sábado, 10 de julho de 2021

Estante de Livros (A Dama do Encantado, de João Antônio)

João Antônio, esse (des)conhecido
Artigo por Tania Celestino de Macêdo

João Antônio foi um escritor com grande número de livros publicados, uma militância atilada na imprensa, mas, infelizmente, seus textos não foram best seller. Talvez fosse tempo de perguntar a razão e, ao mesmo tempo, conhecer esse autor duas vezes contemplado com o prêmio Jabuti, com obra traduzida para vários idiomas, mas de quem apenas alguns já ouviram falar e poucos leram.

O contista João Antônio foi aclamado pela crítica e público já no seu primeiro livro: Malagueta, Perus e Bacanaço. O ano era 1963 e com esses contos a literatura brasileira via surgirem em suas páginas heróis que pouco tinham sido destaque até então: os malandros, os operários, os jogadores de sinuca, crianças abandonadas e prostitutas. O cenário privilegiado dessa ficção era a periferia das grandes cidades, os salões de sinuca e a zona do meretrício. Ou seja, espaços e personagens marginalizados, apresentados sem nenhuma idealização, sem que, no entanto, se ausentasse uma simpatia por eles.

Após esse livro, seguir-se-iam outros, sempre focalizando a realidade sofrida, às vezes sórdida, daqueles que têm que batalhar (e muito) para viver. Talvez esteja aqui uma das razões da pouca repercussão dos textos de João Antônio junto ao grande público: os contos do autor atiram seus leitores de frente com um mundo que os cerca cotidianamente, mas que insistentemente eles se negam a encarar. Ocorre que todo esse batalhão de personagens marginalizadas, não pede a compaixão do leitor. Antes, pelo contrário, o desafia, quer pelas situações apresentadas, quer pela linguagem a qual, sem se descolar do mundo da marginalidade, revela truques e traquejos, solicitando uma leitura atenta.

Sob esse aspecto, o crítico Alfredo Bosi, na apresentação de O conto brasileiro contemporâneo (São Paulo: Cultrix, 1974), observa: "desse fundo torvo tirou João Antônio a linguagem lírico-popular das histórias (…). Tudo nelas é breve, intenso e sintético como o narrador imagina ser o andamento vital daquelas criaturas apertadas entre a urgência pícara de vencer a fome e o medo agudo da polícia ou do malandro mais forte."

Em outras palavras, João Antônio coloca seus leitores em contato com espaços, situações e personagens que constituem a outra face das imagens bem comportadas das novelas de televisão ou de uma certa literatura cheia de finais felizes. Ora, se fosse essa apenas a nota característica da escrita do autor, já seria um grande mérito. Mas há mais: sua linguagem.

Sob esse aspecto, ler João Antônio é participar de um jogo em que, malandramente, a fala dos marginalizados se cruza com o português-padrão, driblando o leitor desatento. Assim, encontramos, ao lado de gírias e palavras de baixo calão, estruturas gramaticais (sobretudo no que se refere às orações subordinadas) que apenas grandes mestres do idioma utilizam. E isso sem que ocorra um estranhamento, pois existe um intenso trabalho de dar um ritmo certo à frase, de procura de elegância vocabular. Há, portanto, que se ter cuidado ao ler João Antônio. Talvez, também por isso, ele seja um escritor de poucos.

Vale notar que essas características estão presentes também nos numerosos artigos escritos para a imprensa. Seus textos jornalísticos trazem a marca de uma escrita ágil, cuidada, que além de fornecer a informação, não deixa de lado a reflexão. As entrevistas por ele realizadas (com o professor e antropólogo Darcy Ribeiro ou a cantora popular Aracy de Almeida, por exemplo) procuram sempre desenhar o perfil da personalidade em foco, indo além do fato e do que o público já conhece. As crônicas, quer sejam sobre Noel Rosa ou o conjunto habitacional da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, procuram sempre um traço característico, um olhar novo sobre o objeto.

Acontece que toda essa produção jornalística não foi realizada para os grandes jornais populares. Ainda que tenha escrito para veículos como o Jornal do Brasil, João Antônio colaborou, sobretudo, com a imprensa alternativa, com a "imprensa nanica" (para usar uma expressão inventada por ele), tendo sido inclusive diretor de algumas publicações, como o Livro de cabeceira do homem. É que para o autor, a badalação que cerca determinados círculos era insuportável.

Bem, sob esse aspecto, a biografia do autor talvez também auxilie na compreensão de seu pequeno número de leitores. Deve-se lembrar que João Antônio se negou a fazer concessões. Com uma visão pessimista dos governantes do país e descrédito com o mundo das letras, ele sempre se recusou a participar de cerimônias oficiais e reuniões com autoridades e rodinhas literárias. Era um solitário que, decisivamente, odiava o protocolo, a gravata e os tapinhas nas costas. Se alguém queria encontrar João Antônio, não o procurasse junto à oficialidade, mas sim em bares e restaurantes populares, rodas de samba e outros lugares em que havia gente simples, com uma vida sofrida mas a alegria forte de quem tem pouca chance de ser feliz. Nesses ambientes era fácil ver o sorriso de João Antônio, os olhos brilhantes e atentos, a sua mania de mexer no bigode, enquanto registrava mentalmente gestos, palavras e atitudes que, muitas vezes, transformavam-se em contos. Provavelmente somente nesses momentos ele se abandonava à felicidade, porque compartilhava com o povo as pequenas vitórias do cotidiano.

Assim sendo, João Antônio nunca participou de cargos públicos ou do círculo daqueles autores que são badalados pela mídia. Ele sobreviveu, num país de parco público leitor, apenas de sua literatura. Foi com ela seu maior compromisso. E por isso, provavelmente, sua admiração para com os professores de língua e literatura. João Antônio via nesses profissionais o mesmo amor que ele próprio possuía pelas palavras, a mesma luta árdua e a falta de reconhecimento pelo trabalho realizado. Em função desse respeito, o escritor nunca recusou o convite de um professor para debater suas obras com os alunos. Delicado, simples, acessível, percorreu praticamente todo o Brasil conversando com os jovens, ouvindo sugestões, críticas e opiniões, incentivando a leitura e a produção de textos.

Enfim, João Antônio pode ser definido como um autor que fez uma opção pela literatura, pelo povo, pelo Brasil. Ler suas obras é conhecer melhor a nossa face, os nossos valores e também os imensos problemas que enfrentamos. Mas, sobretudo, conhecer a boa literatura produzida no país.
Fica aqui nosso convite: vamos, finalmente, ler João Antônio?
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Tania Celestino de Macêdo é professora de Literatura Portuguesa da UNESP/Assis
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Dama do Encantado

João Antônio


...Que o subúrbio é ambiente
De completa liberdade
(Voltaste, Noel Rosa, 1934)

Há quem diga que é no Encantado que se come o melhor bacalhau da cidade. E eu não estou aqui para desdizer.

A partir do seu nome, esse subúrbio da Central do Brasil, antes de Madureira, capital do samba, e depois do Méier, carrega ares singelos, descansados; são as casas, os sobrados, os gradis. O ritmo ali é pausado. Sua população pobre é típica do Rio mais carioca, a Zona Norte — negros, mulataria, mestiçados que, na pobreza, vivem num ambiente de espontaneidade e pouca correria. Depois, tem que se chama Encantado...

Chegou ao noticiário nacional pela força de duas mulheres nascidas ali, Aracy de Almeida, a sambeira de muitos cognomes ditos e repetidos — "O Samba em Pessoa", "A Dama da Central", "A Arquiduquesa do Encantado". Bem. Exagerações à parte ou exageração nenhuma, Aracy era uma fidalga, dessa fidalguia carioca, sestrosa, picarda, encharcada de silenciosa dignidade, alta em si mesma, e a que pertenceram Pixinguinha, Clementina de Jesus, Cartola, Nélson Cavaquinho, Heitor dos Prazeres... e, claro, Paulinho da Viola, hoje em dia. A segunda dama de nomeada, para muitos, é a primeira do nosso teatro de bom nível, Fernanda Montenegro.

A fala, o som, o sotaque, o gosto com que carregava as palavras, a alegria de viver, a linguagem carioca de Aracy, debochada na primeira aparência, era em si mesma um depoimento vivo da alma do subúrbio. Mas subúrbio universal. Sua conversa tinha cor e plástica, além da bossa, obliquidade e ginga. Falava, se quiserem, em diagonal, mas o resultado era uma linha reta. Usava, abusava e deliciava o interlocutor com propriedade tão fina e tal franqueza a aparentar até rusticidade. Os adjetivos perderam um tanto o sentido quando se meteram a situar sua personalidade. Autêntica, genuína, irreverente, desconcertante, livre, impulsiva, afetiva, ética e franca... no caso de Aracy são palavras e nada mais. Ela era voz, uma voz da terra e do povo. E uma sambeira nada simples. No fundo, mulher fina e lida, leitora frequente da Bíblia e ouvinte de Mozart, vocacionada profissionalmente para indicar caminhos a jovens músicos. Foi certeira nessas previsões: sabia ouvir. Lia bastante sobre medicina e desenvolveu um gosto refinado pela pintura e artes plásticas. Captava o sentido trágico, quase grego da vida, mais de se notar ao cantar Noel Rosa.

— Nasci no Encantado, fui criada ali, tenho lá minha casa com minhas flores e meus cachorrinhos de estimação. Ali eu fui menina, fui pobre, dormi em cima de esteira. É uma casa térrea, minha, cheia de azaleias na primavera e de caramanchões; eu lá vou me sujeitar a viver dentro de um apartamento? Não, compadre, não é por nada,.não. Mas esse babado de Zona Sul, apartamento, quarto-e-sala... a sua tia aqui não embarca nessa canoa. Depois, me criei no Encantado. Sabe, a gente sente o calor de tudo isso.

Sua casa térrea, à Rua Almeida Bastos, número 294 foi e é a própria Aracy e tanto quanto a sua voz no disco é o seu melhor retrato. Bom gosto por dentro e singeleza suburbana por fora. Aracy jamais quis outra casa, embora cortejada pelas ondas da Zona Sul carioca. Não lhe era fácil ou cômodo sair do Encantado e cantar em Copacabana... Cantava, cantava. Mas pousava na casa do Encantado. Lá dentro, muita atmosfera e pintura, quadros de Aldemir Martins (que chegou a retratá-la) e Di Cavalcanti, uma cabeça de Aracy esculpida por Bruno Giorgio, mobília de bom gosto, nada de falso antigo e como Araca adorasse cachorros, havia uma atmosfera humana e movimentada. Não casou. Tinha uma tese:

— Solteira, sempre. Acho esse babado de casamento uma onda bastante enrolada. No começo, são flores e mais flores. Depois, pedras e espinhos. É a rotina, não é, filhinho? Todo o dia a mesma toalha, o mesmo sabonete. É fogo. Além de que, esse assunto é maçante. Vamos deixar para o próximo número.

A sua afilhada portuguesa, que depois de adulta a secretariou, a quem Araca quis ver médica mas que acabou vendo advogada, ainda hoje vive lá com seu nome fidalgo, Maria Adelaide Serra Bragança.

Um dos cachorros de Aracy se chamava Feijão.

— Sério, compadre, ninguém gosta de cachorro como eu.

Além do uso do cigarro importado, americano, a mania de um regime alimentar que não cumpria. Costumava fazer a feira, pessoalmente, à Rua Cruz e Souza, a feira do Encantado. Aparentemente ranzinza, esquiva:

— Ih, meu tio, eu estou sem tempo até pra me coçar.

Desculpa esfarrapada. Adorava o bate papo, era mestra na arte espontânea de prosear. Tinha carisma e conversa sua surpreendia, maravilhava ou arrepiava os pelos do braço pela autenticidade e franqueza. De memória invejável, quando sua parolagem remontava ao tempo de Noel, então, mais envolvia, devido aos detalhes e rasgos. Quando moça jogou sinuca, falou palavrão, acompanhou Noel em andanças pelos cantos por onde o poeta circulava e até pelo Mangue:

— Apesar da minha pouca idade, achava Noel um fenômeno. Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer — quando você tem pouca idade acredita nessas besteiras. Ele pegava da viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do Mangue, no baixo meretrício. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nesta terra foram dias muito engraçados.

Sua voz sofreu restrições, devido à característica anasalada. Mas como intérprete ela foi a cantora que mais fundamente captou e transmitiu a essência rítmica do samba — a cadência.

Enquanto cantou e gravou, sua vida virou terreno do diz-que-não-diz em que era mais atacada do que atacava. As suas apresentações, de scripts livres, em boates e teatro, acabavam levantando críticas azedas, pois Aracy, em matéria de franqueza, não falava a meia verdade. Depois desabafava, jamais em tom de resposta ou desforra, mas usando inteiramente o seu direito de falar:

— Alguém escreveu por aí que eu exagero nas histórias que conto. Exagero coisa nenhuma, é tudo verdade. Conto o que é pra se contar. Tinha mais, é que não me deixam abrir o verbo. E essa coisa de Noel Rosa é preciso deixar claro que, se não fosse ele, eu não estaria aqui cantando. Só ele acreditou em mim, os outros me achavam uma escurinha que queria... Bem. Uma escurinha qualquer. E teve gente que disse até que eu desafinava, coisa que eu nunca consegui fazer em mais de 40 anos de profissão!

Uma vez, lhe perguntaram, cara a cara:

— Noel roubava música, Aracy?

E Araca, pronta:

—Ao contrário. Roubavam dele. Vi muito samba ser consertado pelo Noel e, se duvida, tem muito samba mesmo. Você está interessado na relação?

Àqueles que achavam que ela foi reduzida, com os anos, a uma cantora que interpretava exclusivamente Noel Rosa:

- Eu não me fixei em Noel e a prova disso é que cantei muitos outros grandes compositores, Caymmi, Ari Barroso, Joel e Gaúcho, Antônio Maria. A lista iria longe. Mandei pra o alto uma porção de sucessos carnavalescos que nada tinham a ver com Noel. Canto as músicas mais por sentimentalismo, por gostar do que ele fez, do que para forçar o cartaz, como uns sabidinhos já escreveram e disseram por aí. Acresce, meu tio, a seguinte circunstância: eu estou fazendo um espetáculo, cantando numa boate, num teatro, e logo o público começa pedindo: canta o Feitiço da Vila, canta O X do Problema. Manda os Três Apitos, canta a Conversa de Botequim. Aí, eu vou lá e atendo. Pego o embalo e vou indo, indo, indo de Noel. Não tenho culpa, não, compadre.

Como se tem no país a mania das classificações, ela foi considerada uma das maiores, senão a maior, das intérpretes de Noel. E a sambista mais respeitada do país. Aceitava, e não, tudo isso e explicava que Noel foi o seu mestre na arte de cantar sambas. Ninguém poderia, por exemplo, cantar melhor Gago Apaixonado, uma obra-prima, do que ele próprio. Coisas assim. Mas o fato é que desde moça foi famosa nacionalmente. E houve lendas.

Cronistas apressados viram em Aracy apenas irreverência. A gana de reportar o pitoresco e até o picaresco esteve mais preocupada com a fofocagem da suposição de que com a obra, a ponto de confundirem nomes e locais. Até se envolveu o nome de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, a prestar uma homenagem à cantora e a receber uma de suas respostas irônicas.

Na verdade, Araca esclareceu que o caso se deu quando ela recebeu um banquete em homenagem aos seus "25 ou 30 anos de rádio, eu nem me lembro". Evidente, no entanto, que a cantora omitia a data exata, para evitar o enfoque direto de um governador paulista.

O banquete era oficial e o político, sem a mínima propriedade, lhe teria feito um elogio rasgado, sem nenhuma convicção. Araca recebeu na linguagem oficial e despachou na sua linguagem típica, aberta, convicta:

— Ora, deixe isso pra lá. Isso são lantejoulas de sua parte.

Mas Getúlio Vargas, na época, nem estava em São Paulo.

Falou-se também que, uma vez, Aracy passava pela ex-Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida Central, no centro do Rio, e teria sido saudada assim por Ari Barroso:

- Olá, Aracy, como vai?

Araca retificou. Foi defronte à Livraria Jaraguá, em São Paulo, na Rua Marconi, nos tempos em que havia o famoso chá da tarde, reunindo desocupados, ricaços, esnobes e gente sem emulação cultural alguma, ruminando ideias importadas e despejando frases feitas. A saudação partiu do ator Maurício Barroso, que, estando num grupo de grã-finos, pretendeu esnobar Aracy com a inflexão "olá" de pouco caso. O que mais a ofendeu é que Maurício parecia estar fazendo um favor ao cumprimentar cantores populares, gente de uma profissãozinha qualquer, uns boêmios inconsequentes.

Ah, pra quê! Ela fez meia volta, encarou-o. E a resposta:

— Eu não sou mulher de olá!

Mas Ari Barroso não teve nada a ver com a história.

Um indisfarçável medo de avião:

— Pra não dizer que eu sinto medo, vou dizer que tenho receio. Ou, melhor ainda, que eu tenho um distúrbio neurovegetativo que não me deixa viajar de avião. Eu embarco no Rio e chego a São Paulo tontinha. Prefiro o trem, que é na base do antigo e do seguro.

Sempre uma mulher do povo. Gostava de futebol, sempre passional:

— Amo o Vasco, no Rio, mas adoro o Palmeiras, em São Paulo. Sou vascaína podre. Sou palmeirense podre. Morro. Sou palmeirense doente mesmo.

Vai daí, viveu e como. Houve duas passagens legítimas que recordava nos momentos de melhor humor e que havia dado briga. Sustentava:

— Uma vez, o Kid Pepe me encostou uma faca deste tamanho na barriga, querendo me obrigar a gravar uma batucada de autoria dele, chamada O Que Tem Iaiá. Eu gravei, compadre, com a faca na barriga e tudo.

O famoso Amélia, samba tido e havido como um dos hinos nacionais de nossa música popular, tem uma revelação da parte de Aracy. Já foi motivo de briga entre a cantora e o autor dos versos, Mário Lago:

— O Mário fica doido de raiva quando eu digo, mas a ideia de Amélia fui eu quem deu. Um dia, sugeri uma frase, "Amélia é que era mulher de verdade", ao Wilson Batista. Ele disse que andava sem tempo para compor e então o Ataulfo, que estava perto, pediu a frase para o Mário, e o samba foi feito. Tem mais. Dou até o local onde aconteceu: na Leiteria Nevada, ali na Rua Bittencourt da Silva. Na esquina ficava o Café Nice.

Sempre saltava do ataque para a defesa. Sobre a velha guarda:

— A verdade clarinha, compadre, é que nos tempos antigos, principalmente na minha fase de RCA Victor, havia mais camaradagem e todos os artistas torciam pelo sucesso de um cantor. O Orlando Silva, a Aurora Miranda, o Francisco Alves, todo mundo ajudava no coro. A gente tinha uma dificuldade bárbara para gravar. Então, se dava outro valor, né?

Mas com solene serenidade, Aracy, quando aborrecida, costumava declarar ao empresário:

— Veja. Eu moro longe, tenho os meus cachorrinhos de estimação e não preciso me aborrecer para trabalhar. Já enjoei de cantar e tem mais: o ambiente não ajuda, e no momento o mingau anda grosso.

Já veterana, sua figura continuou desconcertante também em público. Aparecia de minissaia, botinhas e boina na cabeça. Não se definiu até que ponto ela estava na moda ou ridicularizando os costumes.

Tocava o telefone. Um empresário, do lado de lá do fio, a convidava para receber uma homenagem. Ela deveria cantar, inclusive.

— Homenagem me dá muito trabalho, meu filho. Eu ando cansada. Imagine só: eu passei a manhã inteira cuidando do jardim, tive de tirar tanta terra de lá pra cá e você me vem com essa história de homenagem... Hem, e quanto vocês me pagam para cantar?

Vem a resposta.

— O quê? Olha aqui, meu filho, quem canta de graça é galo!

Desligando o telefone, voltava aos cachorros:

— Na outra encarnação, eu devo ter sido cachorro. Porque ainda não conheci no mundo quem gostasse mais de cachorro do que eu. Sério, compadre. Flor e cachorro é comigo. Imagine que eu cuido do Feijão, da Bela Lola (uma homenagem que eu fiz a um filme de Sarita Montiel), da Gorda e da Mundica. A Mundica, não desfazendo das outras, é minha grande considerada. Mas o fato é que eu já criei muito cachorro e pretendo criar muitos ainda.

Famosa, disputada, teve seus apaixonados. Um deles, em São Paulo, a apanhou no hotel, colocou-a num táxi, levou-a a passear pela cidade, enquanto a cortejava dizendo-lhe coisas doces. Ao passarem pelo Viaduto do Chá, Aracy saudou a paisagem, com ironia:

— Esta é a Ponte dos Suspiros.

Araca passou os seus derradeiros trinta anos sem gravar. E pouco cantava. Costumava repetir que o mingau estava grosso.
(Junho de 1989)

(1) Referência a um samba de autoria de Nilo Bom Cabelo, em que ele imitava a voz de Francisco Alves.
(2) ratatuia = corja, bando; gente mal-intencionada.
(3) gurufim = passatempo praticado durante os velórios de pessoas queridas (com jogos do anel e de adivinhações), típico dos morros do Rio de Janeiro.
(4) Vista Chinesa = ponto turístico na serra do Rio de Janeiro, com um quiosque em estilo chinês, e de onde se avista a baía da Guanabara; foi um recanto apreciado pelos namorados.
(5) queimar o pé (em) = beber muito.
(6) Referência à composição "As rosas não falam" que, gravada pela primeira vez em 1976, deu popularidade a Cartola ([...] "Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti" [...]).

Texto extraído do livro “Dama do Encantado”, Editora Nova Alexandria – São Paulo, 1996.
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João Antônio Ferreira Filho (1937-1996), nasceu de uma família de imigrantes portugueses de poucos recursos, na cidade de São Paulo (SP). Em 1949 publica seus primeiros contos no jornalzinho infanto-juvenil "O Crisol". Sem deixar de ler e escrever muito, em 1954 começa a freqüentar os salões de sinuca da cidade. Em 1958, ganha os concursos de contos da revista "A Cigarra" e do jornal "Tribuna da Imprensa", ambos do Rio de Janeiro. Inicia o curso de jornalismo. Em 1959, ganha o concurso de contos do jornal "Última Hora", de São Paulo. Os originais de seu livro "Malagueta, Perus e Bacanaço" são destruídos no incêndio de sua casa, em 1960. O livro só será publicado em 1963, totalmente reescrito. Ganha o Prêmio Fábio Prado e dois Prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos do ano). Muda-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar no "Jornal do Brasil", em 1964. Em 1966 volta a São Paulo, onde fará parte da equipe criadora da revista "Realidade". Tem contos publicados na Alemanha, Venezuela e, naquela época, Tchecoslováquia. De volta ao Rio, em 1968, passa a colaborar com diversos jornais. Publica, em 1975, "Leão-de-chácara" (Prêmio Paraná de 1974) e "Malhação do Judas carioca". Edita o "Livro de cabeceira do homem" e cria a expressão "imprensa nanica" no jornal "O Pasquim". Ainda nesse ano, é agraciado com o Prêmio Ficção da APCA (SP). Em 1977, seu conto "Malagueta, Perus e Bacanaço" é adaptado para o cinema, recebendo o nome de "O jogo da vida". Outro prêmio: em 1983, seu livro "Dedo-duro" recebe o Troféu Calango do Prêmio Brasília de Ficção. Ganha também o Prêmio Pen Club. Nos mais de quinze livros que deixou mostra sua extrema habilidade em fundir a linguagem falada nas ruas e a escrita literária. Atuou intensamente na imprensa e foi um ardoroso defensor dos direitos do escritor no Brasil. Premiada, sua obra é objeto de análise dos mais importantes críticos literários brasileiros.

Outras obras do autor: "Casa de loucos" (1976), "Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de lima Barreto (1977), "Lambões de caçarola" (1977), "Ô, Copacabana" (1978), "Noel Rosa" (1988), "Meninão do caixote" (1983), "Dez contos escolhidos" (1983) e "Abraçado ao meu rancor" (1986).

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Carolina Ramos (Catatau)

Chuvinha fina, persistente... gelava até os ossos. Encolhidos sob a marquise urbana, os três garotos conversavam, sentados num degrau de pedra:

Então, Catatau... vê se resolve duma veiz! Tu vai ou não vai c'a gente?!

O guri, encolhido entre os dois maiores, encolheu-se um pouco mais, ainda indeciso. Era o mais novo, mais franzino e também o mais assustado de todos.

Tu vai? Ou qué ficá morando aqui na rua... sozinho... Diz!

Duas cotoveladas fizeram com que a resposta saltasse mais pronta que a disposição do menino.

– AH... tá bom... tá bom... eu vô, sim!

– Tá certo, Catatau, tu não vai se arrepende, não! A gente vai conhece o mar. Lá embaixo, não existe frio! Tem sempre sol! A areia é fofa... quentinha... Tu vai vê, a gente nem vai precisá dos coberto que as muié deram. Prá durmi é só fazê um buraco e se cobri com a areia quentinha... e o mar, ali pertinho... vai cantá a noite interinha, sem pará... chuá... chuá...

– Tô cum fome!

Guenta, Catatau, eles vão trazê cumida... Tão chegando!

Cada farol de carro que cortava a escuridão aumentava a expectativa.

Toma, chêra isto. É bom. Ajuda a enganá a fome.

A cola de sapateiro correu, mão em mão... e foi parar na de Catatau.

Posso cumê um pedacinho?

Tá lôco, Catatau! Num vê que isso é só prá cherá, rapaiz?...

A porta abriu-se, tão logo o veículo encostou-se ao meio fio. Sem perda de tempo, Juca e Zinho acomodaram-se no carro, a disputar lugar com o próprio corpo. Outros garotos e seus cobertores já estavam instalados, ansiosos por partir.

Catatau ainda permanecia de fora, enrolado na sua manta, a ponta da mesma enfiada na boca - chupeta improvisada. Embora tentado, lutava intimamente contra as amarras da indecisão.

Vem, logo, cara... dêxa de sê bobo, moleque! – estrilou o Zinho.

Sem mais fazer-se de rogado, Catatau deixou a bobice de fora e entrou no carro... cobertor sujo a arrastar atrás de si mais sobras das sujeiras ambientais.

Acomodou-se como pôde no espaço mínimo que lhe foi concedido,

Vocês estão limpos? – indagou voz adulta vinda do primeiro banco.

Se tiverem alguma sujeira nos bolsos...favor ir jogando fora tudinho... ou ninguém sai daqui.

A cola de sapateiro saltou pela janela do carro... algumas bitucas de cigarro também e... sabe-se lá mais o quê!

O carro partiu em seguida.

Um calorzinho gostoso... emprestado pelo contato de outros corpos, percorreu os membros de Catatau, produzindo uma sensação de bem-estar... apenas não perfeita por conta daquela fome.

Pedaço de pão, sem manteiga, e uma banana chegaram-lhe às mãos, não antes que outras mãos afoitas tentassem se apossar do lanche. Atenta, a voz de novo avisou:

Ei... vocês já comeram! Calminha gente! Agora é a vez deles!

Desceram a serra ligeirinho... sem quase dizer palavra. Névoa branca, preenchendo os bolsões do abismo... curvas aconchegando... ora pra cá, ora pra lá, num balanço de maré, que embrulhava o estômago.

Quem conduzia e quem os conduzidos era o que menos importava. Lá embaixo, o colar de luzes demarcava limites. De um lado, o casario iluminado a guardar no íntimo histórias sem conta. Do outro, a escuridão insondável do oceano - misterioso caminho plenamente aberto para o desconhecido.

A imaginação do menino galopava, embora sono pesado lhe derrubasse as pálpebras!

Tão bom se pudesse mergulhar naquelas piscinas de névoa branca, macias como nuvens de algodão!

Varreu a ideia... - Impraticável! Valia esperar pelo mergulho nas espumas salgadas daquele mar que lá embaixo o esperava aquecido pelo sol. Faltava tão pouco! A cabeça latejava. A testa ardia.

Alguém vomitou... solidário, vomitou também. E a voz alertou:

Olha essa sujeira aí atrás... joguem jornais por cima...

O fedor penetrante do vômito engulhou mais o estômago do menino. Guardou o pão que sobrara. Perdera a fome!

Em breve, o cheiro de lona de freio queimada anunciava o fim da serra, Cubatão... Alemoa... Não demorou para que o carro chegasse ao lado da Rodoviária santista e, dobrando à esquerda, despejasse a carga humana num beco escuro logo adiante.

A voz avisou novamente:

Dispersem-se... e... depressa... ou logo estarão de volta ao lugar de onde saíram.

Pequenos vultos, enrolados em cobertores doados, esgueiraram-se a correr por todas as direções, parecendo minúsculos duendes fugidos à realidade.

Catatau, sempre indeciso, sentiu-se só. Chamou, sussurrante:

Zinho... Juca.... ondé qui vocês tão?!

Não obteve resposta. A "perua" partira. Restavam no solo jornais empesteados de vômito a envolver sonhos amarrotados.

O garoto resignou-se. Tinha que contar consigo mesmo. Teve vontade de chorar e gritar pela mãe. Mas a voz... tão sem forças, não tinha condição de chegar ao céu... tão distante! Engoliu as lágrimas. De que valiam?! Precisava, isto sim, arranjar um canto para passar a noite.

O frio, úmido, subia-lhe pelos pés descalços a tolher-lhe as pernas finas. E ainda diziam que em Santos não fazia frio! A chuva, agora mais grossa, encharcava-lhe os ossos.

Escolheu um canto menos molhado debaixo do viaduto. Já havia gente acomodada por ali. Ninguém ligava para ninguém!

Catatau enovelou-se, encolhendo o corpo até sentir os joelhos roçarem-lhe o queixo. Com a ponta da língua provou a lágrima que lhe descia pela face - o mar deveria ter aquele mesmo gosto de sal!

Empelicou-se no cobertor, imóvel como ave dentro do ovo, com medo de quebrar a casca. Divagou: - E a praia? Estaria longe... ou logo ali...?! Quando a luz do dia o despertasse, correria para ela.

Parecia até já ouvir o chuá daquela aguera toda, espumante e salgada, a embalá-lo em seu vaivém... a cantar para que dormisse depressa.

Tremeu de frio ainda por algum tempo. A coberta úmida não lhe proporcionava conforto. Aos poucos, pernas e braços pareciam anestesiados. Precisava dormir para o tempo passar depressa. Amanhã, iria conhecer o mar... Aquele mar ainda escondido no bolso da noite... tão escuro e tão frio quanto ela. Enterraria os pés gelados na areia fofa... Enterraria as mãos, os braços, as pernas, o corpo inteiro, naquela "fofura"... morninha de sol!...

Um torpor estranho foi tomando conta daquele corpo franzino. Catatau mergulhou no sono como quem mergulha de ponta cabeça numa nuvem de algodão. E não sentiu mais frio... E não sentiu mais fome... e nem aquela pontada nas costas, doida pra caramba!, que desde o dia anterior não o deixava respirar direito, fazendo-o tossir. Seus olhos foram se fechando devagarinho... Catatau adormeceu... E não acordou mais!

Uma semana depois, novos "catataus" chegavam numa outra "perua", enrolados nos seus cobertores encardidos.., Famintos e friorentos, como sempre!

E, como sempre, cheios daquela poética ansiedade de conseguir mergulhar os pés naquele marzão imenso e provar o gosto que ele tem...pra saber se aquela "aguêra" toda era mesmo salgada... Logo a comprovar que o mar também guardava dentro dele aquele mesmo gosto amargo que toda lágrima tem.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Júlia Lopes de Almeida (A valsa da fome)

Quando o pianista Hipólito entrou na sala, houve um sussurro de contentamento. Era preciso romper aquela monotonia, as moças estavam mortas por dançar.

Dentro de uma velha casaca ensebada, com o pescoço hirto e as grandes mãos balançantes, ele dirigia-se para o piano a largos passos, com as narinas dilatadas e o queixo muito agudo, cortando o caminho como uma proa de navio virada para o porto desejado.

Houve quem risse; ele era tão magro, ia tão amarelo e com tão viva chama nos olhinhos pretos, que uma senhora, uma dessas senhoras espirituosas e amigas de fazer comparações, perguntou a um amigo:

– Quem teria tido o esquisito gosto de vestir de homem aquela tocha funerária?

Logo o interrogado, rapaz gordo, metido a literato, com o peito florido por uma gardênia imaculada, respondeu:

– A fome. Foi a fome que lhe envergou aquela casaca pré-histórica e lhe amarrou ao pescoço, com verdadeira gana de o enforcar, aquela gravata branca. Só ela, a maligna, o faria entrar neste salão burguês para divertir as moças. Porque, fique sabendo a minha senhora e amiga, aquilo que está ali é um artista. A fome tem muita força para trazer um animal daqueles, todo nervos, para um lugar destes. Só pelo freio!

– Oh!

– Não se escandalize e repare-lhe para a nodosidade dos dedos. Valentes, formidáveis, não? Pois vai ver: roçam pelo teclado como uma ponta de asa pela superfície de um lago. Hão de me agradecer o tê-lo trazido cá...

– Ah, foi o senhor...

– Fui eu; por um acaso... Imagine que fui homem encarregado de contratar o pianista para a festa, e que só hoje, à última hora, me lembrei da incumbência!

– Sempre o mesmo! Aquele senhor então, veio remediar uma falta...

– E preencher uma lacuna. Com duas palavras vou fazê-la interessar-se por ele. Tinham-me dito que o Hipólito, chama-se Hipólito, vendera o piano há cerca de uns seis meses, para fazer o enterro à irmã, única pessoa da família que lhe restava ainda, e que morreu de penúria com outras complicações... Conheci-a, era um lírio; tanto este é de bronze como a outra era de cristal. Amavam-se como nunca vi; ele tocava-lhe as suas composições e ela entendia-o, ia até ao fundo do seu pensamento, numa admirável intuição de arte, toda feliz, toda orgulhosa daquele irmão. Através do seu corpo diáfano, como que se lhe via a alma iluminada e radiante. Era muito branquinha, muito branquinha... Pobre pequena! Desde que ela morreu sumiu-se o Hipólito.

Naturalmente, por mais que ele nos divertisse e nos fizesse falta, não o quisemos perturbar na sua mágoa. Compreendo que para um homem não há amor tão doce como o de uma irmã, nem que maior saudade possa deixar... Perdi assim de vista o meu maestro, até que, desabituado, não me tornei a lembrar dele, quando hoje, de repente, na ocasião mesmo em que eu me esbaforia atrás de um pianista para a soirée* da minha tia, encontrei-o cabisbaixo, contemplando as ruínas dos botins.

Pareceu-me um santo; agarrei-o com a possível veneração e fiz-lhe a minha súplica com tal ardor que ele acedeu trêmulo, numa ansiedade febril, titubeando:

– Há seis meses que não toco, desde que ela morreu... sabe? Não tenho piano, não frequento casas de música. Cavo a vida por outros modos... mas estou com saudades, muitas saudades!

Tinha a boca seca, sentiu-lhe o hálito ardente; convidei-o para tomar um chope.

– Não; tenho medo, respondeu-me. Estou com fome.

– Mais uma razão para ires tocar à casa da minha tia, respondi–lhe. Lá matarás a fome a peru trufado e as saudades do piano num excelente Bechstein**. Se não fosse tão tarde... Tens casaca?

– Não tenho nada.

– Há aí umas casas que alugam disso. Apressa-te; às dez horas deve romper a primeira valsa e já são oito. Toma o dinheiro para a casaca; comerás lá em casa. Foi tudo o que eu disse, à pressa, pensando em ir preparar-me também. E ele arranjou-se, não sei em que guarda-roupa, mas com uma brevidade que me espanta, visto que eu começava a temer... Sim, com dinheiro no bolso, em vez da casaca ele tinha razões de esfomeado para dar preferência a um jantar de restaurante. Não lhe parece?

– Parece. Vê-se que gosta mais de contentar a alma do que de satisfazer o estômago.

– Artista. Depois da primeira valsa vou fazê-lo cear... Por Deus! adoro estas organizações!

– Tem um certo sabor, a sua história; mas agora diga-me com franqueza, não receia que esse senhor heroico nos toque uma marcha fúnebre em vez de uma contradança? Olhe para ele!

– E a senhora ri-se!

Hipólito sentava-se. As abas da casaca pendiam-lhe murchas e amarrotadas, como duas asas de urubu doente. As suas mãos trigueiras, que o exercício do teclado desenvolvera, caíram sobre o marfim do piano num gesto ávido, de posse. O busto ossudo e longo arquejou-lhe num soluço abafado e duas lagrimazinhas ardentes subiram-lhe aos olhos áridos. Ninguém as viu; todo dentro de si, ele escutava, maravilhado, os sons que ia ferindo e que se seguiam em revoada, como um bando de aves libertadas de repente de uma clausura longa...

Rolaram notas macias, num prelúdio que foi como que uma carícia por todas as teclas, e desse prelúdio nasceu uma valsa, ora ritmada em graves, ora desdobrada em arpejos que iam e vinham num movimento doce e embalador.

Atrás dele já rodopiavam os pares. Carnes acetinadas, dos colos e dos braços nus, iluminadas pela poeira lúcida da brilhantaria, roçavam palpitantes o áspero pano das casacas. Ia crescendo o número de pares. Manchas azuis, rosas, brancas e violáceas giravam diáfanas, ora aqui ora ali, como nuvens do crepúsculo balouçadas pelo vento.

Inebriado, num gozo estático, Hipólito admirava-se que o piano obedecesse ainda tão bem aos seus dedos nervosos e à sua inspiração. A saudade da arte, a saudade dolorosa que havia tanto o pungia, desafogava-se enfim! Seria um sonho aquilo? Nunca a sua imaginação fora tão fresca nem tão abundante. O repouso dera-lhe novas forças; o sofrimento subtilizara-a.

Assim, Hipólito abstraía-se; ia perdendo pouco a pouco a noção do lugar.

A valsa seguia o seu curso, criando a cada compasso novos motivos, que, nascendo uns dos outros, se avolumavam de pequeninas fontes em cascatas, onde as melodias flutuavam como flores na torrente para se submergirem em harmonias, compactas e nunca repetidas.

E como aquela saudade não se contentava, a música era infindável. Algumas pessoas paravam extenuadas, mas vinham logo outras; dançava-se sempre, até que vozes impacientes gritaram:

– Basta! basta!

Não bastava. O artista, insaciado, não ouvia ninguém. Todo curvado, anelante, com os joelhos pontudos erguidos alternadamente pelo movimento dos pedais, os cotovelos magros unidos ao corpo trêmulo, as mãos enormes, ora leves como plumas, ora pesadas como ferro, na brancura do marfim, ele aspirava entontecido aquela música nascida do seu cérebro e da sua alma, tal como se ela fosse um aroma intenso que o perturbasse e ainda assim quisesse absorver.

Todos na sala olhavam para ele com pasmo, na vaga percepção de um mistério divino. Já nenhuma voz dizia: – basta! os lábios entreabriam-se de espanto, mas em silêncio.

Que música nova seria aquela, onde os sons borbulhavam num fervor contínuo, marulhando como a onda ou rompendo em remígios de aves gorjeadoras? Que música seria aquela, para levar de roldão, no leve compasso da valsa, risos e agonias, badaladas de sinos, frases de loucos e suspiros de amor?

Na densa espiritualidade daquele poema, sentia-se ofegar uma ânsia irrequieta, humana, de perfeição. O suplício de a atingir arrastava-se como um desejo eterno, sem esperança...

Pálido, convulso, sem sentir a fome que o dilacerava, o pianista agitava-se, transfigurado, com os olhos lacrimosos e a fronte enluarada. Dos seus dedos, fortes como raízes nodifloras, desabrochavam cachos de modulações, e ele vergava-se todo, como se por vezes quisesse beijar o piano.

Havia mais de uma hora que durava aquela valsa, e Hipólito tocava sempre exuberante, num alheamento místico, de sonho. Tocava já sem as blandícias dos primeiros compassos, já sem os esboços fugazes de motivos em sucessivo abandono, mas num esforço de vitória suprema, num desdobramento febril de sons que faziam do piano uma orquestra e da valsa uma marcha de triunfo.

Levantaram-se todos, lívidos de espanto. A solenidade daquela loucura, e a concepção de uma obra de arte e sua simultânea execução produziam em toda a gente o arrepio do gozo e o silêncio do pasmo.

Arquejante, surpreendido pela magnificência da sua criação, Hipólito, desvairado, alterou o compasso, desenvolvendo um trecho de sonoridades amplas, numa alegoria à Glória, digna de uma cantata.

Sem ver ninguém, ele recebia o influxo da admiração de todos.

As luzes irradiavam como o sol, a atmosfera carregada de aromas entontecia-o, e a fome estorcegava-lhe o estômago, fazendo-lhe escorrer pelas costas e os membros um suor de vertigem.

Não podia mais, vinha o cansaço, os pulsos amoleciam-se-lhe, uma nuvem escura ia-lhe a pouco e pouco toldando a vista... Feliz, naquela reconquista, ele teimava, teimava, cada vez mais fraco, já inconsciente, com os dedos erradios no teclado, de que levantava agora uma revoada de sons alucinados e confusos. Reaparecia o ritmo da valsa arrastando harmonias desacordes, nascidas ao acaso das mãos bambas...

O auditório que o aclamara começava a rir, ao princípio baixinho, depois mais alto, mais alto, até à gargalhada franca e brutal, quando, repentinamente, se calou assustado.

O rapaz da gardênia, com os olhos cheios de água, correu a acudir a Hipólito, que desmaiara sobre o piano.
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* Reunião social que acontece à noite.
** Marca alemã de piano.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Arquivo Spina 37: Artur José Carreira

 

Jaqueline Machado (Aruanda entre Nós) 2 - A Trilogia de Xangô


Capítulo da série: Aruanda entre nós - os mais belos contos sobre Orixás.
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Xangô é um rei justiceiro.
Ele vem lá de Aruanda...
Combate o mau feiticeiro
que trapaceia a demanda...


Reza a lenda que antigamente na cidade de Oió – Nigéria - um rei chamava a atenção de todos por sua retidão e senso de justiça. Na verdade ele também era juiz, chamava -se Xangô e tinha três esposas: Oxum, era a sua primeira mulher e por isso foi concedido a ela os dotes de dona de casa. Por ele a moça foi coroada como sendo a rainha do lar, bela, vaidosa, feliz e responsável pelas delícias... preparadas na cozinha. Oxum era radiante e mantinha o ambiente sempre alegre. Dos pratos que fazia, o favorito do rei era a sua feijoada. Não existia outra de sabor igual.

A segunda esposa não menos bela que a primeira, chamava –se Iansã, uma guerreira que parecia possuir a força de mil homens. Pois já havia vencido junto de outros guerreiros, inúmeras batalhas em nome do seu povo. Mesmo sendo ela tão brava e poderosa, conservava em si, um certo ar doce e sensível. E, foi justamente esse misto de força e candura, que fez dela, a favorita do juiz.

Já a terceira esposa, também era forte, guerreira e amada, mas talvez por ser um tanto calada sentia-se mais distante de seu amado do que as duas primeiras que eram mais falantes, faceiras e pareciam fazer o coração do rei vibrar a todo instante.

Obá, sabendo que Oxum havia conquistado o marido com sua poderosa feijoada, procurou saber da rainha do lar qual era o segredo mágico de sua receita. Oxum, percebendo as intenções da mulher, enciumou-se, e mentiu dizendo que o segredo estava em colocar uma lasquinha de sua orelha. Obá pediu licença a dona da cozinha para poder cozinhar uma única vez a seu amado. Com a devida licença concedida, a moça adiciona aos temperos um pedaço da própria orelha.

No jantar quando todos estavam à mesa, ela mesma fez questão de servir o marido, que ao provar a feijoada indagou o que havia de estranho na refeição. Ao saber que tratava -se de um pedaço de orelha e que Oxum havia mentido para uma de suas companheiras por ciúmes, ele empurra o prato e pune as duas. Obá foi enviada para uma distante região cheia de cachoeiras para que pudesse meditar sobre a vida. E a sua primeira esposa, responsável pelos cuidados com a casa, teve de afastar-se da cozinha por três longos meses.

O tempo passou e, mais sensatas, unidas e felizes, as mulheres do rei continuaram a fazer de tudo para agradá-lo. Ele, com gestos nobres, cuidava delas. E lutava para manter a ordem e o amor em sua nação.

Fontes:
Texto, trova e imagens de Xangô, Oxum, Iansã e Obá enviados pela autora.
Montagem da capa por José Feldman, com imagem de Aruanda obtida no site Belas Artes, sem autoria.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 4


Amor! RelÍquia tão rara,
ao relógio se aparenta:
com pouca corda ele para,
com muita corda... arrebenta!
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Aprende, amigo, a fingir
com quem não te sabe amar.
Não faças ninguém sorrir
com a dor que te faz chorar.
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Democrata ou social
— qualquer um que os povos tomem,
sempre o regime ideal
é o valor real do homem!
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É mais pobre do que o pobre
que disso tem sentimento,
o rico quando "descobre",
que o é por merecimento.
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Eu me sinto alienada
dos bens que a vida contém.
O tudo no mundo é nada,
e o nada é tudo também!
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Folha que segue a torrente
à sorte desconhecida.. .
É assim a vida da gente
e há tanto orgulho na vida!
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Há muita verdade omissa
na justiça que anda aí.
Em nome dessa justiça
quanta injustiça eu já vi!
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Hoje que o mundo é um deserto
de moral, de paz, de fé...
a gente procura o certo
mas já nem sabe o que é!
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Liberdade ! Os que propalam
o teu valor que constrói,
são os mesmos que se calam
quando a força te destrói.
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Mais ostentas teu orgulho
mais de ti eu tenho dó.
És como um dourado embrulho
por dentro cheio de pó.
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Menina feia, chorosa,
alegra teu coração.
Nem sempre a mais linda rosa
foi o mais lindo botão.
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Na hecatombe da montanha
tem o mundo o seu retrato;
tanto grito, tanta sanha,
"e a montanha expele um rato".
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Não esqueça um só segundo
de honrar a vida que tem.
Só o viver neste mundo
não enaltece ninguém!
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Neste mundo quem quiser
ter amor — precisa amar!
Mas o amor como Deus quer,
quem, no mundo, pode dar ?
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No mundo não esqueçamos
que os bens encontrados cá,
bem pouco tempo os guardamos:
a vida empresta — não dá !
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O homem — esse vagabundo
que é um gigante e um pigmeu,
busca mundos, e o seu mundo
ele jamais entendeu!
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Os males que não se espera
sorrateiros advêm.
E a gente se desespera
por outros que nunca vêm !
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Ostente com sobriedade
o muito que você tem.
Que também é caridade
não humilhar a ninguém.
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Para que o homem pudesse
sublimar sua alma nua,
foi mister que Deus lhe desse
a mesma Cruz que foi Sua !
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Para ser grande, serena,
um bom conselho segui;
fui me fazendo pequena,
quanto menor — mais cresci!
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Seja sempre enaltecida
a caridade de quem,
tendo bem pouco na vida,
divide o pouco que tem.
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Se na reta do teu mundo
qualquer nuvem te ameaça...
não recues um segundo:
para... olha... escuta e.. passa!
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Sofrimentos todos têm.
A paz nem sempre se alcança.
Mas, nunca se viu ninguém
vivendo sem esperança!
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Uma caridade há
que de vaidade se embebe.
Exalta àquele que dá,
humilha quem a recebe.

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 21: De graça

BARBIOLO TOMÁZIO chegou bêbado feito um gambá. De revolver em punho, encostou o cano da arma no ouvido do sujeito que conversava animadamente com sua esposa, dentro de casa, ou mais precisamente na porta do quarto de dormir do casal.

— Vou te matar, seu destruidor de lares — foi logo dizendo Barbiolo Tomázio, à figura que proseava com a sua patroa. Descobri tudo. Não adianta mentir. Você é o amante da minha mulher. Peguei vocês dois com a boca na botija. Se prepare para partir para os quintos. Comece a rezar. No três, eu puxo o gatilho. Lá vai: um... dois...

Apavorado, o rapaz começou a tremer pior que vara verde.

— Calma, meu senhor, muita calma nesta hora. Eu explico. Não sou amante de ninguém, apenas o namorado da filha de vocês. Não é mesmo, dona Cristina?

A companheira do bebum, quase teve um peripaque. Momentaneamente refeita do susto, balançou a cabeça num sim meio que destituído de entusiasmo. Mais aterrorizada que a própria criatura com a qual batia papo, achou por bem concordar.

Barbiolo Tomázio com a afirmativa da consorte, deu um passo atrás. Coçou a cabeça. Ficou meio pensativo e, por fim, guardou a arma na cintura.

— Desculpa. Bebi além da conta... fiquem a vontade...

Ia a meio caminho, em direção à cozinha, quando se voltou e se aproximou novamente do infeliz. Desta feita, Barbiolo Tomázio parecia mais colericamente furibundo que da primeira vez. Por esta razão, veio com a pistola engatilhada, pronto para não perder tempo e mandar o desgraçado para os braços frios da morte.

— Meu camarada — disse sem mais delongas. Acabou de acender uma luzinha aqui na minha cabeça...

— Uma luzinha, senhor? Que luzinha?

— Você disse que é o namorado da minha filha?

— Sim senhor. E sou mesmo. dona Cristina, acabou de confirmar. Acho que ficou tudo esclarecido entre a gente. Estou com a sua filha bem uns três meses. Eu ia até falar com o senhor...

— Como é o nome da minha filha mesmo?

— Bárbara, senhor...

— Eu acho que você não está em seu juízo perfeito. Sinto o cheiro de mentiras no ar... Tenho cara de besta? Ou pior: de corno? Responda...

— Como assim, senhor?

— Simples, meu chapa. Primeiro: isto é hora de estar namorando uma garota de família?

— Hoje é domingo. São quase três da tarde. Pretendo levar a Bárbara, a filha de vocês, ao cinema, se o senhor concordar, é claro. Dona Cristina, como pode perceber, não se opôs...

—... Segundo: acha que devo deixar um malandro da sua marca me passar para trás e me levar no bico? Cabra safado fique sabendo de uma coisa: eu bebi cachaça até dizer chega, não a consciência...

— Senhor, não estou levando a sua pessoa no bico. Tampouco me veio à mente lhe passar para trás. E me desculpe, não sou safado. Posso não parecer, mas sou uma boa pessoa. Tenho meu emprego, meu apartamento... agora pretendo comprar um carrinho... quero dar todo conforto à Bárbara, a quem amo de coração...

Barbiolo Tomázio, muito indignado e raivoso, abespinhado até dizer chega, literalmente soltou fogo pelas ventas.

— Só tem um porém, meu prezado.

— Um porém, senhor? Qual?!

— Tente adivinhar...

— Não faço a menor ideia. Seja mais objetivo, por favor.

Nesta altura, o fura coro, como todo medroso sem saÍda, se borrou todo.

— Você é o amante desta despudorada. Sujeito asqueroso e nojento.  Eu e Cristina não temos filhos, menos ainda uma filha com o nome Bárbara.  

Ato continuo, Barbiolo Tomázio berrou um três muito rápido. E, sem pestanejar, puxou o gatilho.

Um quarto sujeito que estava escondido debaixo da cama do casal, ao ouvir o tiro, e vendo que o rapaz que viera com ele caíra morto, saiu correndo e pulou pela janela. Foi preso logo adiante, meio da rua, por uma viatura da polícia militar que fazia a ronda.  O indivíduo estava  completamente pelado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

IV Concurso da UBT– Seção São José dos Campos (Prazo: 15 de agosto)


TEMA: CRIATIVIDADE


PERÍODO DE INSCRIÇÃO: DE 01/07/2021 à 15/08/2021

RESULTADO E ENTREGA DE DIPLOMAS: a partir de 01/09/2021

CRITÉRIOS:

1. Uma trova inédita por trovador

2. O Tema tem que constar no corpo da trova: ABAB, conforme regras da UBT.

3. A Inscrição pode ser por e-mail ou por envelope (dentro do envelope grande, endereçado ao responsável pelo recebimento, virá um envelope menor lacrado, com os dados do trovador – nome, cidade, estado, e-mail, - tendo na frente do envelopinho a trova digitada, colada).

4. A Comissão de Julgadores é soberana. Serão três julgadores por concurso. Os mesmos não participarão com suas trovas neste concurso em que for julgador. (Arlindo Hagen; Vanda Queiroz; Therezinha Brisolla)

5. Grupos:
Grupo 1: Nacional - em Língua Portuguesa; (VETERANO)
Grupo 2: Nacional - em Língua Portuguesa; (NOVO TROVADOR)

COORDENADORES:

1)Inscrição por e-mail: enviar para: fiel depositário = Hélio Castro: helio.castro@techsearch.com.br (helio sem acento)

2) Inscrição por envelope: A/C de Glória Tabet Marson
Rua Major Dietrich Ott, nº 71 – Jardim das Colinas.
CEP. 12242-111 - São José dos Campos, SP.


C) JULGADORES:

1. Arlindo Tadeu Hagen – MG
2. Vanda Fagundes Queiroz – PR
3. Therezinha Dieguez Brisolla – SP

D)COORDENAÇÃO GERAL
Maria Inez Fontes Ricco
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos - SP
mifori14@gmail.com

domingo, 27 de junho de 2021

Adega de Versos 32: Vanda Fagundes Queiroz

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 31 e 32


ENTRE FLORES


As flores estavam inquietas porque o arquiteto-paisagista havia projetado uma flor diferente de todas as existentes. O projeto fora encaminhado à comissão de notáveis, que deu parecer sugerindo a adoção da nova flor como a primeira do país e seu símbolo oficial.

“Com uma flor diferente de nós todas e erigida em marca nacional — murmuravam a um só tempo os crisântemos, as dálias, os cravos e muitas outras espécies, inclusive a flor de fedegoso, que pelo nome não era muito apreciada — institui-se discriminação no reino vegetal. Além do que, flor sintética não é flor que se cheire.”

A rosa não quis opinar, porque ainda conserva ilusões de rainha.

Uma deputação (comissão) de flores procurou o arquiteto-paisagista, que se recusou a recebê-la, mandando dizer que estava muito ocupado. Seguiu-se a greve floral durante 45 dias, em que ninguém mandava flores ou tinha condições de colhê-las, pois todas passaram a ter espinhos, e algumas, cheiro de enxofre.

Mesmo assim, a flor de proveta foi institucionalizada, e muitas variedades, como a cinerária, o lírio-amarelo e o jacinto, que antes formavam no coro das reclamantes, levaram-lhe cumprimentos no dia de sua glorificação. Os espinhos e o mau odor desapareceram, e até a rosa lhe mandou telegrama de parabéns e votos de eterno florescimento.
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EPISÓDIO VENEZIANO

A duquesa de Arrivabene apaixonou-se por um gondoleiro de Veneza e, para não deixá-lo um só momento, acompanhava-o no trabalho.

Frequentemente manejava o remo, deixando a cabeça do namorado repousar em seu colo alabastrino.

Era ciumenta a duquesa, e Paolo tinha de recusar passageiras cujo sorriso parecia demasiado promissor. Com o tempo, nem mais os homens eram admitidos na gôndola, que vogava ao sabor do capricho feminino, entre beijos que se diria capazes de inflamar a água do canal.

Paolo, exausto, quis fugir, mas sua amante ameaçou afundar com ele e com a embarcação, em derradeiro enlace amoroso.

A gôndola envelheceu, os dois também. Se já não se amavam como antigamente, é porque tinham chegado a formar uma só individualidade, meio carne meio madeira. Um dia o barco afundou, levando consigo os dois amantes, não se sabe se ainda vivos ou mumificados. Desde então os gondoleiros temem o amor das duquesas e preferem não transportá-las, pretextando que a gôndola está com defeito.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Sousândrade (Poemas Escolhidos)

ALABASTRO


Eis um vaso de puro alabastro
Que é a imagem de quem longe está,
Que ao noivado meu dera-me um astro
E que encerra um mistério. Sinhá,

Tenho-o sempre florido na mesa
Do trabalho, ou de amor a canção,
Ou rapsódias cantando do Guesa –
Enche-o hoje tua flor-da-paixão;

Ontem era a do luar, tão amada,
Que fenece do dia ante o albor;
Amanhã – diz tua carta encantada,
Porque vens, que não ponha outra flor.
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EM MEU PODER

Estás em meu poder. Sou vigilante;
Qual o cão velador guardo a muralha
Do meu rico tesouro:
Venturoso às manhãs do alvo semblante,
Quem das nuvens não teme que aura espalha
Ante o seu astro de ouro?

Quero embeber-me, eu só, no olhar de sombras,
Na solidão da mágica brancura
Me atordoar de amor;
Recostada dos luares nas alfombras
Toda sonora, o seio teu fulgura
Risonho, abrasador.

Estás em meu poder. Irradiante
Dessa vida de luzes e d'estrelas
Quer-te o tirano teu,
D'açucenas maviosas, exuberante
De alvor e força – que nas formas belas
Exista o gênio seu.
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SOMBRAS DAS ÁRVORES

– Que divindade! sinto
Uma aura tão gentil
Me acariciando a fronte,
Céus, mares, terra abril!

Ao seio azul profundo
As palmas reluzindo
Auro verdor; urúbis
À imensidão subindo:

Meus bosques luminosos
Às calmas de meio-dia,
Um Deus por toda parte
E n'alma esta harmonia

Do amor! o amor de tudo
Quanto respira e sente,
Das minhas selvas puras
do meu sol candente!

– Que divindade! uma aura
Tão leve, tão gentil
Me acariciando a fronte,
Céus, mares, terra abril!

E as borboletas ouros,
em flor o roseiral,
Longe o mugir dos touros;
este rubi-cristal.

Sempre no coração!
Esta saudade-serva!
Esta humildade-relva
De amor e exaltação!

Lázaros do sepulcro
A levantei! a cruz –
Quebrei-lha! Um riso pulcro
Resta... Apagou-se a luz!
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ZELOS DE LALÁ

Abençoada a hora em que odiei-te
Tão vulgar! abençoada seja a hora
Em que, mais digna de ti mesma, amei-te,
E açoito-te ainda, pois – que linda agora!

Porém... aonde vai-se ela às noites, quando
Ao serão todos brincam reunidos?
Sua mãe enferma, a olhar, petrificando,
Olhos na escuridão e os lábios lívidos.

Olhava, olhava: sombras esgueiraram
Na treva que aos abismos assemelha.
Silenciou-se; entristeceu-se. Uivaram
Os bosques ao trovoar por noite velha.

Só, deserta na sala e sem vir nunca
Quem ajudava a triste a recolher,
Amanheceu qual fosse uma defunta
Que não pôde na campa adormecer.

Fonte:
Sousândrade: inéditos. São Luís/MA: 
Departamento de Cultura do Estado, 1970.

Marcelo Henrique Marques de Souza (O trem)

Há um bom tempo procura um botão, ou outro dispositivo qualquer. Queria fazer sinal, descer do trem. Não achou. Insiste, mas sem sucesso.

Cola o rosto no vidro de uma das janelas. A noite corre estranha, distante. Soberana demais. Não consegue distinguir o pescoço dos postes de luz, devido à densa neblina.

Passa por uma senhora bem vestida, cujo rosto parece familiar. Sabe aonde é a saída? Quero descer... A velha olha-o de cima a baixo, condescendente. Como se já conhecesse a pergunta. Não é assim que as coisas funcionam, meu filho... Devia ser louca, só pode.

Decide questionar o maquinista. Certamente saberia o destino final e o tempo até a próxima estação. Ultrapassa os vagões, um por um, sem parar. Ninguém parece incomodado. Todos agem como quem sabe onde está indo.

De repente, esbarra num vagão diferente. Há pinturas nas paredes e nos assentos, a maioria num estilo renascentista. Excesso de tons claros e temas religiosos impregnam o ambiente. A maioria das pessoas permanece sentada, todas com as mãos no rosto, na posição típica das orações.

Pergunta, então, baixinho, a um dos presentes – o primeiro que levantou os olhos –, aonde poderia encontrar o maquinista.

Recebe de volta um olhar desconfiado, que diz Aqui é o último vagão. Se quiser mesmo falar com o maquinista, é preciso ter fé e orar bastante...

Começa a entrar em desespero. O absurdo da situação o leva a questionar-se acerca da própria sanidade. Teria a sentinela da normalidade caído num sono profundo, desses que sucedem as longas caminhadas?

Fazia o caminho de volta, quando de repente sentiu um leve incômodo nos olhos. Estranhamente, fortes raios de sol invadem o trem, como dia mais alto a substituir a noite mais densa, de uma hora para outra.

Resolve sentar um pouco. Há bancos vazios neste vagão.

Respira fundo e julga apropriado pensar um pouco, sem pressa.

Que trem é esse? Não há trem nessa cidade. Qual seria a estação inicial? E para onde ele vai?

Nesse momento, outro homem senta-se ao seu lado. Tem um aspecto professoral, óculos típicos, barba imponente. Arrisca a pergunta: – Desculpe incomodá-lo, mas sabe para onde estamos indo? O homem massageia a barba por alguns instantes, enquanto formula alguma coisa: – Meu caro, não sei exatamente para onde estamos indo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: estamos indo depressa demais...

Como assim? Então, além de tudo, estamos infringindo as leis de velocidade?

Não que as leis de velocidade sejam padrões inatacáveis...

Mas o fato de não haver um padrão deveria significar uma variação da velocidade. E não é isto que estamos vendo. O velocímetro só aumenta o ritmo...

Apesar do crescente contrassenso da situação, a postura moderada do outro homem acomoda-lhe um pouco o espírito. Talvez seja a sensação da dúvida compartilhada. Sabemos das fobias da natureza humana e sobre como qualquer devaneio dividido por duas ou mais almas acaba sempre recebendo as benesses alucinógenas da mimesis.

Tenta olhar novamente pela janela, mas os raios de sol impedem. O máximo que consegue perceber, muito fosco, é que, de fato, a paisagem parece mesmo cruzar os ares rápido demais. Uma velocidade que realmente preocupa.

Volta os olhos para o banco ao lado. O homem sumiu. O frio dos cumes do desespero retorna a apertar-lhe os ossos. E nota, chocado, que a sua angústia não parece merecer a atenção de ninguém. Nenhum dos outros passageiros sofre o seu sofrimento, que se mostra único, solitário, intransferível.

Apoia os cotovelos nas coxas e abaixa a cabeça. Mãos na testa, esconde o rosto como se buscasse ocultar-se em algum porão inabitado.

E então se lembra do filho. Estão brigados há mais de uma semana. Coisa boba, último pingo de um pequeno copo, incompatibilidade de gerações. Objetivismos não faltam para explicar o que é sempre muito mais amplo do que eles. Mais do que tudo, sente uma repentina e incurável saudade do menino. Dessa saudade, escorre uma lágrima, que vai parar na porta dos olhos. Que não conseguem impedi-la, em sua fome de liberdade.

Enquanto sofre a lágrima a descer pelo rosto, de lá do escuro porão de seus olhos fechados, sente, de repente, um forte solavanco, como se o trem a passar por cima de alguma pedra grande, ou outro tipo de obstáculo.

Abre os olhos assustado, enquanto limpa o rosto. E constata, perplexo, que o trem sumiu. Sumiu! O que antes era o banco do trem, agora é um banco de praça. Algumas nuvens brandas cercam o sol, mas ele resiste, bravo e solene.

O olhar continua pasmo. Como se a buscar, em vão, um corrimão, para apoiar a descida íngreme numa estreita escada. Como viera parar aqui? De onde veio essa praça? E o trem, para onde foi?

De repente, avista o mesmo homem do trem. Passa num andar calmo, a mesma calma no semblante. Mas veste roupas diferentes. Não faz sentido...

Levanta-se rápido, ainda atordoado. E resume suas angústias numa pergunta que escapa distante, apoiada pelos braços, que apontam em todas as direções ao mesmo tempo: – O que é isso??...

O homem retarda o passo, até parar. Olha para cima e inspira fundo, como a alimentar o fundo da alma com todas as células do dia. E responde, saciado, de dentro de seu olhar sereno:

– É a vida, meu amigo. É a vida…
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Marcelo Henrique Marques de Souza, escritor, ensaísta, poeta, pesquisador e professor. Autor de sete livros, sendo dois ensaios, dois de poemas, um de contos, um de artigos científicos e um de aforismos. Graduado em Comunicação Social e integrante do Grupo de Formação da NovaMente – Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Articulista do programa de rádio Debates Culturais, antes na Bandeirantes AM, hoje na internet.

Fonte:
Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (org.). Coletânea de contos & crônicas [recurso eletrônico]. Vitória/ES: EDUFES, 2015. (Coleção II Prêmio Ufes de Literatura)

sábado, 26 de junho de 2021

Varal de Trovas 511

 


Lima Barreto (A Cartomante)

Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer coisa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom "pistolão", toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia Ter vivido até ali. Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos.

Queria fugir, fugir para bem longe, onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas, como fugir?

Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!

A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era "coisa feita", havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído. Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal.

Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa. Bem! As coisas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida.

Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.".

Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã.

Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá.

O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo.

Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce.

Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito.

O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: 
Unama. Publicado originalmente em 1920.

José Albano (Poemas Avulsos)

SONETO II


Ditoso quem foi sempre desamado
Nem nunca na alma viu pintar-se o gozo
Que lhe promete estado venturoso
Para depois deixá-lo em triste estado.

Já me de todo agora persuado
De que não pôde haver brando repouso
E do afeto mais doce e deleitoso
Se gera às vezes o maior cuidado.

Não quero boa sorte nem sonhá-la,
Pois logo passa, apenas se revela,
Com uma dor que outra nenhuma iguala.

Mas quem desconheceu benigna estrela,
Se não teve a alegria de alcança-la,
Nunca teve o desgosto de perdê-la.
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SONETO III

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido
Sem um suspiro vão, sem um gemido
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido
E todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido por dinheiro
E entre ladrões morrer crucificado.
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SONETO IV

Mata-me, puro Amor, mais docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei sempre e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
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ODE À LÍNGUA PORTUGUESA

Língua minha, se agora a voz levanto,
Pedindo à Musa que me inspire e ajude,
Somente soe em teu louvor o canto,
Inda que a lira seja fraca e rude;
E tudo quanto sinto na alma, e digo,
Já que na alma não cabe,
Contigo viva e acabe — só contigo.

Língua minha, dulcíssona e canora,
Em que mel com aroma se mistura,
Agora leda, lastimosa agora,
Mas não isenta nunca de brandura;
Língua em que o afeto santo influi e ensina
E derrama e prepara
A música mais rara – e mais divina.

Língua na qual eu suspirei primeiro,
Confessando que amava, às auras mansas
E agora choro, à sombra do salgueiro,
Os meus passados sonhos e esperanças;
Na qual me fez ditoso em tempo breve
Aquela doce fala
Que outra nenhuma iguala — nem descreve.

Língua em que o meu amor falou de amores,
Em que de amores sempre andei cantando,
Em que modulo os mais encantadores
E deleitosos sons de quando em quando;
E espalho acentos inda nunca ouvidos
De mágoas e de gozos,
Queixumes amorosos — e gemidos.

Sempre e sempre eu te veja meiga e pura
Naquela singeleza primitiva,
Naquela verdadeira formosura
Que farei que no verso meu reviva.
E, se apenas um pouco se revela
Desse encanto jucundo,
Há de mostrar ao mundo — quanto és bela.

Outros andam o teu sublime aspecto
De ornamentos estranhos encobrindo
Sem saber o que tens de mais secreto,
De mais maravilhoso e de mais lindo:
Em ti já não se nota o mesmo agrado
E eu não te reconheço,
Se o teu valor e preço — é rejeitado.

Quanta e tamanha dor me surge e nasce
De nunca ouvir aquele antigo estilo,
Mas eu fiz que ele aqui se renovasse,
Para que o mundo enfim pudesse ouvi-lo.
E com todo o poder de engenho e de arte
Foi sempre o meu desejo
Ver-te qual te ora vejo — e celebrar-te.

Ah! como assim me enlevas e me encantas,
Ora chorando e rindo, ora gemendo;
E, se outros te ofendem vezes tantas,
Embora solitário, eu te defendo:
Eu te defenderei sem ter descanso
E em luta não inglória
Tu verás que a vitória — e a palma alcanço.

E em pago disto peço que me imprimas
Maior ternura na alma e não ma agraves;
Dá-me versos dulcíssimos e rimas
Eternas, peregrinas e suaves:
Dá-me uma voz melodiosa e amena,
Para que noite e dia
Diga a minha alegria — e a minha pena.

E não quero um som alto e retumbante
Para cantar d'amor ao mundo atento,
Pois não há língua que d'amor não cante,
Mas, nenhuma traduz o meu tormento;
Nenhuma se conhece que translade,
Afora tu somente,
Do coração doente — a saudade.

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 27

Leituras, leres, livros fazem parte da busca permanente de conhecimento e cultura. Também dileção, naturalmente.

Para sermos variegados de ideias, pensares, informações, precismos de leituras. E gostando ou não gostando das primeiras incursões no hábito de ler, logo um autor nos absorve (ou o absorvemos) pela narrativa, pelos conceitos, estilo, aproximação de pensamentos, interesse no texto.

Surge a empatia, o gosto, o prazer, a necessidade. Aguçamos o espírito, afiamos as ideias, clareamos o pensamento. Das leituras o lucro perene - conhecimento, saber, cultura.

Bem escreveu Bill Gates: " A leitura ainda é a principal maneira de aprender coisas novas e testar nossa compreensão ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Jaqueline Machado (Tempo)

Tempo é vida. E se gostamos de viver, devemos saber multiplicar o nosso tempo. Muitos existem por longa data. Mas vivem pouco. Vivem nada. Não percebem que o tempo é o nosso bem mais precioso. E, podem crer, um minuto perdido, nos faz falta. Há dias em que a vida vale mais a pena. Há dias que parece ter valido por anos. Essa sensação acontece quando conseguimos, por algum motivo, multiplicar o tempo a nosso favor.

Porém, essa sensação gostosa de dever cumprido, de tempo bem aproveitado, deve e pode ser sentida todos os dias. Temos que ter em mente um planejamento bem definido das metas que desejamos. E lutar para alcançá-las. Mas muitos, com medo da felicidade, deixam para amanhã o que poderia ser feito hoje. E essa é a forma mais comum de desperdício de vida. Por medo de viver, a maioria dos homens morrem levando junto de si para a sepultura os mais belos sonhos. Não podemos ter receio de mudar.

Não podemos ter medo de existir, de nos entregarmos nos braços da alegria... E saibam que é possível viver dez anos em apenas um. Tudo depende da qualidade dos nossos objetivos e da coragem que temos para ousar independente do tempo de vida que possamos ter. Pensem:

Vale mais a pena viver um ano plenamente feliz, do que cem anos chorando.
 
Fonte:
Texto enviado pela autora.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 3 –

A amizade é joia rara,
nem sempre tem sido assim,
para quem nunca zelara
só resta chorar seu fim.
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À força que o vento tem
tudo agita, treme ou cai.
Ninguém sabe donde vem
tampouco para aonde vai.
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Antigamente, à partilha,
mais valor era agregado,
o amor que unia a família
hoje, está quase apagado.
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À paz, caminhas sorrindo,
sempre buscando a igualdade,
enquanto vais, Deus vem vindo,
pra abraçar a humanidade.
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Basta uma oportunidade
para o talento aflorar,
misto de audácia e vontade
faz o sonhador vibrar.
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Cada passo dado à frente
não tenha dois pra voltar,
melhor andar lentamente
que correr e não chegar.
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Com a noite não se iluda,
se nela a luz não permeia,
à noite a lua não muda
a não ser, de nova à cheia.
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Desce a noite e cobre a tarde
espalhando a nostalgia,
igual a um braseiro que arde
na última brasa do dia.
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Deus mantenha sempre unido
todo o grupo familiar,
filhos, esposa e marido,
num aconchegante lar.
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Do silêncio mais profundo
que alguém deseja provar,
seja o silencioso mundo
do seu ser a questionar.
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Dos projetos mais serenos
que acalentas em teu ser,
sejam grandes ou pequenos
são frutos do teu viver.
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Em constantes mutações
o mundo, hoje, se apresenta,
fruto das "revoluções",
ou das pedras que ele enfrenta.
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Frente à flor despetalada
o beija-flor nem lastima,
Diz: – Volto noutra florada,
pra buscar matéria prima.
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Lá, na torre, o sino toca,
pra oração da Ave Maria,
frente à noite nos coloca
no final de mais um dia.
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Mesmo que a morte cessasse
de o medo, no homem crescer,
fá-lo advir desde que nasce,
se estendendo até morrer.
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Não basta olhar-se de frente
movidos pela emoção,
olhe o casal, firmemente,
sempre à mesma direção.
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Não deixe as trevas crescerem
em tamanho e intensidade,
tampouco, a vida envolverem,
no lençol da obscuridade.
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No tilintar do badalo
o estrondo quase estremece,
cresce à medida que o estalo
retumba e depois fenece.
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Num campo todo florido
vejo mais que o seu fulgor,
sinto o mundo renascido
e um futuro promissor.
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Nunca falte o pão na mesa
nem a vontade de obtê-lo,
tendo a fonte à natureza
quem o obtém possa comê-lo.
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Nunca seja acomodado.
nem desafie o perigo,
pois, caminhando ao seu lado,
pode estar um inimigo.
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O elevador sobe e desce
sem a menor distinção.
Pede que ele te obedece
sem reclamar da missão.
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O filho nunca envelhece
face os seus diletos pais,
sempre um bebê lhes parece,
quando envelhece, jamais.
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Os mais sublimes valores
sempre deves cultivar,
para não colher horrores
nas lavouras do teu lar.
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O sol, com seus raios fartos,
brilhando de dia, atua,
o homem pra dormir, tem quartos,
diferentes dos da lua.
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Quem não come o que apetece
come mal ou passa fome,
não comendo o ser padece
e o corpo assim se consome.
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Saudade, fruta colhida,
nos pomares do passado,
seu sabor, espelha a vida,
refletida ao nosso lado.
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Saudade, se torna o fruto,
quase nunca adocicado,
guardado em estado bruto
no celeiro do passado.
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Se a dor se tornar aguda
difícil de suportar,
peça a Deus a Sua ajuda
para o dilema enfrentar.
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Teimosia e intransigência,
o embrião da petulância,
semelhantes pela essência,
berço eterno da arrogância.
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Verdes lençóis estendidos
na forma de parreirais,
fonte de vinhos, servidos,
em nobres cerimoniais.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.