quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Coletânea A Lágrima e o Tempo (Participe!!! Prazo: 15 de fevereiro)


Queremos convidar você e seus amigos a participarem de nossa Coletânea A Lágrima e o Tempo (Tema sugerido por: Francisco Guilherme Torres da Silva, Marcelo de Azevedo Oliveira e Maria Luiza).

As inscrições, que já estão abertas, podem ser feitas até o dia 15 de fevereiro. Veja mais informações abaixo!

Para esta Coletânea buscamos textos sobre o Amor e o Desamor. Amores atuais e amores passados que causam lágrimas de Felicidade e/ou de Dor; amores de primavera; amores correspondidos; amores perversos; amores de vidas opostas; amores que viraram saudades ou raiva/ódio. Amores que causaram lágrimas que o tempo se incumbiu de secar.

Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Cordel, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

Poderão participar Escritores, Poetas, Contistas e Cronistas maiores de 18 anos de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil ou no exterior com documentação brasileira, e seus trabalhos deverão ser obrigatoriamente escritos em língua portuguesa (o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto).

Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/3abN843 , onde há o formulário de inscrição.

Nessa Coletânea os Artistas Plásticos e Designers de capa, também podem participar, enviando sugestões de Capa para a Coletânea.

Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/3qWR8fk

Já recebemos várias inscrições e ainda estamos aguardando ansiosamente a sua!

Importante lembrar que sua participação é Gratuita.

Após recebermos os Textos, faremos uma seleção/avaliação dos melhores e publicaremos um livro com eles. Essa Coletânea ficará à venda na Loja Online da PerSe, com impressão sob demanda, para quem quiser adquiri-la.

Como dissemos, sua participação não terá nenhum custo!

Você encontra todos os detalhes para sua inscrição nos links abaixo:

1) Quero enviar meu texto: https://bit.ly/3abN843​

2) Quero enviar sugestão de capa: https://bit.ly/3qWR8fk

Compartilhe com o mundo as histórias de Amor ou Desamor que você viveu ou presenciou. Inscreva-se já!

Ah... se quiser convidar seus conhecidos para participar também, fique à vontade... basta repassar esse e-mail.

Forte abraço,
Equipe Apparere

Fonte:
Projeto Apparere (www.apparere.com.br)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 471

 


Gregório Duvivier (Ter amigos demais é quase igual a não ter amigo nenhum)


Tem poucos, raros amigos  — o homem atrás dos óculos e do bigode.” O verso sempre me apavorou. Sempre quis ter muitos, vastos amigos, inúmeros, incontáveis, 1 milhão de amigos, como Roberto Carlos, pra bem mais forte poder cantar.

Poucos, raros amigos”, reitera Drummond, e eu imaginava um pobre homem preso eternamente àquele início de festa em que só chegou um casal ou àquele fim de festa em que só sobrou um casal.

O inferno são os outros”, diz o personagem de Sartre sobre a companhia obrigatória de duas pessoas, e entendo a agonia dele, não porque fosse melhor ficar só, mas porque eram só duas pessoas. “O inferno são poucos outros”, deveria ter concluído o personagem.

Não há solidão pior que a companhia de apenas um vizinho no elevador, de dois primos distantes no Natal, de só três espectadores numa peça. Poucos outros são o inferno, muitos outros são o Carnaval.

Lembro a história de uma amiga que foi estudar na Alemanha. Depois de algumas semanas solitárias em que seus olhares cúmplices davam n’água, finalmente conseguiu se aproximar de uma colega local, com quem trocou um lápis, um comentário maldoso e, finalmente, algumas risadas.

Acho que esse é o começo de uma bela amizade”, pensou ela, como Bogart. Mas “Casablanca” se passa num bar no Marrocos, e não numa faculdade alemã — onde tiveram início poucas, raras amizades.

No dia seguinte, aos sorrisos, a suposta amiga alemã passou a evitá-la. Trocou de lugar na sala, parou de trocar olhares e, ao encontrá-la na rua, chegou a trocar de calçada. “O que foi que fiz de errado?”, pensou nossa conterrânea. Depois de algum tempo, tomou coragem para interpelar a colega.

A gente estava se aproximando e você sumiu”, ela disse. “Desculpe”, explicou a alemã, “é que já tenho amigos o bastante”. E prosseguiu. “Você parece legal, mas a gente estava quase ficando amiga, e, se isso acontecesse, teria que ir à sua festa de aniversário, ao lançamento do livro da sua mãe. Fiz as contas e descobri que não tenho tempo para mais nenhum amigo.

Na época achei cruel, uma história de terror alemã. Hoje entendo a amiga. O inferno é ter amigos demais, que é quase igual a não ter amigo nenhum.

Nos últimos meses, tenho gostado de falar apenas com os amigos de que gosto muito. “Tem poucos, raros amigos — o homem atrás da máscara e do face shield.” É bom também.

Fonte:
Folha de São Paulo. Opinião. 11 de agosto de 2020.

Edy Soares (Cristais Poéticos) VII

EPÍLOGO

Já sem querer mudar o mundo,
Sinto-me apenas um sentinela,
Um simples vigia.

Arrisco olhares pela janela.
É imenso, é profundo
O abismo da cidade fria.

Nem frestas, nem lampejos,
Nem luz no fim do túnel.
Até me fraquejo!
Nada vejo; nada espero!

Ao que me parece,
No intervalo de cada prece,
Assim como as mentes,
As ruas ficaram vazias.

Sem luta, sem luto,
Sem recompensa,
Se finda a história.

Não há música,
Ninguém toca,
Ninguém mais escuta,
Não há mais, sequer,
Quem movimente a batuta.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

JANGADEIRO

Jangadeiro na noite escura,
Sem vela, sem armadura,
Sem remo, perdeu o norte.
Tá entregue ao acaso e à sorte.

Jangada que sob os pés se desfaz,
Socorro que não chega mais,
Pois a esquadra perdeu seu dono,
E os fuzileiros caíram no sono.

Tempestades que trazem medo,
Mares de céu cinzento,
Jangadeiro pede socorro,
À deriva vai noite adentro.

Na terra, ficou sem chão;
No mar, quase sem jangada
à procura de peixe ou pão,
Perdeu-se da enseada.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O SILÊNCIO

Silenciaram-se os sinos e buzinas,
O trem não mais saiu da estação.
Folhas vagam sopradas nas calçadas,
Faz algum tempo...
Muito tempo, desde aquele último clarão.

Da janela, nunca mais trancada,
A vista da rua gélida, fantasma.
Nada que tenha vida ou movimento,
A não ser coisas que o vento ainda sopra.

Imagens na memória, longínquas,
De pessoas sentadas na praça,
E gritos infantis nunca mais ouvidos,
Somente o ruído do vento que passa.

A lua...
Ah! A lua parada no céu,
Até o sol, não mais movimenta,
Parece que a terra agarrou em sua órbita,
Nem sei se é ela, ainda um planeta.

Apalpo nas coisas, me apalpo a toa,
Que susto!...
Nada sinto! Nada sinto!
Estou abstrato, não toco nem grito,
Não tenho um formato, tá tudo esquisito.

Pouco a pouco arisco, arrisco um grito,
Nada sai da garganta, me vem um arrepio!
Não há marcação de tempo, só ouço o vento,
Não há mais dia ou noite... Ficou infinito.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

QUANDO A ALMA SE VAI

Um dia a alma acorda,
Bate asas e vai-se embora.
Aqui ela deixa apenas
Saudades nos olhos que choram.

Se vai pra lugar distante,
Repousar em outras esferas,
Preparar, talvez, lugares
Pra outras que aqui esperara.

De onde veio é incógnita,
Aonde vai não se sabe.
Se encontra lugar melhor,
Em nosso pensar não se cabe.

Se aonde vai é eterno,
A alma não é pequena,
Mas grande se prende ao fato
De que a vida aqui vale à pena.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

RECOMEÇO

 Eu só queria
Colher a alegria
Que têm as crianças
E guardar... Pra se um dia
Faltar esperança
Por onde eu passar.

Eu só queria
Colher, da flor,
O perfume que exala
E levá-lo na mala,
Pra entregar a quem for,
Onde o amor faltar.

Eu só queria
Colher, dos passarinhos,
O canto que alegra
E espalhá-lo na terra,
Quando o homem não tiver
Mais ânimo pra cantar.

Eu só queria
Colher, dos anciãos,
A paz e a sabedoria,
Pra se algum dia
Aos que, por ganância,
O coração se fechar.

Eu só queria
Mostrar pra esse povo,

Que quando acabar
O que Deus criou,
Por que o homem não cuidou,
Quem colheu a semente
Fará novamente
Brotar, desse chão,
Uma nova estação
E um recomeço, de novo.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

REBANHO PERDIDO

Estourada boiada, sem rumo,
Berrante que não ecoa,
Manada que, sem um norte,
Se perde correndo à toa.

Sem um campeiro nobre,
Condutor que conhece a trilha,
Tem lugar, tantos errantes,
Que entregam o rebanho à matilha.

Não andam mais, perfilados,
Dispersos e em desatino,
Pisoteia-se toda a manada.

Qual rebanho que, sem campeiro,
Em trote, vão sem destino
Ou perdidos em disparada.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Katherine Mansfield (A Aula de canto)


Com o desespero – um desespero frio e cortante – cravado no fundo do coração como uma faca cruel, a srta. Meadows, de beca e capelo e portando uma pequena batuta, percorreu os corredores frios que levavam ao salão de música. Garotas de todas as idades, coradas pelo ar e transbordando aquela alegre animação que se sente ao disparar para a escola numa bela manhã de outono, corriam, saltavam, esvoaçavam; das salas de aula vazias vinham vozes matraqueando velozes; um sino tocou; uma voz como de pássaro gritou "Muriel". E então da escada veio um tremendo bum-bum-trabum, Alguém tinha deixado cair os halteres.

A professora de Ciências deteve a srta. Meadows.

- Bom diii-a - exclamou com sua fala arrastada, suave e afetada. - Não está frio? Parece até inverno.

A srta. Meadows, comprimindo a faca, fitou com ódio a professora de Ciências. Tudo nela era doce, pálido, como mel. Não seria surpresa ver uma abelha presa no emaranhado daquele cabelo louro,

- Cortante - respondeu a srta. Meadows carrancuda,

A outra abriu seu sorriso meloso.

- Você parece gelaaaa-da - disse. Seus olhos azuis se abriram muito; tinham um brilho zombeteiro. (Teria notado alguma coisa?)

Ora, nem tanto assim - a srta. Meadow disse – respondeu ao sorriso da professora de Ciências com uma rápida careta e seguiu adiante...

As Turmas Quatro, Cinco e Seis estavam reunidas no salão. O barulho era ensurdecedor. No estrado, junto ao piano, estava Mary Beazley, a favorita da srta, Meadows, que tocava o acompanhamento. Estava girando a banqueta do piano. Quando viu a srta, Meadows, soltou um sonoro "Pssss, meninas!" de advertência, e a srta, Meadows, as mãos enfiadas nas mangas, a batuta debaixo do braço, desceu pela passagem central, subiu os degraus, virou-se bruscamente, pegou o suporte metálico da partitura, plantou-o diante de si e deu duas batidas secas com a batuta, exigindo silêncio.

- Silêncio, por favor! Já!

E, sem se deter pra ninguém, seu olhar passeou por aquele oceano de blusas de flanela colorida, onde se agitavam mãos e faces rosadas, tremulavam tiaras de borboleta e se espalhavam pautas musicais. Ela sabia muito bem o que estavam pensando. "Meady está brava," Ora, que pensassem! Suas pálpebras estremeceram; empinou a cabeça, em desafio. Que importância tinha o que aquelas criaturas pensavam para quem estava ali sangrando até a morte, ferida no coração, no fundo do coração, por uma carta assim -... "Sinto cada vez mais que nosso casamento seria um erro. Não que eu não ame você. Amo até onde me é possível amar uma mulher, mas, para dizer a verdade, cheguei à conclusão de que não sou homem de casar e a ideia de ter um lar me enche apenas de..." - e a palavra "aversão" estava levemente apagada e por cima estava escrito "pesar".

Basil! A srta. Meadows avançou empertigada até o piano. E Mary Beazley, que aguardava por esse momento, curvou-se, os cachos lhe caíram na face enquanto murmurava "Bom dia, Srta. Meadows" e, mais do que estender, fez avançar até sua professora um belo crisântemo amarelo. Esse pequeno ritual da flor vinha se passando fazia uma eternidade, pelo menos um semestre e meio. Fazia parte da aula, tanto quanto abrir o piano. Mas nesta manhã, em vez de pegá-lo, em vez de colocá-lo no cinto enquanto se inclinava para Mary e dizia "Obrigada, Mary. Quanta gentileza! Vire na página 32", qual não foi o horror de Mary quando a srta. Meadows ignorou totalmente o crisântemo, não respondeu à saudação e disse numa voz fria como gelo "Página 14, por favor, e marque bem os acentos".

Momento desconcertante! Mary enrubesceu até lhe virem lágrimas aos olhos, mas a srta. Meadows voltara ao pedestal da partitura; sua voz ressoou por todo o salão.

- Página catorze. Vamos começar com a página catorze. "Um lamento." Agora, meninas, vocês já devem conhecê-lo. Vamos a ele todas juntas, não por partes, mas todas juntas. E sem expressão. Mas cantem com muita simplicidade, marcando o tempo com a mão esquerda.

Ergueu a batuta; bateu no pedestal duas vezes. Então entrou Mary com a nota de abertura; então entraram todas aquelas mãos esquerdas, marcando no ar, e entoaram aquelas vozes jovens e lamentosas:

Logo! Ah, logo murcham as rosas do prazer;
E breve se rende o outono à tristeza invernal.
Veloz! Ah, veloz o alegre compasso musical
Passa pelo ouvinte e vai desaparecer.

Bons céus, o que podia ser mais trágico do que esse lamento! Cada nota era um suspiro, um soluço, um gemido de imensa dor. A srta. Meadows ergueu os braços em sua beca larga e começou a reger com as duas mãos. "Sinto cada vez mais que nosso casamento seria um erro...", marcava ela. E as vozes gritavam: Veloz! Ah, veloz. O que se apoderara dele para escrever uma carta assim! O que levara a isso! Saiu do nada. A carta anterior tinha sido, toda ela, sobre uma estante de carvalho escurecido que ele comprara para "nossos" livros e um "belo aparadorzinho" que tinha visto, "muito alinhado, com uma coruja entalhada num suporte, segurando nas garras três escovas de chapéu". Como ela sorrira àquilo! Tão coisa de homem achar que alguém precisaria de três escovas de chapéu! Passa pelo ouvinte, cantavam as vozes.

- Mais uma vez - disse a srta. Meadows. - Mas agora era partes. Ainda sem expressão.

Logo! Ah, logo. Somando-se a tristeza dos contraltos, era até difícil evitar um estremecimento. Murcham as rosas do prazer. Na última vez em que veio vê-la, Basil trazia uma rosa na lapela. Como estava bonito naquele temo azul-vivo, com aquela rosa vermelho--escuro! E ele sabia disso. Não tinha como não saber. Primeiro alisou o cabelo, depois o bigode; ao sorrir, os dentes faiscaram.

- A esposa do diretor vive me convidando para jantar. Uma amolação. Nunca tenho uma noite só para mim naquele lugar.

- Mas você não pode recusar?

- Oh, para um homem em minha posição isso cairia bem ser antipático.

O alegre compasso musical, lamentavam as vozes. Os salgueiros, do lado de fora das janelas altas e estreitas, ondulavam ao vento. Tinham perdido metade das folhas. As pequeninas ainda restantes se retorciam como peixes num anzol. "... Não sou homem de casar..." As vozes tinham se calado; o piano aguardava.

- Muito bom - disse a srta, Meadows, mas ainda num tom tão frio e estranho que as meninas mais novas começaram a se sentir realmente assustadas.

- Mas, agora que já conhecemos, vamos cantar com expressão. Pensem nas palavras, meninas. Usem a imaginação. Logo! Ah, logo - exclamou a srta. Meadows. - Deve irromper - um forte alto, vigoroso - um lamento. E então, no segundo verso, tristeza invernal, a tristeza tem de soar como se soprasse um vento gelado. Tristee-eeza - falou de maneira tão sinistra que Mary Beazley em seu banquinho contorceu as costas.

- O terceiro verso deve ser um crescendo só. Veloz! Ah, veloz o alegre compasso musical. Quebrando na primeira palavra do último verso. Passa. E então na palavra pelo vocês começam a morrer... a se extinguir… até que vai desaparecer não passe de um sussurro bem fraquinho... Podem ir devagar o quanto quiserem no último verso. Agora, por favor.

De novo as duas leves batidinhas; ergueu novamente os braços. Logo! Ah, logo. "... e a ideia de ter um lar me enche apenas de aversão –”  Era aversão o que ele tinha escrito. Era igual a dizer que o noivado deles estava definitivamente rompido. Rompido! O malvado! As pessoas já tinham se surpreendido quando levou noiva. A professora de Ciências no começo não acreditou. Mas ninguém se surpreendera mais do que ela. Estava com trinta anos. Basil, com vinte e cinco. Tinha sido um milagre, um verdadeiro milagre, ouvi-lo dizer voltando da igreja naquela noite muito escura: "Sabe, de alguma maneira eu me apaixonei por você".

E pegara a ponta de seu boá de plumas de avestruz. Passa pelo ouvinte e vai desaparecer.

- Repitam! Repitam! - disse a srta. Meadows. – Mais expressão, meninas! Outra vez!

Logo! Ah, logo. As mais velhas estavam de cor escarlate; algumas das mais novas começaram a chorar. Grandes pingos de chuva se arremessavam contra as janelas e dava para ouvir os salgueiros sussurrando "...não que eu não ame você...".

"Mas, meu querido, se você me ama", pensou a srta. Meadows, "não me interessa o quanto, Pode ser bem pouquinho". Mas sabia que ele não a amava. Nem se deu ao trabalho de apagar totalmente aquela palavra "aversão", para que ela não visse! E breve se rende o outono à tristeza invernal. Teria de deixar a escola também. Jamais conseguiria encarar a professora de Ciências nem as meninas, depois que soubessem. Teria de sumir em algum lugar. Passa. As vozes começaram a morrer, a se extinguir, a sussurrar... a desaparecer.

De repente a porta se abriu, uma menina de azul veio alvoroçada pela passagem, baixando a cabeça, mordendo os lábios e girando a pulseira prateada em seu pulsinho vermelho. Subiu os degraus e parou diante da srta. Meadows.

- Bem, Mônica, o que é?

- Oh, por favor, srta. Meadows - disse a menina ofegante. - A srta. Wyatt quer vê-la na sala da diretoria.

- Muito bem - respondeu a srta, Meadows e se dirigiu às meninas. –  Deixarei a cargo de vocês que falem baixo enquanto eu estiver fora.

Mas elas estavam abatidas demais para fazer qualquer outra coisa. A maioria assoava o nariz.

Os corredores estavam frios e silenciosos; os passos da srta. Meadows faziam eco. A diretora estava sentada à escrivaninha. Não ergueu os olhos de imediato. Estava como sempre desembaraçando os óculos, que haviam ficado presos no laçarote rendado.

- Sente-se, srta. Meadows - disse muito gentil. E então pegou um envelope cor-de-rosa de sob o mata-borrão. - Mandei chamá-la porque acabou de chegar este telegrama para você.

- Um telegrama para mim, srta, Wyatt?

Basil! Ele tinha se suicidado, concluiu a srta. Meadows. Estendeu ligeiro a mão, mas a srta. Wyatt reteve o telegrama por um instante.

- Espero que não sejam más notícias - disse mais do que gentil.

E a srta. Meadows abriu de um rasgão.

"Desconsidere carta, devia estar louco, comprei chapeleira hoje - Basil", leu ela. Não conseguia desgrudar os olhos do telegrama.

- Espero que não seja nada muito grave - disse a srta. Wyalt inclinando-se para ela.

- Oh, não, obrigada, srta. Wyatt - corou a srta. Meadows. - Não é nada de ruim. É... - e soltou um risinho com ar de desculpa - é de meu noivo dizendo que... dizendo que...

Houve uma pausa.

- Entendo - disse a srta. Wyatt.

E outra pausa. Então:

- Você ainda tem quinze minutos de aula, não, srta. Meadows?

- Sim, srta. Wyatt.

Levantou-se. Quase correu para a porta.

- Oh, mais um minutinho, srta. Meadows - disse a srta. Wyatt. - Devo dizer que não aprovo que meus professores recebam telegramas no horário das aulas, exceto em casos de notícias muito graves, como uma morte - explicou a srta. Wyatt - ou um acidente muito sério ou algo assim. Como sabe, srta. Meadows, as boas notícias sempre podem esperar.

Voando nas asas da esperança, do amor, da alegria, a srta. Meadows se apressou de volta ao salão, percorreu a passagem, subiu os degraus, acercou-se do piano.

- Página 32, Mary - disse página 32 ~ e, pegando o crisântemo amarelo, segurou-o diante dos lábios para ocultar o sorriso.

Então virou-se para as meninas e deu uma batida seca com a batuta;

- Página trinta e dois, meninas. Página trinta e dois.

Aqui viemos hoje cobertas de flores,
Com cestos repletos de frutas e fitas,
Para celebraaaar...

- Parem! Parem! - gritou a srta. Meadows. - Está horrível. Está pavoroso.

Olhou radiante para suas meninas.

- O que há com vocês? Pensem, meninas, pensem no que estão cantando. Usem a imaginação. Cobertas de flores. Cestos repletos de frutas e fitas. E celebrar.

A srta. Meadows se interrompeu.

- Não fiquem com ar tão triste, meninas. É para soar alegre, caloroso, exultante. Celebrar. Mais uma  vez. Rápido. Todas juntas. Agora!

E nesse momento a voz da srta. Meadows se sobrepôs a todas as outras - cheia, profunda, resplandecendo de expressão.

Fonte:
Os melhores contos de Katherine Mansfield. Porto Alegre/RS: LP&M, 2016.

Estante de Livros (Os Ratos, de Dyonélio Machado)


O barulho de pequenas mandíbulas aumenta o tormento do protagonista Naziazeno. Os ratos roem os fragmentos do que lhe resta, talvez o menino tenha deixado uma migalha de pão na mesa ao lado do maço de notas. O pensamento espiral avança na noite de insônia: encontros, negativas, buscas, necessidade, jogo, fome, fracasso, cansaço, lembrança do semblante tristonho da mulher, dor no corpo, a doença do menino, o resultado do bicho, inaptidão, negativas, impotência... Até que nas cores esmaecidas do entardecer, o protagonista consegue o dinheiro para pagar a conta do leiteiro e retorna para casa.

O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos transpassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução. Paliativos!

O livro “Os ratos”, do escritor gaúcho Dyonélio Machado, inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato.

A mulher lamenta todos os cortes: a manteiga, sapato novo... Mas leite é fundamental para o desenvolvimento do filho de quatro anos já tão abatido pela doença.

Vinte e quatro horas... Naziazeno sai para o trabalho com a obrigação de trazer o dinheiro, observa os passageiros do bonde, tenta em vão esquecer do leite. Mas como? Os olhares dos vizinhos, a voz da esposa, o filho...

Naziazeno tenta pedir um empréstimo ao diretor da repartição, o que é negado na frente dos outros funcionários. Sai em busca dos amigos, não os encontra, joga os trocados no bicho e na roleta. A sorte não está ao seu lado. Continua pelas ruas, visita os agiotas, desvia dos credores... Carcomido pela fome e cansaço, escuta apenas negativas... Ao fim do dia, numa operação complicada com um anel penhorado, consegue o dinheiro emprestado do amigo Alcides.

Retorna para casa com dinheiro suficiente para pagar o leiteiro, tirar os sapatos da mulher do sapateiro, comprar um vinho, um pedaço de queijo e um pequeno mimo para o filho. Conta as notas e as moedas para o pagamento do fornecimento do leite e, novamente, percebemos a precariedade da situação econômica do protagonista.

Ele se deita na certeza de que o leiteiro encontrará o dinheiro de madrugada e tudo estará solucionado com a continuidade do fornecimento, mas toda a inquietação e a angústia que dominaram seu dia num corpo faminto e fraco, agora ganham força com a modesta refeição. Tenta dormir, fecha os olhos, finge não perceber a luz amarelada ao lado da cama, reclama com a mulher que ronca, escuta os pequenos movimentos do filho, mas o pensamento costura seus passos, as imagens dos olhares reprovadores, a sensação de vergonha, inaptidão e impotência, a repartição, os funcionários e os vizinhos que o observam em cada negativa, testemunham a cristalização do seu fracasso e murmuram que ele não paga as contas.

Tudo retorna e as vivências são retalhadas numa intensa noite de insônia. O leitor se aprisiona na narrativa, torce para que o personagem relaxe na conquista do possível, mas também está preso demais às angústias presenciadas e à certeza de que é apenas mais um dia. E quantos dias?

O bonde passa de madrugada, a mulher ressona alto, o filho ensaia um choro... Não há relógio na casa de Naziazeno, porém as horas passam lentas enquanto ele não consegue se libertar de seu drama diário. O que poderia sonhar? Não consegue pensar em nada que não sejam os passos, as negativas, o diretor da repartição, sua inaptidão para conseguir uma renda extra, o azar no jogo, as contas que não pagou...

Observa o rosto gorducho e apático da esposa. Ela dorme...

Ouve pequenos ruídos de mandíbulas de ratos. São os ratos a devorar o que lhe resta. O dinheiro posto em cima da mesa, ao lado da panela do leite, deve estar sendo devorado pelos roedores. Tenta se levantar, mas a noite o prende à cama... Os ratos devoram o leite do filho, lembra-se do rapaz do bonde que almoçava leite, a mulher que reclama e diz que sem leite não pode ficar... O leite e os ratos, talvez uma migalha de pão...

O avançar das horas o aflige. Como pode não dormir e despertar para trabalhar? Será que não dormiu em algum lapso de pensamento? A mulher e o filho continuam dormindo...

Abruptamente, a porta da cozinha é aberta. Barulho de passos e de leite derramado com abundância. O leiteiro... Naziazeno adormece antes que a porta se feche.

O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores.

A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário.

Talvez neste momento incorporemos suas vivências nas lembranças de cada capítulo consumido. A ficção está eivada de realidade. O pensamento espiral nos consome nas tantas vinte e quatro horas que compõem nossas vidas.

O fornecimento de leite é apenas uma metáfora. O leitor, em cada pausa, poderá se confundir com a trama, lembrar do cheque especial, do resgate do penhor, da conta atrasada... Afinal, poderá compor também suas necessidades e, como Naziazeno, se perguntar qual sua aptidão. Questionar suas funções na repartição. Observar sua representação no mundo no olhar dos outros funcionários

Certamente, o livro “Os ratos” não é uma leitura recomendada para quem sofre de insônia, ou para quem administra o cotidiano no empate de seus rendimentos e dívidas.

Podemos ainda ouvir as mandíbulas dos vorazes ratos devorando nossos rendimentos: a pesada carga tributária, os aumentos constantes das taxas públicas e da gasolina, os juros do especial... Na esfera de uma noite insone, podemos remontar nossos passos, julgar nossas ações e nos culpar por algumas omissões e comodismos.

A viagem literária proporciona uma visão mais ampla da trajetória. O destino ainda é uma expectativa e é previdente que possamos analisar a viabilidade de novos rumos sem ficarmos presos às urgências diárias de nossas necessidades.

Dyonélio Machado se destacou na segunda fase do modernismo na literatura brasileira, com uma prosa intimista ou de sondagem psicológica, com a abordagem da relação do “eu” com o contexto inserido. Além de escritor, Dyonélio foi médico psiquiatra e conheceu as obscuridades do psiquismo dos indivíduos comuns, percebeu o limiar das possibilidades, medos e anseios e, numa narrativa original, envolveu-nos definitivamente na condição de seus leitores. Espero que a memória e a obra do escritor permaneçam imunes às mandíbulas da alienação e do esquecimento.

Fonte:
Resenha por Helena Sut. Disponível em Algo Sobre.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Stanislaw Ponte Preta (O menino que chupou a bala errada)


Ele que era um menininho que adorava bala e isto não lhe dava qualquer condição de originalidade, é ou não é? Tudo que é menininho gosta de bala. Mas o garoto desta história era tarado por bala. Ele tinha assim uma espécie de ideia fixa, uma coisa assim... assim, como direi? Ah... creio que arranjei um bom exemplo comparativo: o garoto tinha por bala a mesma loucura que o Sr. Lacerda tem pelo poder.

Vai daí um dia o pai do menininho estava limpando o revólver e, para que a arma não lhe fizesse uma falseta, descarregou-a, colocando as balas em cima da mesa. O menininho veio lá do quintal, viu aquilo ali e perguntou pro pai o que era:

— É bala — respondeu o pai, distraído.

Imediatamente o menininho pegou diversas, botou na boca e engoliu, para desespero do pai, que não medira as consequências de uma informação que seria razoável a um filho comum, mas não a um filho que não podia ouvir falar em bala que ficava tarado para chupá-las.

Chamou a mãe (do menino), explicou o que ocorrera e a pobre senhora saiu desvairada para o telefone, para comunicar a desgraça ao médico.

Esse tranquilizou a senhora e disse que iria até lá, em seguida.

Era um velho clínico, desses gordos e bonachões, acostumados aos pequenos dramas domésticos. Deu um laxante para o menininho e esclareceu que nada de mais iria ocorrer. Mas a mãe estava ainda aflita e insistiu:

— Mas não há perigo de vida, doutor?

— Não — garantiu o médico: — Para o menino não há o menor perigo de vida. Para os outros talvez.

— Para os outros? — estranhou a senhora.

— Bem. . . — ponderou o doutor: — O que eu quero dizer é que, pelo menos durante o período de recuperação, talvez fosse prudente não apontar o menino para ninguém.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) IX

CURVA DO CAMINHO


Eis-me chegando à curva do caminho,
onde vejo os escombros do passado:
a casa em que nasci, cresci, malgrado
o quarto de dormir em desalinho.

Não me faltou, porém, muito carinho
vivendo no Sertão injustiçado,
onde o “mandante” sempre desalmado
faz o povo sofrer, no Pelourinho...

No entanto, a vida é bela e deslumbrante,
mesmo que a estrada se apresente escura
sempre brilha uma luz ao viajante...

... E quando eu me tornar uma saudade,
minha alma esquecerá a desventura
para cantar, em verso, a Eternidade!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ELOGIO AO AMOR

Neste caminho eu sigo contemplando
a Natureza exuberante e bela,
passarinhos nos ramos saltitando
entoando canções em aquarela.

Aonde quer que eu vá, eu vou cantando
a pureza do amor, pintado em tela,
que Deus o produziu, por certo amando,
para mostrar ao mundo, em passarela...

O amor? Triste de quem não tem amor,
nem sentiu nesta vida alguma dor,
nem teve uma saudade a recordar?

Pois o amor é um sublime sentimento
que ferve, vibra e invade o pensamento,
e  nos leva ao delírio para amar!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

IPUPIARA

Feliz é quem trilhou estes caminhos
que levam à vibrante Ipupiara,
ouvindo o som de belos passarinhos
numa paisagem deslumbrante e rara.

Ibipetum, Pintada e outros vizinhos
Sodrelândia, Vanique e Caiçara,
Chiquita, Bela Sombra com seus ninhos,
Brejões, Coxim que muito me ensinara.

Jamais vou esquecer... O Olho d´Aguinha,
Veríssimo, Barreiro e até Matinha,
Deus me Livre, Umbaúba e Boa Vista.

Felicidade, então, é ter nascido
e neste berço um dia ter vivido
com gente hospitaleira e idealista!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

RESSURREIÇÃO

Já não lamento o fim daquele sonho
que o tempo, impiedoso, me levou.
- Venturas e alegrias – pressuponho
tombaram pelo chão, nada sobrou.

Por que sofrer, chorar, viver tristonho?
Se o vendaval que assusta já passou?
Reconstruir é tudo o que me imponho
e gritar para o mundo: aqui estou.

Tal como a fênix ressurgir da morte
e as cinzas sacudir buscando a sorte,
embora os olhos marejados d´água.

Meus versos jorrarão como uma fonte
fervilhando de amor vencendo a ponte,
mesmo cobertos de saudade e mágoa!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

REVISITANDO A INFÂNCIA

Refaço, de memória, a longa estrada,
caminhos que trilhei desde menino.
De manhã cedo, ainda na alvorada,
eu preparava a terra, meu destino.

Tempos depois, aposentei a enxada,
para estudar, no chão diamantino.
A vida era feliz lá na Chapada,
quando brilhava a luz do sol, a pino...

Tudo passou, bem sei, tão de repente,
meu coração, parece, anda descrente
e o sentimento, quantas vezes, trunca...

Hoje, guardo no peito, com cuidado,
lembranças que marcaram meu passado
e uma saudade que não passa nunca...

Fonte:
Blog do Filemon - http://filemon-martins.blogspot.com/

Humberto de Campos (Autos e "Taxis")

Com o pensamento, talvez, de aperfeiçoar a raça, já de si tão robusta e formosa, votou o Parlamento uruguaio um projeto de lei determinando às autoridades que não realizem mais casamentos sem que os noivos se tenham submetido, com resultado negativo, à reação de Wasserman. Acham os legisladores de Montevidéu que a mulher constitui para os homens uma cruz, e foi com pena deles, provavelmente, que se tomou a providência. Que seria, em verdade, do mortal que tomasse aos ombros a cruz da família depois de ter duas, ou três, constatadas num paciente exame de sangue?

Vindo de uma época excessivamente escrupulosa, em que os pais dos namorados sindicavam das condições sanitárias dos antepassados até à quinta geração, e em que os próprios noivos tomavam um purgativo de óleo de rícino oito dias antes do casamento, - eu não podia ser contrário à humanitária medida promulgada pelo governo do Uruguai. O meu espírito faltaria, entretanto, ao seu dever de sinceridade, aos hábitos de franqueza incondicional, se não confessasse o temor, que tenho, de que essa exigência venha reduzir, ali, o número de casamentos.

O casamento é, realmente, hoje, encarado por um prisma original, que degrada, é certo, a mulher, mas reintegra a espécie na natureza, permitindo-lhe a realização do seu verdadeiro destino. Dessa teoria, dava-me, ontem, uma perfeita imagem industrial o Sr. Roberto de Aguiar, agente de pneumáticos americanos, ao explicar-me, sem constrangimento nem entraves na língua:

- O casamento só pode ser julgado com segurança, Sr. conselheiro, por pessoa que já teve automóvel. A esposa ou o esposo definitivo é, para o homem ou para a mulher, uma espécie de automóvel particular. E nada há no mundo, como o senhor sabe, que, como um automóvel particular, dê tanto trabalho: um dia, é uma peça que falta; no outro, é a gasolina; mais tarde, é a capota, que está estragada. O dono de um automóvel vive a fazer despesas todos os dias, a incomodar-se a todo instante, e, quando mais precisa do carro, tem a noticia de que ele não pode funcionar!

Eu encarei o homenzinho, disposto a deixá-lo, àquela hora da madrugada, na primeira esquina da Avenida, e ele continuou:

- Com a amante, ou o amante, não; o amante, qualquer que seja o sexo, é o "taxi" do coração: a gente toma-o, paga-o, e salta onde entende, sem perguntar, sequer, o nome da "garage". Marido ou amante, auto particular ou "taxi", que importa à mulher, ou ao homem, a espécie do veículo, se ele faz a viagem da mesma maneira? E isso com a vantagem de, ao abandonar o carro, não ter passageiro que se incomodar com o estado do motor, nem com a qualidade dos lubrificantes.

Nesse momento, soavam, monótonas, em uma torre da Avenida, três badaladas metálicas, quebrando o silêncio da noite, quase acabada:

- Três horas! - espantou-se o major Afonso Gomide, que ia conosco. - Vamo-nos?

O agente americano estendeu os olhos pela Avenida deserta, e lamentou:

- Sim, senhor! Nem um "taxi"!... E agora?

- Vamos no meu automóvel, - convidou o major, fazendo sinal ao seu "chauffeur".

Desabituado desses luxos, eu continuei o meu caminho, a pé…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 470

 


Alberto Figueiredo Pimentel (O Pássaro Mavioso)


Sebastião nascera de pais opulentos. Desde a mais terra infância vivia no meio de grande esplendor, só vestindo seda, gorgorão, veludo, rendas finas; deitava-se em berços riquíssimos e luxuosos; tinha à sua disposição toda a sorte de brinquedos. No entanto, a natureza fê-lo cretino, pateta, tatibitate.

Aos oito anos começou a frequentar bons colégios, e a aprender com professores célebres. Contudo, nunca perdia o ar de tolo que tinha desde criança.

O sr. Leocádio, seu pai, resolveu um dia mandá-lo viajar, para ver se ele assim conseguia melhorar.

Uma manhã Sebastião saiu com bastante dinheiro nas algibeiras, e começou a correr terras.

Depois de viajar algum tempo, foi ter a uma cidade onde estavam fazendo leilão de um pássaro que todo o mundo porfiava para ver se o arrematava.

Indagando Sebastião porque motivo naquela terra um passarinho custava tão caro, disseram-lhe que todo o mundo desejava possuir aquele, porque, quando ele cantava, todos que o ouviam adormeciam no mesmo instante.

Em vista disso o moço lançou elevada quantia e ficou com o pássaro. Prosseguindo na viagem foi ter a outra cidade, onde se estava vendendo um besouro que já estava por elevadíssimo preço.

Sebastião, aproximou-se de um dos homens que estavam no leilão e perguntou:

– Qual é a preciosidade desse besouro para se pedir tão caro por ele?!...

– É que ele invisivelmente faz tudo quanto a gente mandar, e é capaz de arrombar uma porta por mais forte que seja.

O moço arrematou o besouro e seguiu adiante.

Chegando a outro país, viu outro leilão, onde toda a gente oferecia grandes somas para ver se arrematava um ratinho.

Inquirindo da vantagem de semelhante animal, disseram-lhe que aquele rato tinha a particularidade de fazer tudo o que se lhe mandava, e, além disso, era capaz de furar paredes sobre paredes, sem ser pressentido.

Achando que esta terceira preciosidade poderia convir-lhe mais tarde o rapaz arrematou o ratinho e levou-o consigo.

Ao cabo de muitas semanas de jornada chegou por fim a um reino, onde viu imensa multidão fazendo caretas em frente à janela onde estava a princesa Carlota, filha do rei.

Perguntando o que significava aquele povo parado a fazer caretas, responderam-lhe que intentavam ver se conseguiam fazer a princesa rir, e explicaram-lhe que ela, desde que nascera, nunca rira, e que se casaria com ela aquele que o conseguisse, segundo a promessa do rei.

Sem se importar com aquela gente, Sebastião dirigiu-se para baixo das árvores, que ficavam em frente ao palácio, apeou-se do cavalo, e pendurou a gaiola do pássaro num galho.

Ia sentar-se, para descansar, quando se dirigiu para os animais, dizendo:

– Agora, mestre rato, vá buscar água para o cavalo, e tu, besouro, traze capim.

Os dois bichinhos foram fazer o que lhes mandava seu amo. Assim que a princesa viu o besouro trazendo capim para o cavalo, desandou em gostosa gargalhada.

As pessoas que se achavam debaixo da janela, começaram a dizer:

– Fui eu quem fez a princesa rir.

– Fui eu, dizia outro.

E cada qual se julgava ser o único causador de tão grande acontecimento, esperando em vista disso casar-se com a interessante Carlota, e vir a reinar por morte do velho monarca.

O rei, admirado, e ao mesmo tempo para não ter dúvidas, perguntou à filha quem tinha sido o autor daquele assombro.

– Foi aquele homem, disse a princesinha, que está sentado embaixo da árvore, com uma gaiola e outros bichos mais.

Sua majestade imediatamente ordenou que Sebastião viesse à sua presença e comunicou-lhe que tinha de casar com a princesa.

O moço ficou espantado, por não esperar por aquilo, e como sabia que a vontade do rei havia de ser cumprida, teve de se casar.

Na noite do casamento mostrou-se ele muito acanhado. A princesa desconfiando ser pouco caso que o rapaz lhe mostrava, no dia seguinte foi dizer ao rei que estava enganada que não fora aquele, e sim outro, o homem que a fizera rir.

Anulou-se o casamento com Sebastião, e fez-se com outro.

Na noite do casamento, o moço que tinha voltado para debaixo da árvore, calculando a hora em que os noivos deviam ir para o quarto, falou para o passarinho:

– Canta, rouxinol!...

O pássaro abriu o bico e todos no palácio caíram no sono.

O rapaz dirigiu-se ao besouro:

– Agora, entra tu no quarto dos noivos, desarruma tudo, e faze lá dentro uma mixórdia.

O besouro fez a sua obrigação melhor do que se pode imaginar.

Ao outro dia, quando a princesa viu aquela desordem, ficou muito contrariada, e foi-se queixar ao rei que aquele não era o homem que ela supunha, e que queria desmanchar o casamento.

O rei ficou aborrecido, e disse-lhe que esperasse mais algum dias para ver.

Na noite seguinte, depois de todos novamente dormirem com o canto do pássaro mavioso, Sebastião, mandou o rato desmanchar tudo quanto houvesse no quarto da princesa.

O rato ainda melhor que o besouro, pôs tudo numa desordem impossível.

Carlota, a princesa, ao acordar, vendo tudo aquilo foi dizer ao pai que não havia mais dúvida, que o seu primeiro marido era o verdadeiro.

Sebastião foi chamado, e ficaram os dois casados, tornando-se ele um moço desembaraçado, bem falante, conversador, espirituoso e inteligente. Desde esse dia, ambos viveram felicíssimos, e nunca mais se queixou a formosa princesa do pouco caso que lhe ligava seu marido.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

Izo Goldman (Trovas Humorísticas) - 2 -


A cozinha da maloca
é tão baixinha e apertada,
que, na panela, a pipoca,
não pula... fica sentada!!!
= = = = = = = = = = =
A mulher do carvoeiro
diz que o marido é uma... "graça".
pois faz fogo o dia inteiro
mas, de noite, é só fumaça…
= = = = = = = = = = =
A noiva, por ironia,
na mala só vai levar
a camisola-do-dia,
que à noite... nem vai usar...
= = = = = = = = = = =
Diz a vaga-lume ordeira
ao vaga-lume estouvado:
– Não me sentes na cadeira
que me queimas o estofado!...
= = = = = = = = = = =
Diz ela, sem esperança:
– Toda noite eu armo o... "bote",
mas, quando tento a... "cobrança",
meu marido... dá o calote!
= = = = = = = = = = =
Foi bem no peito a pedrada!!!
E o Manoel não gostou!!!
Vira pra trás, voz zangada,
e pergunta: "Quem jogou?...”
= = = = = = = = = = =
Grita o ajudante "fiel"
ao pintor, lá na calçada:
– Se segura no pincel
que eu vou precisar da escada!
= = = = = = = = = = =
Minha sogra está doente,
e o diabo apavorado!
Se ela morre de repente,
ele está desempregado!...
= = = = = = = = = = =
Não melindre os portugueses!
Conte as piadas assim:
– Era uma vez dois chineses...
Manoel e Joaquim...
= = = = = = = = = = =
O genro, com voz macia,
chama a sogra de... "Charada..."
Pensando: – Quem sabe um dia,
alguém "mata" a desgraçada!…
= = = = = = = = = = =
Pergunta o pai bigodudo,
com a voz meio engasgada:
– Quem foi que pôs cola-tudo
no pote da marmelada?…
= = = = = = = = = = =
"Pratos rápidos", dizia,
lá no boteco o cartaz;
e quando o prato saía,
o freguês corria atrás!!!
= = = = = = = = = = =
Pulando do nono andar,
o otimista diz a alguém
que, no quarto, o vê passar:
– Até agora... tudo bem!!!
= = = = = = = = = = =
Se a saudade fosse pão,
eu simplesmente poria
na porta do coração
esta placa:  "Padaria"!
= = = = = = = = = = =
Tomou Viagra... Fracasso...
Foi cobrar de quem vendeu:
– E agora, como é que eu faço???
– Enterra! Que já morreu!!!
= = = = = = = = = = =
Se a gente fosse dar crédito
ao que diz a maioria,
só de “autor de livro inédito"
tinha uns mil na Academia!...
= = = = = = = = = = =
Vai bem o namoro, até
que o pai dela chega, e então,       
o garotão dá no pé
e a moça fica... na mão…
= = = = = = = = = = =
Vai haver muito freguês
no dia em que alguém disser:
– ”Pague duas, leve três!!!”
e, o “produto”, for... mulher...
= = = = = = = = = = =
"Vem aí um furacão!!!,
avisa a rádio, – Cuidado!!!"
E o genro, por precaução,
põe a sogra... no telhado!!!
= = = = = = = = = = =
Vida de pobre é engraçada,     
ou é dura e divertida:
enquanto dança lambada,
leva “lambadas” da vida...

Fonte:
Izo Goldman. Trovas de quem ama a trova.

Marcelo Spalding (Cabra-cega)


O lápis encosta na folha branca, amassada, amarrotada, um tanto úmida, mas ainda branca. Lápis de grafite negro, de base comida, o negro do grafite deslizando na superfície machucada da folha. Ali caberiam sonhos, projetos, desejos. Maria poderia, com o negro do grafite e o branco da folha, amenizar o sofrimento da filha, dar-lhe conselhos, confessar seus crimes, protegê-la de seus próprios erros. Maria poderia apelar para algum antigo cliente, um vizinho, alguém haveria de acreditar nela e procurar um bom advogado, quem sabe até amenizar aquele sofrimento todo. Maria poderia contar de suas colegas de cela, as ameaças, as brigas, as noites insones à espera da primeira unhada, do primeiro abuso.

Mãe (estranho chamar você assim), prometi para o pai e para a vó que nunca ia te escrever, nunca mesmo. Mas desde que segurei o primeiro lápis e numa folha colorida escrevi meu nome, nosso nome, sempre esperei por este dia, o dia em que poderia escrever tudo o que ficou entalado aqui, tudo o que devia ter dito nas visitas que nunca te fiz. Por que, mãe, por quê? Porque se meter com essa gente, nos abandonar assim? O pai sofreu tanto! Tivemos de sair da cidade, disso você deve saber. E a cada um ou dois anos mudamos de lugar para não nos acharem. O pai tinha muito medo. Eu, nem tanto, perdi quem poderia ter me dado uma infância, você, e com isso perdi a vontade de acreditar, levantar, partir, voltar, esperar. Não espero mais nada, mãe, não espero te perdoar um dia, ouvir tuas razões, mas também não posso acreditar nas do pai. Não, não posso...

Apertando forte o grafite negro, Maria aos poucos faz uma linha grossa, marcada, passeia com o lápis de um lado para o outro. Ela não tem a pretensão de transformar aquelas linhas em palavras, nem traços, simplesmente rabisca e lembra o dia que marcou sua vida para sempre. O olhar da pequena, ainda com cinco aninhos, de mochila nas costas para mais um dia de aula, o latido estridente do cão tentando espantar os homens, o sumiço repentino do marido, para nunca mais. Poderia escrever tudo isso, mas Maria não teve a chance de aprender a escrever, nem tempo de aprender a ler.

Você não estava aqui pra ver meus primeiros cadernos, pra me ajudar na primeira menstruação nem pra conhecer meu primeiro namorado. Mas sabe, mãe, talvez tenha sido melhor a gente viver separada, assim eu vou pra sempre pensar que você é melhor do que realmente é. Posso imaginar que a prisão foi um erro, que você só piorou as coisas tentando fugir porque não aguentou ficar longe de mim, que o pai mentiu o tempo todo. Posso nos ver passeando de mãos dadas por um parque, você me ensinando o alfabeto, você me perguntando qual cor de batom eu prefiro. Nos sonhos a gente pode tanto...

Segura as páginas enviadas pela filha como se a pegasse no colo depois de anos. Pesam, e pesam mais que o bebê, mais que a menina deixada com o pai depois daquele dia. Preenche os espaços vazios das letras, faz um pingo no lugar do ponto do “i”, pinta com cuidado cada “o”, e finge que as letras são dela, as palavras são dela. Prefere assim, acredita que a sentença proferida por aquelas palavras seria mil vezes mais definitiva que a de qualquer juiz, tem certeza da condenação, da raiva que a menina sente pelos anos distantes. Aprendera a viver sem a filha, agora aprenderia a viver com suas folhas brancas manchadas pelo grafite negro, e as guardaria como tesouro.

O pai, você sabe, nunca foi um pai. E eu, nunca fui uma filha. Precisava de alguém para cuidar da casa, cozinhar, e outras coisas de homem. Homem é homem. Também nunca mais falava de você, aliás ele fala pouco, desconfiava dos vizinhos, da própria mãe, de mim. A vó morreu e não deixou saudades. Estivesse viva e eu não poderia escrever, não poderia te mandar essa carta como não pude mandar as outras tantas que escrevi desde os sete anos.

Um dia uma das colegas de cela perguntou o que estava escrito na carta. A resposta, simplória e inevitável, foi: não sei, não sei ler. A outra pegou o papel das mãos de Maria e com dificuldade leu a primeira linha, “mãe (estranho chamar você assim), prometi...”. Mas Maria gritava tanto, e tão alto, que logo vieram as monitoras e a confusão começou. Maria não queria que lessem a carta para ela, não queria saber o que estava escrito, tinha medo de cada uma daquelas letras, medo e fascínio. Talvez adivinhasse o final que a filha reservara para ambas.

Mas escrevo agora, mãe, para você saber que amanhã estaremos mais perto do que nunca. Sei que eu errei, sei que vou pagar caro, mas eu precisava me libertar, às vezes a prisão é nossa própria casa e as grades, nossos medos. Sempre tive medo de fugir e depois o pai me achar, me achar e depois me bater, me bater e depois... Sempre tive medo, e pensei em morrer, e pensei em matar. Agora, não mais. Agora está feito. E sei que mais cedo ou mais tarde, a gente vai se encontrar.    
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Marcelo Spalding é professor, escritor, editor e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.

Como professor, dirige a Metamorfose Cursos, que mantém a Oficina de Criação Literária Online e o Curso Livre de Formação de Escritores. Foi professor de Língua Portuguesa, Escrita Criativa, Jornalismo Cultural e Mídias Digitais na UniRitter, onde atuou como professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Letras, editor-executivo da Editora UniRitter e coordenador do Curso de Especialização em Produção e Revisão Textual. Como editor, dirige a Editora Metamorfose e já editou mais de 100 livros.

Como escritor, é autor dos livros 'Escrita Criativa para Iniciantes', 'As cinco pontas de uma estrela', 'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro', 'Minicontos', 'Mitos Virtuais' e 'Liga da literatura', além de organizador dos livros 'Contos de Som e Silêncio', 'Minicontos Coloridos', 'Metamorfoses', 'Diálogos', `Metamorfoses do Amor`, `Literaflix`, `Contos de Mochila`, entre outros. Recebeu três Prêmios AGES Livro do Ano e um Prêmio Açorianos de Literatura. É o idealizador do movimento Literatura Digital, tendo publicado dois projetos inéditos de literatura digital, 'Minicontos Coloridos' e o hiperconto 'Um Estudo em Vermelho'.


Fonte:
Site de Marcelo Spalding

Versejando 30


 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Versejando 29

 

Antônio Torres (Bodas e pêsames...)


Há duas situações sociais capazes de inspirar terror: a situação do noivo e a de representante da família de um defunto, logo depois da missa de sétimo dia. Um noivo, só por si, já é uma figura vagamente ridícula, pela maneira por que é pretendente: solicitando “a mão da noiva” por intermédio de terceiros; fazendo-lhe uma primeira visita, toda cheia de timidez e comoção, fiscalizado pelos pais ou pelos irmãos pequenos durante o tempo em que ele está na sala, no jardim, ou no alpendre com a prometida. Junte-se a esta carga de ridículo íntimo a sobrecarga das pompas mundanas de um casamento entre nós, e teremos a medida mais ou menos exata do constrangimento moral de um noivo, se ele é homem de sensibilidade. Eu não sei realmente como um homem não estoura de vexame, quando se mete com a noiva num landau enfeitado de flores de laranjeira e puxado por parelhas de cavalões brutais, de patas pintadas de branco e cheios de guizos e chocalhos e xiquexiques que fazem barulho de feira e recordam os palhaços que, no interior, saem à rua anunciando espetáculo no circo equestre. Casos desses justificam o suicídio...

Outra situação desesperadora é a de pessoas que convidam os amigos para ouvirem missa de sétimo dia por alma dos mortos queridos. Quer aqui no Rio, quer no interior, manda a etiqueta que, depois da missa, todos os convidados se aproximem das “pessoas da família” e as abracem. Começa, então, para cavalheiros e senhoras da família do defunto, um suplício de que não cogitou a Inquisição; abrir mecanicamente os braços, receber entre eles quem quer que se aproxime, apertar um pouco essa pessoa e dar-lhe nas costas as três palmadinhas do estilo, murmurando: “Muito obrigado”! Está bem visto que esses abraços nada significam de parte a parte, quanto à sinceridade; porque, em consciência, é impossível que quinhentas pessoas, sete dias depois da morte de um cidadão, de quem não são parentes, ainda estejam comovidas...

De maneira que essa etiqueta inquisitorial e ridícula só produz um efeito: ajuntar um tormento físico ao suplício moral da família. Eis por que compreendi perfeitamente a atitude de certa família de boa sociedade, que, convidando, há tempos, as suas relações para uma missa de sétimo dia, declarou nos convites que dispensava o abraço do costume; bastando que cada um dos assistentes deixasse o seu nome num livro adrede colocado à porta da igreja. Eis o que devia ser geralmente adotado; uma vez que o abraço é apenas a prova de que F. fez ato de presença, substitua-se o abraço pela assinatura num livro. Lucra a família, que se livra de uma tortura, e lucram os assistentes, que, depois de assinarem o nome no tal Registro de Pêsames, podem fugir tranquilamente à maçada de uma missa fúnebre.... Podemos ficar certos de uma coisa: é que, se se invertessem os papéis, quero dizer, se fôssemos nós que estivéssemos na cova, e se o defunto, que aliás não seria defunto, fosse à nossa missa de sétimo dia, faria o mesmo, isto é, assinava o nome na lista e fugia pela porta da sacristia...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Antônio dos Santos Torres cursou Seminário, ordenando-se padre em 1908. Em 1911, depois de atritos provocados por artigos que escreveu, colocando-se contra a catequese de índios por sacerdotes estrangeiros, abandona a batina. Passa, então, a colaborar ativamente na imprensa carioca (O País, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, Revista ABC e A Notícia) e paulista (A Gazeta), tornando-se um dos mais veementes polemistas da imprensa brasileira. Também atuou na carreira diplomática, servindo como cônsul em Londres, Berlim e Hamburgo.
Como polemista, seus alvos principais eram a colônia portuguesa, o jornalista Paulo Barreto, o poeta Hermes Fontes, entre outros. Em As razões da Inconfidência (1925), descreveu o quadro da exploração a que os portugueses submeteram o Brasil. Apesar de não ter participado do Modernismo, contribuiu para desmoralizar os parnasianos e passadistas. Segundo Alfredo Bosi, "foi temperamento virulento e polêmico, de fundo moralista, no mais amplo sentido da palavra: daí sua prosa de historiador e de cronista, que persegue, no fato diário, as contradições e fragilidades da sociedade carioca da época". Seus livros de maior sucesso foram: Verdades indiscretas (1920), Pasquinadas cariocas (1921), Prós e contras (1922), As razões da Inconfidência (1925), etc.


Fontes:
Antônio Torres. Uma antologia. RJ: Topbooks, 2002.
Uol Educação (biografia)

Contos e Lendas do Mundo (O Pássaro Dourado)


Era uma vez, há muito tempo, num reino distante, havia um rei que tinha um pomar muito belo nos fundos de seu castelo. Nesse pomar havia uma árvore que produzia maçãs de ouro muito deliciosas. Quando as maçãs amadureciam eram contadas uma a uma. Certo dia o rei notou que faltava uma maçã e então deu ordem para que todas as noites alguém ficasse vigiando a macieira.

Esse rei tinha três filhos, príncipes herdeiros, e então enviou o maior deles, ao cair da noite, a vigiar o pomar e a árvore; porém, antes da meia-noite o jovem não se conteve de sono e adormeceu profundamente. Na manhã seguinte, ao despertar, notou que faltava uma maçã. Na noite seguinte o rei enviou o filho do meio a vigiar o pomar. E da mesma forma este não teve melhor sorte que seu irmão mais velho. Adormeceu antes mesmo da meia-noite e, quando despertou na manhã seguinte, notou que faltava uma maçã na árvore.

Terceira noite. Chegou a vez do menor, do caçulinha cuidar do pomar. O rei, porém, não botava muita fé no menorzinho e achava que aconteceria o mesmo com ele, e que não teria melhor sorte que seus irmãos mais velhos, motivo pelo qual não queria deixá-lo ir. O jovem, porém, pediu, implorou e insistiu tanto que o seu pai acabou consentindo. Então o caçula postou-se debaixo da árvore, ficou alerta, em vigília, e não deixou que o sono o vencesse. Ficou de olhos bem abertos e vigiando a macieira.  

À meia-noite, como era noite enluarada, ele ouviu um grande barulho no ar e viu um grande pássaro voar ao redor da árvore - suas penas eram de ouro puro e brilhavam sob a luz do luar. O pássaro pousou na macieira e bicou uma maçã. Ao fazer isso o príncipe caçula pegou o estilingue e atirou-lhe uma pedra. O pássaro voou com a maçã no bico mas, atingido na cauda, deixou cair uma pena dourada.

Na manhã seguinte o caçula levantou-se, pegou a pena e levou-a ao rei, e contou-lhe o que vira durante a noite. O rei então reuniu os sábios do seu reino e todos foram unânimes em dizer que uma pena de ouro daquelas era raríssima, mais cara que todo o seu reino. Então o rei lhes disse:

"Se uma pena assim é tão valiosa, então de nada me adianta ter apenas uma pena dourada. Eu quero o pássaro todo, vivo."

No dia seguinte o pai chamou o filho mais velho e enviou-o em busca da ave. Ladino, pôs-se a caminho em busca do pássaro de ouro, acreditando que logo o acharia. Mal havia andado alguns quilômetros quando, ao entrar em uma floresta, viu uma raposinha à beira do caminho.

Preparou a espingarda e mirou. A pobre raposinha suplicou:

"Por favor, não me mate. Eu vou lhe dar um bom conselho: Você está em busca do pássaro dourado, não é mesmo?  Pois bem, hoje à tarde, antes mesmo do por do sol, você irá chegar a uma aldeiazinha. Logo na entrada, na primeira rua dessa aldeiazinha você verá duas pensões - uma diante da outra. Uma delas estará toda iluminada e com música alta. Lá só tem folia e algazarra. Não entre nessa não. Vá à outra, do outro lado da rua, mesmo que ela tenha um aspecto horrível – mas essa é boa."

E o príncipe pensou consigo:

"Só se eu fosse muito bobo pra seguir um conselho dessa raposa tola...”

E assim pensando, apertou o gatilho da espingarda mas errou o alvo e não acertou a raposinha que esticou a cauda e os pelos e correu para dentro da floresta. Então o príncipe continuou seu caminho. Ao cair da tarde, chegou a uma aldeiazinha onde havia duas pensões, uma em frente da outra.  Numa delas, só música, festa, folia e bagunça e, na outra, silêncio e um aspecto não muito agradável aos olhos.

E pensou consigo:

"Eu seria um tolo se eu me hospedasse naquela espelunca feia que mais parece uma favela e cemitério...”

E assim dizendo, entrou na casa onde imperava a bagunça e a folia. E viveu a vida comendo e bebendo, dançando e gastando tudo.  Esqueceu-se do pássaro, do seu pai e de tudo de bom que havia aprendido.

Como o tempo se passou e o filho mais velho não retornava, o pai enviou o filho do meio. Este se pôs a caminho em busca do pássaro dourado.  E, da mesma forma como acontecera com o seu irmão mais velho, encontrou a raposinha à beira do caminho, a qual deu-lhe conselhos. Porém ele não a ouviu. Chegando àquela aldeiazinha viu, pela janela da casa de folia, seu irmão bebendo e dançando. E lá dentro só algazarra. Seu irmão o chamou. Ele entrou e também levou a vida só no bem-bom.

Passou-se o tempo e, como nenhum dos dois irmãos retornava, o caçula quis partir em busca do pássaro de ouro, porém seu pai não botava fé nele e não queria deixá-lo partir. Então o rei, seu pai, falou-lhe:

"É inútil. Se seus irmãos não encontraram o pássaro dourado, você não terá melhor sorte... Você é muito pequeno... “

E tanto insistiu, e implorou o caçula, que o rei acabou consentindo na sua partida.

No caminho, logo na entrada da floresta, o príncipe-caçula encontrou a raposinha a qual disse-lhe que se não a matasse ela lhe daria bons conselhos. O caçula gostava de animais e adorou a raposinha, e disse-lhe:

"Fique tranquila, raposinha bonitinha, eu não vou causar-lhe mal algum... Eu não vou matar você não..."

E a raposinha disse-lhe:

"Meu nome é Sabedoria. Seguindo meus conselhos você não irá se arrepender... E para que você chegue mais depressa, suba às minhas costas."

Nem bem o jovem havia subido às costas da raposinha esta correu como um raio, passando sobre paus e pedras, até que chegaram àquela cidadezinha. O jovem príncipe desceu e, sem olhar para os lados, seguiu o bom conselho da raposinha. Pernoitou na casa feia, porém sossegada e limpa por dentro, e adormeceu tranquilamente.

Na manhã seguinte, ao prosseguir seu caminho, deparou-se novamente com a raposinha à beira do caminho, a qual lhe disse:

"Eu quero continuar lhe ajudando, aconselhando e dizendo o que você deve fazer. Vá sempre em frente, direto e reto, sem olhar para os lados, até que você irá chegar a um castelo diante do qual há um batalhão de soldados, deitados. Mas não se preocupe, pois todos eles estão dormindo e roncando. Passe por entre eles, entre no castelo e vá até o último quarto. Dentro desse quarto você irá encontrar o pássaro dourado dentro de uma gaiola velha, de madeira, pendurada na parede. Ao lado dessa gaiola de madeira estará uma outra gaiola, de ouro maciço, porém vazia; tome cuidado! Não pegue o pássaro de ouro e o coloque na gaiola dourada. Se você fizer isso algo de mal irá lhe acontecer...."

Após dizer-lhe essas palavras, a raposinha abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta correu tanto que até o vento zunia e assobiava.

Chegando ao castelo o caçula encontrou tudo conforme a raposinha lhe havia dito. O príncipe foi até o quarto onde o pássaro dourado estava dentro de uma gaiola de madeira. Notou que, ao lado, pendurado na parede, havia uma gaiola de ouro.

Então ele pensou:

“Até parece uma piada.... Já pensaram ! Eu levar um pássaro de ouro em uma simples gaiola de madeira e deixar aqui uma gaiola de ouro...??? Brincadeira, né???... . “

Assim pensando, abriu a gaiola de ouro e colocou o pássaro dourado nela.

No mesmo instante o pássaro dourado começou a piar e a grasnar muito forte e alto acordando todos os guardas do castelo, e fugiu da gaiola. Os guardas do castelo entraram correndo no quarto, prenderam o príncipe caçula e o lançaram na cadeia.

Na manhã seguinte ele foi levado a julgamento e condenado à morte.  Porém, o rei daquele castelo disse-lhe que poderia dar-lhe uma chance e salvar-lhe a vida se lhe trouxesse o cavalo de ouro e de crina branca, o qual era mais veloz que o vento e, ainda por cima, poderia ganhar de presente o pássaro e a gaiola de ouro.

Triste e desconsolado o príncipe pôs-se a caminho. Mas, onde encontrar o cavalo de ouro?  Pensando nisso ele viu sua amiga raposinha, à beira do caminho, a qual lhe disse:

"Viu só? Eu não lhe falei? Você não seguiu meus conselhos... Tudo isso lhe aconteceu porque você não deu ouvidos aos meus conselhos... Mas, coragem. Você terá outra chance. Eu vou lhe mostrar como conseguir o cavalo dourado. Você deve seguir direto e reto esse caminho, sem olhar para os lados nem para trás, até que você irá chegar a um castelo onde encontrará o cavalo dourado em um estábulo. Diante do estábulo você verá, deitados, muitos guardas, mas não se preocupe, pois eles estarão dormindo e roncando. Passe por entre eles, entre na estrebaria, pegue o cavalo e parta a galope. Mas, cuidado! Coloque sobre ele a sela feita de madeira e couro e não a feita de ouro que estará pendurado ao lado, senão algo de ruim irá lhe acontecer”.

Após dizer-lhe essas palavras, a raposinha abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta corria tanto que até o vento zunia e assobiava.  Chegando ao estábulo o caçula encontrou tudo conforme a raposinha lhe havia dito. Foi até onde o cavalo de ouro estava, com uma sela de madeira e couro.  Pendurada, ao lado, havia uma sela de ouro puro.

Então ele pensou:

“Até parece uma piada.... Já pensaram ! Eu levar um cavalo bonito e alazão como esse com uma simples sela de madeira e couro velho?... E deixar aqui uma sela novinha de ouro?   Brincadeira, né ?...”

Assim pensando, rechaçou a sela velha e colocou a de ouro no alazão. No mesmo instante o cavalo começou a relinchar tão alto e forte que acordou todos os guardas do castelo, os quais vieram e prenderam-no levando-o diante do rei.

Depois o jovem príncipe foi posto na cadeia.

Na manhã seguinte ele foi levado a julgamento e condenado à morte. O rei daquele castelo, porém, disse-lhe que poderia dar-lhe uma chance e salvar-lhe a vida se lhe trouxesse a princesa que morava no castelo de ouro. Se trouxesse a princesa poderia levar de presente o cavalo e a sela de ouro.

Muito triste e com o coração angustiado o jovem pôs-se a caminho em busca do castelo de ouro e da princesa que nele morava. Por sorte ele logo encontrou no caminho a fiel raposinha, que lhe disse:

"Eu deveria abandoná-lo à sua própria sorte, mas eu tenho pena de você e quero ajudá-lo mais uma vez. Siga esse caminho direto e reto, sem olhar para os lados nem para trás. Ao entardecer você irá chegar a um castelo dourado. Ao soar meia-noite, quando tudo estiver em silêncio, a princesa sairá para nadar na piscina. Então, assim que ela entrar na piscina, mergulhe também e beije-a. Então ela irá seguir você. Porém não a deixe despedir-se e beijar os pais, porque se você deixá-la fazer isso, algo muito ruim irá lhe acontecer."

Após dizer-lhe essas palavras, a raposinha abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta corria tanto que até o vento zunia e assobiava.

Quando o príncipe chegou ao castelo dourado encontrou tudo conforme a raposinha lhe havia dito. Esperou dar meia-noite e, quando tudo estava calmo e silencioso a jovem e bela princesa foi até a piscina, entrou, e logo a seguir o príncipe mergulhou e deu-lhe um beijo. Ela disse-lhe então que havia gostado dele, que o amava, e que gostaria de ir embora com ele, porém, antes teria que despedir-se de seus pais. Ele, lembrando-se dos conselhos da raposinha, disse que não. Mas ela tanto chorou e implorou e beijou-lhe tanto que ele acabou consentindo que ela se despedisse dos pais.

Logo que a jovem princesa entrou no quarto de seus pais, que estavam dormindo, beijou-os, e estes despertaram. Acordaram também todos que estavam dormindo no castelo. Houve uma gritaria e o jovem foi preso e colocado na cadeia.

 Na manhã seguinte o rei daquele castelo disse-lhe:

"Sua vida está por um fio, mas você poderá salvá-la se conseguir retirar esta montanha que está diante do meu castelo, montanha difícil de ser transposta e que me impede de ver o outro lado do meu reino. Mas veja bem, você tem que fazer isso no prazo de oito dias. Faça isso e você terá a mão de minha filha em casamento."

E o príncipe começou a cavar, a retirar terras, paus e pedras da base  da montanha que ficava diante do castelo. E trabalhou, e trabalhou e, no sétimo dia não havia feito muitos progressos, tinha retirado pouca terra. Cansado e exausto, caiu, desanimado e desesperançado, chorou.

Ao entardecer do sétimo dia apareceu novamente a raposinha sua fiel amiga e disse-lhe:

"Você não merece que eu o ajude pois foi desobediente e não seguiu meus conselhos. Última chance. Deite-se e durma ali na grama que eu vou fazer esse serviço em seu lugar”

E começou a cavar.

Na manhã do oitavo dia, quando o rei acordou e olhou pela janela, a montanha havia desaparecido. Por seu turno, feliz da vida, o jovem príncipe correu ao castelo e disse ao rei que agora este teria de cumprir a palavra e a promessa e dar-lhe a mão da princesa em casamento. Então, alegres e felizes, partiram ambos, príncipe e princesa, em uma carruagem muito bonita, puxada por seis cavalos brancos.

Não demorou muito, a raposinha apareceu-lhe no caminho e falou:

- "O melhor você já conseguiu, mas acontece que o cavalo dourado  também é da princesa do castelo de ouro..."

- "Mas como eu poderei pegá-lo?” - perguntou o príncipe.

- “Eu vou lhe explicar. Primeiramente você apresenta ao rei daquele castelo a princesa que ele lhe pediu. Então haverá uma grande alegria naquele castelo e irão lhe dar o cavalo dourado com a sela dourada. Despeça-se de todos no castelo, um por um, e deixe de despedir-se da princesa por último. E, quando você for abraçar a princesa, agarre-a, coloque-a no cavalo e parta a galope dali, pois ninguém conseguirá pegá-los porque o cavalo dourado é mais rápido que o vento."

E tudo aconteceu exatamente assim. Após pegar o cavalo, a sela e a princesa, partiu a galope. No caminho encontrou a raposinha que lhe disse:

"Agora irei ajudá-lo a conseguir o pássaro dourado. Quando você se aproximar do castelo onde o pássaro dourado vive, apeie do cavalo dourado e o conduza até o interior do castelo. Ao virem o cavalo dourado, haverá grande alegria naquele castelo e então irão lhe trazer o pássaro dourado na gaiola dourada. Quando você estiver com o pássaro e a gaiola na mão, monte no cavalo, pegue a princesa e parta dali a galope, pois ninguém conseguirá pegá-los porque o cavalo corre mais rápido que o vento."

E tudo aconteceu exatamente assim. Após pegar o cavalo, a sela, o pássaro dourado e a princesa, o príncipe partiu a galope.

No caminho encontrou a raposinha que lhe disse:

"Então, como você já conseguiu tudo que queria, agora é hora de você me recompensar pela ajuda que lhe prestei.”

"O que você quer em troca ? “ Perguntou o príncipe.

"Quando entrarmos na floresta, mate-me; decepe-me a cabeça e as patas.”

E o príncipe disse:

"Mas isso seria uma ingratidão de minha parte... Isso eu não farei.”

A raposinha falou:

"Então eu não poderei mais continuar do seu lado. Se você não fizer isso eu vou lhe abandonar; antes, porém, vou lhe dar mais um conselho: Não compre corpo de enforcado ou espancado e nem sente-se à beira de poço."

Após falar isso a raposinha entrou na floresta.

Então o jovem príncipe, pensou:

"Mas que bicho estranho essa raposinha... Tem cada mania estranha… Quem iria comprar carne enforcada? E também nunca me passou pela cabeça e nem tenho vontade alguma de sentar-me à borda de algum poço...."

E assim pensando, ao lado da jovem princesa, cavalgando, continuou em direção ao castelo de seu pai. No caminho teve que passar por aquela cidadezinha na qual haviam ficado na bagunça seus dois irmãos mais velhos. Havia ali um tumulto e barulheira infernais.

Perguntando sobre o que estava acontecendo, soube que dois rapazes seriam enforcados. Ao se aproximar mais, viu que eram seus dois irmãos que estavam sendo espancados e iriam ser enforcados porque haviam cometido muitos crimes naquele vilarejo e contraído muitas dívidas. Então ele perguntou ao carrasco se podia resgatá-los e libertá-los, ao que o carrasco respondeu:

"Pagando bem, que mal tem… "

O príncipe deu-lhes uma pena de ouro e seus irmãos foram libertados; ambos subiram em uma carruagem e se puseram em marcha rumo ao castelo do velho rei e pai.

Chegaram novamente à floresta onde haviam visto a raposinha pela primeira vez. Os irmãos mais velhos viram um poço e, como estavam com sede, disseram:

"Pare a carruagem, deixe-nos descansar um pouco aqui à beira desse poço e beber água... "

O jovem príncipe, bobinho, consentiu. Conversa vai, conversa vem, sentou-se à beira do poço e esqueceu-se dos conselhos da raposinha. Os seus dois irmãos então empurraram-no para dentro do poço, pegaram a jovem princesa, o cavalo, a sela, o pássaro dourado e a gaiola e partiram pra casa, em direção ao castelo. Lá chegando, disseram ao velho rei e pai:

"Pai, não trouxemos somente o pássaro dourado, mas também a gaiola dourada, o cavalo dourado, a sela dourada e a princesa do castelo de ouro."

E a alegria naquele castelo foi imensa. Muita festa.  

O cavalo, porém, não queria comer, o pássaro não queria cantar e a jovem princesa ficava sentada a um canto, triste e chorando.

Entrementes, ao cair no poço, o jovem príncipe não morrera. Por sorte o poço estava seco e ele caíra sobre um lodo macio, sem se machucar, porém não conseguia subir porque o poço era muito fundo. Gritando e pedindo por socorro, a raposinha, sua fiel amiga, não o abandonara, veio em seu socorro, estirou-lhe a cauda e retirou-o do fundo do poço e disse-lhe para não se esquecer dos seus conselhos, acrescentando:

"Eu não posso abandoná-lo, eu tenho que mostrar toda a verdade."

Após dizer-lhe essas palavras a raposinha disse-lhe que o levaria até o castelo de seu pai. Abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta corria tanto que até o vento zunia e assobiava.

A caminho do castelo a Sabedoria lhe dizia:  

"Você não está totalmente livre do perigo - seus irmãos não estão seguros de que você tenha morrido, por isso enviaram bandidos a lhe procurar pela floresta para então dar cabo de sua vida. Portanto, não se deixe notar.”

Então o príncipe encontrou um mendigo pelo caminho, vestido com farrapos, e com ele trocou as roupas, motivo pelo qual, ao chegar ao castelo de seu pai não foi reconhecido. Só que, lá dentro do castelo, nesse exato momento, o pássaro dourado começou a cantar, o cavalo começou a comer e a bela princesa parou de chorar. Notando a mudança repentina, o rei perguntou:

“O que significa isso???”

E a jovem princesa respondeu:

"Eu não sei... Eu estava tão triste e depressiva e de repente fiquei alegre... É como se meu verdadeiro noivo estivesse por perto... “

Apesar de os dois irmãos malvados terem-na ameaçado de morte, caso contasse ao rei a verdade, ela relatou ao rei o que de fato havia acontecido e o modo como os dois irmãos mais velhos procederam com o caçula.

O rei chamou e reuniu todas as pessoas de seu reino e, dentre elas estava o jovem príncipe em trajes de mendigo. A jovem princesa logo o reconheceu, beijou-o, lançou-se ao seu pescoço e o abraçou. Os irmãos malvados foram julgados e expulsos do reino. O jovem príncipe casou-se com a bela princesa e herdou todo o reino e os tesouros.

Mas, o que aconteceu com a raposinha?  

Certa vez, estando o príncipe e a princesa passeando pela floresta depararam-se com a raposinha, a qual lhe disse:

"Agora você está feliz e possui tudo que desejava. A minha sorte, porém ainda não está completa e está em suas mãos resolver meu problema."

E tanto ela insistiu que o jovem príncipe decepou-lhe as patinhas e a cabeça. Logo a seguir a raposinha transformou-se em um belo e forte rapaz. Para surpresa de todos, esse jovem era ninguém mais que o irmão da jovem princesa e que havia sido enfeitiçado por uma bruxa malvada e transformado em raposinha. Desfeito o encanto, voltaram para o castelo e viveram felizes para sempre. O príncipe, a bela princesa e a Sabedoria.

Fonte:
Blog da Professora Telma Régia Soares Bezerra = Contar e Encantar.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Versejando 28


 

Varal de Trovas 469

 


Arthur de Azevedo (Um capricho)


Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viúvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e sobretudo, muito caprichosa. Chamava-se Zulmira.

Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito.

Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai.

A moça exigiu dois dias para refletir.

Vencido o prazo, respondeu:

- Consinto, sob uma pequena condição.

- Qual?

- Que o seu nome seja impresso.

- Como?

- É um capricho.

- Ah!

- Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça.

- Mas isso é a coisa mais fácil...

- Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua.

Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou:

- Arranje-se!

E repetiu:

- É um capricho.

Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa.

Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome.

Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha.

Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência.

Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez!

"Consta-nos que o Revmo. Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte."

"O Ilmo. Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos."

"Tem chovido bastante estes últimos dias", etc.

Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu:

"O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria."

Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas...

Mas não foi publicada.
* * *

O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro.

- À Corte! À Corte! – dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas*, há de ser impresso o meu nome!

E veio para a Corte.

Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo:

- Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante.

- Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome?

- Epidauro Pamplona.

O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança.

- Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome.

Queria ver-se livre dele. No dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume.

Epidauro não desesperou.

Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes.

- Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona.

E foi levar cinco mil-réis à redação.

Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu:

Epifânio Peixoto 5$OOO

Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO.

Saiu:

"Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc.

Está fechada a subscrição."
* * *

Uma reflexão de Epidauro:

Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona...

E era.

Daí, talvez, o capricho de Zulmira.
* * *

Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente.

Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Não seja tolo."
* * *

Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar.

Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio.

Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido:

- O seu nome?

- Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira.

O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal:

- Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente – que cedeu a alguma rapaziada.

Ele quis protestar.

- Eu sei o que isso é! – atalhou o oficial. – De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos.

E noutro tom:

- Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias.

- Mas...

- Descanse, o seu nome não será publicado.

Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido.

O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia:

- Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho!
* * *

Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo!

A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome!
* * *

Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública.

O resultado seria publicado no dia seguinte.

E, com efeito, foi: "Houve um reprovado."

Era ele!

Tudo falhava.
* * *

Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo.

Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém.

A última tentativa não foi a menos original.

Epidauro lia sempre nos jornais:

"Durante a semana finda, S.M. o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc.

Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.

- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa Majestade, e saio.

Mandou fazer casaca, mas no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama.
* * *

Voltemos a Mar de Espanha:

Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas.

Entra um pajem.

Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio.

A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona.

– Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho.

É no obituário:

"Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. – Febre perniciosa."

O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta:

- Coitado! Foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
_____________________
* fás ou por nefas - por bem ou por mal.
  
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis. Publicado em 1889.