo do que você dizia, era um cínico, agressivo. Exatamente o que eu queria ser, eu tinha chegado de Porto Alegre, queria conquistar São Paulo, lembra-se? Queria que me admirassem, as pessoas te curtiam, você tinha chegado da Europa trazendo discos da Joan Baez, o seu apartamento se enchia de gente.” Os discos da Baez. Tenho ainda exatamente os mesmos, nunca mais coloquei na vitrola. Por bloqueio. Não tenho coragem. Sei o que eles me trazem de volta. Ligação e rompimento. Uma tarde, Baez cantava “Baby I Gonna Leave You”, e essa tarde marcou minha vida, como a mais dolorida, ela me deixou com o sentido de rejeição que até hoje, homem maduro, carrego, cheio de insegurança.

Tinha chovido, mas o céu já estava limpo. Rompemos entre luzes irreais, o vapor de mercúrio tornava prateados os gramados úmidos, o silêncio era enorme.

— Pergunta, eu pedi, mais ansioso do que ele.

— Sabe, percebi um dia que minha vida poderia ter sido modificada. E não deixei. Você já teve esta sensação?

— Na hora, não. Depois, sim. Mas depois é fácil ver as coisas. Não dá para julgar, ou se sentir culpado.

— É estranho que você esteja ligado a dois momentos importantes de minha vida. Primeiro, aquela mulher que você ganhou. Tinha de ganhar, você era mais velho, no grupo todos falavam de você e de repente o homem de quem todos falam chega da Europa. Ela era uma atriz principiante, vinda de Porto Alegre. Claro, aceitei, eu também te admirava. Mas, desta vez, foi diferente.

— Diz logo, não fica rodeando.

— Não sei, pode ser que eu tenha criado um mito na minha cabeça. Não me interessa. Fiquei marcado e preciso saber. Talvez haja tempo. Preciso saber, e só você pode me ajudar. É difícil explicar. Ficou na minha cabeça. É uma obsessão. Vai ouvindo, depois me diz. Não, depois me ajuda! Tenho de resolver isso, não posso mais segurar. Se eu conseguir encontrá-la, pode ser que ainda me salve. Ando confuso, perdi minha tese por incapacidade de concentração. Acredita? Acho que não, você continua cínico, não pode ter ideia do que seja sentar-se à mesa para estudar, escrever, tomar notas, e não ver nada, não fixar uma só linha. Me fechei, completamente. Porque sei. Eu me recusei. Recusei uma coisa que desejava. Foi um daqueles momentos que decidem tua vida. Já teve disso? Saber que foi aquele instante e que o teu gesto, o teu próximo passo determinou tudo? Fui covarde, e não me conformo. Fiquei pensando: sempre é tempo. Hoje decidi. Vai ser esta noite: Esteja onde estiver, vou atrás dela. Se estiver em São Paulo, vou bater na porta, não interessa se casou ou não. Se mudou, encho o tanque e vou em frente, nem que tenha de atravessar o Brasil. Pareço bobo, não? Dom Quixote. Pode ser. Esta noite é pra valer. Resolvi.

— Se fosse mais claro, deixasse de falar para você mesmo, seria mais fácil.

— Estou assim, porque você precisa entender a importância. Agora compreendo a frase vida ou morte. É um lugar comum, só que estou dentro dele. Vida ou morte. Um ano atrás eu me apaixonei por uma mulher que estava com você. Nos vimos uma só noite. Nunca mais parei de pensar nela. Nunca mais. Dia e noite. Acordo, levanto, trabalho, durmo, acordo. Um ano. Marquei o dia, hora, tudo. Pareço um moleque, um adolescente? Assim que ela me deixou. Adolescente. Que maravilha. Fazia anos que não me sentia desse jeito. Dormindo abraçado ao travesseiro, imaginando que é ela. Pode? Um homem desquitado, de quarenta anos, dois filhos? Até me dá um pouco de vergonha.

— Pois é, as pessoas andam tão fechadas que se envergonham das emoções. Então, negam tudo, se tornam intransponíveis, não percebem o encanto dos pequenos toques elétricos que fazem a gente vibrar, e viver.

— Deixa isso pra lá. Não te dei carona para analisar emoções da humanidade. Que mania você tem, continua igual ! O problema é que eu preciso encontrar Lígia.

— Ah, Lígia?

— Ela mesmo. Não tem a mínima ideia de como preciso dela. Pensei muito se não criei na minha cabeça alguma coisa. Acho que não. Tenho certeza. A gente não tem muitas certezas na vida, mas esta, eu tenho. É ela.

— Lígia?

— Faz um ano. Você entrou com uma menina loira e sentou-se ao meu lado, lembra-se? Era o último dia que exibiam “Corações e Mentes”, o cinema estava cheio. Você nem tinha me visto, te chamei. Havia um lugar vago ao meu lado. Você pediu: “Guarda que ainda vem uma amiga nossa.” Coloquei minha bolsa. Logo depois, ela chegou. Quando atravessou o corredor à nossa frente, lembra-se, estávamos na segunda fila, do meio para trás, senti que era ela. Só podia ser. Vi o perfil, no escuro. Na penumbra, batido de luz. Alta, o rosto de traços decididos, suave no recorte. Pode? Foi assim que vi, naquela hora. Tinha o andar firme, um jeito meio... soberbo... não é bem a palavra,... é soberbo mesmo. Um certo orgulho, segurança. Você chamou, ela veio, sentou-se ao meu lado. Me deu a mão, sorriu. Engraçado, parecia que nos conhecíamos há tanto tempo. Sempre fui tímido com mulheres desconhecidas, mas não com aquela...

Não com aquela, penso. Por que não com aquela? Que era de intimidar. Lígia não era bonita, porém compensava com todos os truques. Eram muitos. O corpo magro, bem feito e tão desejado. Ela mal tinha ideia como era desejada. Editora de moda e sabia o que vestir, como vestir. Se valorizava. Os olhos eram claros e o sorriso grande. Servia-se deles também para afastar as pessoas. Quando queria, era inacessível, distante, fria. Para isso, valia-se de uma ascendência de menina rica, bem tratada. Gente bem nascida, bem-criada, que falava várias línguas. Claro, a família perdeu tudo, ela teve que trabalhar corno todo mundo. Mas deixava entrever que não era como todo mundo. Por isso, foi difícil para ela, no começo. Havia a distância, o isolamento. Mesmo as pessoas que ela queria, ficavam desconfiadas. Foi apenas uma fase, com os anos, ela se integrou. Casou-se, teve uma filha, foi morar nos Estados Unidos. Mas o casamento balançou, eles voltaram. Foram morar, quase como hippies, numa casinha, na praia, perto do Rio. Tinham guardado algum dinheiro, o marido era correspondente de uma revista americana qualquer. Uma vez, saiu reportagem sobre pessoas que estavam fugindo das cidades. No Jornal do Brasil. Falavam dela. Um rosto feliz, ela fazia bordados que vendia na feira na praça. E, dizia a reportagem, estava se preparando para escrever. Uns contos. Não queria voltar para a cidade. Sua casa era branca, com redes, plantas, desenhos que eles mesmos faziam e colavam pelas paredes. A filha, com dois anos, vivia solta. A casa ficava numa ponta da vila, não havia carros, perigo nenhum. Lígia parecia ter descoberto a vida que a gente queria e não tinha coragem de assumir. Vendo a reportagem, pensei que ela devia ter se transformado muito por dentro. Claro, por que não admitir? Lígia tinha sido uma esnobe. Inadaptada. Áspera. Árdua de se conviver. Foi preciso ser machucada, para descer do seu Olimpo. Verdade que ela tinha sido colocada nesse Olimpo, não subira de propósito. Os seus primeiros contatos com o cotidiano foram acidentados; e ela foi cortando arestas, aparando pontas. Até se tomar pessoa agradável, desejada. Tenho uma grande amiga, Maria Alice, que era confidente de Lígia. Ela sofria, me disse, porque não se sentia atraente. E era, sem saber. Tanto que a maioria do meu grupo a queria. Tanto, que ali estava Flavinho, morto de fixação.
— ... você está me escutando? Estou te enchendo? Estou, está na cara. Fica aí olhando para fora...

— Não , continua. Pensava em Lígia. Fala.

— Está tudo tão vivo na minha cabeça. De repente, no meio do filme, ela estendeu a mão. Cheia de balas. Foi um choque. Pensa bem! Na tela, aquela sangreira do Vietnã. Foi na cena em que o oficial mata o soldado com um tiro na cabeça. E, ao meu lado, aquela mulher com um sorriso, estendendo a mão cheia de açúcar. Acha que fiquei bobo? Eu não! Acho lindo. Me tocou. Apanhei uma bala e senti, comigo mesmo, que estava estabelecida a cumplicidade. Porque ela não ofereceu a bala a vocês. Era uma coisa nossa, ali, no escuro do cinema. Minha e dela. E éramos completamente desconhecidos. Falamos coisas durante o filme. Não me lembro o quê. Só sei que eram observações sobre a vida americana que ela parecia conhecer bem. Detalhes que me escapavam e ela completava. Quando o filme terminou, combinamos de jantar. Todos. Ela estava de carro. Andamos muito, estava estacionado longe, perto da banca de flores do largo do Arouche. Um Volks creme, sujo de barro. “Vim hoje da praia”, ela comentou. “Peguei um desvio todo enlameado.” Abriu a porta, bateu a mão no assento traseiro. “Ainda está cheio de areia. Mas areia não suja, não é?” Olhei as mãos dela, os braços. Era uma noite de calor, ela usava um vestido leve, de algodão cru. Sua pele era morena e senti uma excitação. Lígia trazia o sol na pele, o primeiro sol de verão que tinha queimado levemente seus braços. Quis tocar naquela carne, deixei a mão solta sobre o banco, ela raspava o ombro nos meus dedos. Cúmplice. Ela tinha se tornando minha cúmplice, naquela noite, e gostávamos do jogo.

Me lembro que depois Lígia desapareceu. Passaram seis meses, voltou a São Paulo, procurando emprego em revistas. Tinha se separado, a filha estava com os pais dele, num país aqui da América. Em tudo Lígia precisava ser diferente. Não, nada de ligações comuns, de dia-a-dia. Havia um mistério qualquer nela, uma coisa insondável que não chegávamos a compreender. Penso que somente Maria Alice, a minha amiga que foi confidente dela, chegou a entendê-la um pouco, à certa altura. Porque, então, Lígia iniciaria um processo de abertura para a vida e as coisas. Fazia uma espécie de exame de si mesma, de suas relações, do que pretendia. Mostrava a Maria Alice os esboços dos contos. Rasgava a maioria, insatisfeita. “Nunca estive satisfeita com nada, o que há comigo? Nem com as pessoas, nem com meu trabalho, nem com nada. Mas posso recomeçar, agora vejo tudo tão claro. E vou recomeçar.” Naquela semana em que fomos ver “Corações e Mentes” ela se preparava para ir ao encontro do ex-marido. Pela terceira e última vez, numa tentativa de reconciliação. Achava que valia a pena, porque existia a filha.
— O que é que há? Vou parar, pô!

— Nada disso, continua. Estava me lembrando que naquela semana Lígia ia embora. E você também. Falou nisso o jantar todo. Sei lá que viagem você ia fazer. Ia ver uma escola em Blumenau. A gente ainda gozou: fazer o que em Blumenau? Vai é se enterrar. E, no fundo, estávamos mortos de inveja. Você embarcava no dia seguinte, não foi?

— Isso mesmo! Viagem desgraçada. Por que fui? Era só ficar. Que nada. Fui pensando nela.

— Mas conta do jantar...

— Nada de especial. Você estava interessado na loirinha. Ou não estava? Nem prestei atenção. Só me interessava Lígia. Durante o jantar uma ou duas piadas, um olhar, um sorriso e eu tive certeza. Era ela. Fizemos ali naquela mesa um mundo particular, dentro do qual nos entendemos. Éramos quatro, e na verdade éramos dois. O resto estava isolado, fora de nossos limites. Dá para entender? Não acha incrível esta sensação, quando ela se apodera da gente? Estamos no meio de todo mundo, afastados vinte metros um do outro. Mas a pessoa está dentro do teu círculo, e você no dela. E ninguém penetra nosso cordão mágico. É muito bobo?

— Continua com vergonha, hein? A gente é mesmo besta. Se solta, puxa!

— Na hora de ir embora, percebeu que fizemos uma manobra? Deixamos a loirinha, depois você. Demos voltas incríveis, só para ficarmos juntos. Ela me levou em casa. Ficamos conversando no carro, diante do meu prédio por umas duas horas. Estava amanhecendo quando ela se foi. Eu podia ter dito: sobe comigo. Mas não era hora. Era coisa que, com Lígia, devia acontecer naturalmente. E ia acontecer. Ela ainda perguntou: “Você precisa viajar mesmo? Tem que ir?” Banquei o besta. “Tenho. É a minha carreira, meu futuro.” De tanto pensar no futuro, a gente acaba por destruí-lo. Ela se foi, subi. A mala estava pronta. Se abro, nunca mais viajo, pensei. Não abri. Tomei um café, desci, peguei um táxi e fui para a Rodoviária. Para não encontrar emprego em Blumenau. E voltar seis meses depois, recomeçar. Te procurei, você estava viajando. Daquelas coisas que acontecem em São Paulo. Desencontro, desencontro. Um pouco de besteira minha. No fundo, nos encontramos, mas eu tinha medo. Que você me gozasse. Ou dissesse: ela voltou para o marido, está feliz. Era isso, medo de que ela estivesse bem com o outro.

Penso agora nas coisas que Maria Alice me contou. Cada tarde, ela chegava e desabafava. Tinha ido visitar Lígia. Voltava arrasada, precisava de mim para se recuperar. Lígia tinha voltado grávida da última viagem. Sentiu-se mal e foi ao médico. O médico: “Precisa abortar. Já. E fazer uma operação.” Abriram e fecharam. Nada a fazer, disse o médico. Lígia ficou sabendo. Percebeu o clima à sua volta e exigiu que contassem tudo. Foi para casa. Ficou de cama, porque as pernas tinham se quebrado e os ossos não se consolidavam. Só permitia visita de Maria Alice, dia sim, dia não. Era o contato com o mundo, com as coisas. E lia estranhos livros sobre a vida além da morte. Continuava rasgando os contos que escrevia, trabalhava nos esboços. Parece que desejava permanecer de algum modo. Não confiava na memória das pessoas que a queriam. Queria mais. Achava que era bobagem tudo que fizera. A esnobe que tinha sido. Refez tudo em sua cabeça. Até que um dia não quis mais receber Maria Alice. Mandou dizer que estava com dores. Muito feia. Maria Alice ficava na sala, mandava escritos, recebia bilhetes.

“É hoje, me decidi.” Zé Mário estava quase gritando comigo. “Tem de ser hoje. Para o que der e vier. Vamos lá?”

E sorria. Firme, confiante. Tranquilo. Como vou contar que ela morreu há dois dias?

Fonte:
Ignácio de Loyola Brandão. Cabeças de Segunda-Feira. RJ: Codecri, 1983.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 2 –

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Bom dia, Nhô Juca


Em meados de 1952, quando começou a primeira campanha eleitoral em Maringá, o candidato a prefeito Inocente Villanova Júnior foi buscar em São Paulo um jovem radialista para coordenar e animar os seus comícios. Era um paulista nascido em Itápolis no dia 28 de maio de 1925, Antônio Mário Manicardi, recém-aprovado num concurso para compor o elenco de radionovelas da Rádio América. A proposta do candidato era bem atraente. Manicardi aceitou, mas com o trato de que, após a campanha, voltaria para São Paulo. Até hoje não voltou.

Villanova foi eleito e fez dele o primeiro servidor da prefeitura. Nomeou-o secretário factótum (faz-de-tudo), encarregado de ajudá-lo a instalar e pôr em funcionamento o governo municipal. Seu primeiro ato foi comprar duas mesas e duas cadeiras para mobiliar o gabinete do executivo. Mas precisou pagar com dinheiro saído do bolso do prefeito, porque ainda não havia entrado nem um tostão no caixa do município.

No comando dos comícios, Manicardi ficou logo famoso pela sua voz bonita, pela facilidade de comunicação com a pioneirada e pelos belos poemas que declamava nos intervalos dos discursos. O sucesso foi tal que, além do cargo na prefeitura, ele foi também contratado pela Rádio Cultura para comandar programas sertanejos, graças aos quais ficou conhecido em toda a região usando o nome artístico de “Nhô Juca”.

Além de animar programas de auditório, acordava os ouvintes todas as manhãs com um melodioso e alvissareiro “Bom dia pra vancê”. Anos depois, passou a comandar aos domingos, na TV Cultura, o “Festival de Música Sertaneja”, e durante um bom tempo atuou também na Rádio Difusora e na Rádio Atalaia.

A grande popularidade conquistada como comunicador acabou levando-o a se candidatar à Câmara Municipal – foi vereador por três mandatos, e no último período exerceu a presidência do Legislativo. Nessa oportunidade acumulou o cargo de vice-prefeito e por trinta dias foi prefeito interino, desempenhando a função com eficiência e brilho.

Porém o artista, radialista, político de sucesso Antônio Mário Manicardi, o nosso querido e a cada dia mais admirável Nhô Juca, foi sempre, antes de tudo, um senhor poeta, romântico de nascença – o primeiro poeta da cidade.

Membro fundador da Academia de Letras de Maringá, é frequentador assíduo das reuniões da entidade, onde, com o encanto e a autoridade dos seus vigorosos 95 anos, continua compondo e declamando belíssimos poemas.

E vejam só: se em 1952 a Rádio América de São Paulo perdeu um excelente ator de radionovelas, Maringá, por sorte nossa, ganhou um dos seus mais marcantes pioneiros, um maringaísta com cadeira cativa e permanente na memória e no coração de quantos tiveram e continuam tendo a alegria de conviver com ele. Abração, Poeta.
=======================================
Crônica publicada no Jornal do Povo – 29-10-2020

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Benedita de Mello (Poemas Avulsos) 2


A CIDADE DE VICÊNCIA

 Minha cidade pobre e pequenina!
Virgem rezando aos pés do Sirigí!
E’ simples como as flores da campina,
bendita sejas, terra onde eu nasci.

 Cedo, ao fechar seu cálice — a bonina,
olhas o sol! E o sol, cheio de si,
beija-te a silhueta alva e franzina.
Bendita sejas, terra em que eu sofri.

 Amo-te assim, calcada e reprimida,
pelos donos de engenhos explorada,
sem pão, sem vestes, sem amor, sem vida.

É minha a tua dor. São meus os ais
que os teus carros de boi deixam na estrada,
levando o sangue dos canaviais.
****************************************

CARNAVAL

Tu não eras assim quando eu te amei.
Do que foste, só tens o nome que usas.
Atitude ora de anjo, ora de rei,
Tinhas virtudes grandes e profusas.

Não fugias ao bem que hoje recusas.
Eras a perfeição com que eu sonhei.
Se de tanto mudar, te não acusas,
É que não sabes que mudaste, e eu sei.

O carnaval chegou, te mascaraste.
De fingir que eras outro, outro ficaste,
Sem perceber que estavas diferente.

O rei momo passou. veio outro dia.
Mas nunca mais te vi sem fantasia,
Retomar o teu eu de antigamente.
****************************************

DESPOJOS

Vai-se partindo aos poucos, laço a laço,
Aquele nosso grande amor de outrora.
Ontem foi um desgosto, hoje embaraço.
Amanhã vai-se uma ilusão embora.

Mais uma falsidade revigora
Em minha alma essa dor, esse cansaço.
O próprio ciúme, com um sopro escasso,
Está fadado a perecer agora.

Nada mais acharás, quando voltares,
Que o fundo sono desse amor acorde:
Nem desejos, nem sonhos, nem pesares...

E embora em ti de novo o amor transborde,
Sentirei nos meus lábios, se os beijares,
O sabor da perfídia que me morde.
****************************************

DESTINO

Serei sempre algo que te pertenceu.
Um dia fui a tua aspiração.
Fui depois, sem saber, o tudo teu,
Tua sincera e única afeição.

Fui mais tarde um brinquedo em tua mão...
Logo após, uma flor que esmaeceu,
No vaso rubro do teu coração.
Agora, sou teu sonho que morreu...

Hei de ser sempre alguma coisa tua.
Coisa que o teu desprezo não destrua...
Farta, sutil e eterna como a poeira.

E contra o teu querer, tua vaidade,
Quando não puder ser tua saudade,
Eu serei teu remorso a vida inteira.
****************************************

ESCONDIDA

Quando em criança, ainda bem criança,
Toda vida levava em brincadeira...
Corriam, a buscar-me, a casa inteira
As meninas de toda a vizinhança.

Debaixo de uma mesa ou uma cadeira,
Por fim era encontrada... que folgança!...
Correria... algazarra... sem tardança,
Ia esconder-se alguma companheira...

Hoje, no sazonar de nossas vidas,
Jogo às vezes sozinha às escondidas
Nas noites em que o ar tem cheiro à lua...

Numa alegria que não podes ver,
A minha alma brincando de esconder,
Fica toda encolhida atrás da tua...
****************************************
Benedita de Mello foi uma poetisa e escritora brasileira. Também fundou instituições sociais para cegos. Cega de nascença, publicou diversos livros de poemas. Educadora, professora do Instituto Benjamin Constant, do Rio de Janeiro, onde residia. Seus versos são por vezes perpassados de uma serena amargura. Em seu livro Sol nas trevas, ela descreve a vida vista pelo intelecto de um cego. Matriculou-se no IBC em 1920 e em 1928 tornou-se professora. Seu nome chegou a ser cogitado para a Academia Brasileira de Letras. Seu gênero era basicamente o soneto. (wikipedia)

Rubem Braga (Os Teixeiras Moravam em Frente)


Para não dar nome certo digamos assim: os Teixeiras moravam quase defronte lá de casa.

Não tínhamos nada contra eles: o velho, de bigodes brancos, era sério e cordial e às vezes até nos cumprimentava com deferência. O outro homem da casa tinha uma voz grossa e alta, mas nunca interferiu em nossa vida, e passava a maior parte do tempo em uma fazenda fora da cidade. Além disso, seu jeito de valentão nos agradava, porque ele torcia para o mesmo time que nós.

Mas havia as Teixeiras. Quantas eram, oito ou vinte, as irmãs Teixeira? Sei que era uma casa térrea muito, muito longa, cheia de janelas que davam para rua, e em cada janela havia sempre uma Teixeira espiando. Havia umas que eram boazinhas, mas em conjunto as irmãs Teixeiras eram nossas inimigas, acho que principalmente as mais velhas e mais magras.

As Teixeiras tinham um pecado fundamental: elas não compreendiam que em uma cidade estrangulada entre morros, nós, a infância, teríamos de andar muito para arranjar um campo de futebol; e, portanto, o nosso campo natural para chutar uma bola de borracha ou de meia era a rua mesmo.

Jogávamos descalços, a rua era calçada de pedras irregulares (só muitos anos depois vieram os paralelepípedos, e eu me lembro que os achei feios, com sua cor de granito, sem a doçura das pedras polidas entre as quais medrava o capim; e achei o nome também horroroso, insuportável, paralelepípedos, nome que o prefeito dizia com muita importância, parece que a grande glória de Cachoeiro e o progresso supremo da humanidade residia nessa palavra imensa e antipática – paralelepípedos); mas, como eu ia dizendo, a gente dava tanta topada que todos tínhamos os pés escalavrados: as plantas dos pés eram couro grosso, e as unhas curtas, grossas e tortas, principalmente do dedão e do vizinho dele. Até ainda me lembro de um pedaço do “campo” que era melhor, era do lado da extrema direita de quem jogava de baixo para cima, tinha uma pedra grande, lisa, e depois um meio metro só de terra com capim, lugar esplêndido para chutar em gol ou centrar.

Tenho horror de contar vantagem, muita gente acha que eu quero desmerecer o Rio de Janeiro contando coisas de Cachoeiro, isto é uma injustiça; a prova aqui está: eu reconheço que o Estádio do Maracanã é maior que o nosso campo, até mesmo o Pacaembu é bem maior. Só que nenhum dos dois pode ser tão emocionante, nem jamais foi disputado tão palmo a palmo ou pé a pé, topada a topada, canelada a canelada, às vezes tapa a tapa.

Não consigo me lembrar se a marcação naquele tempo era em diagonal ou por zona; em todo caso a técnica do futebol era diferente, o jogo era ao mesmo tempo mais cavado e mais livre, por exemplo: não era preciso ter onze jogadores de cada lado, podia ser qualquer número, e mesmo às vezes jogavam cinco contra seis pois a gente punha dois menores para equilibrar um vaca-brava maior.

Eu disse que as partidas eram emocionantes; até hoje não compreendo como as Teixeiras jamais se entusiasmaram pelos nossos prélios.

Fonte:
Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas.

O Soneto (Parte 1)

Nota do Blog:

Infelizmente há na internet sonetos que não obedecem às regras obrigatórias próprias a eles. Quando os poetas quebram as regras, o soneto deixa de ser soneto, assim como em outros gêneros poéticos que exigem regras, como por exemplo a trova, que quando não segue a sua estrutura de 4 versos de sete sílabas poéticas, com sentido completo e claro, pode ter outra denominação, mas com certeza ao se denominar trova está incorreto.

****************************************

Como todos devem saber – existem dois estilos de poesia: a de composição livre, sem ser subordinada a qualquer norma e a de composição tradicional metrificada, condicionada às suas regras. São dois estilos independentes com suas subdivisões e como aqui vamos tratar exclusivamente dum segmento metrificado – isto é, do soneto – somos forçados a deixar a composição livre à parte. Portanto, vamos falar de soneto? Normalmente, o adepto de tal estilo é rigoroso, preservando-o em suas formas originais e fixas, pois, havemos de considerar que, se partirmos para versos livres estaremos invadindo o estilo oposto – portanto, uma incoerência.

Há muitas controvérsias sobre sua origem que surgiu lá pelo século XII e, embora não tenha sido seu criador, fortaleceu-se e tomou forma própria a partir do italiano Francesco Petrarca (1304/1374) – o modelo petrarquiano. Da Itália, viajou para outros países e na Inglaterra se transformou em soneto inglês, quando foram alteradas somente a colocação de seus quatorze versos – o modelo shakespeariano.

Alguém já disse que o soneto é “a sedução do cárcere” mas eu diria que é “o cárcere da sedução”, pois, conforme o poeta contemporâneo Paulo Bonfim (sagrado o ”príncipe dos poetas brasileiros” em 1991): “ Para muitos, o soneto é inibidor, mas eu acho que é a prova de fogo do poeta. Não considero o soneto o espartilho da poesia”.

Majo & Machado em seu site define muito bem o soneto em relação às suas regras rígidas, comparado-o com o vinho, essa bebida natural e original: “se servido puro, é vinho; se misturado com água e açúcar, é refresco.” Nada mais lógico e racional.

Alguns pretendem modernizá-lo, como tentou o poeta Augusto Frederico Schmidt, mas Vasco de Castro Lima já alertava que um poema de quatorze versos poderá ser muito poético, mas se não respeitar suas regras rígidas, poderá ser tudo, menos um soneto.

E por que a divergência ? Convenhamos – a beleza do soneto está em sua forma sucinta, elevada, concisa e exclusiva, pois cada estilo de poesia tem suas peculiaridades e maneira diferente de desenvolvê-la. Assim, no segmento metrificado, a trova tem suas regras básicas; o haicai outras diferentes; o ovillejo as suas e assim por diante em função de cada estrutura. Se fugisse das regras, a trova perderia seu valor se transformando numa simples quadrinha – assim é o soneto.

Esmiuçar as regras e a nomenclatura do soneto talvez seja um pouco longo, o que faremos, gradativamente, numa próxima vez. Para adiantar diria somente que é um poema de quatorze versos – dois quartetos e dois tercetos – rimando os dois quartetos e, com rimas diferentes, os dois tercetos.
texto de João Roberto Gullino (Site Casa Raul de Leoni)
——————————————————————————–

SONETOS IMORTAIS, por J. G. de Araújo Jorge

Todos os sonetos citados nesta crônica encontram-se na minha antologia
“Os mais Belos Sonetos Que o Amor Inspirou”. Volume I – Poesia Brasileira.

Na história da literatura brasileira temos o fato curioso de três grandes poetas que se celebrizaram apenas com um livro: Augusto dos Anjos, com “Eu e Outras Poesias”, Raul de Leoni, com “Luz Mediterrânea”, e Moacir de Almeida, com “Gritos Bárbaros”. Eu acrescentaria um nome bem mais recente, cuja obra “Cânticos Bárbaros”, mereceu em 1934 o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras: trata-se de Mário Cruz, que vive em Petrópolis, e é técnico do Museu Imperial.

Por acaso, são todos poetas de minha predileção, em que pese à diversidade de estilos e temperamentos, ou justamente por isso. Mas, do mesmo modo que há escritores de um único livro, ou que se consagraram por uma de suas obras, há, entre os poetas, os que se celebrizaram apenas por um poema, um soneto.

O exemplo clássico é o de Felix Arvers, autor de “Mês Heures Perdues”, e que teria mergulhado no mais completo anonimato não fosse o seu famoso soneto inspirado por Marie Nodier. Só em língua portuguesa há cerca de 200 traduções conhecidas.

No Brasil há alguns casos mais ou menos semelhantes. Autores de sonetos célebres, ou que se celebrizaram por um soneto, mas com muitas outras produções de valor pelo menos idêntico ao do trabalho consagrado. São por demais citados Bilac com o seu “Ouvir Estrelas”; Raimundo Correia, com “As Pombas” e “Mal Secreto”, e Machado de Assis, com “Carolina”. Carlos Ribeiro, o mercador de livros, me referiu que, às vezes, entram porta adentro de sua livraria e lhe perguntam à queima-roupa:

O senhor tem aí a “Carolina”, de Machado de Assis?

(hoje há outra “Carolina” concorrendo com a de Machado de Assis: a do Chico Buarque de Holanda, poeta moço, que ainda se dá ao luxo de música nos belos poemas que compõe).

Citemos outros: Raul de Leoni está nos álbuns, nos recitais, na memória do povo, cada vez mais, com aquele soneto que não incluiu em sua obra, e que é apresentado ora com o título de “Perfeição”, ora com o título de “Argila”. Eu prefiro “Perfeição”. Quem não será capaz de dize-lo?

Nascemos um para o outro, desta argila
de que são feitas as criaturas raras,
tens legendas pagãs nas carnes claras
e eu trago a alma dos faunos na pupila…”


Mário Pederneiras, poeta carioca, cantor de sua cidade, hoje quase esquecido, ficou com seu “Suave Caminho”, de um lirismo envolvente:

“Assim, ambos assim, no mesmo passo…”

E o final:

“Placidamente pela vida iremos
calçando mágoas, afastando espinhos,
como se a escarpa desta vida fosse
o mais suave de todos os caminhos…”


Nilo Bruzzi, o biógrafo de Casimiro de Abreu e Júlio Salusse, romancista e poeta conquistou seu lugar com um único soneto: “Única”. Pelos primeiros versos vocês se lembrarão logo:

“No turbilhão da vida cotidiana
há sempre oculto um rosto de mulher…”


Há outro poeta que não deixou sequer livro publicado, cearense, falecido em 1941, cujas poesias ficaram esparsas por jornais e revistas de sua terra: o Padre Antônio Tomás. Seu soneto “Contraste” é uma página que traz a marca da perenidade. Canta o poeta: “Quando partimos, no vigor dos anos,/ da vida, pela estrada florescente,/ as esperanças vão conosco à frente/ e vão ficando atrás os desencantos…” Mais tarde, no entanto, conclui: “Nós enxergamos claramente/ quando a existência é rápida e fugaz,/ e vemos que sucede exatamente/ o contrário dos tempos de rapaz:/ os desenganos vão conosco à frente/ e as esperanças vão ficando atrás!”

Julio Salusse, “o último Petrarca brasileiro”, apaixonado pela sua Laura, filha do Conde de Nova Friburgo, criou a imagem do amor eterno com o soneto “Cisnes”. Ainda hoje figura em todos os cadernos de poesia:

“A vida, manso lago azul, algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós, constantemente,
um lago azul sem ondas nem espumas…”


Alceu Wamosy, gaúcho, que morreu pelejando, com apenas 28 anos, imortalizou-se com os quatorze versos de “Duas Almas”. Quem não os sabe de cor?

“Ó tu que vens de longe! Ó tu que vens cansada
entra, e sob o meu teto encontrarás carinho:
eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada…”


Da mesma maneira, Da Costa e Silva, do outro extremo do Brasil, poeta piauiense, está na memória da gente, com o soneto “Saudade”, cujo terceto final ressoa como uma balada de sino:

“Saudade! O Paraíba, velho monge
as barbas brancas alongando… E ao longe
o mugido dos bois da minha terra…”


Quero encerrar, entretanto, esta crônica, com uma surpresa para vocês. Vou apresentar-lhes um soneto inteiramente desconhecido. Recebi-o de um amigo, num velho recorte sem data, já amarelecido, do “Correio da Manhã”, e certamente o incluirei na 3ª edição de minha antologia “Os Mais Belos Sonetos que o Amor inspirou”. O nome do poeta? Otávio Rocha. Não o conheço; nunca encontrei seu nome em qualquer citação. Mas arrisco-me a vaticinar-lhe a celebridade à proporção que se der a divulgação do soneto. Ei-lo na íntegra:

ROMANCE

“Venha me ver sem falta… Estou velhinha.
Iremos recordas nosso passado;
a sua mão quero apertar na minha
quero sonhar ternuras ao seu lado…”

Respondi, pressuroso, numa linha:
“Perdoe-me não ir… ando ocupado.
Ameia-a tanto quanto foi mocinha
e de tal modo também fui amado.

Passou a mocidade num relance…
Hoje estou velho, velha está… Suponho
que perdeu da beleza os vivos traços.

Não quero ver morrer nosso romance…
Prefiro tê-la, jovem no meu sonho,
do que, velha, apertá-la, nos meus braços!


Aí está, o mais velho e o mais belo dos temas, renovado sempre na poesia e no sonho de um poeta.
 
continua...
 
Fonte:
Crônicas de JG de Araujo Jorge extraído do livro ” No Mundo da Poesia ” Edição do Autor -1969

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 1 –

 


Contos e Lendas do Mundo (Campo Mourão/PR: Lenda de Curibá e Jaricó Copaíba)

Há muito tempo atrás aconteceu um causo que virou a lenda de Curibá e Jaricó Copaíba.

Curibá era um homem simples; com um coração muito bom, porém ele não sabia fazer algumas coisas que seus companheiros faziam com facilidade, tipo jogar bola, caçar ou pescar.

Quando o grupo saía pra mata, a fim de caçar ou pescar, todos voltavam com suas sacolas cheias de peixes, e o pobre Curibá vinha sempre com as mãos abanando.

Por este motivo, todos faziam piadas com o seu nome:

- “Hey Curibá, vai pescar ou dar banho na minhoca?”...

- “Curibá é melhor comprar o peixe no mercado para ter o que comer.” E caiam na gargalhada.

Um dia, muito triste, Curibá foi pra mata, encostou-se no tronco de uma Copaibeira com muitos galhos, flores, repleta de sementes e ali começou a chorar. Suas lágrimas molharam as sementes e, de repente, de dentro de uma flor da majestosa Copaibeira surgiu um duende. Um homenzinho bem velhinho e simpático, com um chapéu verde-amarelo, uma longa barba fina que ia até o meio de sua barriga e um olhar amigo nos seus olhos.

- “Aló, alô, aló! Chamou! Chamou?! Chegou o duende Jaricó! - Vim aqui para saber o motivo de tanta tristeza meu rapaz. Sei que é uma boa pessoa, não maltrata ninguém, ajuda quem precisa, então por qual motivo chora tanto?

Curibá contou ao Jaricó o motivo de sua tristeza, das zombarias que faziam com ele, e o duende então lhe disse em tom solene:

-Eu, Duende Jaricó Copaíba, vou deixar pra você, todos os dias, oito minhocas mágicas bem aqui neste buraco do tronco da Copaibeira, que vai fazer você pescar quantos peixes quiser. Só exijo uma coisa: leve pra casa só os peixes que precisar, mas se sobrar faça doação pro orfanato!

Assim Curibá fez. Todos os dias pescava bastante e fazia o que Jaricó havia pedido.

Este belo gesto tornou Curibá uma pessoa muita querida por todos, e as brincadeiras de mau gosto acabaram. Porém, seu cunhado, João Tarrafa, morria de inveja com o sucesso de Curibá. Um dia resolveu segui-lo e descobriu o segredo das minhocas mágicas. Por ser invejoso, resolveu roubá-las.

Quando Curibá foi até o buraco da Copaibeira e não encontrou as iscas, ficou desesperado e chamou por Jaricó. Ouviu a voz do duende que dizia de maneira bem forte:

- Oh Curibá, mesmo sem iscas corra até o rio e jogue o anzol. Vamos lá rapaz. Tenha Fé!

Assim fez. Depois de um tempo sentiu que algo havia mordido o seu anzol. Pensou que fosse um peixe muito grande.

Curibá lutou muito até que conseguiu tirá-lo da água e teve uma grande surpresa ao ver que não era um peixe e sim uma grande minhoca com a cara de João Tarrafa, que gritava e pedia pra sair dali.

Então Curibá escutou novamente a voz do duende Jaricó:

- Curibá, isto é um castigo pro seu cunhado João Tarrafa, pelo que ele te fez. Enquanto não pedir desculpas a você no laguinho do chafariz da praça, ele continuará uma minhoca, nojento e desprezado por todos.

Depois disso, Curibá voltou a pescar e dava sempre uma parte do que conseguia para as crianças do orfanato.

Seu cunhado, depois de pedir perdão em público por suas maldades, foi perdoado, mas passou a ser apelidado, pelo povo, de João Minhoca.

Ainda nos dias de hoje, quando se encontra uma minhoca perto da milagrosa Copaibeira,  a pessoa que a encontrou tem muita sorte na pescaria e sai dizendo, bem rimado:

- "Bendito peixe, aló, alô, aló.
Benditos amigos Curibá e Jaricó.
Vou levar um peixe p'ra mamãe,
Um p'ro irmãozinho e um p’ra vovó!"

____________________________________
Copaíba é árvore símbolo de Campo Mourão, imune a corte. Trata-se de uma espécie nativa do Cerrado Mourãoense, com propriedades curativas em vários tipos de doenças, principalmente as da pele humana. Seu óleo medicinal era denominado 'bálsamo dos deuses' pelos Incas.

Fonte:
Claudia Novello Ribeiro. Lenda de Curibá e Jaricó Copaíba - Campo Mourão -http://wibajucm.blogspot.com/2015/07/a-lenda-de-curiba-e-jarico-copaiba.html

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 5


DESENCANTO


Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
****************************************

DESESPERANÇA

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

- Ah, como dói viver quando falta a esperança!
****************************************

EPÍGRAFE

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,

Turvou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria.
****************************************

EPÍLOGO

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que só o motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando acabei- a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
- O meu Carnaval sem nenhuma alegria!....

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa. 1967.

Lima Barreto (Adélia)


— A nossa filantropia moderna feita de elegância e exibições é das coisas mais inúteis e contraproducentes que se pode imaginar. Entre todas as pessoas do povo aqui, no Rio de Janeiro, há uma condenação geral para as raparigas que se casam, no dia de santa Isabel, e saem da Casa de Expostos. Isto se dá para uma casa semi-religiosa, que só visa, penso eu, não a felicidade terrena, mas o resgate de almas das garras do demônio. Agora, imagina tu o que de transtorno na vida de tantos entes não vão levar esses "dispensários", essas creches etc. que lhes amparam os primeiros anos de vida e, depois, os abandonam à sua sorte!... Antes a sala do banco da Misericórdia que receita remédios de uma cor única e cuja dieta só varia na inversão dos pratos... É sempre a mesma... Essa caridade é espúria e perversa... Antes deixar essa pobre gente entregue á sua sorte...

— És mau... E impossível que ela não aproveite muitos.

— Alguns, talvez; mas muitos, ela estraga e desvia do seu destino, que talvez fosse alto. Nelson legou Lady Hamilton à Inglaterra; e tu sabes quais foram os começos dela. Chegaria até isso se andasse em creches, dispensários?

— Não sei; mas não nos devemos guiar por exceções.

— É uma frase; mas vou contar-te uma história bem singela que espero não me interromperás. Prometes?

— Prometo.

— Vou contar.

— Conta lá.

O narrador fez uma pausa e encetou vagarosamente:

— Quando a portuguesa Gertrudes, que "vivia" com o italiano Giuseppe, um amolador ambulante, apresentou Adélia, sua filha, à sublimada competência do doutor Castrioto, do dispensário, a criança era só um olhar. As pernas lhe eram uns palitos, os braços descamados, esqueléticos, moviam-se nas convulsões de choro sinistramente. Com tais membros e o ventre ressequido e a boca umedecida de uma baba viscosa, a criança parecia premida por todas as forças universais, físicas e espirituais. O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça do seu corpo, a placidez do seu olhar tinha um tom zombeteiro. O doutor melhorou-a muito; mas, assim mesmo, até à puberdade, foi-lhe o corpo um frangalho e o olhar sempre o mesmo, a ver caravelas ao longe que a viessem buscar para países felizes. Depois de adolescente, porém, no fim das grandes concentrações íntimas, o brilho hialino das pupilas turvava-se, estremecia. Ninguém descobriu-lhe o olhar — quem repara no olhar de uma menina de estalagem?

Olham-se-lhe as formas, os quadris e os seios; ela não os tinha opulentos, contudo casou-se. O casamento realizou-se a pé e a garotada assoviou pelo caminho. A noiva com calma estúpida olhou-os. Por quê? Casava-se a pé; era ignóbil. O padrinho não lhe notou modificação sensível. Não chorara, não soluçara, não tremera; unicamente mudou num instante de olhar, que ficou duro e perverso. O primeiro ano de casamento fez-lhe bem. A intensa vida sexual arredondou-lhe as formas, disfarçou as arestas e as anfractuosidades — emprestou-lhe beleza. Demais, o ócio desse primeiro ano afinou-a, melhorou-a; mas sempre com aquele olhar fora do corpo e das coisas reais e palpáveis. No fim de dois anos de casada, o marido começou a tossir e a escarrar, a escarrar e a tossir. Não trabalhava mais. Adélia rogou, pediu, chorou. Andou por aqui e por ali. Encontrou alguém amável que a convidou:

— Vamos até lá, é perto.

— Ó... Não... "Ele"...

— "Ele"!... Vamos!... "Ele" não sabe; não pode mais. Vamos.

"Foi, e foi muitas vezes; mas sempre sem pesar, sem compreender bem o que fazia, à espera das caravelas sonhadas. Ia e voltava. O marido tossia e tomava remédios.

— Trouxeste?

— Sim; trouxe.

— Quem te deu?

— O doutor.

— Como ele é bom.

"Aos poucos, infiltravam-se-lhe gostos novos. Um sapato de abotoar, um chapéu de plumas, uma luva... Morreu o marido. O enterro foi fácil e o luto ficou-lhe bem. O seu olhar vago, fora dos homens e das coisas, atravessava o véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca. Um ano depois corria confeitarias, à tarde; mas o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava longe dela, longe daqueles lugares.

— Toma vermute?

— Sim.

— É melhor coquetel.

— É.

— Antes cerveja.

— Vá cerveja.

Não custou a embriagar-se um dia. Meteram-lhe num carro. Estava que nem uma pasta mole e desconjuntada.

— Que tem você?

— Nada, não vejo.

— Você por que não abre mais os olhos?

— Não posso, não vejo!

— Lá vão os Fenianos... Você não vê?

— Ouço a música.

Teve carros. Frequentou teatros e bailes duvidosos, mas seu olhar sempre saía deles, procurando coisas longínquas e indefinidas. Recebeu joias. Olhava-as. Tudo lhe interessou e nada disso amou. Parecia em viagem, a bordo. A mobília e a louça do paquete não lhe desagradavam; queria a riqueza, talvez; mas era só. Nada se acorrentava na sua alma. Correu cidades elegantes e as praias.

— Hoje, ao Leme.

— Sim, ao Leme.

A curva suave da praia e a imensa tristeza do oceano prendiam-na. Defronte do mar, animava-se; dizia coisas altas que passavam pelas cabeças das companheiras, cheias de mistério, como o voo longo de patos selvagens, à hora crepuscular.

Veio um ano que se examinou. Estava quase magra, quase esquálida. Foi-se fanando dai por diante. Diminuíram-se-lhe as joias e os vestidos. Morreu aos trinta e poucos anos como a criança que se fora: um frangalho de corpo e um olhar vago e doce, fora dela e das coisas. Que é que adiantou o dispensário?"

Calou-se o que narrava, e o outro só soube dizer:

— Vou-me embora... Até amanhã.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 1920,

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 454

 


Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Oito) Língua presa

O autor é de Vila Velha/ES

 
O ESCRITÓRIO DO ADVOGADO ficava literalmene em frente ao prédio da delegacia de polícia.  Por esta razão, assim que o rapaz que acabara de entrar em sua sala trazido pela sua secretária, o causídico indicou gentilmente uma cadeira. Antes de se acomodar, o moço tirou da cabeça um boné ensebado e o colocou sobre a mesa cheia de papéis e processos:

—  Bom dia, meu jovem. Aceita  água gelada?

— Boum diua paura o seunhour taumbuém. Nãu, oubriugaudo. Seurei breuve.

—  Um cafezinho, ao menos?

—  Teunhu qui paugar?

—  Claro que não, meu amigo. É tudo por conta do nosso escritório.

—  Entãu eu auceitu um...

—  Quer comer alguma coisa? Temos bolo de laranja...

—  Se eu tiuver que paugar, preufiuro só o caufé...

O criminalista chamou a atendente pelo interfone e solicitou que trouxesse a bebida para dois:

—  Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?

—  Audeusgeusto Fumouso.

—  Pois não. Conte o que aconteceu?

— Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia trouxe eule auqui paura a deuleugaucia.

—  Sabe dizer exatamente qual o motivo?

— Seugundo o pouliuciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já foui tudo deuviudamente esclaureucido.

—  Entendi. Mas ele, seu amigo, ainda continua detido?

—  Nãu. Doutour. Aucaubou de ser liubeurado. Eustá auté auli foura me espeuraundo.

A recepcionista entrou com a bandeja  e  serviu os dois homens em silêncio:

—  Senhor, açúcar ou adoçante?

—  Auçuucar, pour fauvour.

—  Não entendi, cavalheiro!

—  Aucho meulhour toumar puro meusmo...

Terminada esta  tarefa, a jovem acenou para os dois e retornou à recepção:

—  Bem, seu Adegesto...

—  Audeusgeusto...

—  Como se escreve, ou melhor, como se pronuncia? Adegesto ou Adeusgesto?

—  Audeusgeusto.

—  Ok. Seu Audeusgeusto, pelo que entendi, seu amigo não está mais detido ai na delegacia, correto?

—  Grauças à Deus, nãu.

— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, este seu amigo: Souto ou Solto?

—  Ourlaundo!

—  Mas o senhor disse à minha funcionária, ainda a pouco,  que seu amigo Souto foi... Solt... E...  

— ...Nãu, nãu diusse. Fui beum clauro com eula. Faulei  o seuguiunte: que o meu aumiugo Ourlaundo... De onde o senhour tiurou euste taul de Souto?

— Calma, vamos recapitular: o que o senhor falou, afinal, para minha subordinada quando ela o interpelou na recepção ai da delegacia?

—  Queu meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas augoura nãu está mais...

—  Mais o quê?

—  La deuntro da deuleugaucia, com o doutour deuleugaudo.

—  Então ele foi realmente solto?

— Foui. Diaunte diusso eu vium auté auqui augraudecer, pois nãu vou mauis preuciusar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo aulguma couisa coum reulaução a hounouraurios. Aufiunaul de countas a sua ausseussoura foi muito euducauda...

— Tudo bem, o  senhor não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou, ainda pra lá de confuso. Desculpe a insistência, seu Adeusgesto: seu amigo é o Souto?

— Nãu, doutour. Pour tudo quaunto é mais saugraudo. Meu noume é Audeusgeusto...  

— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender.  O Souto, ou melhor, o Orlando  veio preso e agora está solto?

—  Euste taul de Soulto nunca eusteuve preuso. Se nãu eusteuve preuso, jaumais poudeuria ter siudo soulto. O Ourlaundo sim... De preuso, passou a soulto... E soulto, pourtaunto, eule eustá augoura.

Risos:

— Por acaso isto é algum tipo de brincadeira?

— Nãu senhour. Clauro que nãu.

— Então?

— O Ourlaundo, coumo eu diusse, está soulto. Enteunde o que diugo? Eule augoura está souto. Fuoi aupenas um maul enteundiudo. Coumo poude ver, tudo se  feuz deuviudaumente esclaureuciudo. Miunha preusença auqui no seu euscriutóurio  se deuve  aupeunas paura vuer se eu lhe deuvo aulgum vaulour e, soubreutudo augraudeucer a sua iunterveunção e, clauro, a da sua aumaubilíssiuma beuldaude que fiuca  na meusinha da sua aunteusaula.

Para descomplicar a vida, ou melhor, a conversação e o entendimento entre seu cliente, o jurista ‘porta de cadeia’ procurou falar no mesmo linguajar dele:

— Iusto nous leuva a councluir que eule, o Ourlaundo  eustauva preuso e augoura grauças a Deus, foui soulto?

Audeusgeusto Fumoso, se sentindo imitado, e pior, zombado, perdeu as estribeiras. Fechou o semblante. Gritou, colérico:   

— O seinhour pour aucauso reusoulveu gouzar da miunha caura?

— De forma alguma, seu Adegesto. Por tudo quanto é sagrado. Longe de mim esta ideia absurda.

— Audeusgeusto. Meu nome é Audeusgeusto...

Em seguida se levantou da cadeira mais irritado e furioso. Passou a mão no boné ensebado, virou as costas e saiu definitivamente da sala.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

Edy Soares (Cristais Poéticos) V

A RODA DO MUNDO


Cada minúscula partícula é um dente
Da catraca que faz o mundo girar
Não por acaso nada é permanente,
Pois no ciclo do giro do mundo,
O que recicla não morre mais faz renovar.

Se semente latente ou germe, é vida,
Será um dia vivida quando enfim geminar;
Mas, sem alterar a grande roda do mundo.
Pois pó, sai do pó e ao pó voltará.
****************************************

DESALENTO

Quem vai nunca vai sozinho,
leva um pedaço da gente;
quem fica não fica inteiro;
pois, a alma fica doente.

Quem fica sente saudades,
o soluço sufoca o peito.
Quem chora apascenta a alma;
quem sorri, o faz com respeito.

Qual livro na prateleira
e conto que vai pra memória,
a saudade rasga o peito,
qual página que finda a história.

A lágrima, que lava os olhos,
não leva a dor de quem chora.
****************************************

ETERNO AMOR

Queima-me no peito, palpitante,
com os meus olhos chorando ao te ver,
um coração que por um instante,
ofegante, quase não quer bater.

Posso ver em teu doce semblante
que ainda não conseguiste esquecer,
ao entregar-te pra tantos amantes,
o grande amor que assisti fenecer.

Meu corpo ainda tremula e sua
quando te vejo andar pela rua.
Lábios lindos que me pertenceu.

Mas o tempo passou não tem jeito,
vais levar nosso amor em teu peito,
que pra sempre vou levar-te no meu,
****************************************

FLORES DO DESERTO

Deserto de flores magras
Que definham,
Que o sol castiga,
Pois falta água,
De sede murcham,
Mas são flores.

Deserto de crianças magras
Que definham,
Que o sistema castiga,
E falta água.
Ninguém as escuta,
Mas são crianças.

Flores que choram o chão,
Crianças que choram o pão,
Que despetalam,
Que o mundo condena.

São pequenas flores
Que ninguém colhe,
Que ninguém acolhe,
Mas precisam de amores
Por que... São flores!
****************************************

UM DIA APÓS O OUTRO

Há tempo de poesias,
De grandes amores.
Há tempo de flores
Que justificam a vida.

Há tempo de romances,
Descoberta de amores,
Entrega de flores
Pra pessoa querida.

E pra equilíbrio da saga,
Em tempos de drama,
Há que manter a chama
E curar as feridas,

Em poesia, romance ou drama,
Segue o seu curso, a vida.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Carina Bratt (Encantos de Sonhos não Enterrados)


Para todas as meninas que ainda vivem os arroubos do primeiro amor.


Três meses, hoje, que eu e ele nos separamos. Resolvemos comemorar a data indo a um shopping fazer um lanche na praça de alimentação e, para fechar a noite, com chave de ouro, assistir a um filme em cartaz numa das salas de exibição lá existentes. Ele queria ‘Sr. e Sra Smith’, com Brad Pitt e Angelina Jolie. O filme havia saído de cartaz trocentos anos atrás e, por algum motivo inexplicável, as salas de projeção estavam fazendo uma espécie de pescaria adoidada de um desses ‘baús de longas’. Sem opção ficamos com ‘Guerra dos Mundos’, com Tom Cruise e Dakota Fanning. Melhor que ‘Batman Begins’ e ‘Madagascar’.

Ele, o meu eterno amor, continua o mesmo, como o fiel da balança, a não ser pelo porte. Mais belo e ardente, elegante e solto. Perdeu uns quilinhos. Achei-o de rosto miúdo, olhos fundos — semblante um pouco triste e abatido, como se carregasse, nos ombros, sozinho, o peso pela culpa de nosso rompimento. De resto, continua autoritário, cheio de mágoas — guarda ainda rancores antigos, como se fossem a razão maior do seu existir. Fora isto, me vi invadida por uma solidão estranha, uma vontade de me aninhar em seus braços e chorar as incertezas que ainda fazem de meus dias um rosário interminável de suplícios eternos.

Este rapaz de trinta e oito anos se contrapondo aos meus 16 incompletos e consequentemente aos quase vinte e três de diferença de idade existentes entre nós, deixou uma lacuna muito grande quando me disse adeus. Criou um abismo intransponível e conseguiu botar meu coração em frangalhos. Afinal de contas foram quatro anos de convivência. Quatro anos não são quatro dias, e a história do nosso dia a dia não poderia morrer, ou não deveria ir por água abaixo, sem mais nem menos. Contudo, apesar dos pesares, foi. Aconteceu. Nossos mundos se desmoronaram e, agora, cada um tenta renascer dos escombros como pode, com as armas que cada um de nós dispõe ao alcance das mãos.

Talvez seja por esta razão que sinta a falta dele em tudo o que faço. O vazio que se formou ao meu redor clama pelo seu regresso imediato e eu me cobro por ter deixado que partisse sem brigas, sem mágoas, para que ficasse tudo em paz, sem dissabores, sem lutas desnecessárias, temendo (pelo menos da minha parte, na época) que não se fechassem as portas de um futuro, quem sabe, talvez?! atrelado ao ‘nunca mais’ atrás de si, e me virasse às costas, porventura, de modo definitivo.

Ele era, ou melhor, foi a minha ponte suspensa e sem idade para o futuro que me esperava do outro lado. Uma ponte comprida, tecida de pequenos fragmentos sobre caudaloso mar de águas escuras — onde o peso da idade para ele se insurgia para mim como um relógio do tempo disfarçando as horas que me restavam — com miçangas e tufos de algodão para enganar meu agora. E só fazem três meses. Noventa dias sem o seu calor quase materno, o beijo adocicado, o carinho de nossos corpos se procurando na cama, onde bastava um pouquinho de pequenos afagos para que o imensamente adormecido brotasse, no galope desenfreado dos prazeres acelerados.

E quando estávamos prestes a nos despedir, já fora do cinema, ele me pagou um Cappuccino com creme de leite. Odiei a bebida. Em compensação, o tempo que levei para sorver o conteúdo da xícara me permitiu ficar mais um bocadinho ao seu lado. Sentamos em uma mesa ao acaso, trocamos suspiros confidentes — ele chorou um pranto sentido (eu colocaria como um pranto de pronta entrega), e eu, por meu turno, disfarcei como pude, uma lágrima fujona e solitária, que não ensaiou bailar e, de repente, se viu fora de foco, como uma atriz iniciante nas coxias, medrosa de aparecer em cena para protagonizar o seu primeiro papel diante de uma multidão desconhecida.

Se eu pudesse ter um desejo realizado agora, seria o de vê-lo de volta, de mãos dadas comigo, nossos dedinhos entrelaçados em posição de perdão, enquanto violinos desenhando falas da ‘Fantasia e Fuga em Sol Menor’, de Bach, nos faria sentir a bela culminância de estarmos a sós, e de volta, exatamente ao ponto onde colocamos um final derradeiro em nossos destinos. Não queria que houvesse meios termos, nem que a nossa novela virasse capítulo de um folhetim esquecido.

Almejava, ainda, um mergulho sensível na piscina do adormecido, onde pudesse me sentar quando saísse da água, num balanço indo e vindo, incerto no azul, e sentisse ribombar as auras agridoces dos sons e, igualmente, gotejasse a velha paixão doentia pelos poros da epiderme, até que a coisa, como num passe de mágica, virasse unha e carne. Quem dera, ou quem sabe, no êxtase da arte, explodissem estrelas, reescrevendo a nossa história, como um prato cheio de letrinhas de sopa se derramando no regozijo da minha louca imaginação.

Papo sério. Acabou de verdade. Três meses se passaram. No fundo, estou me sentindo como uma daquelas alienígenas do ‘Guerra dos Mundos’ que substituímos em última hora, para não perdermos o bom humor e voltarmos, cada um para seu canto, de tromba virada, como um presente recebido sem papel de embrulho. O filme de Spielberg — olhando agora pelo lado bom — me fez ver o outro lado da moeda, ou seja, aquele canto sombrio que eu não queria encontrar jamais. No geral, me senti realmente como os invasores que lutaram tanto para conquistarem a terra e, afinal das contas, encontraram a morte.

Comigo foi exatamente igual, sem tirar nem por. Lutei tanto para conquistar o coração desta criatura e acabei derrotada por uma tal de Patrícia não sei das quantas. Cá entre nós: se pelo menos essa Pati (que não imagino como lhe seja o rosto) for melhor que eu, melhor em tudo, ou tão linda quanto a Dakota Fanning... Talvez eu voltasse a me sentir ou a me ver renovada, remoçada, mais segura de mim mesma, pronta para seguir em frente, de cabeça erguida, jogando o passado na lata de lixo — eu me sentiria viva, solta e bela — como a Anne Hathaway...

Fonte:
texto enviado pela autora.