sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 456

 


A. A. de Assis (Seu Manoel Poeta)


Era como a ele se referiam alguns dos seus conviventes na fazenda do Mato Grosso do Sul, onde foi morante quase que pela vida toda, até quando se despediu em 2014 para ir brincar de anjo lá no em cima do azul.

Manoel de Barros, um senhor poeta. Seu Manoel Poeta. Ele e Quintana, para o meu gosto, os dois máximos do Brasil. Que pena terem tido de ir embora. Gente assim não deveria ir nunca. Faz falta aqui. Falta demais.

Peço licença hoje para sentir saudade de Seu Manoel. Não vou falar da biografia dele; disso já muito se falou. Vou recurtir a poesia dele. E se você tiver aí um tempinho, venha junto. Aqui na minha frente tenho um dos seus livros – “Meu quintal é maior do que o mundo”. O livro todo é uma festa de amor à natureza, à simplicidade, à alegria da vida. Vou recortar e enfileirar abaixo uns pedacinhos das coisas gostosas que ele escreveu.

“No começo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas. O homem tinha mais o que não fazer”.

“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado, como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia. Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia”.

“Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”. “Ao poeta faz bem desexplicar – tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”. “Passei anos procurando por lugares nenhuns. Até que não me achei – e fui salvo”.

“São Francisco monumentou as aves. Vieira, os peixes. Shakespeare, o amor. Charles Chaplin monumentou os vagabundos”.

”As palavras eram livres de gramáticas, por forma que o menino podia inaugurar. Podia dar às pedras costumes de flor”. ”Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando”.

“Pertenço de andar atoamente Fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo”.

“A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. Com o tempo o menino descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira”.

“Se eu quisesse caber em uma abelha, era só abrir a palavra abelha e entrar dentro dela, como se fosse a infância da língua”. “Quando eu crescer eu vou ficar criança”.

“Tentei descobrir alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir. A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei”.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 26 -11-2020)

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 3 – Dédalo e Ícaro


Para Minos, monarca de Creta,
grande Dédalo inventos criou.
Mas um dia o rei o rejeita
e sua vida um tormento tornou.

Com o filho, um rapaz jovem e belo,
é levado a uma ilha deserta.
Confinado no alto da torre,
tem a vida inconstante e incerta.

Vigiado, ele rápido pensa,
em fugir pelas rotas do ar,
pois na torre os verdugos se aliam
bem cuidando da terra e do mar.

Pede a Ícaro, o filho, que apanhe
toda pluma que venha do ar.
Tece fios, usa cera e constrói
quatro asas, pra longe voar.

E assim eles fogem da ilha
a zombar, ante a guarda impotente
O garoto se inflama e prossegue
para o alto, pois medo não sente.

Mas do sol o incauto está perto
e derretem as asas de cera.
Cai do alto e o mar o recebe
frio túmulo, o pai desespera.

Jaz o jovem sem vida e Dédalo
corpo exangue ao deus oferece.
Ergue um templo a Apolo e as asas
nos altares de pedra ele tece.

Este jovem insensato morreu.
Do perigo zombou sem razão.
O cuidado é virtude exigida
para ter vida longa e perdão.

Fonte:
Fénix (Carmo Vasconcelos)

Miguel Torga (Mago)


nota: as palavras com asteriscos estão no vocabulário ao final do texto.

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Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de ouro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...

— Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

— Essa agora! É todos os dias...

— E que nunca mais caçaste?

— Ainda esta manhã...

Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que desfilava por desfastio na primavera. Que demônio!

— Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias...

Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe uma migalha de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta!

— Mago! Mago! Bicho, bichinho!

Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço* da dona...

— E que deixaste a Faísca!...

— Eu?

— Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...

— Meus! Muito meus! Do meu sangue!

Pantominice. Um triste chanato* na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remelão... O que ele era, era um parrana*, um infeliz, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.

— Ouve lá: disseram-se que me andas a pôr para aí com todo mundo?

E recebe esta pelas ventas:

— Bem haja eu!

— Bem hajas tu?!

— Nunca guardei respeito a maricas!

Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.

Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!

— Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho...

— Adeus, Lambão.

Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevino* da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordidelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.

Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.

— Ora viva!

— Miiau...

— Seja bem aparecida, a minha bonequinha!

— Miiau...

Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um couro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!

— Cala-te lá com isso, mulher!

Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

— Matas-te, filho, arruinas-te...

Palavras sensatas da mãe.

— Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

Mas quê! O vício pode muito.

Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

— O bichinho está doente. Se calhar é fome...

E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço*. A parva* da santanaria cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

— Olha o Mago!... Olha o milionário!...

O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

— Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?

Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.

— O cavalheiro seja mais delicado...

— Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!

— Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!

— Pesam-lhe na testa, coitado!

Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas* do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, embaixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agourento.

Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas* no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão* da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da sanataria!

Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.

Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...

Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!

Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca*! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!

A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...

Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a ideia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea!

E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.
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Vocabulário:
Cachaço – pescoço.
Cantarinhas – bolhas de água.
Chanato – sapato velho.
Chavelhudo – chifrudo, corno.
Coirão – bucho.
Ensanchas – oportunidades, desejos.
Paleio – zombaria.
Parrana – bronco, tolo.
Parva – pequena soma.
Ripanço – sofá.
Senhoreca – depreciativo: senhora sem importância.
Valdevino – joão-ninguém, doidivanas.


Fonte:
Miguel Torga. Bichos. Publicado em 1940.

Estante de Livros (Bichos, de Miguel Torga)


Escrito em 1940, Bichos é um clássico da literatura portuguesa. O grande escritor português – também poeta, teatrólogo, contista e memorialista Miguel Torga, inventa um mundo de bichos humanizados.

São catorze contos, onde o mistério da vida nos aparece no seu esplendor, perfilando bicho, homem e natureza numa comunhão fraternal, em que todas as peças são necessárias ao quebra-cabeça da vida.

Bichos é, também, o retrato fiel do viver trasmontano; uma vida de suor e lágrimas, por entre escolhos e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que só o sofrimento pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total coma natureza, em fusão permanente com os elementos.

Miguel Torga fez desta obra um testemunho ímpar da união natural entre os Homens e os Bichos, a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes dá vida. No trabalho, nas paixões e nas dores, os bichos compartilham com os homens as esperanças e as desgraças.

Curiosa a palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são, talvez, os animais humanizados, irmanados com o homem na mesma luta; na vida.

A rudeza das torgas, a aspereza das montanhas, a magreza das terras e a solidão do tempo, misturam-se num universo, cantado em poesia por um mestre que foi apenas um homem. Um homem que viveu e lutou contra um mundo ainda mais agreste, ainda mais hostil: o mundo da ditadura.

São Bichos animais e Bichos homens que se entrelaçam nas páginas deste livro de contos. Bichos personagens, mas sentindo e agindo como se de humanos se tratassem, tornando o leitor seu cúmplice.

Amizade, traição, amor, ódio e ambição desfilam pelo livro, sendo tratados como uma lição essencial de vida.

LINGUAGEM

A linguagem, simples mas cuidada é uma das mais belas expressões da cultura popular: um vocabulário fidelíssimo à realidade trasmontana. Quem conhece aquelas terras, reconhece-se em Torga. Mas a poesia latente por detrás destas estórias não é de Torga. É da terra. Por isso, este livro não é só uma criação do seu autor; é muito mais do que isso: é uma emanação da terra. E neste conceito de “terra” podemos englobar os homens e os seus irmãos “bichos”, os três elementos constituem um todo, um cosmos único onde Torga participa como mensageiro, personagem e intérprete.

Livro simples, transparente, honesto e sentido. Um grito amargo e profundo da terra que encerra os homens. Uma fusão total entre a terra e o ser humano, como se tudo emergisse de uma amálgama onde terra, bichos e homem fossem a pasta de onde nasceu a ordenação universal das coisas e dos seres.

ENREDO

É através dessa pequena arca de Noé, feita de bichos e gente, que Torga aponta as injustiças do dia-a-dia, trazendo novos modos de olhar. Esta coletânea constitui um marco do conto em Portugal. Encontramos na obra, um Miguel Torga paradoxal, contraditório, inexplicável, que mistura o sagrado e o profano, que é simultaneamente  fruto e espelho das fragas maternas.

Animais com sentir humano ou seres humanos vestidos de animais. Ou uma irmandade de animais e homens. Tudo numa argamassa de vida. O cão Nero, o galo Tenório, o jerico Morgado, o Ladino, o Ramiro. E a Madalena, caminhando na contra mão da contradição entre cultura e vida. A salvação do Homem e da Humanidade reside, para Miguel Torga, num regresso às origens e ao seio da Natureza-Mãe, “dama de grande senhoria” que dignifica tudo o que vive na sua intimidade, para que ela devolva ao Homem a naturalidade, a grandeza, a verticalidade e a natureza instintiva que caracterizam os animais íntegros e monolíticos que povoam a coletânea Bichos. É também impossível não observar o papel da natureza e do espaço amplo do campo na vida dos personagens.

Fonte:
https://www.passeiweb.com/estudos/livros/bichos/

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 14 –

 Reenviando a trova corrigida deste versejando, postado ontem com "pé quebrado" no quarto verso.



Carolina Ramos (Pai Noel Americano)


A partir de 1975, aquele Papai Noel nascido nos States e embarcado como clandestino na bagagem turística, passara a fazer parte da família. Era um apertão na barriga rotunda e o seu Ho... ho... ho! aconchegante trazia o Espírito do Natal para mais perto, ao som do tradicional Jingle Bell, repicado a sinos.

Papai Noel não envelhece, mas, aquele envelheceu. É o que podia ser constatado, a cada ano, mal iniciados os preparativos da decoração natalina. De tanto apertão no umbigo, o casaco de lã vermelha já não fechava mais. A barriga era a mesma, porém, as pressões repetidas a cada dezembro, acabaram por favorecer a ruptura do casaco vermelho deixando a descoberto as entranhas de palha do Bom Velhinho, mesmo antes que as pilhas gastas inviabilizassem o festivo Ho... ho... ho!. .

Barba encardida, mudo, rasgado, aquele Bom Velhinho não era mais figura atrativa, apesar da tradição que carregava nos ombros. Naquele ano, a pá de cal: luva perdida e braço de arame ultrapassando a manga, o velho Pai Noel, que agora se assemelhava ao malvado Capitão Gancho das histórias de Peter Pan, selavam, em definitivo, o seu destino — a lata do lixo! Final triste e inglório, para quem proporcionara tantas alegrias!

Por sua vez, um menino (sem sapatos, sem lareiras, janelas, ou fogão, porque nem casa tinha) remexia os latões, à cata de papelão e de plásticos, ainda com restos capazes de lhe proporcionar o arremedo de refeição, que o estômago reclamava.

Nas latas de lixo remexidas, e, por sinal, bastante enriquecidas pelos restos das ceias das famílias algo abastadas daquele bairro, era possível encontrar tudo o que possível imaginar! E foi lá que o guri, de cara suja e pernas finas, achou o Papai Noel preterido. O vermelho das vestes, chamativo, atraiu o garoto que o salvou dos detritos, lambuzado e malcheiroso.

Amor à primeira vista! Para quem não acredita que isto possa acontecer, a prova ali estava. O garoto esqueceu a cata aos papelões e plásticos. Espremeu o boneco natalino contra o peito, esquecido até dos reclamos do estômago vazio.

E, ainda agarrado ao velho Noel, estremeceu, quando despertado pelo agente social que recolhia crianças, cujo lar era a rua e o teto, as estrelas.

Não resistiu! Em troca da submissão, ofereciam-lhe banho, comida e uma cama — o que ele mais queria! Esqueceu o saco da coleta. Esqueceu tudo... menos o Pai Noel, estreitado nos braços, com ternura até então desconhecida.

Ao entrar no carro que o aguardava, o menino apertou com mais força o boneco de barbas brancas. Foi então que, sem explicações, como que desperto de um longo e silencioso sono, o Bom Velhinho riu gostosamente Ho!... Ho!... Ho!... e os sininhos do Natal, calados, há tanto tempo, despertaram, também, modulando, com a mais sonora alegria: — Jingle Bell... Jingle Bell!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 2 – Apolo e Dafne


Pelos campos a ninfa passeia,
doce Dafne, a filha do rio.
Todo o homem que a vê incendeia.
Do Parnaso a mais bela e gentil.

Logo ali belo Apolo e Cupido
os seus dons de magia comentam
O deus sol, com seu ar atrevido,
pouco faz das setinhas que adentram

nos gentis corações das pessoas
e as fazem ter ódio ou amar.
Deixam até de ser más, ficam boas,
seus desejos querendo saciar.

Diz Apolo, o deus sol, com presteza:
─ Minhas setas são fortes, flamantes.
Vem, aprende a flechar com destreza
e serás mais arqueiro que dantes.

─ Tuas setas são bem pequeninas!
Anjo deus não responde nem fere.
Não quer dar a resposta ferina.
Mira Apolo e a setinha desfere.

Dafne passa e outra flecha sente,
mas de cobre, que faz desprezar.
pois a seta dourada somente
tem poder de o amor ensejar.

Vê Apolo a ninfa que segue
tão gentil na floresta a vagar.
E ferido de amor, a persegue,
quer fazê-la de amor se prostrar.

Mas a Dafne bela o despreza.
A correr, vai pedir ao deus rio,
que afaste o intruso, se peja,
pra que dela se afaste o deus vil.

O deus rio, vendo seu desespero,
ela foi por Apolo alcançada,
a transforma num verde loureiro,
para sempre será intocada.

Suas folhas são louros dourados,
que somente aos que vencem se dá.
Chora Apolo o desprezo tão ousado.
Sua amada ela nunca será.

Esta lenda de dor e pesares
nos remete a um só pensamento:
a vanglória e o orgulho são males,
a evitar, pois só trazem tormento.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 13


Neste mundo velho sem porteira - como diz um amigo - são constantes os reclamos de que já não é mais como foi "antigamente " - tanta bandalheira, preconceito, desfaçatez, desrespeito, vida à deriva. Parece verdade que isto é coisa dos nossos dias.

Nas pesquisas para os anais da Academia Caçadorense de Letras sobre "Fatos Históricos de Caçador", achamos um "achado", pequeno livro publicado por autor caçadorense, cujo título é NOSSO MUNDO TÁ VIRADO (Edição do Autor, 1946). E o mensageiro escreve com verve e linguagem totalmente sáfara, inculta, popular.

Domínio de proseador: " Nosso mundo tá virado / anda de pata pro á, / assim há muito tempo / eu vejo o povo falá. / Já preguntei pra muitos, / ninguém sabe me contá / proquê que o mundo / anda de pata pro á ".

Leio, releio, me enleio, permeio ideias e reflito: nosso mundo natural é sempre o mesmo, com suas mutações cíclicas. O que muda com constância é a cabeça do habitante comumente devastador - o bicho-homem.

Por que será que as coisas boas não perduram ?
Por que o avanço traz retrocessos ?
Estou mal das ideias, algum abscesso ?
Mundo mau, quero recesso!

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Estante de Livros (O Bobo, de Alexandre Herculano)


É um romance histórico de Alexandre Herculano, publicado inicialmente em “Panorama” em 1843 e editado postumamente em volume, apenas em 1878.

A história toda se passa no castelo de Guimarães ou nos seus arredores. O período é o da independência de Portugal e gira em torno dos antecedentes e dos acontecimentos da batalha de Aljubarrota (1136).

O autor situa a narração no ano de 1128, dias antes da batalha de S. Mamede que opôs o exército de D. Afonso Henriques ao da sua mãe D. Teresa.

A trama se sustenta sobre personagens históricos: D. Tareja está recebendo em seu castelo a Fernando Peres, conde de Trava, com quem deve contrair matrimônio, porém, o filho, D. Afonso Henriques é contra a presença de Fernando Peres por considerá-lo um usurpador e um tirano.

Dom Bibas é um bobo da corte que vive no castelo de Guimarães. Dulce, uma das sobrinhas de D. Tareja tem uma paixão secreta por Egas Moniz, cavaleiro pobre que luta ao lado de Afonso Henriques.

No castelo existe um temor de que se desenrole uma batalha envolvendo o conde de Trava, que tem a seu dispor maiores e melhores tropas e Afonso Henriques, que tem o apoio de uns poucos nobres portugueses.

O Conde de Trava incentiva um jovem cavaleiro, Garcia Bermudez, a tentar desposar Dulce. Conta-se no castelo que a paixão do jovem cavaleiro pela moça é notória, porém, a moça não dá esperanças aos apelos do cavaleiro.

Dom Bibas é repreendido por ouvir conversas entre o Conde de Trava e o cavaleiro Garcia Bermudez, Dom Bibas, inclusive, caçoa com seus versos o nobre. O bobo é mandado ser açoitado e jura vingança. Após esse fato, ficamos sabendo que D. Bibas conhece uma passagem secreta que dá para fora do castelo de Guimarães, por meio dela, manda avisar a Afonso Henriques do que se desenrola no castelo.

O Lidador, Gonçalo Mendes de Maia, está do lado de Afonso Henriques e planeja uma forma de ajudar o desafiante ao poder do Conde de Trava Egaz Moniz, que estava com a tropa de Afonso Henriques vindo em direção do castelo de Guimarães trazendo uma mensagem de paz. Porém, o Conde de Trava ignora o pedido de paz e prende o emissário. Dulce ao saber da prisão do amado, consegue falar-lhe, porém, conta que para que o cavaleiro amado ficasse vivo fora obrigada a se casar com Garcia Bermudez. Egas Moniz não aceita a explicação e se considera traído no amor. Dom Bibas faz ver a Egaz Moniz - este desejoso de vingança - que seria melhor fugir pela passagem secreta e depois da batalha poderia vingar-se de Garcia Bermudez.

Não existe propriamente a narração da batalha no romance. A narrativa retoma já depois de ocorrida a batalha entre Afonso Henriques e Fernando Peres. Explica-nos o narrador que a vitória fora de Afonso Henriques e que nessa batalha Egaz Moniz matara Garcia Bermudez. Dulce, porém, não aprova a violência daquela morte, por entender que Egaz Moniz se tornara um homem violento e desejoso de vingança e então a jovem se mata. Egaz Moniz, depois, retira-se levando vestindo-se com as roupas de um frade. Dias depois, Egas Moniz aparece morto, vestido de frade sobre o túmulo de Dulce.

Dom Bibas viverá no castelo de Guimarães na corte de Afonso Henriques dias de tranquilidade, uma vez que um dos grandes trunfos na batalha, fora a entrada secreta pela qual vários soldados de Afonso Henriques puderam passar.

Segundo Herculano, “Dom Bibas não era bobo; era o diabo”

Mas no meio do silencio tremendo de padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer a subir a íngreme e longa escada do privilegio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga, e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de humildes. Este homem era o truão. O truão foi uma entidade misteriosa da Idade Média. Hoje a sua significação social é desprezivel e impalpável; mas então era um espelho que refletia, cruelmente sincero, as feições hediondas de sociedade raquítica e incompleta. O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espirito do criminoso no potro imaterial do vilipêndio.

O autor descreveu a importância que era dada ao cargo do truão, aumentando ainda mais o sentimento de inconformidade por ele ter recebido o castigo injusto devido a apenas realizar sua função, seu trabalho com um jogral. Ele era o único que caminhava na hierarquia estabelecida e podia julgar a todos sem consequências. No seu momento truanesco, o bobo ria de todos e até o rei era considerado como “seu servo”. Mas passadas as horas de festa e deleite, a vida do truão era miserável e, apesar de criticar a todos, D. Bibas é descrito como alguém que jamais desrespeitou quem não merecia, diferente do Conde da Trava. De certa forma, isto tenta justificar o fato de o bobo ter se vingado contra quem o maltratou, o desrespeitou e desrespeitou as tradições portuguesas.

As personagens do drama amoroso (Egas Moniz, Dulce e Garcia Bermudez) bem como o próprio Dom Bibas são personagens ficcionais. Um outro personagem que aparece na história é o jovem cavaleiro Tructesindo, que embora tenha um papel secundário, será relembrado por Eça de Queirós em A Ilustre Casa de Ramires. Outro personagem secundário é o Frei Hilarião, que morre de tanto comer.

Fontes:
Orfeu Spam
Passeiweb
– Larissa da Costa Oliveira, “O bobo" e a secularização das origens de Portugal em Alexandre Herculano  – XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis/SC, 2015. Disponível em pdf nos Anais do Simpósio.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Rachel de Queiroz (Joga, Cunhado!)


QUEM SOBE DE NAVIO o rio Amazonas, a umas seis horas de Belém, depara com uma das maravilhas daquela espantosa natureza, ao cruzar os chamados estreitos. No começo do seu delta, o rio-mar caprichosamente se deixa semear de ilhas, ramifica o seu caudal em infinitos braços, como para variar da imensidão vazia. Os dois principais estreitos, nesses capilares do gigante, são o de Breves e o do Boiaçu (Cobra Grande), e é pelo último que navega o nosso Ana Nery. O navio é grande, contudo chega a passar tão perto da margem que dá para se avistar o lá dentro das casas de jirau dos caboclos, na barranca. A marola que o vapor faz se encachoeira nas margens como querendo arrancar os paus de beira d'água. Há momentos em que até parece que o navio está vogando no meio da floresta — o que não deixa de ser verdade; quase que se estendendo a mão se tocaria na folhagem das árvores.

Apesar disso, a feição mais inesquecível dos estreitos é o seu elemento humano: os “cunhados”. À medida que o navio avança cauteloso pelas águas apertadas, vai lhe aparecendo ao redor um formigueiro de canoas — ou montarias, ou pirogas, ou aatás, não sei como as chame — parecem moscas em redor de um prato. Longas de dois a três metros, estreitas, são manobradas por uma só pessoa, raramente duas. E eu digo pessoa no sentido de que menino de quatro anos seja pessoa, e velho corcunda, e adolescentes de canela fina, e mulher barriguda, e mãe de dois ou três curumins pequeninos que lhe sentam entre as pernas, e moços fortes, moças de vestido vermelho, e velhinhas de cachimbo; todos manobram as canoas com espantosa destreza e segurança, cavalgando a onda larga que o navio levanta, cortando-a de lado, ao rápido movimento dos remos em formato de folha de aguapé, pintados de cor viva, E lá de baixo, erguendo os olhos para os cinco andares do navio, eles soltam um grito chorado que é quase um canto e lembra muito um aboio de vaqueiro:

— JOGA, CUNHADO! JOGA, CUNHADO!

(Isso de chamarem os passantes de cunhados, eles o herdaram dos índios, que chamam “cunhado” ao estrangeiro que querem honrar, adotando-o simbolicamente na família; “Entre, cunhado; coma, cunhado!”)

A bordo, a passagem pelos estreitos e a chegada dos “cunhados” é um dos itens do programa turístico; antecipadamente, passageiros e tripulantes preparam um monte de sacos de plástico contendo pão, biscoitos, cigarros, fósforos, agulhas, linha, roupas. Os pacotes são jogados n’água, boiam e, com incrível habilidade, contornando ou aproveitando a correnteza, os cunhados os apanham; menininhos incrivelmente pequenos colhem na água os embrulhos com uma elegância de toureiros e logo acenam para o navio, agradecendo. Os passageiros, lá do alto, se compadecem e choram: “Que pobreza! Que pobreza!’’ Sim, a pobreza ali é grande e os presentes do navio são duramente disputados. Mas há também, naquela pescaria dos cunhados, um elemento de jogo, uma competição de destreza, que deve representar parte importante na operação. Na vida deles, tão rude e paupérrima, os pacotes no rio devem exercer uma função dupla de utilidade e diversão; e calculo que, entre os cunhados, valha tanto o precioso conteúdo dos presentes, como o título esportivo de campeão apanhador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Jogos Florais de Petrópolis / RJ (Trovas Premiadas)

Categoria Nacional
Tema: Sorte


1. Lugar
Ter sorte é bom; todavia,
nem sempre é de fato um bem.
Quem tem tudo em demasia
vira escravo do que tem.

A. A. de Assis
Maringá – PR
- - - - - -

2. Lugar

Se haver nascido é uma graça,
e a vida é a sorte maior,
que eu possa em tudo o que faça
fazer o mundo melhor.

A. A. de Assis
Maringá – PR
- - - - - -
    
3. Lugar

Nos dissabores da sorte,
contra a descrença malsã,
faço da fé meu suporte
e aguardo um novo amanhã.

Wanda de Paula Mourthé  
Belo Horizonte – MG
- - - - - -

Do 4º ao 10 lugar

(ordem alfabética)

Tiveram sorte de ver
os filhos encaminhados,
pais, que desde o alvorecer
foram deles, aliados!

Cristina Cacossi  
Bragança Paulista - SP

- - - - - -

Bendita a sorte de quem,
a sua vida edifica,
não pelos bens que ele tem
mas pelo bem que pratica.

Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho  
Juiz de Fora - MG

- - - - - -

Trabalha, moureja,estuda,
faze da fé teu suporte
e verás que a sorte ajuda
quando ajudamos a sorte!

Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava -SP

- - - - - -

Que Deus, tenha piedade,
da miséria, nua e crua,
dos que vivem, na verdade,
sem sorte, à mingua, na rua...

Fabiano de Cristo Magalhães Wanderlei
Natal – RN

- - - - - -

Peço sempre, de mãos postas,
de joelhos, aos pés do altar...
Que a sorte, dê-me as respostas
que a vida não quis me dar!

Prof. Garcia
Caicó – RN

- - - - - -

Por sorte, mestre e aprendiz
na vida, todos vão ser.
Quem aprende, é mais feliz,
quem ensina, há de aprender!

Kátia Sentinaro  
Campinas - SP

- - - - - -

Brincalhona, a sorte vem
tão camuflada na vida,
que engana até quem a tem...
Só na falta: é percebida!

Roberto Tchepelentyky  
São Paulo – SP

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Categoria Estadual
Tema: Sorte


1.  Lugar
Vivi anos, lance a lance,
tendo a esperança por guia...
Não tive sorte, nem chance
de ter o amor que eu queria.

Paulo Maurício G. Silva
Teresópolis - RJ

2. Lugar

O amor, tal qual chuva forte,
quando inunda os corações,
transborda, mudando a sorte,
e enche a vida de emoções!

Renato Alves -  RJ

2. Lugar

Sempre tive muita sorte,
 mas sequer eu atinava
que era Deus o meu suporte
que a mim sempre abençoava!

Silvia Alice de Carvalho Soares
Angra dos Reis - RJ
----------------
 
3. lugar
Nas lutas pelo poder
nem sempre vence o mais forte!
– É que ganhar ou perder...
depende muito da sorte!!!

Maria Madalena Ferreira
Magé - RJ

4º ao 10º  lugar  

(por ordem alfabética)

A própria sorte maldizes,
mas desprezas  a labuta,
sem saber que são  felizes   
os que não fogem à luta.

Ariete Regina Fernandes Correia
Rio de Janeiro – RJ

- - - - - -

Bem de leve, a sorte esbarra
em nós; porém, num bom lance,
algum felizardo a agarra
e não desperdiça a chance!...

Cleber Roberto de Oliveira
 S. J. Meriti - RJ

- - - - - -

Nossa saúde é um tesouro
sorte a ser bem protegida;
pois, sem ela, nenhum ouro
compra o valor de uma vida!

Danusa Almeida
Campos dos Goytacazes –RJ

- - - - - -

Se alguns reveses sofri
nos embates, dia a dia,
muitos outros eu venci
com sorte ou com ousadia.

Jessé Fernandes do Nascimento  
Angra dos Reis – RJ

- - - - - -

Não lamento o que perdi
ante o pouco que restou!
– Eu apenas devolvi
o que a sorte me emprestou!!!

Maria Madalena Ferreira
Magé - RJ

- - - - - -

Conselho de grande auxílio
 é lutar como tu fazes,
pois, como disse Virgílio:
 “A sorte ajuda os audazes”.

Paulo Cezar Tórtora
Rio de Janeiro -  RJ

- - - - - -

Como as flores, também elas.
têm ambas a mesma sorte:
estão presentes, as velas,
em nossa vida e na morte.

Sandro Pereira Rebel
Rio de Janeiro – RJ

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Categoria Humor
Tema Azar


1. Lugar
- Vomitando! Foi comida?
 Coitadinha, mas que azar.
– Foi sim, diz mãe inibida,
mas o moço vai casar.

Ariete Regina Fernandes  Correia
Rio de Janeiro - RJ
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2. Lugar

A Rainha, um mulherão,
trai o marido, adoidado...
Azar do Rei, cinquentão,
ser coroa... “coroado”.

Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte - MG
- - - - - –

3. Lugar

Um suplício era aguentar  
mau hálito da vizinha.
De máscara, deu azar
vai sentir bafo sozinha.

Ariete Regina Fernandes Correia
Rio de Janeiro - RJ
- - - - - -

3. Lugar
Planejou fugir do hospício,
pular o portão, que esperto.
— Mas que azar, grita o estrupício...
o portão estava aberto.

José Almir Loures
Astolfo Dutra -MG

Do 4º ao 10 lugar  

(ordem alfabética)

Quem  anda  "fora  da linha",
por  azar,  nunca  se  esqueça:-
andando  atrás  de  "galinha",
ganha  "galos"  na  cabeça...

Antonio Colavite Filho
Santos -SP

- - - - - -

Que azar! Achou cinquentinha,
órfão, no bolso de trás...
Grita, a mulher, da cozinha:
- Marido, acabou o gás!

Bessant
Pindamonhangaba -SP

- - - - - –

Sua Feiúra era tanta
que fez o espelho quebrar
e a tortura se agiganta
com mais sete anos de azar!

Danusa Almeida
Campos de Goyatacases – RJ

- - - - - -

Nesta vida, tive azar:
nasci feio e pobretão.
É nisso que dá furar
fila de reencarnação.

Edweine Loureiro da Silva
Saitama - Japão

- - - - - -

De avião jamais! Dizia,
que chance ao azar não dava.
E um Boeing caiu um dia
no carro em que viajava.

Flávio de Azevedo Levi
Campinas – SP

- - - - - -

Com as duas se casou,
mas este azar não previa:
duas sogras ele herdou
por crime de bigamia.

José Arthur Basaglia
São Paulo - SP

- - - - - -

Se a minha esposa é consorte,
como vão me intitular?
Mereço um nome mais forte...
ou "sensorte" ou "com-azar".

Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros – RN

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Categoria Novo Trovador
Tema Vida


1. Lugar
Vida é bem que se pretende
e que bem caro se paga;
é uma vela que se acende
e que num sopro se apaga.

Paulo Cesar Rabello
Petrópolis - RJ
- - - - - -

2. Lugar

Quando a esperança é perdida
na dor dos sonhos feridos,
o amor é a chama da vida
que nos mantêm aquecidos.

Lucélia Santos
Patu - RN
- - - - - -

3. Lugar

Seja forte, enfrente a vida,
não rasteje, fique em pé,
porque a vida é resumida
em trabalho, amor e fé.

Albércio Nunes
Serra- ES
- - - - - –

Do 4º ao 10º lugar  

(ordem alfabética)

A onda do mar que se quebra
na enseada sem parar,
naquele instante, celebra
a vida que quer pulsar.

Eunice Gonçalves Pereira da Silva
São Gonçalo - RJ

- - - - - -

A vida tem me ensinado,
como ganhar ou perder;
é como diz o ditado,
a dor ensina a gemer.

Francisco Maia dos Santos  
Caicó -  RN

- - - - - –

Na vida andei por estradas
a cumprir minha missão!
Algumas bem asfaltadas,
outras, só pedras no chão!

Gilda Batista de Freitas
Niterói – RJ    

- - - - - -

"Vida de cão"... Descabida!.
Vida bandida... Incoerente.
Porém, certos cães têm vida
melhor que a vida da gente.

Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ

- - - - - -

Por mim, parou de bater
o coração de Jesus.
Como posso merecer
a vida e morte de cruz?

Lucrecia Welter Ribeiro  
Toledo - PR

- - - - - –

Erros e acertos na vida
são próprios do ser humano,
mas a esperança perdida
é o nosso maior engano.

Lirss Cabral Buoso  
Bragança Paulista - SP

- - - - - –

Peregrina e eternamente,
num mistério tão sublime,
tenho a vida...e tal presente
que saber ou verso o exprime?

Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão – PR

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Fonte:
Resultado enviado por A. A. de Assis

Contos e Lendas do Mundo (A Floresta Enfeitiçada)

Era uma vez um gnomo que vivia nas profundezas de uma floresta encantada. A sua única companhia, para além das árvores e das flores que cobriam a sua casinha, era um gato preto.

Um dia, estava o gnomo a cuidar das suas plantas, quando apareceu o gato com um ar muito preocupado:

- Gnomo, gnomo, nem imaginas o que aconteceu!

- Por que estás tão inquieto? - perguntou o gnomo.

- A floresta está a desaparecer! - respondeu - para lá daquele vale restam apenas escassas ervas. Até o rio deixou de correr!

- Mas por que será?

- Dizem que, há muitos anos atrás, um feiticeiro perdeu nesta floresta a sua amada, uma princesa de beleza extrema. O desgosto foi tão grande que, movido pela raiva, lançou um feitiço. Se dentro de sete dias não forem encontradas três pedras mágicas, esta floresta deixará de existir, e com ela todos os seres que nela habitam.

No dia seguinte, o gnomo e o gato foram, com a ajuda de uma nuvem mágica, à procura das pedras mágicas. Os dias passavam e, já cansados de tanto procurar, resolveram descansar à sombra de uma árvore. Pouco depois estavam a dormir.

Na manhã seguinte, mal o gnomo acordou, encontrou a seus pés uma carta e uma espada. A carta dizia:

"Meu caro amigo, sou uma pessoa que te quer ajudar. Para encontrares as três pedras mágicas, basta salvares a princesa do reino, que se encontra presa numa masmorra. Para isso terás que atravessar toda a floresta e lá encontrarás o castelo de um monstro. Se à meia-noite do dia de hoje a princesa não estiver neste sítio, tudo
desaparecerá."

Ao atravessarem a floresta, o gnomo e o gato deram com o castelo do monstro. Com a ajuda da nuvem mágica e da espada, o gnomo matou o monstro e salvou a princesa.

Já na floresta, o gnomo exclamou:

- São tantas as árvores! Como vamos descobrir aquela onde dormimos?

- Marquei uma cruz nessa árvore; basta agora descobri-la - respondeu o gato.

Estavam as badaladas da meia-noite a tocar, quando o gato e o gnomo entregaram a princesa à pessoa que escrevera a carta.

- É um feiticeiro! - exclamou o gnomo.

- Pois sim! Obrigado por me trazerem a minha amada de volta. Nenhum dos meus feitiços seria tão ágil como a vossa pequenez. A vocês devo a minha vida. E a minha felicidade.

E, com um pequeno toque, apareceram as pedras mágicas na mão do gnomo.

Foi assim que, salva a floresta e todos os seus habitantes, o gnomo e o gato voltaram para a sua casinha, nas profundezas da floresta, e viveram felizes para sempre.

Fonte:
Universo das Fábulas.

Estante de Livros (Livros das Comédia Humana, de Honoré de Balzac) 4


O PAI GORIOT
(1834)

Foi neste romance, por muitos considerado sua maior obra-prima, que o autor empregou pela primeira vez a técnica do retorno de personagens. Grande parte da ação se passa na Pensão Vauquer, com sua curiosa tabuleta, onde lê a frase CASA VAUQUER - Pensão burguesa para os dois sexos e outros. Nela, somos apresentados a algumas das maiores criações de Balzac: o próprio Pai Goriot, antigo comerciante que se deixa arruinar para que as filhas, que o exploram e desprezam, possam frequentar as altas rodas; Eugênio de Rastignac, para muitos um alter ego do autor, jovem pobre e ambicioso da província que deseja enriquecer em Paris a qualquer custo; e Vautrin, ou Jacques Collin ou, ainda, o "Engana-a-Morte", personificação moderna do diabo, amoral, manipulador e sedutor, que terá uma longa e desnorteante trajetória por outras obras da Comédia. Mais que a história do personagem-título, contam-se aqui as transformações porque passa Rastignac, de interiorano ingênuo a cínico e inescrupuloso. O livro termina com uma cena que se tornou clássica: no cemitério Père-Lachaise, tendo Paris a seus pés, Rastignac "lançou àquela colmeia sussurrante um olhar que parecia sugar-lhe antecipadamente o mel e proferiu esta frase suprema: -- E agora, nós!". A cada reaparição, mais alto estará na escala social.
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O PRIMO PONS (1847)

Este romance compõe, com A Prima Bette, o subgrupo "Os Parentes Pobres". O Primo Pons é um velho e ingênuo músico que, em virtude de impenitente gula, é constantemente humilhado pelos parentes ricos, que ele visita todos os dias em busca de comida. Mas Pons possui outro vício: é inveterado colecionador de objetos de arte (como o próprio Balzac, aliás), que vão sendo amontoados em seu quarto. Quando ele cai doente e se descobre que essas obras valem uma fortuna, uma verdadeira legião de aves de rapina se mobiliza para depená-lo: a porteira Cibot, o comerciante Rémonencq, o joalheiro/agiota Elias Magus, o doutor Poulain, advogados, parentes etc. A única pessoa com quem ele pode contar é seu único amigo, o também velho e pobre músico Schmucke, impotente ante tal desequilíbrio de forças. O Primo Pons é uma das melhores e mais sombrias obras de Balzac, onde ele demonstra todo seu pessimismo em relação à humanidade. Essas pessoas em volta de Pons não sentem o menor remorso nem se conscientizam do crime que estão a praticar, independente de origem, classe social ou profissão. Todos se irmanam, se associam e se hostilizam, dependendo das circunstâncias, com o fito único de ficar com seu quinhão do testamento, da herança, enfim, da coleção do velho músico. No entanto, no meio de tanta baixeza, Balzac ainda encontra tempo para falar de duas novidades de seu tempo: a daguerreotipia e as ferrovias.
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UM ACONCHEGO DE SOLTEIRÃO (1841)

Um dos principais romances do autor, conta-se aqui a história dos irmãos José e Felipe Bridau. O primeiro é pintor, tendo muito de Delacroix, segundo muitos pesquisadores. Já Felipe, militar posto em disponibilidade e inadaptado à paz, evolui para uma das criaturas mais monstruosas criadas por Balzac, apesar das inúmeras chances que tem de se regenerar. Tipicamente, o que está em jogo é uma herança, que Felipe deseja só para si, mas há também deliciosas descrições da vida provinciana, com suas fofocas, seus tipos mesquinhos, seus jogos cruéis e suas sociedades secretas, como os Cavalheiros da Malandragem. Na história, Felipe é o preferido da mãe, que releva seus atos abomináveis e não enxerga a genialidade e o bom coração do outro filho. Estudiosos veem aí uma referência à biografia de Balzac, que mais de uma vez lembrou com amargura que sua própria mãe não lhe dava o devido valor, colocando-o em segundo plano em relação a seus irmãos Laura e Henri.
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UMA ESTREIA NA VIDA (1842)

Romance pouco conhecido, narra as desventuras do desagradável adolescente Oscar Husson em sua viagem de Paris a Presles e as consequências daí advindas, já que comete várias gafes. Acompanham-no vários personagens da galeria balzaquiana. Mais que uma estreia, essa obra de título simbólico narra a vida do jovem até o momento em que Balzac percebe que já não vale mais a pena: depois que ele assegura um casamento proveitoso para si, consegue uma sinecura no Estado e aprende a cultivar as amizades certas. Hoje "Oscar é um homem comum, manso, sem pretensões, modesto e sempre se mantendo, como o seu governo, num justo meio. Não causa nem inveja, nem desdém. É, enfim, o burguês moderno."
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UMA PAIXÃO NO DESERTO (1830)

Um dos mais perfeitos contos do autor, considerado por muitos o melhor dos que escreveu, esta obra-prima de apenas quatorze páginas (na edição da nova Editora Globo) se vale de subentendidos e reticências para contar uma história obscura que nos angustia e ao mesmo tempo nos atiça a curiosidade à medida que, num crescendo, atinge seu final. Como acontece com muitos de seus contos iniciais, esta história não tem ligação orgânica aparente com as outras obras da Comédia. Paulo Rónai especula que a identidade do protagonista, não revelada por Balzac, "poderia ter sido perfeitamente atribuída a um dos Treze, o General Montriveau, aprisionado, como sabemos, pelos selvagens da África. Seu caráter ardente e destemido até o predestinava a desempenhar o papel extraordinário do soldado provençal junto à pantera."

Fonte:
Wikipedia

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 455

 


Milton S. Souza (Morte e Ressurreição)


O sonho de ser enfermeira estava sendo realizado numa universidade. E precisava ser complementado por estágios em hospitais. Viviane já cumpria o seu terceiro estágio, lidando com idosos na ala da Geriatria. E estava gostando muito, pois os velhinhos pareciam mais carentes do que os jovens e as crianças dos estágios anteriores. Cuidava de cada um deles como se estivesse cuidando da sua própria avó. Sabia que doar amor e dedicação era básico para a profissão que escolhera.

A enfermeira-chefe esperava Viviane com uma má notícia naquela manhã, quando ela chegou para trabalhar: “Teu paciente preferido faleceu há uns 40 minutos. Podes começar o dia preparando o corpo dele para o velório. Já avisei a família. Daqui a pouco eles estarão chegando”. O corpo do seu amigo Pereira ainda estava no leito. Viviane relembrou, em poucos segundos, a alegria daquele homem e a sua vontade de viver. E o seu jeitinho de chamar o seu nome com uma voz fininha, abreviando carinhosamente para “Vivi”. Viviane ainda lamentou com o paciente da cama ao lado a morte do seu amigo. Ele também estava surpreso, pois Pereira morrera dormindo, sem nenhum grito ou gemido.

O quarto-enfermaria ainda estava quase no escuro, enquanto Viviane preparava os pedaços de algodão para colocar no nariz do paciente morto. Sabia muito bem que precisava se acostumar com a morte, pois ela estava sempre rondando os hospitais. Envolvida nestes pensamentos, terminou de acomodar os algodões, o frasco com álcool e as tesouras numa bandeja. Quando já estava se encaminhando para a cama do morto, escutou baixinho aquela voz fininha tão sua conhecida: “Vivi, Vivi”. Deixou cair a bandeja com tudo o que havia dentro. Parada no meio do quarto, notou que o Pereira, que havia sido dado por morto, se mexia na cama e chamava por ela. Foi se aproximando bem devagar, muito assustada...

Mas o pior estava por vir: o paciente da cama ao lado, ainda meio dormindo, também ouviu o “morto” chamando pela Vivi. E o susto dele foi tão grande que, mesmo cheio de tubos nas veias, pulou a grade da cama, derrubando tudo e batendo com a cabeça num botijão de oxigênio que estava ao lado do leito. Viviane não sabia se atendia o “morto”, que “ressuscitara” e já estava sentando na cama, ou o outro que jazia numa poça de sangue no chão. O barulho e a confusão terminaram fazendo o quarto se encher de enfermeiras e médicos. Veio gente até dos outros andares. Para completar o caos, a família do “morto” estava chegando, aos prantos, exatamente naquele momento...

Tudo esclarecido: o “morto” havia sofrido um ataque cardíaco e, milagrosamente, depois de mais de uma hora, voltara para a vida como se nada tivesse acontecido. E os familiares, rindo e chorando, festejavam a “nova vida” do Pereira. O outro paciente já estava no leito, depois de ter a cabeça devidamente costurada. Viviane, no meio disso tudo, continuava fazendo o seu trabalho, como se nada tivesse acontecido, apesar de ter levado mais de uma hora para se recuperar do susto. Só a enfermeira-chefe e o médico que havia examinado o suposto morto estavam com caras de poucos amigos por causa da inesperada “ressurreição”...

Fonte:
Recanto das Letras

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 1 - A Criação do Mundo Helênico


"As religiões da Grécia e Roma antigas desapareceram. As chamadas divindades do Olimpo não têm mais um homem que as cultue. Já não pertencem à Teologia, mas à Literatura e ao bom gosto."
Thomas Bulfinch
(Literato norte-americano, graduado na Universidade de Harvard, autor de “O Livro de Ouro da Mitologia”, que embasa estes poemas)


No início o Caos comandava o passado.
O tudo era nada; ausência e solidão.
Um ignoto deus, da Natureza aliado,
resolve ordenar o universo de então.
Os dois separam a terra, o mar botam de lado,
enquanto o céu subiu para longe da treva.
Um céu de sol e lua, de estrelas pontilhado,
traz crepúsculo e aurora, que todo caos enleva.

Assim os rios e lagos se formaram,
as planícies, os vales, campos, montes.
Os bosques mais espessos se forjaram.
Tal harmonia nunca houvera dantes.

Os peixes se apossaram das espumas,
o mar sereno e belo foi seu chão.
No ar as aves conheceram as brumas
e para si tomaram esta amplidão.

Os outros animais a terra herdaram
felizes, pois ali tudo era belo.
Em meio a flores, pomos saborearam,
no vasto verde, fértil, tão singelo.

Raça gigante o deus operoso
formou para este éden habitar.
Eram os Titãs, enormes, poderosos,
que a terra iriam, fortes, dominar.

Mas os Titãs iam gerando deuses,
que já nascendo os questionariam.
E Zeus comanda insurreição, revezes,
que os gigantes dos céus tirariam.

Os Titãs Prometeu e Epimeteu,
a criar novos seres se dedicam.
Assim os peixes, aves e quadrúpedes,
na terra, mar e céu formados ficam.

A todos estes seres deram argúcia,
para se imporem em qualquer porfia;
beleza, força, vida, muita astúcia,
leveza, agilidade, valentia.

Prometeu toma o barro em sua mão,
mistura n’água, eis que o homem gera
e encarrega o seu gigante irmão
de dar a todos uma nova era.

Mas o Titã distribuía e dava
mil dons, incauto, para os animais.
O homem, massa informe, precisava
ter força, mais coragem e algo mais.

O titã reza a Atena, deusa casta;
ao céu levado é no carro alado,
em busca do deus sol, o medo afasta.
Quer para si o fogo tão sagrado.

De lá desce com o fogo dominado,
e finaliza o homem, dá-lhe dotes,
pra que domine, se veja louvado,
de todos seja o rei e o mais forte.

Um detalhe, porém: falta a beldade,
a mulher tão querida, desejada,
que foi feita no céu por divindades.
por isso musa linda e cobiçada.

Afrodite a este ser dá a beleza;
persuasão um outro a ela entrega.
Apolo dá na música a leveza,
e se chamou Pandora, esta Eva grega,

É dada a Epimeteu, que grato aceita,
apesar dos assédios do deus Zeus.
A caixa de mistérios não rejeita,
que dores e desgraças traz dos céus.

O Titã pede à amada, doce e absorta,
não abra a caixa com males despertos.
Mas Pandora, curiosa, a chave solta
e todo mal do mundo vê liberto.

Desejo de saber o que é vedado
fez abrir, infeliz, do mal a porta.
Doenças, ódio, morte, infausto fardo,
povoam o mundo sem razão, sem volta.

Porém, mercê dos deuses, a esperança,
quedou-se na tal caixa da desgraça
e trouxe ao mundo a força da bonança,
amenizando o dano, que ora passa.

Vieram, então, Idades luminosas,
de Cobre, Prata, Ouro, sem quimera.
As estações se firmam olorosas,
pois antes só havia primavera.

Chegaram à terra o frio, calor, o vento,
as tempestades e pecados mil.
Do Ferro vêm a idade e o tormento,
tornando o mundo um lugar hostil.

O homem à terra tira as riquezas;
e divide entre si, fere o destino.
As famílias não são mais benfazejas
em seu seio floresce o desatino.

O grande Zeus os deuses vai chamar,
e vêm da Via Láctea, branca estrada,
para ao homem furioso um basta dar,
tecer a morte em sua caminhada.

O deus pensa no raio, tudo ou nada;
mas seus iguais as águas querem, duros.
A geração será exterminada.
Depois se pensará n’outro futuro.

E Posseidon os mares lança à terra,
perecendo em horror a raça humana.
As águas em revolta descem as serras,
arrasando os confins, na fúria insana.

Mas do Parnaso a montanha agreste,
as águas não lograram inundar.
Um casal lá subira e agradece,
Pois novamente a terra irá povoar.

Deucalião, filho de Prometeu,
e a bela Pirra, filha de Pandora,
não são tragados e aos deuses rendem
preito e louvor de quem previu a hora.

Terão os dois uma missão divina,
repovoar o mundo devastado.
E nessa faina ingente, peregrina,
recolhem seixos no chão, lado a lado.

E para trás de si os seixos jogam,
que se transformam no povo escolhido.
Os deuses sobem ao céu, logo se acalmam,
e o mundo grego se vê revivido.

Vencedor da porfia, deus eterno,
aos pares Zeus revela ser maior.
Aprisiona o pai Cronos no inferno,
e os titãs decaem em meio à dor.

Cronos, o pai, os filhos devorava,
a temer tenebrosa maldição,
que um filho, um dia, ao pai destronaria,
e nova ordem se teria então.

Mas a mãe Reia o pequeno guarda
e o afasta de Cronos terrível.
O sortilégio vem forte, não tarda.
Um novo deus se torna imperecível.

Zeus é criado na ilha de Creta,
pela cabra Almateia alimentado,
com leite forte cumpre ousada meta,
de crescer e assumir o seu reinado.

Criança ainda Zeus um chifre arranca,
da fiel cabra, a besta encantada.
Com seu poder o sangue dela estanca
e a cornucópia mítica é gerada.

Filhos da Terra e do Céu vencidos,
perdem sem volta da fortuna a sorte.
São castigados, Titãs desvalidos,
e Zeus se firma, do universo o norte.

O poderoso Atlas condenado,
nos ombros toda terra aguentará.
Prometeu, na montanha acorrentado,
terá um abutre a entranha a lhe bicar.

No monte Cáucaso geme o gigante
a uma pedra, inerme e aprisionado.
Outros titãs, sorte dilacerante,
no mundo dos infernos são lançados.

No Tártaro jogados, recebidos,
pelo implacável deus, grande Plutão.
Nas profundezas ficam os vencidos
e aos deuses cabe a glória que terão.

Do céu Zeus se apodera e o irmão
Posseidon sobre os mares reinará.
Plutão reina na eterna escuridão
e a Terra dos olímpicos será.

No monte Olimpo, divinas moradas
dos deuses gregos logo são erguidas
A terra tem no homem a estirpe honrada,
Reinos fundados, praças construídas.

A esposa Hera, rainha severa,
tem seu assento junto ao deus divino.
Zeus, infiel, a ela desespera,
filhos gerando no seu desatino.

A bela Íris, dama da virtude,
da casta Hera vem ser preferida.
A deusa Hebe, tem a juventude.
Seu alimento faz perene a vida.

O divino alimento é a ambrosia
e a bebida o néctar sagrado.
Atena e as Graças tecem alegorias,
de cores brancas, longas, encantadas.

O deus Vulcano, artista prendado
dos céus, nascera sem a formosura.
Filho de Zeus e Hera foi jogado
na terra agreste por sua feiúra.

Mas, imortal e coxo, ganha espaço
no mar Egeu, em lugar escondido.
Zeus o protege, acompanha o passo,
e o raio ganha do filho perdido.

Zeus Afrodite dá pra seu prazer.
Ela não quer, mas se conforma à sorte.
Do mar surgida, deve obedecer,
embora pense ser melhor a morte.

Trai o marido com deuses e homens.
Eros e sátiros ao seu lado estão.
Gracioso deus possui pequenas flechas,
que, desferidas, trazem amor, paixão.

Palas Atena traz aljava e seta.
Da cabeça de Zeus nasceu armada
Tem na coruja ave predileta
e a oliveira sua palma ousada;

Hermes, de Zeus e Maia filho amado,
deus do comércio, inventor da lira,
asas carrega no chapéu dourado
e nas sandálias pelo mundo gira.

Ceres, de Zeus irmã, tem filha deusa,
doce Perséfone, esposa de Plutão,
que se tornou dos infernos princesa,
dona dos mortos e da solidão.

O louro Baco era o deus do vinho,
que estimulou a civilização.
A paz buscou, teve no amor o ninho
e às bacantes deu fogo e paixão.

Nascem de Zeus e da Memória as musas.
Detêm a graça, a dança e mais o canto.
A douta Clio o fio da História usa
e Tália bela é da Comédia o encanto.

Calíope protegia o verso épico,
a doce Euterpe a lírica jornada.
Erato defendia o verso erótico;
Polínia a poesia consagrada.

As Graças eram três e se incumbiam
das artes, dos banquetes e das danças.
As Parcas, também três, futuro viam;
nele influíam, tirando a esperança.

As Fúrias, sempre três, mortais puniam,
que da justiça e da lei fugissem.
Quase serpentes, toscas, se escondiam,
dando tormentos àqueles que as vissem.

A deusa da discórdia, a bela Nêmesis,
matou Narciso e a ninfa vingou;
embora Eco também fenecesse,
na flor do rio o jovem transformou.

Pã protegia os rudes pastores
e seus rebanhos nos campos relvados.
Pequenos sátiros, seu séquito em cores,
homens de chifres, pés de cabra, ousados.

Velozes eram os fortes centauros,
tinham no homem e no cavalo a fonte.
Quirão, um deles, foi mestre de Hércules,
lugar tomou de Prometeu no monte.

A alegria com o deus Momo andava.
Pluto regia a dourada riqueza.
Pomona, a ninfa, o pomar amava,
míticos pomos da grande realeza.

Jano Bifronte, dos céus o porteiro,
dois rostos tinha para olhar a terra.
É de seu nome o mês de janeiro.
Vela o presente e o porvir encerra.

A proteção para manter reinados
os deuses Lares viam na família.
Orando às almas dos antepassados,
crentes, devotos, em doce vigília.

Seis virgens eram as vestais do templo,
que à deusa Vesta rendiam louvores.
No fogo das lareiras viam o tempo
e proteção do mundo em seus ardores.

E assim foi que os gregos conhecidos,
na bela Hélade, envolta em magia,
legaram aos homens mitos revividos
com a doce lira da Mitologia.
__________________
continua…

Fonte:
Fénix (Carmo Vasconcelos)

Humberto de Campos (As Garrafas)


D. Eleonora havia mandado chamar o seu primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para uma consulta íntima, sobre diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando abriram inesperadamente o portão da casa.

- É o Augusto! - exclamou, horrorizada, a pobre senhora, apanhando com o pente os lindos cabelos em desordem.

E torcendo as mãos, aflita, a andar de um lado para outro da sala de jantar:

- Minha Nossa Senhora! que horror! que eu hei de fazer, meu Deus!...

E ia, já, nos extremos da aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo a porta que comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma ideia providencial:

- Esconde-te ali, Alfredo! Depressa! anda! anda!

E empurrou o primo, com o chapéu na mão, para dentro da despensa completamente às escuras.

O velho magistrado não era, felizmente, homem de grande perspicácia, desses que adivinham a passagem de estranhos por obra e graça do indício mais simples. Casado em segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no Código. E enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma tranquila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite, após uma palestra sisuda na residência do presidente do Tribunal.

Aberta a porta, o ilustre chefe de família entrou, e, pendurando a cartola na chapeleira, sentou-se, grave, à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia contar-lhe a sua conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um barulho de garrafas na dispensa

– Que é isso? Ouviste, Eleonora? - exclamou, assustado.

A mulher empalideceu, e ia, talvez, comprometer-se com uma denúncia, quando o velho, ouvindo de novo o barulho, se levantou de repente, encaminhando-se, firme, para a porta da despensa.

- Quem está aí? - gritou o magistrado, com o terror na garganta..

Na despensa escura, semeada de garrafas de cerveja e águas minerais, a situação do Dr. Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do compartimento, não podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava, era um desastre, uma calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros partidos, a atenção do dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho tornou, severo, com o revólver em punho:

- Quem está aí?

E estava, já, resolvido a conformar-se com o silêncio das vezes anteriores, quando uma voz surda, cava, soturna, respondeu, de dentro:

- São as garrafas...

Satisfeito com a descoberta, o magistrado embolsou o revolver, e voltou, sereno, a tomar o seu chá.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

Estante de Livros (Livros das Comédia Humana, de Honoré de Balzac) 3


ILUSÕES PERDIDAS
(1843)

Esta é a obra mais extensa de Balzac, principalmente quando levamos em conta sua continuação, também longa, Esplendores e Misérias das Cortesãs (o conjunto soma mil e cem páginas). Para melhor entender como foi composta A Comédia Humana, basta lembrar que as partes deste livro foram publicadas em épocas diversas, a primeira em 1837 e a última somente em 1843. No entanto a primeira parte de Esplendores começou a ser publicada já no final de 1838.

Temos aqui a história de um dos maiores e mais emblemáticos personagens do autor, o belo poeta Luciano de Rubempré, que deseja sair da província sufocante para se tornar escritor famoso em Paris. Mas Luciano é fraco de caráter e se deixa influenciar por todos com quem trava conhecimento, desde o íntegro escritor Daniel d'Arthez até, principalmente, a rica fauna dos cínicos, amorais, gananciosos e canalhas que parecem predominar em uma Paris onde nada, nem uma minúscula nota no jornal, é inocente ou de graça. Outro personagem importante neste livro que contém tantos é David Séchard, cunhado de Luciano. David é impressor, daí Balzac nos conduzir a uma tipografia e nos mostrar as máquinas, os operários, as gírias empregadas, enfim, o processo completo. Depois David inventa um tipo de papel barato e cai nas garras de espertos concorrentes, que se associam para arruiná-lo. Para além das peripécias de Luciano e David, este romance, de tantas leituras possíveis, aponta a mesquinhez e a pobreza espiritual da província e pinta um retrato arrasador da nascente imprensa moderna, ambiente que Balzac dominava muito bem.
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MELMOTH APAZIGUADO (1835)

Fantasia e realidade se misturam nesta novela baseada em Melmoth the Wanderer, romance gótico do escritor inglês Charles Robert Maturin, um dos preferidos de Balzac. Em tom humorístico, de início temos o retrato perfeitamente realista de um representante dessa profissão tão cara ao capitalismo: o caixa de banco, no caso o honesto porém pobre Castanier. Súbito, surge-lhe o errante diabo Melmoth e Castanier celebra com ele um contrato em que aceita vender sua alma em troca de onipotência. Mais tarde, transfere o contrato para outra pessoa, em troca de dinheiro; o novo possuidor também o vende e assim sucessivamente até que a transação passa a ser feita na própria Bolsa com valores cada vez menores. Nessa narrativa de fundo moral, o autor prenuncia, por conseguinte, uma das máximas de nossos dias: tudo é produto, tudo é mercadoria, tudo pode ser vendido, inclusive um pacto sobrenatural!
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O CORONEL CHABERT (1832)

Pequena novela onde o Coronel Chabert, dado por morto nas guerras napoleônicas, descobre que sua esposa herdou sua fortuna, casou-se pela segunda vez e agora o repele. Procura, então, um escritório de advocacia, palco de várias obras do autor. Temos aqui um drama judicial sombrio e pessimista, onde Balzac aproveita o que aprendeu em seus anos como escriturário de cartórios.
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O ELIXIR DA LONGA VIDA (1830)

Presente em muitas antologias, este conto é típico do início da carreira do autor: ambiente exótico, atmosfera misteriosa, tema escabroso, violência física etc. A história trata de uma variante do "crime do mandarim", que Balzac citou em várias obras, como O Pai Goriot: se você pudesse matar um solitário mandarim perdido nos confins da China para ficar com sua fortuna, e não houvesse a menor possibilidade do crime ser descoberto jamais, você o faria? Aqui, conta-se que o rico pai de Don Juan (o famoso conquistador), estudioso de alquimia, descobriu um óleo que permite a ressurreição, desde que alguém banhe o cadáver logo em seguida à morte. Quando chega sua hora, pede ao filho que o faça, porém este, amante de festas e da boa vida, queda-se inerte e consegue espalhar o líquido apenas em um dos olhos que, apavorado, esmaga ao ver se mexer. Anos depois, eis Don Juan com mulher e filho, a quem sempre tratou muito bem. Um dia, chega sua hora e ele pede ao filho que lhe passe o óleo quando morrer. Será atendido? O final é totalmente bizarro, em clima de grã-guignol.
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O ILUSTRE GAUDISSART (1833)

Um conto humorístico, introduz na literatura a figura do caixeiro-viajante, este subproduto dos novos tempos, tão importante nas décadas seguintes para a consolidação do capitalismo. O engraçado Gaudissart, muito querido por Balzac, possui uma eloquência capaz de vender sorvete para esquimós. Um dia, porém, ao oferecer apólices de seguro em um recanto da província, depara-se com um morador esperto. Através de inúmeros mal-entendidos e palavras de duplo sentido, Gaudissart se vê do outro lado do balcão.

Fonte:
Wikipedia

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 13 –

 


Stanislaw Ponte Preta (Ano-Bom)


Felizmente somos assim, somos o lado bom da humanidade, a grande maioria, os de boa-fé. Baseado em nossa confiança no destino, em nossas sempre renovadas esperanças, é que o mundo ainda consegue funcionar regularmente, deixando-nos a doce certeza — embora nossos incontornáveis amargores — de que viver é bom e vale a pena. E nós, graças às três virtudes teologais, às quais nos dedicamos suavemente, sem sentir, amando a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos; graças a elas, achamos sinceramente que o ano que entra é o Ano-Bom, tal como aconteceu no dezembro que se foi e tal como acontecerá no dezembro que virá.

Todos com ar de novidade, olhares onde não se esconde a ansiedade pela noite de 31, vamos distribuindo os nossos melhores votos de felicidades:

– Boas entradas no Ano-Bom!
– Igualmente, para você e todos os seus.

E os dois que se reciprocaram tão belas entradas, seguem os seus caminhos, cada qual para o seu lado, com um embrulho de presentes debaixo do braço e um mundo de planos na cabeça.

Ninguém duvida de que este, sim, é o Ano-Bom.

Pois se o outro não foi!

E mesmo que tivesse sido, já não interessa mais — passou. E como este é o que vamos viver, este é o bom. Ademais, se é justo que desejemos dias melhores para nós, nada impede àqueles que foram felizes de se desejarem dias mais venturosos ainda. Por isso, lá vamos todos, pródigos em boas intenções, distribuindo presentes para alguns, abraços para muitos e bons presságios para todos:

—    Boas entradas de Ano-Bom!
—    Igualmente, para você e para todos os seus.

A mocinha comprou uma gravata de listas, convencida pelo caixeiro de que o padrão era discreto. O rapaz levou o perfume que o contrabandista jurou que era verdadeiro. 

Senhoras, a cada compra feita, tiram uma lista da bolsa e riscam um nome. Homens de negócios se trocarão aquelas cestas imensas, cheias de papel, algumas frutas secas, outras não e duas garrafas de vinho, se tanto. Ao nosso lado, no lotação, um senhor de cabeça branca trazia um embrulho grande, onde adivinhamos um brinquedo colorido. De vez em quando ele olhava para o embrulho e sorria, antegozando a alegria do neto.
 
No mais, os planos de cada um. Este vai juntar dinheiro, aquele acaricia a possibilidade de ter o seu longamente desejado automóvel. Há uma jovem que ainda não sabe com quem, mas que quer casar. Há um homem e o seu desejo, uma mulher e a sua esperança. Uma bicicleta para o menininho, boneca que diz "mamãe" para a garotinha; letra "O" para o funcionário; viagens para Maria; uma paróquia para o senhor vigário; um homem para Isabel — a sem pecados; Oswaldo não pensa noutra coisa; o diplomata quer Paris; o sambista um sucesso; a corista uma oportunidade; muitos candidatos vão querer a presidência; muitas mães querem filhos; muitos filhos querem um lar; há os que querem sossego; dona Odete, ao contrário, está louca pra badalar; fulano finge não ter planos; por falta de imaginação, sujeitos que já têm, querem o que têm em dobro, e, na sua solidão, há um viúvo que só pensa na vizinha.

Todos se conhecem com maior ou menor grau de intimidade e, quando se encontram, saúdam-se:

—    Boas entradas de Ano-Bom!
—    Igualmente, para você e todos os seus.

Felizmente somos assim. Felizmente não paramos para meditar, ter a certeza de que este não é o Ano-Bom porque é um ano como outro qualquer e que, através de seus 365 dias, teremos que enfrentar os mesmos problemas, as mesmas tristezas e alegrias. Principalmente erraremos da mesma maneira e nos prometeremos não errar mais, esquecidos de nossos defeitos e virtudes, os defeitos e virtudes que carregaremos até o último ano, o último dia, a última hora, a hora de nossa morte... amém!

Mas não vamos nos negar esperanças, porque assim é que é humano; nem nos neguemos o arrependimento de nossos erros, embora, no Ano-Novo, voltemos a errar da mesma forma, o que é mais humano ainda.

Recomeçar, pois — ou, pelo menos, o desejo sincero de recomeçar — a cada nova etapa, com alento para não pensar que, tão pronto estejam cometidos todos os erros de sempre, um outro ano virá, um outro Ano-Bom, no qual entraremos arrependidos, a fazer planos para o futuro, quando tudo acontecerá outra vez.

Até lá, no entanto, teremos fé, esperança e caridade bastante para nos repetirmos mutuamente:

—    Boas entradas de Ano-Bom!
—    Igualmente, para você e todos os seus.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996