quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 9

 

A. A. de Assis (Ser com os outros)

Viver é uma graça, con-viver é graça imensamente maior. “Não é bom que o homem esteja só”, ensinou o Criador na inauguração do paraíso. “No man is an island” (nenhum homem é uma ilha), adicionou o poeta John Donne. Ser com os outros. Porque sem os outros não somos.

Em tudo e para tudo somos interdependentes. Sirva de exemplo isto que estou fazendo agora, dez horas da noite. Esta crônica não tem um autor, tem coautores. Senão vejamos: se escrevo, é porque aprendi a escrever com alguém, desde minha primeira professora até cada uma das pessoas que, de algum modo, me ajudaram a conhecer as letras, formar palavras, frases, organizar ideias.

É também porque alguém inventou a máquina de escrever, depois alguém criou o computador. Alguém me ensinou a datilografar, digitar, colocar o escrito no papel ou na tela.

Até chegar a você, meu texto passará por não sei quantas ferramentas postas à minha disposição por não sei quantos profissionais. Se pela internet, chegará mais rapidamente. Se pelo jornal, passará pelo editor, pelo paginador, pelo impressor, pelo correio, pela banca de revistas, pelo entregador, e só terá razão de ser se você completar a operação como leitor.

Uma lâmpada (sem a qual eu agora estaria no escuro) ilumina a sala onde me encontro escrevendo. Do inventor da lâmpada a todos os que a fizeram chegar até aqui, muita gente trabalhou em meu benefício.

E ainda há os que construíram a hidrelétrica de onde vem a energia, e todos os que, neste instante, realizam algum serviço a fim de garantir a presença da luz neste ambiente. Não posso imaginar quantos estão me ajudando.

As próprias energias do meu corpo são devidas a não sei quantas pessoas. O pão, o leite, o feijão, o frango, a salada, o arroz, as frutas, tudo o que comi e bebi hoje foi produto do trabalho de gente que nem conheço. E acrescentem-se os que fabricaram os remedinhos indispensáveis a pessoas da minha idade. Sem isso eu não poderia estar escrevendo.

Alguém fez também esta cadeira em que estou sentado, a mesa em que estou trabalhando, a roupa que estou vestindo, os óculos que me facilitam a visão, os chinelos que me protegem os pés, o copo em que acabo de beber a água que alguém fez chegar à minha casa. Isso sem falar de todas as gentilezas que recebo de minha família em todas as horas.

Viver é uma graça, con-viver é graça imensamente maior. Eu não sou. Você não é. Nós somos. Todos nós somos, cada um ajudando cada outro a realizar seu papel na história. Deus quer assim, para que vivamos fraternalmente.

Quantas pessoas nos deram as mãos para que chegássemos a esta altura da vida em condição de continuar fazendo algo de útil pelo bem da humanidade?
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 09-12-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita: Narrador e foco narrativo)

Muitas vezes confundimos os conceitos de narrador e foco narrativo (ou ponto de vista).

O narrador é quem conta a história, podendo ser, grosso modo, em primeira pessoa (narrador definido) ou em terceira (indefinido). Já o foco narrativo é em quem a narração está centrada.

Um texto costuma ter um único narrador, com mudança de capítulo quando há troca. Já o foco narrativo pode variar de uma cena para outra, e é possível inclusive que haja mais de um foco narrativo na mesma cena (imagine uma briga de casal, por exemplo).

Quando o narrador do texto é em primeira pessoa protagonista, narrador e ponto de vista se confundem, pois na maior parte da história o ponto de vista será o do narrador.

Já quando o narrador é coadjuvante, como em Sherlock Holmes, o ponto de vista varia e o autor precisa ter tanto cuidado quanto nos casos de narrador em terceira pessoa.

No caso do narrador em terceira pessoa é quando a diferença entre os dois conceitos fica mais clara. Imagine que em um filme o narrador seja a câmera, ela (ou quem está filmando) é que conta a história. Mas quem a câmera acompanha? Esse é o ponto de vista.

Confira um exemplo curioso, o curta-metragem Feast (https://www.youtube.com/watch?v=xS4Bq37EtGI), em que a história de um casal é contada a partir do ponto de vista de um cachorro.

Note que o narrador não é o cachorro. O narrador, pensando em conceitos de escrita, é em terceira pessoa. Mas toda a narração é do ponto de vista do cachorro, então tudo o que o espectador irá ver é o que o cachorro está vendo (não sabemos, por exemplo, o motivo da briga do casal ou como se conheceram).

Vale lembrar aqui o conceito de onisciência do narrador. Quando o narrador sabe o que determinado personagem sente ou pensa ou lembra, é porque o foco narrativo está nele. Daí a importância de preferirmos narradores oniscientes seletivos a oniscientes.

Por fim, cuide para não usar focos narrativos demais em uma cena, sob o risco de deixá-la confusa. E procure mudar de parágrafo a cada vez que mudar o foco narrativo, a não ser que haja uma alternância proposital e funcional dentro da cena (como no exemplo da briga de casal).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 23: Padre Celso de Carvalho

 

Benedita Azevedo (A outra margem do rio)

Cresci às margens do rio e nele encontrei um amigo, um companheiro de todas as horas. Tudo ali girava em torno de suas águas vivificadoras. Elas alimentavam todos os seres: animais, vegetais, minerais e à minha imaginação, desde cedo, ilimitada, obra do criador.

Logo ao nascer do sol, a neblina que se estendia por todo seu leito, em meu campo visual, da minha casa à curva distante do rio acima, me envolvia e tornava-me parte daquele mundo de sonho infantil. À medida que o sol se erguia e as águas do rio emergiam daquele mundo leitoso, em suave deslizar, em crespas correntezas, com remansos aqui e acolá, eu também ia acordando para o dia e para a vida.

As tarefas diárias começavam ali, às margens do meu rio. Sempre acompanhada de algum adulto, eu nadava, primeiro com as mãos apoiadas ao fundo, perto da margem esquerda, onde morávamos. De uma hora para outra me soltei e fui além, sob o olhar cuidadoso de quem me acompanhava. Recebi orientação de que, aquela beleza superficial do rio, poderia tornar-se perigosa, caso nos aventurássemos sozinhos, sem conhecer os segredos de suas entranhas, e, assim como podia alimentar toda a cadeia da vida, também poderia matar.

Tomando consciência, à medida que crescia, procurava conhecer melhor os segredos das águas e como navegá-las com segurança. A cada dia, vibrava com os avanços conquistados. Não satisfeita em conhecer os segredos e tomar intimidade com meu rio, resolvi atravessá-lo.

Do lado esquerdo, onde morávamos saí, e, à medida que eu avançava, as águas iam se aprofundando. Olhei para traz, percebi que estava a um quarto da distância total de uma margem a outra. Parei já com água ao pescoço. Prosseguia ou voltava? Minha curiosidade era maior. A correnteza tornara-se forte, precisei muito esforço para não me deixar levar. Sabia que a partir daquele ponto precisaria nadar com meus próprios braços e pernas.

Respirei fundo, e me pus em movimento. A correnteza era muito forte e tive medo de não conseguir. Estava a meio rio. Olhei a margem oposta à que morava e achei muito distante de onde estava. Perscrutei um ponto bem abaixo, em relação à margem esquerda, de onde saí. Não me parecia ter nenhum obstáculo. Já estava cansada. Resolvi boiar e nadar tipo cachorrinho, sem me debater contra a correnteza. Consegui respirar e me acalmar. Cheguei à outra margem, bem distante do local onde planejara. Saí da água, sentei-me sobre a tabatinga e ainda ofegante, olhei a minha margem do rio.

As casas entre as árvores desapareceram, inclusive a nossa, ficando à mostra somente parte do telhado. Parecia-me, agora, desnuda, com vários pontos de erosão em meio às plantações dos ribeirinhos. Dali, eles tiravam o sustento, hora plantando, ora pescando. Viviam daquela rotina e os filhos seguiam-lhes os passos. Provavelmente, poucos conheciam o outro lado.

Levantei e andei rio acima, a realidade circundante era totalmente diferente daquela que imaginava, vistas através da neblina matinal e o fogaréu do por do sol em cada outono. O sol brilhando na tabatinga, a areia branquinha num triângulo formado pela foz de um riacho cheio de peixes que desaguava no rio, em suave marulhar. Senti um arrepio ao contato da água fresquinha, nas pernas, ao atravessá-lo. Mais à frente, as mangueiras que me pareciam mata fechada, à visão da outra margem, agrupavam-se deixando os raios do sol alcançar o chão repleto de frutas maduras e cheirosas. Colhi uma e fui degustando enquanto caminhava rio acima. A certa altura, percebi que a diferença de um lado e outro era muito acentuada. Apurei minha atenção e vi detalhes que não conhecia do meu lado do rio. A esguia palmeira por trás do telhado alongava-se rumo ao céu azul e o sol matinal, ali próximo, brilhava em reflexos multicores distribuindo a energia que me dera condições de ali está, do outro lado do rio, em deslumbrada admiração.

Perambulei um bom tempo em variadas direções. Descobri tanta coisa que ainda não conhecia e, principalmente, a beleza e energia do sol matinal, vista de frente, do outro lado do rio.

Aprendi que nem sempre as coisas são como parecem. Que precisamos enfrentar a correnteza, mas, não nos deixar levar por ela. Nadando sempre em frente calcular os perigos, boiar e sem cansaço ou medos, seguir até a outra margem, aprendendo a transitar de um lado a outro com segurança.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 7

AFETOS  INOCENTES


Não preciso te mostrar... tão amorosa...
Para quem fique infeliz com a alegria
Luminosa que celebra a fantasia
De quem sabe cultivar botões de rosa.

Nosso muro de amor guarda um jardim...
Beija-flores já nos bastam... polinizam
Nossas cores indeléveis que harmonizam
Esse amor que mora em ti e habita em mim.

Já não somos como dois  adolescentes,
Mas a nossa  sublime felicidade
Sempre brota com a pureza das sementes

Que eclodem frágeis, porém resistentes
E mesmo ante a dor de uma adversidade,
Nossos sonhos são afetos inocentes.
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A MAGIA DA PRESENÇA

A nossa triste solidão mais egoísta
tira da lista os amigos mais fiéis...
É sempre assim que a gente perde o que conquista,
pois nossa lista passa a ter poucos viés.

São tão cruéis as solidões propositais,
Tiram a paz de quem escolhe o abandono
e ter um pouco só de amor nunca é demais,
porque a dor é que nos faz perder o sono.

Por mais que a voz chegue gritante ou digitada,
nunca diz nada, comparada à  companhia,
porque a magia da presença inusitada

é iluminada  pelas cores fraternais
que são capazes de enfeitar de fantasia,
essa alegria que nos torna tão... iguais.
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APENAS ISSO...

Mais que nunca, somos seres tão pequenos
Ante tudo que é  divino que Deus faça...
Todos buscam, do Senhor, alguma graça,
Preocupando-se  com  bens fúteis, terrenos.

Só vaidade - alguma vezes necessária
À  tristeza ante a cara no espelho...
Xô, Narciso ! Grita alguém... mas o conselho
É repleto de uma inveja tão... hilária...

Precisamos de amparo... apenas isso!
...que é  tão fácil... basta somente  um abraço
Ou palavra...um olhar afetuoso,

Ou carinho que  se dê... sem compromisso
Com  emoção, quando o amor tornou-se escasso,
num silêncio que ainda grita... de teimoso.
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DOM QUIXOTE DE MIM MESMO

Dom Quixote de mim mesmo, cruzo a  estrada,
Sancho Pança não é mais meu escudeiro
Percebeu, na minha saga tresloucada,
Que um moinho não agride um cavaleiro,

Sou poeta, minha pena é minha lança,
Minha espada, meu escudo e armadura,
Sigo o sonho e onde minha vista alcança,
O amor move a esperança... com ternura.

Meu enredo é  muito  simples: sou herói
De mim mesmo, busco ser original
E até quando uma dor qualquer me dói,

Faço dela uma nova alegoria,
Onde ponho o meu sonho ideal
E transformo  um Dom Quixote... em poesia.
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MIOPIA DE POETA

Um poeta enxerga a vida como a Lua,
Olha os homens, quando a noite é mais escura...
A ternura de um olhar na face nua
Faz brilhar o outro olhar que se procura.

A nenhuma criatura interessa
Pôr as peças na engrenagem da razão,
Porque, quando um coração não se confessa,
Ele mostra o quanto é livre a emoção.

Um poeta tem miopia, quando sonha,
E é no verso, mais lírico que ele componha,
Que repousam os olhos de um sonhador

Entretanto, se ele enxerga a fantasia,
Seu sonhar brinca de amar com a poesia
E extasia a sensação do próprio amor.

Milton S. Souza (Jesus Noel)

Jesus Cristo resolveu dar uma chegadinha na terra para ver de perto como estavam comemorando a data do seu nascimento. Com aquela mesma roupa simples que ele caminhava nas margens dos mares da Galiléia, apareceu numa cidade grande exatamente naquele dia que antecedia o Natal. Seus olhos claros, acostumados a refletir todos os tipos de luzes, chegaram a ficar doendo com a intensidade das iluminações natalinas. Mas ele logo se acostumou. E resolveu dar uma caminhada para saber como as famílias estavam se preparando para a festa.

Arrastando as suas sandálias pelas ruas, Jesus bateu em várias casas. Mas logo que os moradores divisavam o seu rosto barbudo e avistavam as suas roupas simples, nem esperavam que ele falasse: já iam dizendo que não tinha nada para dar de esmola e mandando que ele viesse outro dia. Jesus nem conseguia passar as cercas de grades. Ninguém abria o portão. Em algumas casas, ele teve mais sorte: trouxeram um prato de comida e estenderam para ele através da cerca de ferro. Alguns até desejaram feliz Natal, mas sem se aproximar muito. Jesus caminhou pelas ruas, sem nada conseguir, até perto da meia-noite. Foi então que aconteceu um milagre que abriu todas as portas para o Filho de Deus...

Nem parecia milagre: Jesus estava caminhando numa calçada quando um homem, nervoso, perguntou se ele não queria ganhar alguns trocados sem trabalhar muito. O homem disse que não aparecera o Papai Noel que ele havia contratado para entregar os brinquedos dos seus filhos. E pediu para Jesus vestir a roupa de Papai Noel e fazer a entrega. Ele pagaria. Jesus aceitou. Vestiu a máscara e a roupa vermelha e, milagre dos milagres, conseguiu entrar em uma luxuosa casa.

Depois de entregar os presentes, mesmo não tendo muita prática na profissão, Jesus foi saindo da casa, juntamente com o homem, que tentava pagar pelo trabalho. Jesus, ainda fantasiado, disse que não precisava de dinheiro. O homem, então, fez a seguinte proposta: “Quem sabe tu ficas com esta roupa de Papai Noel. É bem novinha e tu pode vender e fazer algum dinheiro com ela”. Jesus aceitou. E, sem tirar a fantasia, voltou a caminhar pelas ruas. Os foguetes de Natal já estavam começando a explodir...

Pois foi exatamente a roupa vermelha e a máscara que abriram novas portas para Jesus. Muitos diziam “Entre, Papai Noel”, “Venha jantar conosco, Papai Noel”. E Jesus recebeu centenas de abraços e votos de feliz Natal. Sem entender bem o que estava acontecendo, Jesus foi saindo de fininho. Logo que sentiu que ninguém estava olhando, tirou a roupa de Papai Noel e voltou a caminhar pelas ruas, agora sem ser notado por ninguém. Enquanto voltava para o seu céu, onde as estrelas cintilavam alegres para aplaudir a sua chegada, Jesus tomou uma decisão: “Acho que vou começar a festejar o meu nascimento em outra data. No Natal não dá mais. Todo mundo festeja somente o nascimento deste tal de Noel, que eu nem lembro direito quem é...”.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Adega de Versos 63: Maria do Rosário Bessas

 

Sammis Reachers (A garganta do Topete)

Sim, essa é outra história de nosso querido Paulo Paixão, o homem que vive em apuros.

No tempo de Fagundes, Paulo fazia o chamado turno duplo. Após a primeira pegada ou etapa, os carros eram levados para a Ilha da Conceição, em Niterói, onde se localizava uma garagem de apoio da empresa.

Bem, diversos motoristas largavam ao mesmo tempo, e juntos se dirigiam para o bairro de Ponto Cem Reis, onde pegavam o ônibus para a garagem do bairro Laranjal, em São Gonçalo, para prestar conta da féria arrecadada.

Pois lá foi o Paulo, junto a diversos cobradores e motoristas, dentro de um ônibus da linha Apolo x Niterói. Naquela hora da manhã, só haviam leões (rodoviários) dentro do ônibus. Paulo sentou-se num dos bancos da frente. Do outro lado do salão sentou-se o motorista Márcio, conhecido popularmente como Topete.

Falador, Topete logo sacou um enorme celular, e começou a contar vantagem:

- Tá vendo esse celular aqui, Paulinho? Achei ontem! Olha aí, que pancadão! Bluetooth, WiFi, autofalante potente.... Fui ver nas Casas Bahia: um celular desses custa uma grana, mano!

Realmente o celular era, à época, de último modelo, com todas as melhores funcionalidades que a tecnologia permitia. Paulo apenas observava, em silêncio.

Pois então eis que, aproximando-se o veículo da altura do bairro de Novo México, se levanta um indivíduo que estava sentado logo no banco grande lá da frente, até então apenas ouvindo a história que estava sendo contada às suas costas. Ele olha para Topete e Paulo, saca uma arma e aponta para... Paulo.

- Você aí! Perdeu, mané! Me passa o celular de que você tá falando aí!

Paulo, pego de surpresa, ainda tentou argumentar, ao perceber que o ladrão imaginara ser ele quem falava do tal celular:

- Eu? Mas meu celular é velhinho e está com defeito...

O malandro não acreditou e apanhou o celular que Paulo apresentou.

- O dinheiro, agora me dá o dinheiro!

- Mas eu não tenho dinheiro. Eu sou motorista e trabalho com cobrador, e não fico com o dinheiro.

Enquanto todo esse diálogo transcorria, o presepeiro do Topete já havia escondido seu poderoso celular. Vendo que Paulo não tinha mais nada para perder, e satisfeito por ter ganho o celular, o malandro puxou a cigarra (campainha) e desceu no ponto do Novo México, sem roubar mais ninguém, deixando para trás alguns passageiros bastante assustados.

Quanto ao sacana do Topete, ele ria baixinho, feliz por o indivíduo ter confundido o Paulo com ele. Já o nosso querido Paulo, lendário sofredor que, de "bucha", perdera seu velho Motorola "tijolão", estava desconsolado...

Só mais um detalhe: O celular de Paulo, que o malandro levara achando tratar-se de um último modelo, além de velho, estava com defeito: o miserável só falava no viva-voz.

Pobre Paulo. E pobre ladrão.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Olivaldo Júnior (Cristais Poéticos) = 3 =

ALMA LIVRE

Livre, a alma sopra onde quer,
seja homem, seja mulher,
como se fosse uma bolha
e tivesse a própria escolha
uma outra forma de ser.

Sou como Deus manda,
ou como roda a ciranda,
que giramos todos na mesma
indefinível roda da vida,
que viver é que é mesmo preciso.

Preciso ser livre, penso,
mas meus pés por vezes
têm chumbo nos vãos
dos meus dedos e, doido,
doído, dolorido, vão,
me perco da própria mão,
desvãos.

Livre, a alma sopra, mas
nem sempre supre
o que lhe cabe suprir.

Suprassumo de mim,
sem perder minha essência,
descubro isso enfim:
que sempre fui essencial...
para mim.
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CARRO DE BOIS

Para o artista plástico Paulo Reis


Foi no meu carro de bois
que passei a minha vida,
sem pensar no que depois
iria vir: a partida.

A partida é quando rangem
minhas pálpebras de dor,
inda que muitos não manjem
ao me verem todo em cor!...

Lá no meu carro de bois,
éramos minha alma e eu
como se fôssemos dois...

Como se fôssemos reis
de uma estrada que cresceu
das tintas de suas leis!
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NÃO PERTURBE
(or Do not disturb)


Não, amor, não me perturbe.

As estrelas já se achegam
e se fazem de colchão
para os meus ossos,
tão cansados de esperar
a mais pura e fluida
água dos seus poços...

Não, amor, não me perturbe.

Essa noite é uma criança,
e eu sou feito um sacizinho,
que, distante do seu bando,
nada faz senão, sozinho,
pitar seu cachimbo
e chorar.

Não, amor, não me perturbe.

Sem notar o seu reflexo,
mirando a mim mesmo
nas águas de tanta ilusão,
"narcísico" ao extremo,
me encanto com a flauta
nada mágica da razão
e raciono-me a poesia,
o encantamento
a que teria direito.
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UMA LUA DE PRESENTE

Para a amiga Patrícia*


De presente, no quintal da minha amiga,
uma lua se insinua e lhe pergunta
onde é que anda o seu amigo, onde fica
a casa dele, e faz que não assunta,
mas assunta, só pra ver se ela lhe conta
onde é que mora quem faz de conta
que o amor não conta, mas conta muito
para ele.

Para ele, que foi passarinho em outra
encarnação, em outra forma de ser,
em outra vida, em outra página, outra
história a ser escrita com seu viver...

A lua, lá no céu, de presente, sorri,
se insinua um pouco mais e pede
que minha amiga lhe diga se ali,
onde há pouco ele esteve, é que
ficou seu rastro poético,
seu rastro de estrelas,
o que todo bom poeta
deixa ao entrevê-las,
ainda que nem saiba,
ainda que nem caiba
em sua própria órbita.
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Poema escrito a partir de fotografia enviada por Patricia de Campos Occhiucci

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UMA ORQUÍDEA COMO AQUELA

Para a amiga que me mandou a foto de sua orquídea cattleya


No quintal daquela amiga,
com a cigarra e a formiga,
entre várias borboletas,
ou monarcas, ou plebeias,
uma orquídea cattleya
espreita o dia.

Espreita o dia,
que é feito a rósea poesia
de suas pétalas,
artimanhas poéticas
para ver se algum inseto
vem ter com elas
seu colóquio amoroso,
honra aos poetas.

Não, o quintal dessa amiga
não é uma floresta tropical,
mas guarda um ar especial
para que uma flor que intriga
seu sonho enfim prossiga
e se mostre, gloriosa, linda,
no quintal daquela amiga!

Fonte:
Poemas enviados pelo autor.

Isabel Furini (O Natal de Antônia)


Éramos vizinhos. Morávamos no bairro Portão, em Curitiba. Ninguém tinha família por perto. Ocupávamos um predinho de três andares. Pintura amarela escancarada. No térreo e no primeiro andar, lojas, e no segundo andar, quitinetes de vinte metros quadrados enfileiradas ao longo do corredor externo, mal iluminado. Os moradores eram um espetáculo digno de menção, a começar pelo Zé Cervejinha, todo mundo o chamava assim, ninguém lembrava o seu verdadeiro nome. Zé Cervejinha ganhou esse apelido porque nunca ficava feliz com uma garrafa. E antes das 23 horas lá vinha ele, subindo as escadas vagarosamente, com os olhos apertados, a camisa desabotoada e um bafo insuportável. Atravessava o corredor cambaleando, mal conseguia colocar a chave na fechadura. Às vezes era auxiliado pelo Yoga (assim chamado porque era praticante). Ninguém lembrava o seu nome, para todos era Yoga. Sua quitinete cheirava a incenso. Só sabia falar de espiritualidade. Não era má pessoa, não. Sua irmã, Dalmira, que ocupava a quitinete úmida e escura do final do corredor, essa sim era mais perigosa do que cascavel. Uma língua afiada. Ela decidia. Ordenava. Controlava.

Na outra quitinete, Luciano, um moreno simpático que estava doente. A quitinete cheia de plantas era de Ramona, a velha setentona que havia se esquecido de morrer, como todos diziam. Sempre vestia blusas estampadas de cores berrantes e saias indianas para fingir alegria e descontração. Coitada! Nunca escutara um “eu te amo” na sua vida. Nunca fora esposa, nem mãe, nem sequer noiva. Os pais morreram e ela ficou sozinha, sem profissão, sem família, um eterno lamento. Ela dizia que a depressão não a abandonava, o problema real era que ela se sentia tão sozinha que não abandonava a depressão. Na quitinete contígua, duas lésbicas pareciam felizes. Eram muito prudentes, quase não falavam com ninguém.
               
Nas duas quitinetes maiores, dois vizinhos que não participaram da festa: a viúva – com seus cabelos que chegavam até a cintura e sua saia que nem deixava ver os tornozelos – enfatizou que não celebrava o Natal porque era festa pagã; e um advogado obeso e fracassado, que foi passar as festas no litoral.

E nesse Natal nos reunimos. Estávamos todos sozinhos, menos as lésbicas, é claro. Elas tinham muitas amigas para festar. Somou-se à trupe estranha a ruiva sardenta. Era muito alta e esquelética. Havia nascido em Matinhos, mas morava em São Paulo, comprou a quitinete para relaxar da cidade grande nos feriados. Tentava vender imagem de triunfadora. Enganou, a princípio, mas em pouco tempo os vizinhos foram notando que a triunfadora que havia morado em Nova York e havia voltado ao Brasil buscando seu próprio lugar, não era assim tão triunfante.  O cabelo vermelho fogo não dava para confundir com o natural. Tinha cara de ratinho assustado, e toda sua pose de mulher livre e soberana não conseguia esconder. Dizia ter dezenas de amigos, reconhecimento profissional e homens querendo casamento. Papo furado! Em um final de semana chegou com um rapaz um pouco mais jovem do que ela. Cara de safado. Ninguém gostou dele. Cheirava a trapaça. Só veio uma vez. Cansou-se rápido da tranquilidade do bairro. E a pobre ruiva voltou a ficar sozinha com seus sonhos.

E nesse Natal nos reunimos. Zé Cervejinha, Delmira, Yoga, a velha Ramona, Luciano, as lésbicas, a ruiva e eu. O Yoga ficou encarregado das compras, era um constante ir e voltar do mercado. No forno da Delmira, um leitão. A velha cozinhava um peru. A ruiva se dedicou a preparar saladas exóticas e arroz. As lésbicas fizeram várias sobremesas. Eu, que sou uma nulidade para a culinária, ajudei a descascar batatas e a cortar tomates.

Os homens colocaram as mesas, com toalhas muito brancas, enfileiradas no longo corredor e, entre uma cervejinha e outra, encheram os balões coloridos que foram pendurados no teto. A ruiva colocou uma árvore de Natal pequena, carregada de enfeites sobre um banco de madeira, no final do corredor. Por fim, tudo ficou preparado para a festa. Cada um trouxe sua cadeira e sentamo-nos, sorridentes, ao redor das mesas. Apesar do leitão bem dourado, do peru – com as asas torradas – das saladas com molhos desconhecidos, das cervejas, dos refrigerantes, das piadas, dos risos, cada um de nós cheirava a naftalina e a solidão. Era como se estivéssemos num barco à deriva. Água por todos os lados. Só céu e água. Marinheiros em um mar inacabável, parecia que seríamos engolidos pelas ondas das lembranças. Delmira alternava as críticas, ora criticava o primeiro marido, ora o segundo. Yoga pronunciava frases bonitas, Zé falava das festas no Rio de Janeiro e da ex-esposa que tinha um amante, a velha tinha o olhar sem vida, Luciano queixava-se de dor na coluna vertebral, a ruiva tentava manter a pose... com sua carinha de rato.
               
De repente os fogos de artifício preencheram o céu de cores. Todos nos levantamos das cadeiras, alguns ficaram apoiados na varanda. E eu olhei o céu e vi essa cascata vermelha, azul e laranja, linda. Lindíssima! Depois desci os olhos para olhar essa trupe vagabunda. A solidão dançava sobre nossas testas. Estávamos reunidos e cada um de nós estava sozinho, segurando-se nos destroços do barco – uma madeira, um pedaço de convés, um fragmento de armário, a perna de uma mesa. Tentávamos nos manter flutuando. O barco havia naufragado. Estávamos reunidos nesse Natal e éramos um grupo de náufragos arrastados pelas correntes do viver. O Natal já não mais renovava os sonhos. Havia perdido sua magia.

Jaqueline Machado (O sentido do Natal)

O termo Natal tem origem na palavra do latim “natalis” que, por sua vez, é derivada do verbo nascer (nāscor). O Natal representa o nascimento de Jesus e, também, o nosso próprio renascimento. Renascimento de todos que desejam dissipar mágoas, vícios e tristezas para vivenciar uma nova jornada, cheia de luz e de esperança.

O Natal teve origem em festas pagãs da antiguidade, onde muitos romanos celebravam a chegada do solstícios de inverno e cultuavam o Deus Sol, que no sincretismo das culturas religiosas atuais, simboliza Jesus Cristo para os seguidores do cristianismo e o Orixá Oxalá, na fé umbandista.

A escolha da data foi determinada pelo Papa Julius I (337-352) e, mais tarde, foi declarada feriado nacional pelo Imperador Justiniano, em 529.

O natal, também é sinônimo de muitos simbolismos. O principal deles é o presépio que foi montado pela primeira vez por São Francisco de Assis, no  século XIII, na Itália, com a intenção de recriar a cena do nascimento de Jesus para explicar ao povo como e onde teria nascido o messias. Já o simbolismo do pinheiro enfeitado, foi idealizado por Martinho Lutero, o principal personagem da Reforma Protestante, que montou a primeira árvore iluminada de luzes em sua casa. A figura do natal é inspirada no bispo São Nicolau que costumava deixar moedas próximas às  chaminés das famílias mais pobres. São Nicolau se tornou popular e deu lugar ao aspecto que hoje conhecemos do Papai Noel, que em vez de moedas, deixa presentes às crianças que se comportam bem ao longo do ano. E a Santa Ceia teria surgido na Europa, onde as pessoas costumavam deixar a porta das suas casas abertas para receber viajantes.
    
Ela simboliza a união e a confraternização das famílias. Assim, na véspera de Natal, os familiares se reúnem à mesa para a tradicional ceia.

Essa data também faz lembrar a mensagem trazida pelo livro de Charles Dickens, o famosíssimo “Um Conto de Natal” que conta a história de  Ebenezer Scrooge, um homem de negócios, egoísta, avarento que não se relacionava bem com ninguém, e não gostava das festividades natalinas, até que certa noite, ele recebe a visita do fantasma de seu falecido sócio, Jacob Marley, que avisa ao antigo amigo que outras três assombrações aparecerão para ele: o Espírito dos Natais Passados, o Espírito do Natal Presente e o Espírito dos Natais Futuros. Segundo Marley, o ex-sócio, esses três fantasmas são a única esperança para Scrooge escapar do terrível destino que está reservado para ele.

Os espíritos chegam sucessivamente e levam o velho ranzinza a uma viagem pelo tempo e pelo espaço, com a intenção de fazer com que Scrooge mude sua opinião sobre o Natal depois de ver exemplos de amor e a família dele e a de um seu funcionário comemorando a data com muita simplicidade e união entre si. Depois disso, ele passa a valorizar o que realmente vale a pena na vida. A partir desses eventos, o velho torna-se bom e passa a praticar ações solidárias entre todos que dele se aproximam. Pois o sentido do natal é justamente esse, renovar-se, espalhar amor e alegria.

Salve essa doce magia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 540

 

Lima Barreto (Fim de um sonho)

Foi mesmo um sonho, mergulhado no qual vivi cerca de três meses, meu caro. Durante eles, sonhei dia e noite. De dia, então eu nada percebia com nitidez. A luz do sol, dura e crua, me era estranha, feria-me, fazia-me mal. Discernia com dificuldade as fisionomias e as coisas. Eu me havia transformado em um animal noturno muito especial que só pode viver em luz elétrica. Só, sob incidência dessa luz artificial, é que o mundo das coisas e dos entes saía, para os meus olhos, da bruma, das trevas, da hesitação de formas; fora daí, houvesse o mais radiante sol que houvesse, tudo era pastoso, turvo e mal tomavam corpo e figura as vidas e os objetos.

Erguia-me sempre tarde, porque me deitava alta madrugada. Vinha para casa em automóvel que o clube punha à minha disposição. Metia-me no quarto da pensão chique, que era hermeticamente fechado como convém a essas pensões, e arejado astuciosamente pelo rodapé e pelo teto. Dormia até às três horas, tomava banho e almoçava quando os outros iam jantar. Saía à boca da noite, fazia horas pelos botequins até ir jantar num restaurante do centro e, depois, encaminhava-me para o clube, o lindo “Incroyable-Club”, decorado luxuosamente, com um luxo e gosto nem sempre de grande aprumo, mas que a profusão de luz elétrica, derramada aos jorros, fazia suntuoso e maravilhoso que nem um palácio de Mil e uma Noites.

Nunca vira aquilo tudo; e embora, por conhecer alguma coisa de arte, detestasse as duvidosas pinturas das paredes, gostava, entretanto, das mulheres que não me pareciam ser tão artificiais assim. Em começo, fazia o meu serviço, bebendo cerveja; por fim, champanhe; e, afinal, travei conhecimentos com cavalheiros amáveis. Eram todos estrangeiros e chamavam-se: Wassíli Alexandróvich Sóbonoff, engenheiro russo, de grande capacidade em coisas elétricas, emigrado de sua pátria, por causa do “Soviet”, e contratado para dirigir uma poderosa usina de produção elétrica em Mambocaba, a fim de extrair mecanicamente turfa*, que abundava naquela localidade, e beneficiá-la também.

O outro era dinamarquês ou tcheco e só o conheci pelo nome de Peteo. Pretendia servir-se de um pouco da força da usina de Wassíli, para obter matérias corantes dos resíduos da turfa deste; e o terceiro era o barão de Hermeny, magiar* com muitos quarteirões de nobreza, descendente de santo Estêvão e não sei quem mais. Corria mundo enquanto não se restabelecia o trono do seu augusto e santo avô, para então retomar os seus cargos e as suas fartas rendas.

Nunca conheci cavalheiros tão amáveis e educados. Sempre corretamente vestidos, injuriados discretamente, conversavam comigo sobre todos os assuntos com conhecimento profundo de causa. Sabiam todo o movimento político do mundo e as suas previsões eram sempre seguras. Desde que os conheci, nunca mais paguei champanhe nem ceias. Para estas, eles traziam variadas damas que lhes falavam numa geringonça arrevesada que mesmo não sei que língua era. Eu ficava babado diante daquelas beldades, daqueles colos azuis que nos são pouco familiares e daqueles rostos polpudos, daquelas sobrancelhas negras a poder de ingredientes, daquelas orelhas cheias de bichas e daquelas ancas... Por momentos, vendo aquelas mulheres, aquelas luminárias, aqueles tapetes, aqueles jarrões com pequenas palmeiras, esquecendo as figuras das paredes, eu me julgava um sultão ou pelo menos, um aprendiz desse ofício, mas que já podia tirar o lenço...

Um dia saí com o barão húngaro e convidei-o para tomar o “meu” automóvel. Quando ele ia entrar, chegou-se um sujeito, apresentou-lhe uma carteira e disse-lhe:

— O senhor está convidado a ir à Polícia Central.

O barão não relutou e respondeu galantemente:

— Deve ser algum engano. Vamos.

Depois, dirigindo-se a mim:

— O doutor me desculpe... As autoridades brasileiras ainda não estão bem informadas de quem sou...

— Quer ir no “meu” automóvel?

— Não! Seria incomodá-lo. Vou mesmo num táxi aqui com o senhor — disse, voltando-se para o agente.

No dia seguinte, soube que o tal barão era um terrível ladrão de bancos que a polícia do Chile perseguia, por ter roubado, com grande audácia, a um de Santiago, em cerca de cento e cinquenta contos. Não era húngaro, como se intitulava: era rumaico ou coisa que o valha.

Continuei, porém, no meu sonho de nada pensar de sério na vida. Quase não lia jornais; livros e revistas esperavam que lhes apontasse as páginas, em cima da mesa; não respondia às cartas ou mal as respondia, às pressas. Que mais queria? Tinha encontrado, ao mesmo tempo, os “Campos Elísios”, o “Éden”, o “Paraíso” cristão e o de Maomé. O clube de jogo juntava-me tudo isto no meu sentir e para o meu gozo. Vivia num arrebatamento deste mundo, fora dele e das suas coisas triviais, num encantamento divino... Que delícia!

— Como acabou, meu caro? — perguntou-lhe o amigo que o ouvira calado até aí.

— Uma noite destas, fui para o serviço do Club, como de costume, e o porteiro, logo à entrada, me avisou: “A ‘casa’ fechou doutor. A emenda do senador Sá foi avante: não há mais jogo”.

Não quis subir, pus-me na rua e acendi o último dos “havanas” que o tal engenheiro russo me havia dado, na véspera. Fumei-o com volúpia e vagar, sacudindo as cinzas com pena — as cinzas do meu sonho! Certamente, esse seria o último que fumaria na minha vida... Foi um sonho!
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* NOTAS
Magiar = húngaro.
Turfa = é um material orgânico constituído por elementos procedentes da decomposição de vegetais. Este material é de cor castanha (escura ou clara, dependendo do tipo) e é muito rico em carvão. ... Usa-se principalmente em jardinagem formando parte do substrato.

Fonte:
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIV

ERA ISSO MESMO

 
Era isso mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
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ERAM VARÕES TODOS
 
Eram varões  todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.

E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

E TODA A NOITE A CHUVA VEIO
 
E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite o meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.

E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição do ar.

E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração
Na garganta da minha vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EU
 
Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória,
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo herdeiro só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EU AMO TUDO O QUE FOI
 
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
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É UMA BRISA LEVE
 
É uma brisa leve
Que o ar um momento teve
E que passa sem ter
Quase por tudo ser.
Quem amo não existe.
Vivo indeciso e triste.
Quem quis ser já me esquece
Quem sou não me conhece.

E em meio disto o aroma
Que a brisa traz me assoma
Um momento à consciência
Como uma confidência.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Minha Estante de Livros (“Cartas do meu moinho” e “Bilac vê estrelas”)


CARTAS DO MEU MOINHO, de Alphonse Daudet

Depois de várias tentativas de alcançar o sucesso na vida literária e uma vida pessoal tumultuada, Cartas do meu moinho trouxe alegria e reconhecimento ao autor francês Alphonse Daudet. Depois viria aquele que seria o seu clássico: Tartarin de Tarascon que reaviva muitos dos aprendizados do autor em sua passagem pela Argélia.

O livro possui contos ambientados na região da provença francesa, e de inicio já nos apresenta uma declaração de compra do moinho, é fictícia, mas dada a perfeição no estilo e escrita é pra lá de convincente. Sua vida no moinho não é definitiva já que ele é um citadino, possui um cotidiano muito tranquilo com seus papéis, as visitas dos coelhos, um certo convívio com os camponeses e, claro, a coruja que habita o primeiro andar. Em meio a ótimos contos temos 'Os Velhinhos' em que o narrador, o autor no caso, visita um casal idoso a pedido de um amigo de Paris, e o leitor é convidado a fazer essa visita também.

Cartas do meu moinho é um sensível conjunto de narrativas breves, contos pueris e encantadores. Em pleno século XIX, Daudet antecipa o que hoje é traço comum da literatura contemporânea: um certo jogo entre ficção e realidade. O autor escreve como se fossem memórias, mas todas as narrativas são ficcionais. Porém, os leitores tiveram tamanha empatia com os personagens e os lugares que acreditavam fielmente que se tratavam de experiências vividas pelo autor no sul da França.

Os personagens são simples e movidos por sonhos cotidianos, e os cenários declamam seu amor pela exuberante natureza francesa. A literatura sensível desse escritor francês conquistou os leitores pela simplicidade e pelo grande senso de humanidade.

Os contos, selecionados entre os 24 que foram publicados em 1869. São narrados na primeira pessoa, para dar a entender ao leitor que é o próprio escritor que revisa suas memórias. O Segredo de Mestre Cornille é sobre um moleiro inconformado com a chegada das máquinas à vapor; em A Cabra do Senhor Seguin, a cabrinha Branquinha quer viver livre para sempre; Os Velhos aborda a visita de um moleiro aos avós de um amigo; já A Lenda do Homem com o Cérebro de Ouro exibe personagem que se desfaz de sua riqueza por amor e por ter sido roubado e enganado; As Três Missas Baixas é a história do reverendo que, no Natal, cai no pecado da gula, morre e não pode entrar no céu: e Os Gafanhotos se passa na Argélia, onde um estrangeiro enfrenta destruidora tempestade de gafanhotos.
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Alphonse Daudet (1840 – 1897) estreou com a coletânea de versos "Les Amoureuses" aos 18 anos, ao ir para a capital francesa. Em Paris, tornou-se íntimo de Goncourt e Emile Zola. Ao publicar "Cartas do meu moinho", em 1869, alcançou o sucesso. Tornou-se secretário do Duque de Morny, presidente do Senado e, por problemas de saúde, viajou pela Argélia, onde se inspirou para escrever "Tartarin de Tarascon", em 1872. Fez várias tentativas no teatro, mas só teve algum sucesso com "A Arlesiana", em 1872.

Sofreu muito nos seus últimos quinze anos, morrendo em 1897, vítima de uma ataxia incurável (que poderia ser normalmente uma degeneração ou bloqueio de áreas específicas do cérebro e cerebelo). Encontra-se sepultado no Cemitério do Père-Lachaise, Paris na França.

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BILAC VÊ ESTRELAS, de Ruy Castro

No começo desta história, que se passa no Rio de Janeiro, no início do século XX, Olavo Bilac está em seu posto de observação na calçada da célebre Confeitaria Colombo. Com a própria glória garantida, só uma coisa o preocupa: como é efêmera a glória alheia. De repente, uma manchete gritada por um jornaleiro interrompe os seus pensamentos: um negro encontrado morto em Paquetá pode ser o jornalista da Abolição José do Patrocínio, grande amigo de Bilac.

Por causa disso, ele se mete numa trama envolvendo um fabuloso dirigível, inventado por Patrocínio e objeto da cobiça de dois aeronautas franceses e de uma traiçoeira espiã portuguesa. Na tentativa de se apoderar dos planos do balão, a espiã e seu cúmplice, fazem Bilac literalmente ver estrelas com uma bengalada na cabeça, que o leva ao espaço e ao Olimpo.

O cenário e a época de Bilac vê estrelas são reais: boa parte da história se passa nas ruas do Rio durante a agitada Belle Époque carioca, e os personagens também são de carne e osso. Mas o documentário é só o pano de fundo para a ficção. Em meio aos arranca-rabos desse caso hilariante de espionagem industrial, Ruy Castro faz Bilac ser atacado na cama pela bela e tórrida portuguesa, deixa-o para morrer desacordado num hangar em chamas, obriga os bandidos a fugir numa charrete em disparada pela rua do Ouvidor, e tudo isso durante a vinda de Santos-Dumont ao Brasil. Bilac vê estrelas é quase uma comédia-pastelão à brasileira.

Em sua estreia na literatura, Ruy Castro revela-se um ficcionista que, como seus leitores já sabiam, é um especialista em bom humor.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 14

 

Imagem da gata obtida no site Pinterest

Aparecido Raimundo de Souza (Copo transbordado)

ALTAS HORAS DA NOITE, o Augusto Cabeleira, o derradeiro freguês ao deixar o bar da Lili Tomba Fêmea, como sempre, mais bêbado que um gambá descontrolado, sem saber exatamente para que direção seguir, ao invés de tocar o bonde para a sua residência, por sinal, perto do estabelecimento, se enveredou por uma viela diferente e desembocou numa mais distinta que a sua. Nela só morava rico. Se não tivesse entornado todas, saberia que aquela não era a rua da sua casa, e mais, entenderia que nunca antes havia estado ali, embora o bairro onde morava fosse pequeno e tirando um ou outro beco, as outras ruelas e desvão, ele nunca havia sequer cruzado as suas esquinas.

Nesse tropeçar vacilante, segurando ora num carro estacionado, ora se apoiando em postes, entrou com tudo no primeiro portão de uma garagem escancarado que encontrou pela frente. Bateu palmas, enquanto se segurava na mureta onde havia um interfone. A moradora, uma jovem aí pelos trinta anos, acondicionada num pijama de flanela vermelho, veio atender. Assim que divisou o vulto, trôpego, ocasionado pela ingestão das doses ingeridas, Augusto Cabeleira fez a pergunta que bailava na ponta da língua:

— Boa noite, dona! Seu... seu ma... ma... rido está em casa?

A mulher, sem entender o que aquele esquisito fazia na sua frente, de pronto não disse nem sim, nem não, mas indagou, curiosa:

— Quem é o senhor? O que quer com meu marido?

— Ele... ele está?

— Sim, está. Por? Acaso precisa de alguma coisa? Quer ajuda? Vou chamá-lo...

— Des... des... des... culpe... Não há neces... Necessidade. Tchau!

Augusto Cabeleira deu meia volta com dificuldade cada vez mais acentuada e sem deixar de trocar as pernas, se afastou.

Bateu na segunda porta. A do doutor Rubião, delegado de polícia. Augusto Cabeleira não sabia, nem de longe, que o delegado de polícia da cidade morava ali. Veio atender uma senhora idosa, olhar cabreiro, expressão carrancuda e franzina. Todavia, armada de um possante trinta e oito (posto que estava acostumada a ser acordada no meio da noite, não só por pessoas da comunidade, como pelos próprios policiais que estavam a serviço de seu esposo) gritou, segurando a maçaneta que acessava todo o resto da habitação:

— Boa noite. Quem é o senhor? O que quer com meu marido? Algum problema na delegacia?

— Senhora, me diga... Ele está...?

A senhorinha não viu nada demais em responder:

— Sim, ele está no banho. Rubião acabou de chegar da chefatura. Quer que eu vá chamá-lo?

— Per... Per... dão... Foi... foi mal...

Augusto Cabeleira tratou de se escafeder dali o mais depressa possível. Se o delegado doutor Rubião viesse ter com ele, certamente seu resto de noite seria um inferno. Dormiria no xilindró. Sabia, pelos amigos de copo, que o sujeito se constituía numa carne de pescoço difícil de ser ingerida. Segundo relatos de seus companheiros, o homem não gostava de aturar beberrões. Ainda mais pinguços chatos. E ele, quando bebia, ia muito além da condição de maçante e pegajoso. Relembrara de uma história que, certa vez, contara o Botão Sem Casa, sobre Pingado Batatinha, um dos muitos amigos das noitadas que se prolongavam até altas horas.

Pingado Batatinha fora conduzido à presença da criatura, depois de ter quebrado uma cadeira nos cambitos de uma sirigaita, com a qual transara e se negara a pagar pelos serviços da prostituta. Além de uma boa sova nos costados, os fardados ainda lhe deram um prolongado banho frio de mangueira e, para acalmar os vapores do álcool, o doutor Rubião o colocou para dormir pelado no meio de outros detentos. Foi o diabo! Por conta desse evento, até hoje corre uma notícia na comunidade, alimentada, logicamente pelos boquirrotos e coscuvilheiros de plantão.

Se verdadeira, ou não, o fato traz à baila uma resenha ignóbil dando conta de que o infeliz do Pingado Batatinha saiu do prédio da brigada policial, na manhã seguinte, capengando, em face de ter sido agarrado por um sujeito alto, careca, parrudo e sem nenhum dente que pudesse lhe agradar o sorriso.

Encostou na terceira casa. Esta ao menos, tinha campainha. Tocou. Veio atender uma moça nova, e apesar da ebriedade saliente e destacada, percebeu nos braços dela, um gatinho branco:

— Pois não, senhor?

— Des... Des... culpe... Pe... pelas horas... Seu mari... seu mamariii... iiiido se encontra?

A beldade respondeu imediatamente de forma rígida e severa:

— O que quer com meu marido?

— E... Ele... es... Está?

— Quer que vá chamá-lo? Isto lá são horas de bater na casa de um advogado? Por que não foi no escritório dele? O senhor está com algum problema na justiça? Na delegacia, talvez?!

— Es... Esque... esquece... dona... tchau...

Trocando as pernas e ainda necessitando da ajuda dos carros estacionados ao longo da rua e sem perder de vista as árvores, vomitou numa delas, até as tripas. Cinco casas depois da nojeira que lhe saíra boca afora, em outra quadra, quase a ponto de ser mordido por um cachorro de modos violentos e pouco afeito a amizades, tocou a campainha de outra edificação.

Pintou, no pedaço, apesar do adiantado das horas, um encanto de mulher. Rosto de rainha, os cabelos soltos ao acaso da noite, metida num shortinho minúsculo mostrando uma barriguinha tipo tanquinho, um umbigo com um piercing grudado em formato de coração, as pernas compridas, sem falar no resto. A encantada abriu a porta de supetão e saiu afoita, como se esperasse a chegada de um príncipe encantado montado num cavalo branco como nos filmes dos contos de fadas.

Augusto Cabeleira quase teve um desmaio repentino, diante daquele augusto pedaço de mau caminho, que fazia emergir, de uma só vez, todos os pecados voluptuosos e devassos existentes dentro de si:

— Boa noite, senho... Senho... senhorita... por acaso... por aca... acaso... seu ma... marido se encon... se encontra?

— Bem, meu senhor... Ele ainda não chegou...

Augusto Cabeleira teve um breve reconforto na alma tomada pelo consumo das cervejas e pingas que emborcara goela abaixo:

— A senhori... A senhorita tem cer... a senhorita... tem... cer... cer... teza?

— Claro. Acha que não conheço meu marido e não sei quando está ou não em casa?

— En... Então, por... por genti... gentileza... chega um porco... Mais per... perto...

— Como é que é, cavalheiro? Porco? Que porco?!

— Eu... Eu disse... eu disse porco? Não, me desculpe. Pedi pa... pedi, para chegar um pouco... um pouco mais... mais perto... de onde a senhori... de onde a senhoooooorita tirou o porco?

E completou, quase indo de fuça ao chão:

— Por que eu faria isso? Por... Porco? Pelo amor... pelo amor de Deus... chega mais perto.

— Eu é que pergunto: Por qual motivo eu faria tamanha idiotice de chegar mais perto do senhor? Nem lhe conheço!

— Desculpe... Por favor, me perdoe... roro... rogo, chega mais perto e venha ver...

— Ver o que, senhor?... Vou chamar a polícia.

— Não, não precisa. Só venha até aqui... se aproxima um bocadinho mais...

— Insisto, meu senhor, para eu ver exatamente o quê?

— Venha... Venha conferir se eu não... venha ver e me dizer, com todas as letras, se não sou eu... Se não sou eu... dro... droga... venha fazer uma acareação e me dizer, se eu não sou o seu marido...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 7

CARIDADE DA LUZ


Santa - a moeda amiga ao tornar-se carinho
em todo lar sem pão que a penúria flagela,
enaltecida sempre - a roupa mais singela
que protege a nudez ao vento e ao desalinho!...

Glorificado seja - o pouso que tutela
o enfermo relegado às pedras do caminho,
preciosa - a afeição para quem vai sozinho,
trancando-se na dor em que se desmantela!...

Nobreza em toda ação que represente amparo
do auxílio de um vintém ao apoio mais raro,
que a simpatia expresse e a bondade presida!...

Brilhe em tudo , porém , com mais força e grandeza
a palavra do bem que apure a natureza,
iluminando o amor e libertando a vida!…
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MENSAGEM DE IRMÃ

Enquanto a carne em treva brande a vara
da amargurosa dor que te alanceia,
acende, em paz, a lúcida candeia.
da sublime esperança que te ampara.

A fé transforma a noite em manhã clara.
Não te canse o deserto... Ara e semeia
e arrancarás da imensidão de areie
a flor da primavera e o pão da seara...

Que o grilhão do passado te não prenda.
Faze do amor a rútila oferenda
do próprio ser ao mundo estranho e escuro!

E ave de luz tornando ao pátrio ninho,
encontrarás, feliz, o áureo caminho.
para a esfera de glórias do Amor Puro!
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PERDOA

Repara a fonte diligente e boa
escravizada ao solo em que destila.
acolhendo, a cantar, doce e tranquila,
a saliva do charco que a magoa.

Envolvente e translúcida coroa
que afaga e nutre o coração de argila
passa ajudando ao chão em que se asila,
tanto mais pura, quanto mais perdoa...

Como a fonte que olvida toda a ofensa,
abraça na bondade a luz imensa
que te guarda, no mundo, a alma sincera.

E, estendendo o perdão por onde fores,
encontrarás na cruz das próprias dores
a alegria divina que te espera...
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PRESENÇA DO AMOR

Deus abençoe o pão que dás à porta
aos romeiros cansados da agonia,
o teto aos que se vão em noite fria
na dor em que a nudez se desconforta.

Deus te abençoe o raio de alegria
com que a força da fé se te transporta,
no rumo da esperança semimorta
para trazê-la à glória de outro dia.

Deus te abençoe por tudo quanto fales
para extinguir tristezas, dores, males,
que se amontoam na penúria imensa...

Deus te abençoe, porém, com mais ternura
a presença da paz e da aventura
de todo amor que dês sem recompensa…
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QUERIDA NINA

Querida irmã, que amamos ternamente,
mensageira do bem, linda e singela,
que Deus te guarde a luz brilhante e bela
e a pureza de lírio alvinitente.

És para nós o amor que se desvelo,
a generosa fé, que segue à frente,
consolo ao coração aflito e crente
quando negrejam sombras de procela.

Jardineira da paz e da ternura,
como é sublime a rica semeadura
que te engrandece o místico jardim!...

Deus te guarde e esperança nobre e calma
e espalhe no céu claro de tua alma
as estrelas do amor que não tem fim!...

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Júlia Lopes de Almeida (No muro)


A Julião Machado


Ao fundo do quintalzinho, o alto muro branco estava na sombra. De um único canteiro, à esquerda, evolava-se o aroma de manacás em flor. Do outro lado, a haste débil de uma árvore nova, uma arália talvez, balançava, em meneios vagarosíssimos, a sua folhagem mimosa e leve.

Tudo em silêncio na casa. As crianças dormiam já, abatidas pelo calor; a criada mal dera as boas-noites, e lá saíra pela porta fora; só Maria Teresa, repousada da confusão do seu dia trabalhoso, cerrava os olhos preguiçosos, para cá e para lá, na cadeira de balanço, perto da janela da sua sala de jantar.

Nem o gás quebrava o silêncio que a envolvia. A claridade é uma voz; só a treva é muda. Aprazia-lhe aquele sossego a que entregava descuidada o corpo e o espírito. E assim esteve muito, muito tempo, com o seu rosto de histérica, longo e pálido, volvido para o escuro do quintalzinho estreito.

Mas a lua, que há pouco lhe clareava a frente da casa, as cortinas rendadas e os tapetes do escritório e da sala, lembrou-se de lhe galgar o telhado e de ir insinuando pouco a pouco a sua luz melíflua pelo alto muro branco do quintal.

Maria Teresa, descerrando os grandes olhos pardos, viu a claridade vir lambendo a parede, numa carícia mole e frouxa. Ela bem sabia que aquele grande laivo escuro, desenhando no alto uma ligeira curva e descendo depois em uma linha reta perpendicular, era um pouco de limo e mais nada. O muro, velho, requeria conserto; tinha, entretanto, intervalos de uma alvura virginal, que brilhavam à claridade, como linho estendido.

Maria Teresa sorriu; que visão aquela! Dir-se-ia que a longa fita escura se movia agora em uma oscilação lenta, arrastando o seu longo corpo de réptil.

Na verdade, uma cobra andaria assim?... E mais adiante, falhas de caliça, umas esguias, outras redondas, quadradas ou elípticas, entravam a mover-se, a adquirir formas estranhas, mal distintas, incertas, que no tremor da luz mal firme se dissolviam para tomar novamente corpo e forma... Ao princípio aquilo tudo era mal esboçado, confuso e inculto; mas, de repente, como a luz caísse melhor, Maria Teresa viu, como se olhasse para um espelho singular, refletida no muro a sua vilazinha mineira, de onde o marido a trouxera para a vida turbulenta da cidade.

Tal e qual! Lá estava no alto a capela da Conceição, com o campanário, a casa do padre e aquela grande nogueira, cujas nozes magníficas ela ia colher com Josefina, a irmã, e mais o namorado...

Embaixo, um pedaço de tijolo nu, não é que reproduzia, em miniatura fiel, o largo da vila, com as suas casas abarracadas, espaçadas e desiguais? E aquelas figuras, que no começo se assemelhavam a animais informes, não se moviam agora quais criaturas humanas, umas embiocadas em mantilhas a caminho do outeiro e da igreja, outras à beira do rio, lavando aqueles lençóis cor da neve que tanto brilhavam à luz?

Que tolice! Maria Teresa, melhor que ninguém, sabia que aquele tufo de vegetação que irrompia do muro não era a grande floresta da sua saudosa vila... era uma touceirinha de erva de bode que ela por desleixo não mandara ainda arrancar... Sabia; mas que lhe importava?

Aquilo representava agora ali o papel sagrado de floresta virgem... Era um dos raros pedaços da Terra não maculados ainda pelos pés do homem; o altar puro e sublime do Deus grande, poderoso e único!

Alma de crente, alma de ingênua, espírito propenso ao sobrenatural, Maria Teresa acreditava quase que os seus olhos viam uma verdade; e assim, saudosa da sua terra natal, delineava-lhe os contornos, em um grande fervor de imaginação.

Uma oscilação do galho da arália cortou com uma pincelada negra o encanto do quadro... a árvore voltou à posição natural, mas as figuras do muro pareciam já outras, embaralhadas, dançando no tremor da luz.

Era uma procissão, talvez... frades com capuzes seguiam a passo, nos seus hábitos escuros... Ao longe, na bruma, após um lago de neve, um alto castelo esguio se confundia com as nuvens...

Maria Teresa lembrou-se das velhas histórias medievais que lhe contava uma escrava da família, mulata nortista, de inteligência viva e falas mansas... a Teodora. Seria a alma dela, que a visitava nesse instante de sossego e de solidão, e, doce, quieta, bondosa, lhe reavivava, em painéis rápidos, as passagens da sua infância?

No Cavaleiro da Pluma lembrava-se de uma cena idêntica: os frades iam cantando em coro ao castelo da princesa morta. Mas, assim como nem os médicos chamados pelo rei a puderam salvar, também as orações dos frades não a ressuscitaram... E foi então que o Cavaleiro da Pluma, num corcel branco, galopou através de montes e vales e trouxe à exânime princesa a vida com um elixir roubado ao deus Cupido.

A velha Teodora estrelava as histórias com as suas frases de ouro bruto. Seria mesmo a alma esquecida da mulata que vinha num raio da lua desenhar tais coisas em um muro branco?

A Maria Teresa parecia então ouvir, em um sussurro delicado e longínquo, a voz da escrava, dizendo:

– Lembra-se, Iaiá?!

Pobre Teodora! De nada se esquecera Maria Teresa, a não ser dela, a sua escrava velha e imaginosa, que lhe florira a infância com os seus contos sem par, histórias em que os heróis eram deuses de grandiosos feitos...

Lembrava-se da sua vila, das casas dos amigos, mesmo dos mais indiferentes, das árvores, tais como a nogueira do padre, e do rio, das noites de dança, das festas da igreja, dos pais, das irmãs, das suas rixas, dos seus abraços, das fazendas dos arredores, de tudo... menos dela, da mulata Teodora, que, já velha, passava noites em claro a embalar--lhe a rede, que lhe refrescava o corpo com o banho, que lhe penteava os cabelos, que lhe engomava os vestidos, que a perfumava, que lhe dava os primeiros doces de qualquer tachada, que lhe contava as mais compridas histórias de fadas que nunca língua humana soube dizer!

O Natal... o Ano Bom... os Reis... tudo isso despertava saudades no espírito de Maria Teresa; de todos e de tudo se lembrava com lágrimas, e em nenhuma vira nunca refletida a figura simples da velha Teodora, risonha, doce e plácida...

A alma da escrava vinha pela primeira vez fazer-se lembrada à sua Iaiá, sem um queixume. Ela, que morrera no exílio, longe da sua terra quente de palmeiras e de sol; ela, que por lá deixara os filhos, não tivera assomos nem impaciências para a criança alheia que lhe puseram nos braços ainda tristes e saudosos do seu fardo amado... e era aquela dedicação pura e heroica, que só agora ela compreendia, de relance, como se lhe fosse lembrada pela mão invisível de Deus.

E no muro branco, nos laivos do limo, nas manchas da umidade, nos esboroamentos da caliça, a lua pálida, sem nuvens, esfumava os quadros fugitivos da sua vida passada. As cenas régias das histórias da mulata eram substituídas por outras: as romarias, os pomares, a estrada e o cemitério... Lá estava o túmulo da mãe de Maria Teresa, de altos mármores e coroas de flores... lá estava o da irmã... os dos avós... os de outros parentes mais afastados...

E o da velha Teodora?

Esse, a imaginação de Maria Teresa não pôde descobri-lo... Estaria além entre as covas rasas, sem uma cruz... sem um número?

Estivesse ou não, a alma da escrava não lhe ensinou o caminho e depressa mudou para um cenário risonho o triste cenário da morte.

Maria Teresa ia desfalecer, quando se levantou de súbito e fechou a janela com brusquidão. Para que lembrar? A própria lágrima amarga é doce vista através da saudade. Que no velho muro branco a lua estendesse e recolhesse as sombras; ela fugia, salvando a sua alma abatida, à voz do marido que a chamava da porta.

Bem dizia a Teodora, no Cavaleiro da Pluma: há uma única força capaz de ressuscitar os mortos e de alegrar os vivos: o Amor.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Versejando 93

Montagem sobre imagem da senhora no tear, obtida no Youtube
 

Rubem Braga (O padeiro)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um “lockout”, greve dos patrões que suspenderam o trabalho noturno. Acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão na porta do apartamento ele apertava a campainha, mas para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o  uma vez: – Como tivera a ideia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e  ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era, e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”.  Assim ficara sabendo que não era ninguém.

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina. como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar, e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre - não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXV

JÁ NEM SEI...

MOTE:
Viver assim... Te adorando...
Já nem sei o que fazer...
- Se é melhor viver te amando,
ou te deixar e... sofrer!

Benedito Camargo Madeira
(Pouso Alegre – MG)

GLOSA:
Viver assim... Te adorando...

é sempre tudo que eu quis,
é gostoso estar gostando,
pois te amando, sou feliz!

Mas quando aperta a saudade,
já nem sei o que fazer...
se sou feliz de verdade,
ou se te amar, faz sofrer!

Fico, então, me questionando,
responde, meu coração:
- Se é melhor viver te amando,
ou viver sem emoção?

Não sei se sigo a sonhar,
não sei que devo fazer,
se continuar a te amar,
ou te deixar e... sofrer!
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PRAZOS...

MOTE:
Passa a noite... O dia morre,
mas eu prossigo risonho,
na ansiedade de quem corre
para agarrar outro sonho!
Cyrléa Neves
(Nova Friburgo – RJ, 2016+)

GLOSA:
Passa a noite... O dia morre,

mas um outro se anuncia
e a esperança me socorre
e me envolve de alegria!

Termina o prazo, bem sei,
mas eu prossigo risonho,
pois assim, não mais terei
o meu coração tristonho!

Essa alegria percorre
todo o meu ego e minha alma,
na ansiedade de quem corre
com tranquilidade e calma!

E nessa minha ansiedade,
a mim mesmo, então, proponho,
fantasiar a realidade
para agarrar outro sonho!
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TE ENTREGUEI

MOTE:
Foi quando eu te conheci
que um grande amor vislumbrei,
desde então vivo pra ti,
meu coração te entreguei!
Dalvina Fagundes Ebling
(Cruz Alta/RS, 2020+)

GLOSA:
Foi quando te conheci

que minha vida mudou
no momento em que te vi,
minha alma se apaixonou!

Foi mirando os olhos teus,
que um grande amor vislumbrei,
e todos os sonhos meus
nesse amor eu mergulhei!

Teus pensamentos eu li
e encontrei muita ternura,
desde então vivo pra ti,
és a sonhada ventura!

Naquele instante tão lindo,
ao te ver, logo te amei,
e com meu amor infindo,
meu coração te entreguei!
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SEMPRE QUE CHEGAS...

MOTE:
Sempre que chegas cansado
e me abraças ternamente,
o meu ser apaixonado,
volta a ser adolescente!

Delcy Canalles
(Porto Alegre – RS)

GLOSA:
Sempre que chegas cansado

do trabalho para o lar,
meu beijo, por ti, esperado,
vai correndo te encontrar!

Quando chegas e sorris,
e me abraças ternamente,
tu me fazes mais feliz
e eu fico bem mais contente!

Sentir que estás ao meu lado
faz vibrar todo o meu ser,
o meu ser apaixonado,
que recomeça a viver!

Vibrando, então, de emoção,
todo o amor, em mim latente,
explode em meu coração
volta a ser adolescente!
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RIMAS DE AMOR...

MOTE:
A saudade que angustia
o meu peito sonhador,
é rima que eu não queria...
em minhas rimas de amor!

João Freire Filho
(Rio de Janeiro – RJ, 1941 – 2012)

GLOSA:
A saudade que angustia,

que faz meu pranto rolar,
a que me rouba a alegria,
não quer partir, me deixar!

Essa saudade magoa
o meu peito sonhador,
que fica chorando à toa
magoada com tanta dor!

Essa imensa nostalgia,
maior que o próprio Universo,
é rima que eu não queria...
não queria no meu verso!

Somente rimas perfeitas,
sem tristeza, pranto ou dor,
queria que fossem feitas
em minhas rimas de amor!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.