terça-feira, 25 de maio de 2021

Sammis Reachers (Samuel "Bronson")

Samuel hoje é um motorista pacato, cansado de encrencas, aguardando a chegada da aposentadoria. Mas nem sempre foi assim. Quando jovem, Sassá era "da pá virada", como ele mesmo gosta de dizer.

Tendo iniciado ainda jovem sua carreira de rodoviário na cidade do Rio, após certo tempo Sassá veio trabalhar em Niterói, na empresa Ingá.

Acostumado ao ritmo alucinado do Rio de Janeiro, do lado de cá, todos os dias antes de iniciar os trabalhos, nosso amigo procedia a um sinistro ritual, que trouxera da cidade vizinha: colocava sua grande pistola Beretta 9mm cromada sobre o banco, e sentava-se com a perna por cima. O eventual desconforto já nem o incomodava mais.

Dia vai, dia vem, lá está Samuel, dirigindo pela linha 49, a linha-mãe de todas as tretas. Em certa altura, Samuel percebe que dois elementos suspeitos, que entraram no veículo, "deram um voo", ou seja, passaram por baixo da roleta, que ficava na parte de trás do veículo. Sassá, tranquilo e 'maquinado', seguiu a tocar. Alguns minutos transcorridos, os elementos se levantaram e anunciaram o assalto. Enquanto um fazia a coleta dos passageiros, o outro fora para a dianteira, e, com uma mochila vestida para a frente, sobre o peito, segurava alguma coisa com a mão enfiada por detrás da mesma.

Nisso Samuel, sangue-frio, não aguenta e pergunta:

- Que foi, rapaz? Está com dor de barriga? Tá aí assustado segurando a barriga...

- Dor de barriga nada, mano! Num tá vendo que é um assalto?!

Nesse momento, um idoso que estava sentado naquele banquinho pequeno, à direita do motorista, não suportou a forte emoção e começou a urinar nas calças. Samuel também não aguentou a cena, e desatou a rir. O bandido achou ruim;

- Tá rindo do quê, ô mané? Fica na moral aí! - E nesse momento sacou a 'arma'; um velho revólver calibre 22, enferrujado e capenga. Bem, velho ou não, é sempre uma arma. Samuel ficou em silêncio.

Após a coleta dos passageiros, os dois indivíduos disseram:

- Pare ali, em frente àquela rua.

Samuel parou. Mas, antes de abrir a porta, sacou tranquilamente a sua enorme 'ferramenta', que brilhava como uma estrela, apontou-a para a cara dos dois elementos que, meio que distraídos observando a movimentação na rua, se amontoavam na escada prontos para descer, Sassá então falou, com uma calma perturbadora:

- Antes de descerem, coloquem por favor tudo o que roubaram aqui no capô. Ah, e coloquem também o brinquedinho de vocês. Gostei dele, tão pequenininho... Vou levar para minha filha brincar.

Pegos de surpresa, e vendo o sinistro sorriso e o frio brilho no olhar de Samuel, os vagabundos não tiveram alternativa senão depositar tudo no 'altar' e descer em silêncio.

O cobrador Dada, e os passageiros não acreditavam no que viam.

- Você é maluco, é doido! ~ diziam, assustados.

- Agora senhores passageiros, cada um venha aqui e veja na mochila deles o que é seu.

Mas a notícia chegou a seu Francisco, o dono da empresa, que, claro, convocou Samuel para prestar esclarecimentos. Aquele tipo de atitude imprudente não poderia se repetir.

- Ora seu Francisco, do que o senhor reclama? Me dou ao trabalho de defender o seu patrimônio e o de seus clientes, além da honra de sua empresa, e o senhor ainda acha ruim?

Francisco, percebendo que o jovem Sassá era caso perdido, mandou que    ele voltasse ao trabalho, recomendando que ele tomasse cuidado, e evitasse andar armado.

Mas e os bandidos, estará você se perguntado? Não voltaram em busca de vingança, ou ao menos para tentar novos assaltos? Sim. Certa feita, tarde da noite, estavam os mesmos trapalhões em outro ponto, e ao verem o veículo aproximando-se, deram sinal. Reconhecendo-os à distância, Samuel parou bem defronte a eles, abrindo a porta dianteira para que pudessem vê-lo. Apenas olhou em silêncio. Os rapazes, ao reconhecê-lo, gritaram;

- Pode ir tio, pode ir! O senhor é maluco, contigo nós não vamo não!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia 
dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Carolina Ramos (Santinha)

Faminto de asfalto o carro engolia quilômetros com voracidade insaciável. A vontade de chegar levava a moça a pisar firme, incentivando a gula da máquina. Sentiu a boca seca.

O último povoado ficara para trás, não muito longe. Arrependia-se de ter seguido as determinações da pressa, não parando sequer para um refrigerante. Partira para um fim de semana campestre, ameno e repousante, flecha disparada em rumo certo, sem direito a desvios, nem interrupções.

Com alívio, vislumbrou, à beira da estrada, a tabuleta convidativa. Sugestão, alentadora: - "Água potável". Diminuiu a marcha ao cruzar a ponte.

Deixou o carro no acostamento e embrenhou-se pela trilha estreita, em declive, chegando até a grota gorgolejante descoberta ao fundo, sob o frescor da ramagem. Dois ipês floridos denunciavam a chegada da primavera, atapetando o pequeno oásis com flores macias vestidas de ouro.

Perdida a pressa após matar a sede, a jovem deixou, deliciada, que a água fresca escorresse, por algum tempo, por entre os dedos, "inodora e sem sabor", como aprendera na escola, e, também, insubstituível! Que bebida, por mais saborosa e perfumada, pode substituir um gole dessa linfa pura, quando o demônio da sede ateia fogo aos sentidos?!

Ajoelhou-se novamente junto à fonte, mergulhando o rosto na concha das mãos, deleitada com a ablução refrescante. Voltou-se sem urgência e sem enxugar a face.

Foi quando descobriu a pequena cruz, adornada de flores, escondida sob a ponte. A curiosidade levou-a até lá.

Em letras rústicas, o nome - Rosalinda - atravessava os braços de madeira pintados de branco.

Uma figura agachada sob a ponte, até o momento não pressentida, movimentou-se na penumbra. Sobressaltada, a jovem recuou.

- Num carece tê medo, dona. Ninguém vai lhe molesta. Reze uma prece préla ...e num dexe de rezá uma prece prêle, tamém.

Encorajada pelo tom pacífico daquela estranha e soturna voz, a moça arriscou:

- Mas... quem é ela?… E ele, quem é?!

Um instante de silêncio, um suspiro... e a voz roufenha fez-se ouvir de novo:

- Ela é Rosalinda. Ele... é o disgraçado qui matô ela...aqui mesmo, nesse lugá onde tá a cruz! A história é cumprida... mas si a dona tivé tempo, eu posso contá.

Arrepiada até a alma, a moça levou a mão à boca, arrependida de ter feito as perguntas. Teve ímpetos de fugir, mas a curiosidade, maior que os temores, fez com que ali ficasse. Assentiu:

- Conte... Conte logo... Tenho um tempinho de sobra...

A voz do homem fez-se mais grave.. Sob o peso da emoção... ele sussurrou, como se falasse consigo mesmo:

- Rosalinda era uma rosa! Uma rosa linda de morrê...! E pur causa disso memo, é qui ela morreu! Tinha só quinze ano! Era um botão cumeçando a se abri! Os cabelo era longo... dessa cô aí dos da moça. Bem talhadinha! Pura que nem a água dessa grota! Tudo o mundo amava Rosalinda! Mas, tinha um disgraçado que amava ela mais qui tudo esse mundo junto! Era o Tião! Cabôco sacudido, já cuns trinta e pocos ano de idade.

Home feito, Tião sabia o qui quiria! Num era mau sujeito, não... mai era grossêro... i num sabia perdê!

Pra mor dos seus pecado, Tião garrô de querê Rosalinda! Querê cum locura... e de quarqué jeito! Ele sabia e seguia tudos passo que a minina dava! Chego inté a propô casamento préla. I ela se riu dele... de gargaiada! Isso doeu dimais no coração do coitado!

Tudos dia, Rosalinda, cada vez mais linda, vinha, muntada num burrico, buscá um garrafão de água nesse memo corguinho. Tião sabia disso! Naquele dia, ele chegô bem in antes dela... i ficô amoitado bem aí, onde ocê tá agora.

Presa da emoção, a moça ouvia sem coragem de interromper o narrador, que prosseguia, em voz arrastada:

– Daquela veiz, a minina chegô alegrinha!... Vinha cantando baxinho... sem suspeitá o que ia acuntecê. I aí mêmo, onde tá fincada essa cruiz, Tião matô ela! Matô in disispêro pruquê ela nun quis sê dele! Matô... i fugiu, cubrindo a cara cô' as mão! Adispois, foi preso... mó di pagá... i amargá seu pecado entre as grade!

Trêmula, a moça conscientizou-se de que estava bem no meio do palco onde uma tragédia, há algum tempo, se consumara entre dois protagonistas - um homem e uma mulher... E que essa tragédia poderia bem ser repetida, a qualquer momento!

Tentou amenizar a gravidade da situação, simulando calma:

- O senhor conhecia Rosalinda?

- Mai é craro que sim! Tudo o mundo cunhecia ela! Rosalinda era uma santinha! Pur isso, dona, é qui eu sempre trago frô aqui onde ela drumiu pra sempre!

O adeus apressado não deixava dúvidas quanto à urgência da moça em se retirar de cena. Assim mesmo, apesar da penumbra, pôde notar que o maltrapilho tinha aspecto desagradável, possuindo apenas um olho, o que lhe tomava a aparência ainda menos atrativa.

De volta à rodovia, a amena temperatura do ocaso devolveu-lhe parte da tranquilidade. Baixou a janela do carro, deixando que as mãos finas da brisa penteassem para trás seus cabelos castanhos... da cor dos de Rosalinda - estremeceu com a lembrança!

Pouco depois, chegava à fazenda, onde era esperada. Só então, entre perplexa e estarrecida, tomou conhecimento da história completa.

A tragédia acontecera há quase vinte anos, Rosalinda fora morta exatamente como lhe contara o homem amoitado sob a ponte. Era mesmo, Tião, o nome do assassino - Tião Caolho! Preso porque, na mão fechada da vítima, fora encontrado o seu olho, arrancado na luta pelas unhas e pelo desespero da moça!

Dizia-se que, depois de muitos anos de confinamento, Tião, há pouco, fora posto em liberdade. Todos os dias levava flores para a menina morta! Um pobre coitado roído pelo remorso! Espécie de alma penada, que nem mais chegava a assustar!

Ninguém sabia dizer onde... e nem do quê o pobre vivia! O mais certo é que morasse lá mesmo, debaixo daquela ponte. Ninguém o via pedir esmolas... ou qualquer ajuda. Tião só pedia flores e rezas! Flores para enfeitar a cruz de Rosalinda. Rezas para aguentar a consciência pesada... na esperança de um dia (quem sabe?) conseguir o perdão de Deus... e o da sua Santinha!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. 
conto integrante do capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais. p. 253.
Livro enviado pela autora.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) VII, motes e glosas


"É mais feliz a velhice
Que é por alguém amparada."


Distante da meninice,
Nos remansos da saudade,
Havendo fraternidade
É mais feliz a velhice;
Há mais encanto e meiguice
Sobre a fronte esbranquiçada...
Mais branda se torna a estrada
Que é pisada com amor,
Como dói menos a dor
Que é por alguém amparada.
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Esse pecado que eu fiz
Só Deus pode perdoar.


Até ficarei feliz
Se o padre, por caridade,
Perdoar pela metade
Esse pecado que eu fiz.
Pecar não foi o que eu quis,
Vou dizer aos pés do altar
Quando for me confessar
Ao capuchinho barbudo,
Porém pecado rabudo
Só Deus pode perdoar.
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Eu vim ao mundo chorando,
Mas meu destino é cantar.


Mamãe me disse que quando
A parteira entrou no quarto,
Sem prejudicar seu parto
Eu vim ao mundo chorando;
A vida foi-me ensinando
Sorrir mais do que chorar,
Pela sorte ou pelo azar,
Que não vale viver triste;
Por isso, a tristeza existe,
Mas meu destino é cantar.
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Não pode haver poesia
No cheiro da gasolina.


Se o poeta passa o dia
Nos manejos de uma bomba,
O sonho suspira e tomba,
Não pode haver poesia;
Tudo quanto a musa cria
Vai caindo na rotina...
A neurose da buzina
Do motorista insistente
Sufoca e mata o repente
No cheiro da gasolina!

(Ao poeta Manoel Juvêncio da Silva, 
que trabalhava num posto de gasolina, 
em Serra Negra do Norte)
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"Nosso velho burocrata
Diz não ter substituto."


O livro cheira a barata,
O balcão suja os clientes;
Cochila detrás das lentes
Nosso velho burocrata.
Falta o termo, esquece a data,
Mastiga mais um minuto...
Pra recolher o tributo,
O freguês fica maluco,
Mas, mesmo assim, o caduco
Diz não ter substituto.
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"O bolo tem quatro velas
Que o tempo não apagou."


Quatro luminosas telas,
Quatro cristais de magia,
Por quatro anos de poesia
O bolo tem quatro velas;
Quatro esperanças singelas,
Quatro dons que o céu guardou,
Quatro almas que Deus salvou
Com quatro messes divinas,
Quatro estrelas peregrinas
Que o tempo não apagou.
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“Quero que a morte retarde,
Mas, chegando, seja breve!"


Não sei bem se sou covarde,
Ou tenho alguma coragem,
Mas minha fatal viagem
Quero que a morte retarde;
Ela vindo sem alarde,
Juro não lhe fazer greve...
Que a terra me seja leve
E que a hora derradeira
Não me venha de carreira,
Mas, chegando, seja breve!
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"Se eu não matar a saudade
Ela finda me matando!"


A própria felicidade
Parece chegar ao fim;
Não sei que será de mim,
Se eu não matar a saudade!
Todo instante ela me invade,
Machucando, machucando!
Não sei, meu Deus, até quando
Terei essa dor no peito!
Eu já vi que não há jeito,
Ela finda me matando!

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Eduardo Affonso (A alma das palavras)

Sou aquele sujeito que lê dicionário como quem lê romance. Cada verbete é um personagem, uma subtrama.

Sou aquele cara estranho que não acredita na alma da Bíblia, mas nas almas do Aurélio, do Michaelis, do Houaiss.

Porque a estrutura de arame e madeira das esculturas de gesso, o elemento de sustentação em torno do qual se modelam as de barro é alma.

A parte correspondente à altura dos perfis metálicos é alma.

A peça de couro colocada entre a palmilha e a sola do calçado para reforçá-lo é alma.

A parte de um estopim que contém o núcleo de explosivo é alma.

Nos dicionários estão não somente os poemas que esperam para ser escritos, mas as palavras no palco onde podem ser outras, ser tantas.

Viúva é a última linha de um parágrafo impressa sozinha na parte superior de uma página. A primeira linha de um parágrafo impressa sozinha na parte inferior de uma página é uma linha órfã.

Adoçar é o ato de nivelar, aplainar, desbastar saliências ou alisar e aplainar madeiras.

Cada uma das folhas de uma dobradiça é uma asa.

O apêndice em forma de argola, ou semicircular, de certos utensílios, que serve para os segurá-los é asa.

São asas as duas pétalas laterais da flor das papilionáceas; o apêndice sedoso de certas sementes que permite ao vento disseminá-las.

É asa a ala lateral de um prédio, a nave lateral de uma igreja.

A viga onde engastam-se os degraus das escadas é banzo. A peça em pedra ou madeira, em balanço, que dá sustentação aos beirais e ao piso de sacadas ou balcões é um cachorro.

A pequena peça de madeira, em forma de cunha que evita o deslocamento das vigas ou dos sarrafos é uma espera. Num encaixe, a peça que traz uma saliência é macho. A que traz uma reentrância é fêmea.

No dicionário cada palavra –  macho, fêmea, cachorro, banzo, asa, viúva, órfã – tem uma multidão de almas à sua espera.

domingo, 23 de maio de 2021

Adega de Versos 23: Oscar Macedo

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 24

O estertor da madrugada borda de silêncios o amanhecer. Primeiros pios dos pássaros abrem a sinfonia matinal. A galharia em movimento - tico-ticos, canarinhos, os sabiás, as pombinhas caseiras . . .

No paroxismo da noite os encantos da madrugada são magias da natureza sem custo ou preço. Nas manhãzinhas chegam as ideias sonolentas, puras, fresquinhas.

Os acordes do novo dia nos põem a matutar na vida serena que a natura proporciona. Em tempos de fleuma, neuroses e individualidades exacerbadas, matutar é bom, é preciso, é saudável - respiramos a singeleza e a simplicidade de momentos pura inspiração.

Amanheceres, os gorjeios, a panda luz do sol, fazem parte do "salutaris" que nos sublima o ser e enleva a alma.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 26, 27 e 28


COLEGUISMO


Dois assaltantes assaltaram-se mutuamente e foram separados por um terceiro assaltante, que exigiu deles o produto dos dois assaltos. Como eram dois contra um, acabaram subjugando o terceiro e reclamaram não só a devolução do que lhe haviam cedido como ainda o que ele já trazia no bolso.

Foram atendidos, mas continuou a pendência, pois o assaltante n. 1 queria de volta o que perdera e o que ganhara, o n. 2 pretendia o mesmo, e o n. 3 tentou acalmá-los, ao mesmo tempo que pleiteava a devolução do seu e mais cinquenta por cento do que pertencia a cada. Esclareceu que, desistindo do total, contribuía para a união e harmonia da classe.

Os outros não se mostraram persuadidos e, à falta de tribunal especializado que dirimisse a questão, acordaram em submetê-la ao julgamento de um passante que, pelo aspecto, merecesse fé. O senhor bem vestido, de roupa escura, que se aproximou e ouviu a exposição do caso, abanou a cabeça lamentando:

— Não posso decidir contra colegas. Também sou assaltante.

E deu no pé, antes que os três lhe reclamassem o dele.
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DESTA ÁGUA NÃO BEBERÁS

— Por que Demétrio não se casa? Era indagação geral. Demétrio namorava, noivava, não casava. Sete dias antes do casamento, olha aí Demétrio fugindo. As versões eram múltiplas. A noiva é que o despedira. Tiveram uma briga feia. Gênios incompatíveis. Mal secreto. Intrigas.

Demétrio continuava a namorar, noivar e não casar. Não lhe faltavam noivas, pois era agradável, tinha status. Quanto mais se desmanchavam os projetos de casamento, mais apareciam mulheres dispostas ao desafio, exclamando:

— A mim ele não deixa na porta do mosteiro de São Bento.

Deixava. E quanto mais deixava, mais seu prestígio crescia. Concluiu-se que era sua maneira de afirmar-se.

Então Livaniuska decidiu enfrentá-lo. Noivou com ele e, uma semana antes do casamento, deu-lhe um fora solene. Demétrio quis reagir, explicou à repórter social que ele é que tomara a iniciativa, mas a mentira foi patente. Livaniuska foi contratada como atriz por uma emissora de tv e ficou célebre.

Daí por diante ela repetiu a carreira de Demétrio, noivando e desmanchando com inúmeros cavalheiros. No fim de cinco anos, Livaniuska e Demétrio casaram-se para sempre, como era fácil de prever mas ninguém previu.
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DIÁLOGO DAS NOTAS

A nota de cinco mil cruzeiros estava preocupada. Anunciaram para breve a sua entrada em circulação, e já passavam muitos sóis sem que a retirassem do almoxarifado. No almoxarifado, chega-lhe o zum-zum de que continuamente as coisas sobem de preço e as notas baixam de valor.

Embora os algarismos continuem os mesmos, cada dia significam uma realidade menor. Quando chegar minha vez de andar por aí — receia a nota de cinco mil — quanto valerão meus cinco mil?

Ao ser desenhada, sentira-se toda garbosa, cheia de minhocas na cabeça. Iria suplantar as coleguinhas, dando a vera ideia de grandeza. Mas até agora nada, e a nota inquieta-se:

— Quando vejo o cruzeiro metálico passar do tamanho de medalha de chocolate ao de botão de manga de camisa (e amanhã ele chegará talvez a semente de tangerina), sinto que meu futuro não será nada fagueiro. Vão-me reduzir às proporções de ficha de ônibus, feita de papel, e servirei para pagar a passagem de um coletivo circular. No máximo.

Estava nessa tristeza quando lhe apareceu, ainda em forma de neblina futura, o projeto da nota de cinco milhões, com efígie de cabeça para baixo, e sussurrou-lhe:

— Maninha, depois de mim virá a cédula de cinco trilhões, e assim sucessivamente, pois infinito é o número dos números. Até que um dia o homem se cansará de escrever no papel grandezas que são insignificâncias, e passará a escrever insignificâncias que valham grandezas. Já pressinto no horizonte maravilhosa nota zero, que nos resumirá a todas e alcançará o máximo valor metafísico.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 
Publicado em 1981.

Concurso de Trovas de São José dos Campos (Trovas Premiadas)


01. VETERANOS

 1º LUGAR
Na vivência da pobreza,
desafio que angustia,
é trabalhar e na mesa
pôr o pão de cada dia.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora – MG

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 2º LUGAR
Vive a vida sem viver
quem, covarde, der guarida
ao medo de se atrever
nos desafios da vida.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG

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3º LUGAR
Tal qual peões, no rodeio,
dominam touros bravios,
desde criança toureio
a vida e os seus desafios.
A. A. de Assis
Maringá – PR

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MENÇÃO HONROSA
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1.
Gira a vida, gira a roda,
nada para, nada estanca;
se uma conquista acomoda
um desafio alavanca.
Cipriano Ferreira Gomes
São Paulo – SP

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2.
Sob a lona o equilibrista
abre os braços sobre o fio...
Na vida, eu, malabarista,
enfrento igual desafio.
Romilton Faria
Juiz de Fora – MG

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3.
Meu destino eu mesmo crio,
longe da ambição sem fim.
É meu maior desafio
ser melhor... dentro de mim!
Renata Paccola
São Paulo – SP

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4.
Não maldiga o desafio     
se a jornada é longa e dura;
a glória é fruto macio,
carregado de doçura.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho – RO

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5.
Com certeza, o desafio
que, hoje, enfrenta uma criança
é crer num mundo vazio
de Fé... Amor e Esperança!
Carolina Ramos
Santos – SP

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MENÇÃO ESPECIAL
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1.
Enfrento calor e frio,
suporto sede e suor,
topo qualquer desafio
por uma vida melhor.
Julimar Andrade Vieira
Aracaju - SE

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2.
Enquanto os médicos agem,
num desafio por dia,
vestindo-se de coragem
enfrentam a pandemia.
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba – PR

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3.
Enquanto a fome persiste,
a vida está por um fio,
aos pobres a sina triste,
eis o enorme desafio.
Syomara Torres Guerra
Curitiba – PR

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4.
 Ao tomar por desafio
ser a potência absoluta,
governos, que desvario,
enfrentam Deus na disputa!
Janilce Simões
Campos dos Goitacazes – RJ

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5.
A vida, é indefinida,  
uma nau, liberta, ao rio,
sem rumo, audaz, aguerrida,
um eterno, desafio...
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley
Natal – RN

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TROVAS DESTAQUE

 1.  
Vida eterno desafio
exige força e clamor.
No momento de arrepio,
ciência, calma, muito amor.
Mercia Gama
Taubaté – SP

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2.
Da moléstia,  desafio,
da angústia,  grande clamor
e ao Poderoso confio
tristes lágrimas de dor.
Olga Maria Dias Ferreira
Florianópolis – SC

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3.
Pandemia enquanto passa,
lança a marca e o desvario:
e é preciso, ante a ameaça,
muito mais que um desafio.
Ari Santos de Campos
Balneário Camboriú – SC

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 4.
Em tempos de pandemia
viver é um desafio,
pois sentimos todo dia
nossa vida por um fio.
Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte – MG

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5.
Deus nos dá os desafios,
mas também a fé que lança...
Numa chuva de vazios,
sempre um pingo de esperança!
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo – SP

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02. NOVOS TROVADORES

1º LUGAR
Um desafio bem forte
a vida, agora, nos traz:
forjar, na dor, outra sorte,
com fé, buscar nova  paz.
Fernando Antônio Belino
Sete Lagoas – MG

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2º LUGAR
Desafio nos dá medo,           
mas aceite sem queixume,
pois escalar o rochedo
é que faz chegar ao cume!
Carla Alves da Silva
Curitiba – PR

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3º LUGAR
Viver, uma ato bravio,
cada novo amanhecer,
mais um grande desafio,
outra luta pra vencer.
Abelardo Nogueira
Aracoiaba – CE

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 MENÇÃO HONROSA
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01.
O meu grande desafio
é conservar a esperança
de viver, “horas a fio”,
totalmente em segurança.
Ana Maria Nascimento
Aracoiaba – CE

 
Fonte:
Resultado enviado por A. A. de Assis

Arthur de Azevedo (O Jaó)

Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.

- Pode ser - disse eu - mas devo confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer dizer que não sejam também o produto do que se vê e observa na vida real, ou o renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.

- Ora! Eu sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou contá-la enquanto minha mulher apronta o chá!

- Conta, que ele há de gostar - disse D. Emília, desaparecendo da sala.

- Vamos à história do jaó! - exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da casa.

A cena passa-se em Cataguases, no Estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.

Houve um movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.

- A um quarto de légua da localidade, havia "um situante", como lá dizem, homem já maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha.

Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos negros, e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais não era estúpida nem de todo ignorante: fazia as quatro operações; cosia admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada.

Era agente da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.

Um dia em que as suas diligências cinegéticas o levaram lá para as bandas do sitio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.

Pelos modos, o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam, mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes indígenas.

Durante três dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar.

Afinal, chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi.

Amaram-se, amaram-se deveras. Entretanto, aquelas entrevistas na estrada eram perigosas - podia passar alguém...

- Ficaremos à vontade - disse ela com uma adorável confiança no seu amado - à sombra de uma caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho e vai-se dar mesmo lá.

- E teu pai?

- Meu pai está da outra banda, fazendo o roçado. Só vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter com você.

- Qual há de ser o sinal?

- Você é caçador; deve saber piar.

- Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...

- Jaó, prefiro jaó, é triste, mas é bonito.

O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade. O pio não podia ser mais perfeito.

No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi.

- Hoje nada de sol! - disse ele - tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se me não engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.

- Ora papai, isso agora é tolice!

- Será, mas não vou ao roçado. Nada, que teu avô não faz outro!

E dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou da parede a sua espingarda, dizendo:

- Para não ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeita, que está criando ferrugem.

E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpá-la.

O tiro foi um alívio para Mimi - em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do pai era um perigo iminente para o namorado.

Mas - oh! contrariedade! - concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda.

No momento de pendurá-la, ouviu-se o pio do jaó.

- Ouviste, Mimi? - perguntou Serrano empalidecendo de súbito, com a arma ainda na mão. Ouviste?

- Não, senhor! Que foi?

- O jaó!

- Não ouvi nada. Vocem'cê enganou-se.

- Não! Estes ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...

- Que agouro, que nada!

- Há dois anos piou um jaó no sitio do João Bernardo... Lembras-te?... E três dias depois o João Bernardo esticou a canela...

- Coincidência.

- Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!

Palavras não eram ditas, ouviu-se de novo o jaó.

Serrano estremeceu dos pés à cabeça:

- Ouviste agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!

- Ora, papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem'cê pensa!

- Pois sim! Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.

O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço:

- Não! Não faça isso, papai! Pelo bem que me quer!

E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda a força dos seus pulmões:

- Jaó! Jaó! Vai te embora, que papai quer te matar!

- Espera que ele te entenda?

E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira.

Mimi continuou a gritar:

- Jaó! Meu jaózinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...

O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.

- Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu...

E pendurou tranquilamente a espingarda.

O Novais calou-se.

- Está terminado o conto? - perguntei depois de uma pausa.

- Está. Não o achas interessante?

- Não é mau, mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?

- Aqui o tens na tua presença, meu amigo. O jaó era eu.

- E a Mimi, esta sua criada - acrescentou D. Emília, que voltava com a bandeja do chá.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

sábado, 22 de maio de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 19: Chutando cacos

ANAXIMANDRO GOROROBA, logo cedo, mal tendo tempo de colocar os pés fora do portão, se encontra com seu vizinho de rua, e de casa, o Pelicano Empalhado. Antes de mandar um ‘bom dia,’ ou um ‘como vai’, opta por perguntar, ao amigo, pela filha dele, a linda e encantadora Juldrene Cata Piolhos.

— E ai, Pelicano Empalhado, como está a nossa menina Juldrene Cata Piolhos? Desculpe a curiosidade. Sei que estou sendo meio indiscreto. Soube, pela minha esposa Gasparina, que ela, finalmente, se livrou daquela mania estranha de querer namorar todos os rapazes aqui do nosso bairro. Procede?

— Verdade, meu caro Anaximandro. A pobrezinha, agora, está completamente liberta...

— Que ótimo. Folgo em saber... O que ela está fazendo? A Gasparina me falou também que voltou a trabalhar e a estudar?

— Sim. Havia trancado a matrícula mas orei por ela, pedi tanto, coloquei os joelhos no chão, umas oito vezes por dia. Deus ouviu as minhas preces. A preciosa voltou às funções de supervisora na fábrica de mordaças para bocas de fofoqueiros e retornou à faculdade de odontologia.

— Estou feliz em saber. De verdade. Percebo, olhando para seu rosto, que está feliz. Acertei?

— Sinceramente?

— Claro!

— Não, não estou...

— Posso saber o motivo?

— Ela parou, de fato, com aquela loucura de namorar a galera aqui da nossa rua, inclusive o seu querido filho garanhão, o Enantato Camomilo...

— Eu sei. Acredite, não é de hoje, venho dando conselhos à ele. Domingo tivemos uma conversa séria e fiz questão de deixar pontilhado o seguinte: Enantato, para com esta ideia. Tome vergonha, nesta sua fuça descarada. Não pode ver um rabo de saia... Fuja da Juldrene Cata Piolhos. Ela não é a moça certa para você construir uma família. Lembra, ela é uma...

Pelicano Empalhado muda as feições. Fecha o cenho. Está literalmente carrancudo e pê da vida.

— Continue, Anaximandro... Ela o quê?

— Nada, meu amigo. Esquece...

— Começou, termine. Ela o quê?

O pai de Enantato Camomilo, como se costuma dizer, se vê enfiado numa tremenda saia justa. Pelicano Empalhado, por seu turno, parece fora de si.

— Nada. Eu não disse nem pretendia falar coisa alguma.

— Seu mentiroso. Você ia vomitar algo a respeito da minha filha. Vamos, complete. Juldrene Cata Piolho é uma...? Vamos... desembucha... Seja macho igual a sua esposa Gasparina....

— Qué isto? Papo mais louco! Esquece. Deu branco. Não ia dizer nada. Estou feliz, repito, por saber que ela parou de pular de galho em galho. Mais hoje, mais amanhã, acabaria prenha, buchuda, em decorrência de uma gravidez indesejada. Ela é tão nova...

— Agora é meio tarde, Anaximandro. Ela engravidou. E não foi por falta de aviso, lhe asseguro. Eu cansei de falar: filha, pare com isto, você é nova, tem uma vida toda pela frente... Se quer namorar, arranje um rapaz direito e decente, trabalhador, não um bunda mole que vive surfando de domingo a domingo e às custas dos pais...

— Se fosse meu filho, juro que pegava o cabra de jeito e metia porrada. E diria: eu não lhe avisei, seu filho de uma égua? Está vendo? Tanto fez, tanto aprontou, que embarrigou aquela sirigaita mal acabada. Não se cuidou... Bem feito, agora pega aquela cadela sarnenta e suma da minha frente... Pelicano Empalhado, desculpe, me empolguei. Sabe ao menos, quem é o pai da cria?

— É evidente que sei.

— Dos males o pior. Corre atrás do infeliz e faça o miserável assumir a situação. Virou os olhinhos, balançou os esqueletos, fez o bolo, agora precisa ajudar a partir e comer...

— Seguirei seu conselho, Anaximandro. E farei isto ao pé da letra. O maldito comerá o bolo que ajudou a fazer... pedacinho por pedacinho...

— Assim é que se fala, meu amigo. Obrigue o desgraçado a reparar o erro.

— Farei isto, pode estar certo. E digo mais: se ele não me der ouvidos, poderá pedir para os pais irem encomendando o caixão...

— E você sabe, então, quem é o amaldiçoado, Pelicano Empalhado?

— Não só sei quem é o famigerado, como terei um papo de homem pra homem bem bacana com ele!

— Assim é que se fala, meu amigo. O negócio é botar ordem no galinheiro. Mas agora se abre. Quem é? Me fale que lhe ajudo a encostar o sujeito contra a parede. E, ainda, de contrapeso, lhe ajudo a meter o ferro nele. Ah... se um pilantra faz isto com uma filha minha...

— Você disse bem. Vou precisar, realmente, que me ajude. Assim, nem precisei pedir SOS...

— Sou seu amigo, Pelicano Empalhado. Você sabe melhor que ninguém. Nossa amizade não nasceu numa mesa de botequim. Vamos, meu velho, diz ai: quem emprenhou a pobrezinha da Juldrene Cata Piolhos?

Pelicano Empalhado, muito sério e, a ponto de pular no gogó do pai do miserável que desonrara a sua única herdeira, se segura, engolindo o ódio que sente:

— O vadio malandrino do Enantato Camomilo, seu filho...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Varal de Trovas 502

 


Rubem Braga (Sizenando, a vida é triste)

Está provado que acordar mais cedo faz o dia maior. Esta frase não é minha, e desgraçadamente não consegui saber o nome de seu autor, pois acordei muito cedo, mas não bastante cedo; quando liguei o rádio às 6:10 a aula já tinha começado; ouvi o programa até o fim, mas não fiquei sabendo o nome do professor. “La verando estas vera jardeno, plena de floroi.” Nunca estudei esperanto, mas suponho que a varanda ou o verão está com muitas flores no jardim; de qualquer modo é uma boa notícia, algo de construtivo.

Confesso que a certa altura mudei de estação; sou um espírito inquieto. A estação logo à direita dava telegramas de Argel, crise na França; fui mais adiante, sintonizei um bolero; tentei ainda outra, dizia anúncios; voltei para o meu jardim florido em esperanto.

O professor estava agora respondendo cartas de ouvintes. O Sr. Sizenando Mendes Ferreira, de Iporá, Goiás, escrevera dizendo que achara suas aulas muito interessantes e queria se inscrever entre seus alunos.

Sou um homem do interior, tenho uma certa emoção do interior, às vezes penso que eu merecia ser goiano. A manhã estava escura e chuvosa em Ipanema; e me comoveu saber que naquele instante mesmo, a um mundo de remotas léguas, no interior de Goiás, havia um Sizenando, brasileiro como eu, aprendendo que o jardeno está plena de floroi — e talvez escrevendo isso em um caderno.

Não importa que neste momento haja milhões de brasileiros dormindo insensatamente, enquanto outros milhões tomam café ou banho de chuveiro ou já marchem para o trabalho, ou que minha amada Joana esteja neste minuto saindo do Sacha’s e entrando no carro daquele stompanato de Botafogo. Eu e Sizenando cultivamos o jardim da cultura, plena de floroi; nós somos, de certo modo, a elite do Brasil; amanhecemos em flor.

Então o professor, talvez estimulado pela atenção do ouvinte goiano, fez uma pequena dissertação sobre a utilidade do esperanto e também sobre a vantagem de acordar cedo. Está provado que acordar mais cedo faz o dia maior. Não será uma frase muito sutil, mas é tão pura e bem-intencionada que poderia figurar no decálogo do escoteiro. No fundo deve haver alguma ligação entre o escotismo, o esperanto e o acordar cedo. Eis uma falha de minha vida; nunca fui escoteiro; agora é tarde para quebrar coco na ladeira, mas talvez ainda seja tempo de aprender um pouco de esperanto; eu e Sizenando.

“Tenho um amigo” — dizia o professor — “que me confessou que nunca ouvira o meu programa, pois dorme até tarde. Pois bem. Ele ontem acordou cedo e ouviu o meu programa. Disse-me que passou o dia inteiro com uma excelente disposição, achou o dia maior e mais útil, ficou realmente satisfeito.”

O próprio professor estava satisfeito com a declaração de seu amigo; sentia-se isso em sua voz. Murmurei para mim mesmo que o golpe é este: todo dia acordar cedo, ouvir minha aula de esperanto e depois se houver alguma aula de ginástica pelas imediações topar também, mens sana in corpore sano; no fim de um mês os amigos vão ficar espantados, como o Braga está bem! Este pensamento me reconfortou; estendi a mão para pegar um cigarro na mesinha de cabeceira, mas fumei com um certo remorso. No fundo o esperanto deve ser contra o tabagismo, assim como é favorável ao escotismo.

Mi estas brunas.” Isto quer dizer: eu sou moreno. Mi estas brunas, ó filhas de Jerusalém, dizia a Sulamita. A esta hora Joana deve estar no carro daquele palhaço, toda aconchegada a ele, meio tonta de uísque, vai para o apartamento dele — um imbecil que não sabe uma só palavra de esperanto! A vida é triste, Sizenando.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Goulart Gomes (Poetrix) III

AGNOSTRIX


os deuses partiram
disse o mestre
mas os mortais não precisam saber
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CORDA BAMBA

anti-herói risível
vivo apenas
a perspectiva do possível
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ENCEGAR

não nasceu cego
a névoa foi se instalando
devagar
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ETERNO RETORNO

uma hora a gente cansa
deixa de ser velho
e volta a ser criança
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GREVE DOS PALHAÇOS

todos de caras pintadas
saíram em passeata
pelo aumento da graça
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(IN)FERNANDO

como Pessoa
arrumo meus versos
também sei que estou morrendo
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MINI-ORAÇÃO MATINAL

Nossa Senhora dos Desvalidos
livrai-nos de todo o Mal:
hospital, delegacia e tribunal
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POEIRA

uns, pretos
outros, brancos
até virarmos cinzas
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POR ESSES TEMPOS


a vida tem sido breve
seja leve
se não vai lhe ferir, releve
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PRETÉRITO MAIS QUE PERFEITO

passa o carrinho
sejam doces ou salgadas
pipocam saudades
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RETRATO DO POETA QUE CLAMA NO DESERTO

lanço garrafas
lanço palavras
se não há mares, in vento
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SONÂMBULO

dois períodos de sono
entre eles
sonho
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SURDO, MUDO E CEGO
 
sem dar ouvidos aos alertas
minha voz não se cala
poeta e cego, feito homero
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TEMOR E TREMOR
 
nada que é conhecido me assusta
cruzo os dedos
para outros medos

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 18: Coice de mula

O GAROTO CHEGA NA SALA, se vira para o pai que está com os olhos grudados na televisão assistindo a decisão do campeonato de seu time preferido. Sem se importar com a impaciência do torcedor inveterado — que parece à beira de um ataque de nervos — o inocente manda a pergunta:

— Pai, ô pai, por que o pato não fica molhado quando nada?

Para se livrar do filho pentelho o homem responde ligeiro com a primeira ideia descabida que lhe acode à cabeça:

— Porque usa toalha.

Mas o moleque quer mais. Insiste:

— Iguais as que mamãe põe no banheiro quando o senhor entra para tomar banho?

— Sim. Agora vá brincar lá fora, filho. Cadê seus coleguinhas, o Ricardo e o Amauri?

O pirralho não atenta para esse fato de ir lá fora brincar com os amiguinhos. Na verdade, parece insatisfeito. De fato, está:

— Pai, ô pai, elas são de algodão ou de linho?

— O quê?  Cai fora, imbecil, dá um tempo!...

— Eu só queria saber se elas são de algodão ou de linho para falar para os meus amigos...

— Tá bom, porcaria. São de algodão.

— É por isso, então, que todos os patos são brancos? Por que são de algodão?

— Os patos não são de algodão.

— O senhor acabou de falar...

— Eu me referia às toalhas... não aos bichos em si.

O menino fica um tempo pensativo e logo a seguir volta à carga. Desembucha:

— Pai, ô pai, o pato é um bicho ou uma ave?

— O quê? Quem é bicho?!

— Perguntei se o pato...

— Depois, filho. Vá brincar. Deixa o jogo acabar. Tá quase no final do segundo tempo...

—  Mas eu...

— Tá. É ave.

O moleque sai correndo em direção à porta da rua. O sujeito respira, aliviado. Menos de dois segundos, contudo, retorna. E prossegue, curioso:

— Pai, ô pai...

O pai, entretanto, está pisando em ovos, pê da vida. É até capaz de estrangular alguém. Roe as unhas, em atitude desesperada.

— Vai, Ronaldinho —, grita gesticulando as mãos —, seu...   seu desgraçado, não perde essa... que filho de uma égua, chuta essa bola...

— Pai, ô pai...

Colérico, soltando fogo pelas ventas, o cidadão se volta para o pequeno. Seus olhos se cruzam por um instante apenas.

— Vai brincar... vai brincar.

— Eu estou brincando...

— E então? O que foi agora? Por que diabo não me deixa em paz?

— Eu queria saber se...

— Depois, depois. Agora não... Vai ver se estou na esquina...

— Mas, ô pai...

— Tá. Fala rápido, infeliz: o que é desta vez?

— Peixe bebe água?

Ronaldinho chuta para gol. O goleiro, atento, pula no ar. Por instantes voa, voa como se tivesse asas. Se a bola entrar, o time ganha, do contrário, vai para as cucuias. Além de perder o campeonato ainda por cima será rebaixado.

— Entra, entra, entra...

Por azar, a bola é agarrada na hora agá. O goleiro se abraça a ela, e, ao fazê-lo cai para o chão e se estrebucha no gramado em piruetas grotescas como se ensaiasse uma dança esquisita.

— Pai, ô pai...

A fúria do perdedor é tanta, mas tanta, que até esquece que é o pai. Desesperado e suando em bicas, pior que moringa nova, gira, então, sobre o próprio corpo e, envia um tabefe tão grande e forte que pega, em cheio, no rosto do filho. O coitadinho, igualmente ao goleiro, é atirado de cara contra os ladrilhos da sala. O sangue jorra de sua boca, com abundância, diante da força vigorosa, como se tivesse sido atropelado por um caminhão desgovernado em alta velocidade.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (Canaã, de Graça Aranha)

José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís do Maranhão a 21/06/1848, tendo sido juiz e diplomata. Uma influência intelectual decisiva em sua obra é a de Tobias Barreto, que conheceu em 1882 enquanto cursava Direito no Recife. Formou-se em direito seis anos depois e mais quatro anos após exerceu o caso de juiz em Porto do Cachoeiro/ES, onde tomou conhecimento dos fatos que inspiraram Canaã. Seu primeiro trabalho foi o prefácio de um livro em 1894, quando já morava no Rio de Janeiro. Dois anos depois, em 1896, participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, mesmo nunca tendo publicado nenhuma obra literária; tal fato só foi possível porque seu amigo Joaquim Nabuco lhe foi 'fiador literário' até 1902, ano da publicação de Canaã. Partiu em 1899 com o mesmo Nabuco para Europa como diplomata. Em 1911 sua peça Malazarte foi encenada com sucesso em Paris. Aposentou-se da diplomacia em 1921, participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e abandonou a ABL em 1924. Não é considerado modernista porque sua única obra 'modernista', A viagem maravilhosa, de 1939, é feita em um estilo extremamente artificial. Morreu logo antes de publicar sua autobiografia, “O meu próprio romance”, em 1931. Sua única obra de significado verdadeiro é Canaã.

RESUMO:

Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado.

O imigrante observa a paisagem e, ao passar por uma fazenda abandonada, entregue aos poucos e pobres escravos, nota o ritmo daquela gente desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos, desde fazenda até instrumentos agrícolas.

É apresentado a outro imigrante, Von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.

Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, 'a terra prometida'. Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no Brasil, porque o estava forçando a se casar com a filha de um general, amigo do pai. Preferiu começar vida nova, longe dos deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida mais independente, em que pudesse dar vazão à sua individualidade.

À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.

Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.

Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível fixar, pelo vestuário, a época de cada imigração.

Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado de Jacob Muller.

Ouvem música e veem o povo dançando. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio, devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil.

Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Muller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica.

Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa.

A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes.

Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pessoas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos os que estiverem na mesma situação de Franz.

O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que seu estado se revele, por isso aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera.

Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Vendo-a mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe com um pedaço de madeira.

Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.

Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão.

Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas tratada com desdém.

Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal, começa a sentir as dores do parto.

Temendo retornar a casa e ser maltratada, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta a casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro.

A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos representantes da Justiça que amedrontaram e extorquiram os colonos, durante o arrolamento de bens.

Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado.

Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria.

Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e seu patriotismo.

A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um 'misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral'. Milkau crê que se pode chegar a algo melhor.

Entretanto, à medida que acompanha o definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza.

Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, 'a terra prometida', onde os homens vivem em harmonia.

ANÁLISE DA OBRA

Tendo sido lançado no mesmo ano de Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), poderíamos dizer que Canaã é o primeiro romance ideológico brasileiro em que se discute o destino histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, Canaã representou uma ponte entre as correntes filosóficas e estéticas do final do século XIX (Realismo, Naturalismo, Simbolismo) e a revolução modernista da segunda década do século XX.

O pólo central de Canaã são os debates entre dois colonos alemães que se estabelecem no Espírito Santo: Milkau e Lentz.

O personagem Milkau

Milkau representa o otimismo, a confiança no futuro do Brasil e na força regeneradora do amor universal. A maneira de Tolstói, Milkau prega a integração harmônica de todos os povos na natureza-mãe, revelando um evolucionismo humanitário. É um humanista saudoso do gênio livre e individualista da Alemanha. Por isso deplora o desmoronamento da tradição da cidade brasileira invadida por colônias estrangeiras e sonha com a “ligação do homem ao homem” e com a realização da liberdade.

Milkau não se limita à defesa de ideias abstratas. Seu humanismo desdobra-se em ação quando passa a proteger Maria, jovem colona, expulsa pelos patrões quando estes a sabem grávida, vindo a dar à luz em trágica situação.

Após salvar Maria, libertando-a do cárcere onde estava por ter sido acusada de matar o próprio filho (na verdade Maria tem o filho devorado por uma vara de porcos), Milkau foge, juntamente com Maria, em direção a outros horizontes, numa “corrida no Infinito”, em busca da luminosa Canaã, a Terra Prometida, “onde as feras não fossem homens”, onde a vida não seja uma competição de ódios mas uma conquista de amor.

Visto desta maneira, Canaã é o poema das raças novas, da miscigenação das raças, de onde nascerá a perfeita harmonia universal.

O personagem Lentz

Lentz é um adepto das teorias racistas. Para ele, os brasileiros, por serem mestiços, estão condenados à dominação por parte de raças superiores. Lentz profetiza a vitória dos arianos, enérgicos e dominadores, sobre o brasileiro fraco e indolente. Suas ideias deixam entrever a filosofia de Nietzsche e o evolucionismo de Darwin.

Para Lentz, renovar o Brasil é cobri-lo com os corpos humanos da raça superior, demonstração representativa do colonialismo agressivo, ou seja, imperialismo, calorosamente discutido com alusões estéticas.

A lei do amor x A lei da força

Assim, podemos ver que Milkau e Lentz representam duas ideologias postas em debate. E o contraste entre o universalismo (Milkau) e o racismo (Lentz), entre a “lei do amor” (Milkau) e a “lei da força” (Lentz).

Justamente neste ponto, Canaã adquire maior importância para a Literatura Brasileira, pois o romance de confrontação ideológica era inédito entre nós, e antecipou a tomada de consciência dos modernistas.

Na verdade, Graça Aranha, com Canaã, apresenta tópicos que serão desenvolvidos mais tarde em A Estética da Vida, de 1921. O brasileiro terá de vencer o Terror Cósmico, superar o lírico individual e atingir a poesia do cosmos unitário, numa identificação de consciência e universo.

Graça Aranha toca, portanto, no ponto vital das discussões do início do século XX: a campanha por uma estética nacional assimilada na consciência universal, Este era o debate do dia-a-dia: a nacionalidade brasileira, vista e analisada profundamente, opondo-se ao ufanismo e ao patriotismo superficial.

A estrutura romanesca e a linguagem

Muitos têm afirmado que a extrema preocupação de Graça Aranha em discutir ideias (Canaã é, na verdade, um romance de ideias) prejudicou a composição ficcional (literária) propriamente dita. José Guilherme Merquior acusa a má intervenção do pensamento, da tese, na matéria narrada. A dimensão realista do livro é incompatível com a sua dimensão explicativa. Daí resultaria uma certa deficiência estrutural da obra. O ardente desejo de explicar o “objetivismo dinâmico” leva o autor a fazer “filosofia ficcionalizada” ou “ficção filosofante”. Formalmente, isto se revela na intervenção teórica do autor a cada momento do romance, através de digressões que interrompem o universo ficcional. Daí o esvaziamento das personagens (são praticamente ideias, e não pessoas), a desvalorização do enredo que serve apenas de pretexto para análises sociais ou psicológicas do Brasil. Mesmo o drama de Maria, a personagem trágica do romance, é entremeado de longas cenas que demonstram a lubricidade e a venalidade dos magistrados locais. Já no final, quando Milkau busca o juiz de direito para tentar uma solução para o processo em que Maria está envolvida, os dois acabam discutindo sobre a etnia brasileira, aproveitando Graça Aranha para tecer argumentos sobre o mulatismo.

Entretanto, se levado pela preocupação em discutir o Brasil, Graça Aranha não estruturou personagens ou enredo convincentes, algumas cenas de violência e instinto servem de relevo e interesse pela linguagem impressionista de que se revestem, assim como as descrições ricas da natureza brasileira. São cenas tipicamente naturalistas: o enterro do velho caçador, cujo cadáver é disputado aos coveiros por cães furiosos e urubus famintos; o rito bárbaro dos magiares, que fecundam a terra com o sangue de um cavalo açoitado até a morte; o pavor de Maria na estalagem em que se abriga, dormindo juntamente com uma velha criada que esconde pedaços de carne sob o colchão e, à noite, os ratos passeiam-lhe sobre o corpo; enfim o nascimento do filho de Maria em plena mata, entre porcos que acabam por devorar a criança diante do horror da mãe. Evidentemente, estas cenas vão além do realismo, mas não chegam a um naturalismo científico de um Zola. Este naturalismo é sensível ao nível da linguagem narrativa, tipicamente impressionista. De fato, natureza, ambiente, homens e coisas são apreendidos num enfoque impressionista, usando o narrador uma retórica declamatória com farta adjetivação, na qual dois ou três adjetivos ligam-se ao mesmo substantivo, ou até os substantivos adjetivam.

A descrição de Maria adormecida na mata, coberta pelos pirilampos, representa bem o impressionismo, filtrado de simbolismo. De fato, formas, cores, aspectos luminosos confundem-se numa descrição emocional do momento, através de períodos breves, geralmente no imperfeito do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade.

 Assim, Canaã revela-se uma obra sincrética. Do Realismo encontramos traços na fixação da paisagem humana da colônia, em prosa quase documental, com a simplicidade da vida laboriosa dos imigrantes ou as doenças da burocracia judiciária. Do Simbolismo encontramos a preocupação metafísica, a alegoria retórica, a associação das sensações do momento que faz com que o naturismo ultrapasse a simples observação da realidade. Note-se ainda a presença de mitos folclóricos indígenas e europeus, que ajudam no desenvolvimento da ideia de Milkau e na exaltação do Brasil.

terça-feira, 18 de maio de 2021

João Líbero (O Infinito)

O Número PI [π] é o resultado da divisão do perímetro de um circulo pelo seu diâmetro, o que resulta em uma dizima infinita não periódica que é 3,14159265358979323846… “ad infinitum!”  Dizem os matemáticos que ele contém todos os números de documentos de todas as pessoas do mundo, pois ele contém todas as combinações possíveis e imagináveis de sequência numérica, pois suas combinações são “ad infinitum”, isto é infinitas! Bom, disse tudo isso para ilustrar o que é o infinito, ok?

Diz a lenda que os matemáticos, no principio do mundo, decidiram fazer um concurso entre os números para escolher qual seria o símbolo do infinito. Quando os matemáticos apresentaram a dízima do Pi, que não acabava nunca, o número oito desmaiou!  Um dos jurados, na plateia, achou legal e escolheu o número oito deitado como símbolo do infinito. E foi seguido pelos demais, para desgosto do zero, que pensou que ele seria o escolhido, pela lógica! A lógica dele era: “zero é nada, nada é infinito!”. Ele se revoltou, mas, não adiantou. O oito deitado foi o escolhido! E até hoje ele é o símbolo do infinito!

Então infinito é aquilo que não tem fim, certo? Errado! Alguns “infinitos” tem fim sim!  O apaixonado diz à sua amada: -“Vou te amar até o infinito”! Daí no mês seguinte ele se apaixona por outra e o infinito da primeira foi pro espaço [ops]. Há coerência aí, pois, não dizem que o espaço é infinito? Também está errado! A lei diz, o teu espaço termina onde começa o espaço do outro! Então o espaço tem fim! Ah!. Mas, tem uma coisa que é infinita mesmo! O Tempo!

É relativo, pois no futebol o tempo acaba e, fim de jogo! “Quem ganhou, ganhou, quem não ganhou não ganha mais”, já dizia o locutor Fiori Gigliotti! O engenheiro constrói uma casa sólida e diz: - “Essa vai durar até o fim dos tempos”! Na semana seguinte a casa cai! Tá aí, o tempo tem fim! A casa caiu por que acabou o tempo, e fim de papo!

E como você explica que o verbo é infinitivo? Ei, espera um pouco, infinitivo não é infinito, ok? O infinitivo não está relacionado com nenhum tempo ou modo verbal. É uma das formas nominais dos verbos, juntamente com o gerúndio e o particípio!  Mas, isso eu vou estar podendo explicar em outro texto, ok? Agora estamos no infinito, ops, falando do infinito!

O céu é o limite, para quem luta por seus sonhos e ideais e tem objetivos a alcançar. Mas então o limite não é do céu. O céu é infinito. Finito é onde se quer chegar. O espaço é a última fronteira?  Então o espaço é finito... a última fronteira a ser explorada. Que coisa!

Mas e o que tem depois da última fronteira? Tem o saber! E o saber não ocupa espaço. O saber é infinito, e o espaço onde ele cabe também é, já que não ocupa lugar. Eita! Então o espaço é infinito? Agora danou! Vamos viver uma vida inteira e não vamos aprender tudo. Então o conhecimento é infinito. Finita é nossa vida aqui, já que não vamos viver para aprender tudo.

Spinoza dizia que é uma ideia errada considerar o infinito como aquilo que inclui todas as coisas em si. Infinito é diferente de Indeterminado. O Infinito é a ideia mais determinada de todas, onde todas as possibilidades são realizadas. Por exemplo: caí uma placa de propaganda, você me pergunta:

- “Quem derrubou? Eu digo:

- “Foi um sujeito aí!”

- “Mas, que sujeito? De onde veio?

- “Sei lá, indeterminado!”

- “Quem é indeterminado?”

- “Um sujeito aí”

Ou, a mesma pergunta com outra resposta:-

- “Quem derrubou a placa”?

- “O vento!”

- “Vento? De onde veio?”

- “Ah! Veio do infinito”!

- “Quem é infinito”?

- “O vento é infinito”!

No primeiro caso, quem derrubou foi um homem [sujeito determinado], desconhecido [“um sujeito aí”- indeterminado]. No segundo foi o vento [sujeito indeterminado] de onde veio? [sei lá, veio do infinito!]

Sinto muito se você não entendeu a alegoria da placa derrubada, talvez sua inteligência não seja igual ao número Pi, azar seu, mas, também não precisa se preocupar com tudo isso, pois você é determinado e finito, diferentemente do Pi que é indeterminado e infinito!  O que? Não, cara, alegoria não é enfeite de carro alegórico, é outra coisa, que explico outra hora, ok? Porquê? Por que minha paciência não é infinita, ok? Então depois de toda essa patacoada, chegamos à definição real e verdadeira do infinito:

INFINITO É TUDO AQUILO QUE NÃO TEM FIM, LIMITE, FRONTEIRA E QUE NÃO PODE SER MEDIDO POR UM PADRÃO FINITO.

Esta crônica foi feita com a colaboração da amiga Rita Ferreira Rocha de Paula, uma parceira!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 6

ACONCHEGO

Imóveis
A pena
E a asa da borboleta
Sonham
Com o vento…
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ASAS DE MADEIRA

Esculpido em mogno
O dragão, aos poucos desperta
E, suavemente, move suas asas
À  espera do vento…
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CHUVA DE SAUDADE

O barulhinho da chuva,
Deslizando no telhado
Deságua em versos
Tece um poema de amor,
Saudade que cintila,
Quando a lágrima
Escapa e deixa
A janela entreaberta...
Apaga-se o incenso.
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COLAR DE PÉROLAS...

Com as pérolas do colar
Desenhei um coração
E num piscar de olhos
Senti teu coração  bater
Juntinho a mim…
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JANELA DE SONHOS...

A janela entreaberta
Ainda à espera
Dos sons da tua volta...
Há tanto silêncio
Em tua ausência,
Que inquieta  a alma...
Busco teu olhar, tuas mãos
E não as encontro,
Encontro à saudade
Que se despe
Das rendas tecidas de poesias
E deságua
Em lágrimas…
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O TOQUE DO TEU VENTO

Os sons dos sinos- de- vento
Embalam a solidão
Que fragmenta a ampulheta,
E refugia-se no vitral
Da janela antiga,
Trincada com o toque
Do  teu vento,
As cores voam,
E pousam na taça de cristal.
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PANDORA

Do escuro da caixa
Voam lágrimas...
Diáfana solidão,
Silencia-se
A Esperança.
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ROTINA DE UMA ÁRVORE

Terra, água
E luz gestam vidas
Num contínuo renascer,
O ciclo da vida impresso
Nas folhas encanta,
E surpreende,
Desabrochando em versos
Em uma manhã azul
De Primavera.
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SEMENTES DE CEREJAS

Hoje, no fim de tarde,
Acariciei  a terra
E à sombra do teu sorriso
Plantei com amor,
As sementes de cerejas,
Cerejas que colhi para você…

Contos e Lendas do Mundo (A Ratoeira)

Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali.

Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado.

Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos:

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa!

A galinha, disse:

- Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.

O rato foi até o porco e lhe disse:

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira!

- Desculpe-me Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, a não ser rezar. Fique tranquilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.

O rato dirigiu-se então à vaca. Ela lhe disse:

- O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que não!

Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro. Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia pego.

No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pego a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher...

O fazendeiro levou-a imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre.

Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.

Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-la. Para alimentá-los o fazendeiro matou o porco.

A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio para o funeral. O fazendeiro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.

Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se que, quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco. O problema de um é problema de todos.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Adega de Versos 22: Gilson Faustino Maia

 


Sammis Reachers (Rivaldo e o tour infernal no Morro do Céu)

Toda empresa de ônibus que tenha uma quantidade boa de linhas, tem aquela(s) linha(s) em que quase ninguém quer trabalhar. A Ingá não foge à regra.

Talvez a pior das linhas, na opinião de uma maioria de rodoviários, seja a linha 26-A (Morro do Céu x Terminal). É a linha do "castigo". Embora não admitam, quando querem castigar algum profissional que tem vacilado bastante, eles o enviam para lá, seja como efetivo, seja para trabalhar apenas um dia. Os motivos de a linha ser detestada por muitos? Basicamente há dois principais: Primeiro porque a carona rola solta. Isso mesmo, praticamente ninguém paga passagem lá dentro do bairro. Mas há também o outro problema: a bandidagem. O bairro {ou "complexo") do Caramujo (e em especial o sub-bairro do Morro do Céu) é simplesmente o maior reduto do Comando Vermelho em Niterói, e um dos maiores do estado do Rio. Depara-se com homens e até crianças armadas a todo momento por lá. E encontrar-se em meio a um tiroteio entre policiais e bandidos não é coisa rara.

E é aqui que entra o nosso Rivaldo. Funcionário antigo, fala mansa e gente fina, curtidor de um bom pagode e bom mulherengo, a história de vida de Rivaldo já daria por si só um livro: Mesmo ainda jovem, sobreviveu a um infarto que o deixou literalmente entre a vida e a morte; após cirurgia de ponte de safena, voltou à ativa, e alguns anos depois envolveu-se num trágico e grave acidente, ao chocar-se o ônibus que dirigia contra uma das pilastras de sustentação da Ponte Rio-Niterói, na altura do Moinho Atlântico. E mais uma vez, embora tenha ficado preso nas ferragens, Rivaldo sobreviveu.

Em seu início na Ingá, Rivaldo passou diversos anos como cobrador, até que resolveu partir para a direção. Após o período regulamentar na escolinha, Rivaldo foi finalmente promovido. Mas sua carreira em inícios foi sofrida: Rivaldo pegava sempre os piores horários. Com o passar do tempo, isso foi gerando uma revolta natural no coração do amigo. E essa revolta o levou a dar alguns "vacilos" propositais com a chefia da empresa, de tão aborrecido que Rivaldo estava.

Pois bem: em mais um belo dia (e o leitor já percebeu como este livro é cheio de "belos dias"), a chance que certo despachante queria para castigar o bom Rivaldo surgiu.

Ele iria tirar um carro no turno da manhã, e o despachante lhe empurrou para dirigir um micro-ônibus, justamente no malfadado Morro do Céu. Briga daqui, regateia dali, e sem ter outra opção e precisando trabalhar, lá vai o nosso Rivaldo, ainda de madrugada, em direção ao Morrão.

Chegando ao local, na área conhecida como lixão, onde ele aprendera, no tempo de cobrador, ser o ponto final daquela linha, o cidadão Rivaldo, cabreiro com a escuridão do lugar, deu meia-volta e, tranquilamente, se pôs a manobrar o veículo em direção à descida do morro.

De repente, aquela freada. Saído de lugar nenhum, um marginal brotara em frente ao ônibus, com um detalhe: um fuzil apontado para a cara de Rivaldo! O malandro parecia que ia pra uma guerra, além do fuzil nas mãos, tinha uma pistola e uma granada penduradas na cintura.

- Ei! Ei! Tem que ir lá dentro! - Berrou o marginal.

Rivaldo, assustado, gaguejou:

- Lá dentro? Lá dentro aonde? Aqui á o ponto final, estou descendo para fazer linha.

- Descendo o caramba! Tem que ir lá dentro, lá na "balança". Pode dar a volta e ir lá que lá tem passageiro te esperando.

Ao perceber a confusão de Rivaldo, o malandro aliviou e perguntou;

- É a sua primeira vez aqui? Se é, fica sabendo que tem ponto lá no final - e apontou para mais acima no morro.

Assim, após manobrar lá se foi Rivaldo morro acima, numa direção em que ele imaginava que nem casas havia. Chegando a certa altura, ele percebeu que realmente haviam passageiros por lá: oito pessoas esperavam aquele que era o primeiro carro do dia.

Mas todo castigo pra rebelde é pouco, já diziam os opressores do trabalhador, e os perrengues de Rivaldo estavam só começando. Somente após o embarque dos passageiros foi que ele percebeu que o espaço para manobrar o ônibus e voltar para baixo era absurdamente pequeno. E, um tantinho além do pequeno espaço de manobra, havia nada mais nada menos que um despenhadeiro, uma encosta altíssima. Um erro do motorista e o veículo poderia cair lá embaixo.

Rivaldo, assustado, disse aos passageiros que não teria como manobrar ali, num espaço mínimo, no escuro e ainda por cima numa área que ele não conhecia. Mas os passageiros insistiram que todos os motoristas da linha manobravam ali, e um deles se prontificou a descer do veículo para ajudar Rivaldo a manobrar. Assim, depois de muito sufoco, mudanças de marchas à frente e à ré, nosso amigo conseguiu manobrar o veículo.

As viagens seguiram-se naquele mesmo ritmo, caronas, bandidos e sustos. Lá pelo meio dos trabalhos, estando no morro do Céu, um elemento grita:

- Ôòôuuu, espera aí motô!!!

Rivaldo para, e ao olhar para a direção de onde gritara o "passageiro", vê que era de dentro de um bar, uma birosca de beira de estrada. Assim que o veículo parou, o cidadão do grito apanhou dois engradados de cerveja, de cascos vazios, e entrou no ônibus. Ao colocá-los no corredor do pequeno veículo, disse simplesmente:

- Espera aí que tem mais.

E assim foi trazendo, de dois em dois, até somar oito engradados. Após colocar tudo no corredor, desceu.

- Tem mais ainda? - perguntou Rivaldo.

- Não, é só isso. Pode ir. Ah, um cara está te esperando lá embaixo, na pracinha, e vai pegar as caixas.

Após dizer isso, o elemento simplesmente virou as costas e entrou tranquilamente no bar. Rivaldo, entre confuso e irritado com o abuso do cidadão, que além de não ir levar a própria mercadoria, nem pediu o favor e nem sequer agradeceu, desceu com a frágil carga que se apertava entre os passageiros.

O caminho de descida é tortuoso, o famoso "só vai um", e lá desceu Rivaldo, tendo que ir relativamente rápido pois precisava fazer o horário, mas preocupado com aquela carga balançando devido aos solavancos que o veículo dava, sendo segurada pelos passageiros.

Lá    embaixo    realmente    um    indivíduo    esperava. Apanhou as caixas e tudo que disse foi um "Valeu". Nem um beijinho, nem um Guaravita nosso Rivaldo recebeu...

Já lá pelas doze horas, finalmente Rivaldo esperava que iria largar. Ufa! Que dia! Ao chegar no Terminal Rodoviário, ele falou para o despachante;

– Essa é a 'boa' (a última viagem), finalmente! Não aguentava mais!

– Ué, a boa? Não te avisaram na garagem não?

– Avisaram o quê?

– Esse carro dá uma viagem extra, amiguinho. Sua largada deve ser lá pelas 13h20...

Fulo da vida, lá foi Rivaldo de volta ao Morro do Céu, sabendo que teria uma outra viagem. Foi vendo os outros carros que pegaram num horário depois do dele largando, e ele ainda tendo que dar mais uma volta - e isso o fez ferver ainda mais de raiva. Do Morro do Céu ele desceu novamente em direção ao Terminal, e, agora sim, na volta sabia que iria largar.

Mas todo bolo que se preze, precisa ter uma cereja em cima. E a cereja do bolo estava esperando por Rivaldo, rechonchudinha, num dos acessos ao Caramujo, ali perto do Morro do Bumba (sim, aquele mesmo da tragédia dos deslizamentos em 2010).

Um cidadão com pinta de matuto de roça, as roupas bastante sujas e segurando um saco enorme, desses de farinha de trigo, deu sinal. Rivaldo foi encostando e já logo abrindo a porta do meio, pois ali já era área das caronas, e com um saco imenso daqueles o indivíduo não iria conseguir passar na roleta mesmo. Mas somente quando o Jeca Tatu entrou foi que Rivaldo percebeu do que se tratava a "carga": Naquele saco enorme, muito mal acondicionado, o camarada estava levando um enorme e fedorento porco, e vivo! Assim que ele entrou o porco começou a gritar e a se debater, e o cheiro rapidamente dominou todo o veículo.

– Isso aí é um porco?!!!!

– É sim, mas tá seguro.

– Pô, meu amigo, mas ele está fedendo e cheio de lama...

– Não esquenta não, lá em cima eu jogo uma água no ônibus.

E assim Rivaldo completou os trabalhos do dia, ouvindo  os altos grunhidos e sentindo aquela catinga de porco insuportável.

Quanto ao dono do suíno, ah: ao chegar no Morrão, já perto do Morro do Céu, ele desceu sem nem fazer menção de jogar água em nada...

Rivaldo manobrou no Morrão, desceu e largou o ônibus no ponto final do Caramujo. Saiu sem falar nada com ninguém e avoado, aliviado por passar aquela pesada cruz para outro sofredor!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.