sexta-feira, 4 de março de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 18

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 47 –

Em recente leitura encontrei ideias-afirmações que vieram bater naquilo que sempre pensei sobre a vida, o mundo, o universo.

Segundo o físico sul-africano Neil Turok, o Big Bang não teria acontecido como se acredita. O cientista reconheceu que faz parte de uma minoria, tendo a visão diferente do início do universo. " O universo é extremamente simples. O universo é econômico, tem alguns princípios e os usa continuamente ".

" O universo é a coisa mais simples do universo " - diz ele. Com isso quer dizer que não é a favor de adicionar novas partículas, novos campos, novas dimensões no estudo da física e da cosmologia.

Não precisamos acrescentar nada, a chave para entender os mistérios do universo é olhar para " a surpreendente simplicidade, beleza, elegância e economia da natureza ".

Longe do cientifismo, mas pertinho dos meus sentimentos racionais, dou arras às ideias de Turok, pois sempre vi a natureza e tudo que nela há, como algo simples e sincronizado em todos os seus detalhes.

Então por que tantas vezes complicamos a vida nos pequenos detalhes em qualquer campo no dia a dia ? Estamos rodeados de simplicidade. Basta olhar, ver e assimilar.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Manuel Du Bocage (Sonetos) VI

Importuna Razão, não me persigas,
Cesse a ríspida voz que em vão murmura,
Se a lei do Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas,

É teu fim, seu projeto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo :

Queres que fuga de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.
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Mimosa, linda Anarda, atende , atende
Às doces mágoas do rendido Elmano,
C’um meigo riso, c’um suave engano
Consola o triste amor, que não te ofende.

De teus cabelos ondeados pende
Meu coração, fiel para seu dano;
Co’a luz dos olhos teus Cupido ufano
Sustenta o puro fogo, em que me acende,

Causa gentil das lágrimas que choro,
A tudo te antepõe minha ternura,
E quanto adoro o céu, teu rosto adoro:

O golpe, que me deste, anima e cura...
Mas ai! Que em vão suspiro, em vão te imploro:
Não pertence a piedade à formosura.
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Minh'alma se reparte em pensamentos
Todos escuros, todos pavorosos.
Pondero quão terríveis, quão penosos
São, existência minha, os teus momentos.

Dos males que sofri, cruéis, violentos,
A Amor, e aos Fados contra mim teimosos,
Outro inda mais tristes, mais custosos
Deduzo com fatais pressentimentos.

Rasgo o véu do futuro, e lá diviso
Novos danos urdindo Amor e aos Fados,
Para roubar-me a vida após do siso.

Ah! Vem, Marília, vem com teus agrados,
Com teu sereno olhar, teu brando riso
Furtar-me a fantasia a mil cuidados.
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O Céu não te dotou de formosura,
De atrativo exterior, e a Natureza
Teu peito infeccionou co’a vil torpeza
De ingrata condição, falaz e impura;

Influiu-me os extremos da ternura
A Constância, o fervor, e a singeleza,
Esses dons mais gentis que a gentileza,
Dons, que o tempo fugaz não desfigura ;

Apesar da traição , do fingimento
Que te inflama, e desluz, se envela e para
Em ti, alma infiel, meu pensamento;

Nas paixões a razão nos desampara,
Se a razão presidisse ao sentimento,
Tu morrerás por mim, eu não te amara.
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O ledo passarinho, que gorjeia
D'alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente , que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia.

O Sol, que o céu diáfano passeia,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da aurora alegre e pura,
A rosa, que entre os zéfiros ondeia;

A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glórias que consigo,
A deusa das paixões, e de Cítera:

Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera,
Nada se pode comparar contigo.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994. Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Bailão do Penha

Num certo dia, lá pelos meados dos anos 1970, apareceu na redação da “Folha do Norte”, com aquele seu inconfundível sorriso, o querido maestro Fernando Penha. Viera pedir a publicação de um anúncio relacionado com o quentíssimo “Bailão Popular”, que ele promovia todos os sábados. “No Bailão as damas não pagam, somente os cavalheiros”, enfatizava o anúncio”. De certo uma das razões do seu crescente sucesso.

A média de frequência andava por volta das 500 pessoas por baile. Discoteca alguma superava tal marca, esnobava ele. O prestígio do evento era tal que até os políticos faziam questão de circular por lá em todos os finais de semana.

Fernando Penha foi um músico pioneiríssimo em Maringá, clarinetista que nos bons tempos soprava cinco minutos seguidos de agudo sem perder o fôlego. Mineiro de São Sebastião do Paraíso, reencontrou aqui três conterrâneos ilustres: o jornalista Aristeu Brandespim (seu cunhado), o poeta Ary de Lima e o artista plástico Reynaldo Costa.

No começo, ele tocava na Banda do Marchini, a primeira da cidade; depois formou sua própria orquestra, que animava bailes no Aero Clube, no Grêmio dos Comerciários e em cidades vizinhas. Lembro-me de que havia até um cantor italiano, Tito Pezzi, e também o pistonista Pirulito, o Toninho da bateria, o Wilson cantor de boleros, e em ocasiões especiais contava com o mestre Aniceto Matti no piano ou no acordeón.

Um dia o Penha solicitou meus préstimos... isso quando eu era solteiro ainda, recente Maringá. Ele precisava de um “músico extra” e me escalou para a função, logo eu que de música não entendia nada. De qualquer forma, valia a experiência e acabei vestindo o uniforme da orquestra, com gravata borboleta e tudo, para tocar num baile em Mandaguari. Verdade.

Toquei um instrumento bastante original: despertador. Seguinte: constava do repertório um swing do Glenn Miller, “Pensylvania”. A certa altura, silenciavam-se os instrumentos e os músicos diziam em coro: “6-5-0-0-0” (em inglês). Em seguida, deveria soar a campainha de um telefone... e era nesse ponto que eu entrava, tocando o despertador: “trrrrrriiiiiiimmmmmm”... Se falhasse, estragava a música.

Parece fácil, mas a coisa exigiu muitos ensaios. Era preciso ficar com o despertador engatilhado, o dedo segurando a trava, e soltar no momento exato de soar a campainha. E foi assim que pela primeira, última e única vez na vida fui músico de orquestra, ficando devendo por isso ao grande Penha esse precioso item de minha longa biografia.

Na visita dele à redação da “Folha”, Penha lembrou aquela insólita aventura. Ainda bem que ele já havia tirado do seu repertório a “Pensylvania”, porque eu não pretendia voltar jamais a dar meu show de despertador...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-2-2022)

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (“Suave é a Noite”, de F. Scott Fitzgerald)


Sua ingenuidade se sentia atraída pela custosa simplicidade dos Diver, sem perceber que nela havia complexidade e falta de inocência, sem ver que eles se preocupavam mais com qualidade do que com quantidade. Assim também a naturalidade de comportamento, a paz e a boa vontade, a ênfase dada às virtudes mais singelas, tudo isso fazia parte de um desesperado acordo com os deuses e fora atingido à custa de lutas incalculáveis.” (FITZGERALD, 2010, pag. 43).


Dick Diver é um brilhante psiquiatra que, ao ser chamado para um caso, apaixona-se pela paciente. Com o casamento, o estilo de vida que os dois adotam passam a ser financiado pelo dinheiro de Nicole e aos poucos Dick abandona a psiquiatria. Apesar do dinheiro, dos belos lugares e das inúmeras festas, o casal não é feliz e sua vida é tediosa.

Ambientado na década de 20 e dividido em três partes, “Suave é a Noite” começa lento, para não dizer entediante. Dick e Nicole vivem uma vida vazia na Riviera Francesa quando em suas vidas surge a jovem atriz Rosemary que se apaixona por Dick e, eventualmente, é correspondida. Esses capítulos, porém, são monótonos e os personagens não cativam (o que talvez mostre como eles se sentem em relação à vida).

Já na segunda parte do livro a mudança é palpável. O autor brinca com a linha temporal e dedica alguns capítulos centrais à época em que Dick e Nicole se conheceram – a época de ouro da carreira dele e o auge da doença dela no hospital psiquiátrico. Nas primeiras linhas já é possível perceber que aquelas pessoas que vínhamos acompanhando eram outras pessoas em outra fase de suas vidas e que o casamento foi um marco da mudança (uma característica que lembra obras do Realismo, por exemplo, “Madame Bovary”). Ali, podemos ver um Dick vibrante, uma pessoa cheia de planos e sonhos - a quem todos gostavam pelo que de fato era e não pelo que tentava ser - e detentora do domínio de sua própria vida.

Voltando ao presente, acompanhamos o desgaste da relação do casal e a decadência de Dick que, aos poucos, se entrega ao alcoolismo. “Suave é a Noite” é considerada a obra mais autobiográfica de Fitzgerald e o alcoolismo de Dick é um reflexo do alcoolismo do autor, enquanto a esquizofrenia de Nicole é um reflexo da de Zelda, sua esposa. Não só esses, mas outros aspectos da trama foram inspirados em acontecimentos da vida do casal.

É interessante a inversão de papeis que ocorre aos poucos. Enquanto Dick vai se reduzindo a um fragmento do homem que era, Nicole, por sua vez, que a principio depende dele para se curar – primeiro como médico, depois como marido - aos poucos se livra dessa dependência e encontra seu próprio rumo.

Com uma recepção morna na época do seu lançamento (já que histórias da Era do Jazz já estavam defasadas nos anos que se seguiram à crise da bolsa de valores) “Suave é a Noite” era considerado por Fitzgerald sua melhor obra e foi o último livro que o autor finalizou (na ocasião de sua morte trabalhava em “O Último Magnata”).

Fonte:
Mariana Fontana Szewkies, in Além da Contra Capa. 11 agosto 2016.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Versejando 103

 

Carolina Ramos (Folclore de Santos) O Fantasma do Museu de Pesca

Sim, dizem que há um fantasma no Instituto de Pesca de Santos, lá na Ponta da Praia.

Um fantasma que, vez ou outra, arrasta correntes por entre os peixes taxidermizados* que enriquecem o Museu, lá pelas proximidades do esqueleto da grande baleia que, por sua vez, ocupa quase uma sala inteira dele. Um fantasma bonzinho, afável com as crianças e que protege o acervo do referido Museu.

Quem nos poderia dizer algo mais sobre este assunto seria Mestre Nelsinho Dreux, que partiu deixando saudades "taxidermizadas" em cada canto. Mercê dos seus conhecimentos e dedicação à taxidermia aplicada ao estudo e resguardo da fauna marítima. Mestre Nelsinho fez escola e suas peças ainda enfeitam os salões do Instituto de Pesca, como também o Mini-Museu Marinho, do IHG* de Santos, iniciado, no ano 2000, pela autora destas linhas.

Teriam parado por aqui os informes sobre este assunto se não fossem introduzidos outros três nomes capazes de jogar mais luz sobre ele: – Dr. Acácio Ribeiro Gomes Tomás, oceanógrafo, mestre e doutor em Ciências e Ecologia - Pesquisador Científico do Instituto de Pesca; Antônio Carlos Simões, jornalista, ex-diretor do Museu de Pesca 1979/1997, e Gizelda Palubinskas, ex-funcionária administrativa do referido Instituto.

Com o "palco", agora devidamente iluminado, tendo por foco o "Capitão Padilha," também chamado Fantasma (Protetor) do Instituto de Pesca de Santos, este personagem lendário vem à cena credenciado pelas vozes que deram base ao que aqui vai descrito, embora sujeito a outras versões, como geralmente acontece com qualquer lenda.

- Comecemos pelo testemunho de Dona Gizelda, a beirar os setenta, e que foi, por muitos anos, Secretária do Instituto de Pesca de Santos.

Ante a pergunta: - É verdade que há um fantasma no Instituto de Pesca? - deu-nos ela, por telefone, o testemunho de alguns sustos por ela mesma vivenciados.

Um deles: - " Certa noite, cerca das 19h, encerrado o expediente e sem que, além de mim, houvesse mais alguém no prédio", confessa Dona Gizelda ter ouvido, perfeitamente, na ante-sala onde ela estava, tensa e assustada: - “uma porta abrir-se e fechar-se logo em seguida, num dos aposentos próximos”. - O que, evidentemente, foi logo atribuído à presença do "Capitão fantasma".

- "De outra feita” - continua Dona Gizelda - "após uma "vernissage" (evento, àquele tempo, comum, lá no Instituto), quando o público já deixara o prédio, eu subi as escadas que me levariam ao andar superior para apagar as luzes no intuito de evitar desperdícios". Ao retomar pela mesma escada, um novo susto; – "senti que alguém descia os degraus... juntamente comigo” - e a comprovada simpatia de Dona Gizelda não omite o acontecido: – "Assustada, agarrei-me ao corrimão, dizendo, num alerta ao fantasma: - "Capitão, por favor!... Saiba que eu estou cuidando da sua casa!..." - como quem diz: - Não tenho medo... mas... "fique longe, por favor!!"

O clima fica mais intenso quando a simpática narradora conta que o senhor José, antigo funcionário do Instituto, jamais chegava ao andar de cima porque "na última vez em que lá estivera, ouvira o som de correntes sendo arrastadas pelo chão!"

E o derradeiro relato de Dona Giselda; - "Certo dia, findo o expediente, ao ser fechada a porta de saída do Instituto, ouvimos passos de alguém descendo as escadas, ruído que desaparecia quando a porta era reaberta... e voltava a ser ouvido, quando a mesma era novamente fechada”.

Uma vez ventilada a "presença" do Fantasma do Capitão Padilha no Instituto de Pesca de Santos, o que ganha certo aroma de realidade nas palavras de Dona Gizelda, vamos ligeiramente à história desse personagem que justifica a lenda, ouvindo o que dizem Dr. Acácio Ribeiro Gomes Tomás, Oceanógrafo, mestre doutor em Ciências, e o jornalista Antônio Carlos Simões, ambos profundamente ligados ao Instituto - o primeiro, como Pesquisador Científico, desde 1997 e o segundo, ex-diretor do Museu de Pesca de Santos, de 1987 a 1997.

Os depoimentos se entrelaçam:

- Tudo pode ter começado com a suposta "morte de um diretor da então Escola de Pesca, quando tinha fins de formação profissional, há quase 100 anos - o que não é comprovado".

A má conservação do prédio, acusada pelo ranger das tábuas do assoalho e pelo ruído das desgastadas dobradiças das portas e janelas, teria sido importante coadjuvante para o desenvolvimento da lenda através dos tempos, como, também, os antecedentes do atual Museu - antiga fortaleza que defendia o estuário, exposta ao ataque dos corsários, e que, "em tempos muito anteriores, teria sido um sítio de enterros dos indígenas, justificando a presença do sambaqui, que infelizmente não existe mais," tudo a favorecer para que ganhasse corpo a aura fantasmagórica que envolveu esse Museu santista, colaborando, talvez, para o seu tombamento e futuro restauro - o que eliminou de vez os ruídos suspeitos.

Mas... a tal ponto expandiu-se esta lenda, no passado, que, segundo relato de antigos alunos internos, eles mesmos "sequer ousavam abrir a porta, à noite, para irem ao banheiro, por conta do medo do "Capitão Padilha, o famoso fantasma" - que por lá perambulava, embora reconhecessem não ter ele feito, jamais, qualquer mal a alguém!

E quem seria, afinal, o Capitão Padilha? - Tão somente: – "Uma figura imaginária, que surgiu tendo por base a figura real do Capitão-tenente Garcez Palha, referendado pela Marinha Brasileira", e, também, ligado ao prédio em questão, cuja construção ele supervisionou, quando a Escola de Aprendizes de Marinheiros do Estado de São Paulo, que, ao ser extinta, veio a ser transformada na "Escola de Pesca", geradora do atual Museu - como explicam as vozes que seguem a guiar este relato.

O nome de Garcez Palha, ao virar lenda, acabou por ser carinhosamente trocado pelos funcionários do Instituto de Pesca, que lhe deram o apelido de Capitão Padilha.

Em fase mais recente, 2001, foi inaugurado, no Museu de Pesca, o chamado "Quarto do Capitão Padilha". Projeto que integra a Ala Lúdica Petrobrás, e é de autoria de um grupo de alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Católica de Santos. Este "Quarto do Capitão" dá acesso a relatos fantasiosos de funcionários e demais curiosidades relativas ao "fantasma guardião" - sendo um atrativo a mais para os visitantes.

No tal quarto, as crianças são recebidas com carinho e têm acesso a um cenário preparado especialmente para elas, onde ouvem relatos alusivos, e descobrem "móveis e também objetos pertencentes ao "Capitão", tais como cartas de navegação, diário de bordo, antigos utensílios de uso pessoal, etc." assim como histórias de grandes navegadores e das aventuras marítimas de Marco Polo, Cristóvão Colombo, Fernando de Magalhães, Amyr Klink, etc."

Um gato, ex-morador daquele prédio, lembra os trabalhos de taxidermia de Nelsinho Dreux. É ele o atual guardião do quarto do "Capitão Padilha" - o já famoso Fantasma do Instituto de Pesca de Santos.

Fala-se que o Teatro Coliseu santista, ao lado esquerdo da Catedral, tem também o seu fantasma - ou seja, um homem, que, quando aparece, o que é bastante raro, perambula por entre os bastidores.
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Notas:
IHG = Instituto Histórico e Geográfico
Taxidermia = antigo processo de encher de palha animal morto a fim de conservar-lhe as características, empalhar.
 
Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXIX

A FORÇA DA TROVA...


MOTE:
Trabalho!... e fazendo trova,
já nem sinto meus cansaços,
pois São Francisco me aprova,
pondo mais força em meus braços...

Ercy Maria Marques de Faria
(Bauru/SP)


GLOSA:
Trabalho!... e fazendo trova,
eu me sinto renascer,
em qualquer ideia nova
que, então, consiga escrever!

Numa alegria estonteante
já nem sinto meus cansaços,
e feliz, me sinto diante
do calor de mil abraços!

O amor à trova, renova,
faz da trova uma oração,
pois São Francisco me aprova,
e aumenta a minha emoção!

Ó meu Santo Padroeiro,
tu preenches meus espaços,
com ares de feiticeiro
pondo mais força em meus braços…
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A TERRA É UM ALTAR

MOTE:
A terra toda é um altar,
onde Deus, dia após dia,
distribui, sem vacilar,
a comunhão da energia!

Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:
A terra toda é um altar

de belezas naturais:
as montanhas, selva e mar...
altares belos, demais!

É nosso o mundo tão lindo
onde Deus, dia após dia,
com o seu poder infindo
faz brotar, nele, a harmonia!

Manda bênçãos pelo ar
com seu amor e carinho.
distribui, sem vacilar,
flores em nosso caminho!

O mundo recebe, então,
a Divinal sintonia
que faz nascer da emoção
a comunhão da energia!
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CAMBORIÚ, SEREIA…

MOTE:
Camboriú, linda sereia,
sou teu poeta a cantar,
deitando trovas na areia,
banhando rimas no mar...
Gerson Cesar Souza
(São Mateus do Sul/PR)


GLOSA:

Camboriú, linda sereia,
praia mais bela do Sul,
minha alma, por ti, passeia
envolta em teu mar azul!

Vibra de amor o meu peito,
sou teu poeta a cantar,
e poetando é o meu jeito
de, em versos, te sublimar!

Sigo, em cada maré cheia,
colhendo nova ilusão,
deitando trovas na areia,
escritas com o coração!

Teu Sol, enfeita meu dia;
minha noite – o teu luar;
me extasio de alegria,
banhando rimas no mar…
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CUMPLICIDADE

MOTE:
É quando a noite se aquieta
que eu sinto a cumplicidade,
do amor que me faz poeta,
com a dor que me faz saudade!
João Paulo Ouverney
(Pindamonhangaba/SP)


GLOSA:

É quando a noite se aquieta
na languidez das estrelas
que a minha visão de esteta
me deixa feliz, por vê-las!

É sempre em noite silente,
que eu sinto a cumplicidade,
pareço um adolescente,
sonhando em profundidade!

Encontro na estrada reta,
os pedacinhos de sonhos,
do amor que me faz poeta,
que faz meus dias risonhos!

Me identifico também,
com a dor e a ansiedade
e sofro, como ninguém,
com a dor que me faz saudade!
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SOMOS...

MOTE:
O nosso amor sem recatos,
é uma loucura, porém
nós somos dois insensatos
felizes como ninguém!...

José Tavares de Lima
(Juiz de Fora/MG)


GLOSA:

O nosso amor sem recatos,
é verdadeiro, incomum...
Nós vivenciamos os fatos
do nosso amor, um por um!

Muitos dizem que é loucura!
é uma loucura, porém
toda cheia da ternura,
que uma loucura contém!

Aos olhos estupefatos
do mundo, em indagação,
nós somos dois insensatos
movidos pela emoção!

É grande o nosso carinho,
nosso amor vai mais além,
seguimos nosso caminho
felizes como ninguém!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Júlia Lopes de Almeida (O Caso de Rute)

A Valentim Magalhães


Pode abraçar sua noiva! disse com bambaleaduras* na papeira* flácida a palavrosa* baronesa Montenegro ao Eduardo Jordão, apontando a neta, que se destacava na penumbra da sala como um lírio alvíssimo irrompido dentre os florões grosseiros da alcatifa.

Ele não se atreveu, e a moça conservou-se impassível.

– “Não se admire daquela frieza. Olhe: eu sei que Rute o ama, não porque ela o dissesse – esta menina é de um recato e de um melindre de envergonhar a própria sensitiva –, mas porque toda ela se altera quando ouve o seu nome. O corpo treme-lhe, a voz muda de timbre e os olhos brilham-lhe como se tivessem fogo lá por dentro. Outro dia, porque uma prima mais velha, senhora de muito respeito, ousasse por em dúvida o seu bom caráter, a minha Rute fez-se de mil cores e tais coisas lhe disse que nem sei como a outra a aturou! Toda a gente percebe que ela o ama; mas é uma obstinada e lá guarda consigo o seu segredo... Agora, que o senhor vem pedi-la, é que eu lhe declaro que estava morta por que chegasse este momento. Apreciei-o sempre como um coração e um espírito de bom quilate.”

– “Oh! Minha senhora...”

– “Não lhe faço favor. Além disso, Rute está com vinte e três anos; parece-me ser já tempo de se casar. Há de ser uma excelente esposa: é bondosa, regularmente instruída, nada temos poupado com a sua educação; e se não aparece e não brilha muito na sociedade é pelo seu excesso de pudor. Eu às vezes cismo que esta minha neta é pura demais para viver na terra. Todas as pessoas de casa têm medo de lhe ferir os ouvidos e escolhem as palavras quando falam com ela.

Não admira: a mãe teve só esta filha e foi rigorosíssima na escolha das mestras e das amigas; o padrasto tratava-a também com muita severidade, embora fosse carinhoso. Um santo homem! Desde que ele morreu que nos falta a alegria em casa... A mulher, coitada, como sabe, ficou paralítica; e esta pequena mesmo tornou-se melancólica e sombria. Às vezes penso que ela fez voto de castidade, tal é o seu recato; desengano-me lembrando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom senso se revela em tudo! O que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto: afirmo-lhe que Rute o adora e que não há alma mais cândida, nem espírito mais virginal que o seu. Aí a deixo por alguns minutos; se é o respeito por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade.”

Eduardo fixou na noiva um olhar apaixonado. Na sua brancura de pétala de camélia não tocada, Rute continuava em pé, no mesmo canto sombrio da sala. Os seus grandes olhos negros chispavam febre e ela amarrotava com as mãos, lentamente, em movimentos apertados, o laço branco do vestido.

A baronesa acrescentou ainda, carregando nas qualidades da neta e fazendo ranger a cadeira de onde se erguia:

– “Rute nunca foi de lastimeiras e, apesar de mimosa e de aparentemente frágil, tem boa saúde. Um bom corpo ao serviço de uma excelente alma. Dirão: “Estas palavras ficam mal na tua boca!...” Pouco importa; são a verdade. Tenho outras netas, filhas de outras filhas; tenho criado muitas meninas, minhas e alheias, mas em nenhuma encontrei nunca tanta doçura, tanta altivez digna e tanta pudicícia. Aí lhe a deixo; confesse-a!”

A velha saiu.

Todos os rumores da rua rolaram confusamente pela sala. A porta que se abriu e fechou trouxe, num raio de luz, os repiques dos sinos, o rodar dos veículos, o sussurro abominável da cidade atarefada; mas também tudo se extinguiu depressa. A porta fechou-se, as janelas voltadas para o jardim mal deixavam entrar a claridade, coada por espessas cortinas corridas, e os noivos ficaram sós, silenciosos, contemplando-se de face.
* *

O finado barão fora um colecionador afinco de móveis e de outros objetos dos tempos coloniais. Súdito de D. João VI, de que a sua adorável memória acusava ainda todos os traços já aos noventa anos, era sempre o seu assunto predileto a narração dos sucessos históricos presenciados por ele. À proporção que se ia afastando dos seus dias de moço, mais aferrado se fazia aos gostos e às modas do seu tempo. Só se servia em baixela assinada com os emblemas da casa bragantina e a propósito de qualquer coisa dizia, fincando o queixo agudo entre o indicador em curva e o polegar: – “Lembro-me de uma vez em que a D. Carlota Joaquina”... Ou então: – “Em que D. João VI, ou D. Pedro I”, etc. E em seguida lá vinha a descrição de um Te Deum, ou de uma procissão, a que a sua imaginação facultosa emprestava as mais brilhantes pompas. A família tinha um sorriso condescendente para aquele apego, já sem curiosidade, à força de ouvir repetir os mesmos fatos. Os amigos evitavam tocar, de leve que fosse, em assuntos políticos, receosos da longura do capítulo que o barão a propósito lhes despejasse em cima; mas só ele, o bom, o fiel, nada percebia, e, com os olhos no passado, toca a citar ditos e atitudes dos imperadores e a curvar-se numa idolatria pelo espírito boníssimo da última imperatriz.

Alguma coisa disso se refletia em casa: tudo ali era sóbrio, monótono e saudoso. Cadeiras pesadas, de moldes coloniais, largas de assento, pregueadas no couro lavrado de coroas e brasões fidalgos, uniam as costas às paredes, de onde um ou outro quadro sacro pendia desguarnecido e tristonho.

Assim o quisera ele, que até mesmo na hora suprema rejeitara um belo crucifixo que lhe oferecia o padre, voltando os olhos suplicemente para um outro crucifixo mais tosco, erguido sobre a cômoda, e que pertencera a D. Pedro I.

Para ele, naquela cruz não estava só o Cristo; estava, de envolta com o respeito pelos monarcas extintos, a lembrança dos seus folguedos de moço. Talvez mesmo, num volteio súbito da memória, se lembrasse das festas religiosas em que namorara, à sombra dos conventos, a sua primeira mulher, e beliscara com freimas amorosas os braços gordos de Janoca, a mulatinha mais faceira de então... Quem sabe? talvez que na hora da morte não se possa só a gente lembrar das coisas sérias.

Qualquer hora vivida pode ser recordada rapidamente, sem tempo de escolha. Como a Janoca não pertencera à história, a família ignorou-a; e pelo ar gélido daquela galeria de espectros palacianos não apareceu nem um requebro quente de mulatinha risonha, que lhes desmanchasse a compostura.

Depois de viúva, a segunda baronesa reformara algumas coisas e confundira os estilos, pondo no mesmo canto um contador Luís XV, um móvel da Renascença e uns tapetes modernos, entre largos reposteiros de seda cor de marfim.

Aquela extravagância não conseguira quebrar a severidade do todo. Tinha uma fisionomia casta e grave aquela sala. As virgens dos quadros, de longo pescoço arqueado e rosto pequenino, gozavam ali o doce sossego de uma meia tinta religiosa. Mas, lá dentro, os dias passavam-se entre o tropel da criançada, os sons do piano de Rute e a confusão dos criados.

E era por isso que todos fugiam lá para dentro e que só Rute, nas suas horas de inexplicável tristeza, se encerrava ali, em companhia da Madona da Cadeira e da Virgem de S. Sisto.

Era nessa mesma sala que ela estava ainda, muda e pálida, em frente do seu amado.

– “Rute...” - balbuciou Eduardo.

Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz segura e firme:

– “Minha avó mentiu-lhe.”

O noivo recuou, num movimento de surpresa; foi ela quem se aproximou dele, com esforço arrogante e doloroso, deslumbrando-o com o fulgor dos seus olhos belíssimos, bafejando-lhe as faces com o seu hálito ardente.

– “Eu não sou pura! Amo-o muito para o enganar. Eu não sou pura!”

Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e palpitações desordenadas no coração, amparou-se a uma antiga poltrona, velha relíquia de D. Pedro I, e olhou espantado para a noiva, como se olhasse para uma louca. Ela, firme na sua resolução, muito chegada a ele, e a meia voz, para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo:

– “Foi há oito anos, aqui, nesta mesma sala... Meu padrasto era um homem bonito, forte; eu uma criança inocente... Dominava-me; a sua vontade era logo a minha. Ninguém sabe! Oh! Não fale! Não fale, pelo amor de Deus! Escute, escute só; é segredo para toda a gente... No fim de quatro meses de uma vida de luxúria infernal, ele morreu, e foi ainda aqui, nesta sala, entre as duas janelas, que eu o vi morto, estendido na eça*. Que libertação, que alegria que foi aquela morte para a minha alma de menina ultrajada! Ele estava no mesmo lugar em que me dera os seus primeiros beijos e os seus infames abraços; Ali! Ali! Oh, o danado! Mais do que nunca lhe quero mal agora! Não fale, Eduardo! Minha avó morreria, sofre do coração; e minha mãe ficou paralítica com o desgosto da viuvez... Desgosto por aquele cão! E ela ainda me manda rezar por
sua alma, a mim, que a quero no inferno! Às vezes tenho ímpetos de lhe dizer: “Limpa essas lágrimas; teu marido desonrou tua filha, foi seu amante durante quatro meses...” Calo-me piedosamente; e acodem todos: que não chorei a morte daquele segundo pai e bom amigo! – É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência; mas cedi. Dou-lhe a liberdade de restituir a sua palavra à minha família.”

Rute falara baixo, precipitando as palavras, toda curvada para Eduardo, que lhe sentia o aroma dos cabelos e o calor da febre.

Em um último esforço, a moça fez-lhe sinal que saísse e ele obedeceu, curvando-se diante dela, sem lhe tocar na mão.
* *

O outro está morto há oito anos... ninguém sabe, só ela e eu... Está morto, mas vejo-o diante de mim; sinto-o no meu peito, sobre os meus ombros, debaixo de meus pés, nele tropeço, com ele me abraço em uma luta que não venço nunca! Ninguém sabe... mas por ser ignorada será menor a culpa? Dizem todos que Rute é puríssima!

Assim o creem. Deverei contentar-me com essa credulidade? Bastará mais tarde, para a minha ventura, saber que toda a gente me imagina feliz? O meu amigo Daniel é felicíssimo, exatamente por ignorar o que os outros sabem. Se a mulher dele tivesse tido a coragem de Rute, ama-la-ia ele da mesma maneira? Se a minha noiva não me tivesse dito nada, não seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse relatar barbaramente as suas horas de volúpia, que me fazem tremer de horror! E eu, ignorante, seria venturoso, amaria a minha esposa, à sombra do maior respeito e com a mais doce proteção... E assim?!

Poderei sempre conter o meu ciúme e não aludir jamais ao outro? Ele morreu há oito anos... ela tinha só quinze... ninguém sabe! Só ela e eu! ...e ela ama-me, ama-me, ama-me! Se me não amasse e fosse em todo caso minha noiva dir-me-ia do mesmo modo tudo? Não... parece-me que não... não sei... se me não amasse... nada me diria! Daí, quem sabe? Amo-o muito para o enganar... parece-me que lhe ouvi isto!

Se eu pudesse esquecê-la! Não devo adorá-la assim! É uma mulher desonrada. A pudica açucena de envergonhar sensitivas é uma mulher desonrada... E eu amo-a! Que hei de fazer, agora? Abandoná-la... não seria digno nem generoso... Aquela confissão custou-lhe uma agonia!

Se ela não fosse honesta não afrontaria assim a minha cólera, nem se confessaria àquele que amasse só para não sentir a humilhação de o enganar. E o que é por aí a vida conjugal senão a mentira, a mentira e, mais ainda, a mentira?

O outro está morto... ninguém sabe, só ela e eu! Ela e eu! E que nos importam os outros, tendo toda a mágoa em nós dois só?! Antes todos os outros soubessem... Não! Que será preferível – ser desgraçado guardando uma aparência digna, ou...? Não! em certos casos ainda há alguma felicidade em ser desgraçado... Ela ama-me... eu amo-a... ele morreu há oito anos... já nem lhe falam sequer no nome... Ninguém sabe! ninguém sabe... só ela e eu!

Eduardo Jordão passava agora os dias em uma agitação medonha. Atraía e repelia a imagem de Rute, até que um dia, vencido, escreveu-lhe longamente, amorosamente, disfarçando, sob um manto estrelado de palavras de amor, a irremediável amargura da sua vida. “Que esquecesse o passado... ele amava-a... o tempo apagaria essa ideia, e eles seriam felizes, completamente felizes.”

O casamento de Rute alvoroçava a casa. A baronesa ocupava toda a gente, sempre abundante em palavras e detalhes. Só Rute, ainda mais arredia e séria, se encerrava no seu quarto, sem intervir em coisa alguma. Relia devagar a carta do noivo, em que o perdão que ela não solicitara vinha envolvido em promessas de esquecimento. Esquecimento! Como se fosse coisa que se pudesse prometer!

A moça, de bruços na cama, com o queixo fincado nas mãos, os olhos parados e brilhantes, bem compreendia isso.

Entraria no lar como uma ovelha batida. O perdão que o noivo lhe mandava revoltava-a. Pedira-lhe ela que lhe narrasse a sua vida dele, as suas faltas, os seus amores extintos? Não teria ele compreendido a enormidade do seu sacrifício? Seria cego? Seria surdo?... dono de um coração impenetrável e de uma consciência muda? As suas mãos estariam só tão afeitas a carícias que não procurassem estrangulá-la no terrível instante em que ela lhe dissera – eu não sou pura? Ou então por que não a ouvira de joelhos, compenetrado daquele amor, tão grande que assim se desvendava todo?! Ele prometia esquecer! Mas no futuro, quando se enlaçassem, não evocariam ambos a lembrança do outro? Talvez que, então, Eduardo a repelisse, a deixasse isolada no seu leito de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lá fora o sonho da sua mocidade... Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de inferno! Se ele fosse generoso ela adivinharia através da doçura do seu beijo os ressaibos da lembrança do primeiro amante; e quanto maior fosse a paixão, maior seria a raiva e o ciúme.

Esquecimento!... sim... talvez, lá para a velhice, quando ambos, frios e calmos, fossem apenas amigos.

Rute pensou em matar-se. Viver na obsessão de uma ideia humilhante era demais para a sua altivez. Desejou então uma morte suave, que a levasse ao túmulo com a mesma aparência de cecém* cândida, de envergonhar a própria sensitiva.

Queria um veneno que a fizesse adormecer sonhando; e quanto dera para que nesse sonho fosse um beijo de Eduardo que lhe pousasse nos lábios!
* *

De luto a casa. Ramos e coroas virginais entravam a todo o instante. Quem saberia explicar a morte de Rute? foram achá-la estendida na cama, já toda fria.

Agora estava entre as duas janelas, na grande sala sombria, espalhando sobre o fumo da eça as suas rendas brancas e o seu fino véu de noiva. Parecia sonhar com o desejado esposo, que ali estava a seu lado, pálido e mudo.

Entravam já para o enterro e foi só então que uma voz disse alto, saindo da penumbra daquela sala antiga:

– Vai ficar com o padrasto, no mesmo jazigo...

Eduardo fixou a morta com doloroso espanto. Estava linda! Na pele alvíssima nem uma sombra. Os cabelos negros, mal atados na nuca, desprendiam-se em uma madeixa abundante, de largas ondas.

Quê! seria ainda para o outro aquele corpo angélico, tão castamente emoldurado nas roupas do noivado? Seria ainda para o outro aquela mocidade, aquela criatura divina, que deveria ser sua?!

E a mesma voz repetiu:

– Vai ficar com o padrasto...

Com o padrasto, noites e dias... fechados... unidos... sós! Fora para isso que ela se matara, para ir ter com o outro! Aquele outro de quem via o esqueleto torcendo-se na cova, de braços estendidos para a reconquista da sua amante!

Alucinado, ciumento, Eduardo arrancou então num delírio o véu e as flores de Rute, e inclinando um tocheiro pegou fogo ao pano da eça.

E a todos que acudiram nesse instante pareceu que viam sorrir a morta em um êxtase, como se fosse aquilo que ela desejasse…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

* Vocabulário (Dicionário Houaiss eletrônico – 2009):

Bambaleaduras
= mover mexendo os quadris; balancear; gingar.
Cecém = Significa açucena, uma flor que simboliza a nobreza, a altivez, a distinção e a elegância.
Eça =  Estrado onde se colocavam os caixões para os corpos serem velados.
Palavrosa = faladora; tagarela.
Papeira = tireomegalia, aumento no volume da glândula tireoide.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

quarta-feira, 2 de março de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 33: Alonso Rocha

 

Leandro Bertoldo Silva (Diário de Viagem que bem poderia ser: Pare o ônibus que eu quero descer)

Existem muitas histórias em nossas vidas e até dariam um filme. Como não sou cineasta e sim escritor, deixo registrada aqui uma viagem a começar com meus itens básicos em minha bolsa tiracolo...

Livro, diário, caneta, caderno de anotações, carteira, dinheiro, passagens. Chiclete, celular, lenços de papel e óleo essencial. Máscara, vidro de álcool.

— Nossa, parece até bolsa de mulher! — disse com um sorriso minha esposa na rodoviária, ao aguardar comigo a chegada do ônibus que teimava atraso. Junto dela, meu sogro, minha sogra e minha filha também esperavam pacientemente – meu sogro nem tanto assim – o momento de despedirmos, pois chegava a hora de iniciar uma longa jornada de viagem de Minas a São Paulo até a casa dos meus pais.

Sim, a distância é longa, no entanto mais longo é o incompreensível atraso típico dos brasileiros presente em todas as ocasiões, e isso se deu logo no início antes mesmo de começar. O ônibus estava marcado para sair às 21h30 de Padre Paraíso com destino a Belo Horizonte e lá estava eu às 21 horas pronto para o embarque. O ônibus, porém, proveniente de Araçuaí, ainda estava a caminho. E a caminho ficou por 15... 25... 30... 45 minutos, 1 hora sem nada acontecer a não ser uma chuvinha miúda e fina para aumentar o frio.

Quando finalmente o ônibus apontou na pista, as despedidas se sucederam, para total alívio do meu sogro, o qual rapidamente se transformou em agonia ao escutar o agente de viagem falar ao me aproximar com as bagagens:

— Sua passagem é de 21h30?

— Sim...

— Então aguarde, por favor, porque este é o ônibus das 20 horas.

Fiquei perplexo por 45 segundos, mas logo consegui convencer minha esposa e todos a fazer valer aquelas despedidas e, assim, lá fiquei eu sozinho no frio e na chuva por mais algum tempo até a chegada do ônibus das 21h30.

Tempo, tempo, tempo, tempo... Já cantava Maria Bethânia! E eu precisei fazer um pedido ao senhor sentado no meu lugar quando, após uma longa espera, enfim poder entrar no ônibus às 22h40.

— É... O senhor está sentado no meu lugar.

— Jura?! Eu jurava ter lido o número do assento certo. Espere um pouquinho, vou conferir...

— Olha, não precisa; eu não me importo! Eu sento aqui do lado mesmo. É só o senhor arredar um pouquinho, e...

— De jeito nenhum! O certo é o certo. Se o senhor está dizendo que eu estou sentado no seu lugar, precisamos conferir.

— Meu senhor, não precisa. Eu só disse porque...

— Ahá! Viu só? Se disse é porque o senhor quer viajar no seu lugar, certo?

— Todo lugar é lugar, meu senhor... Eu só quero é começar logo a viagem.

— Mas ela já começou...

— Para o senhor sim, mas para mim... Bem, pode ficar em seu lugar. Eu me sento aqui ao lado mesmo.

— Mas o senhor não disse: “o senhor está sentado no meu lugar”?  Então o lugar é seu!

— Disse, mas pode ficar com ele.

— De jeito nenhum!

Nisso o ônibus pelo menos já tinha partido e eu lá em pé sem conseguir convencer o homem a não se incomodar. Depois de aproximadamente cinco minutos ou um pouco mais e de revirar todos os cantos das bolsas em seu colo, ele finalmente encontrou a passagem no bolsinho da camisa.

— Olha, que cabeça a minha... Eu jurava ter colocado a passagem em alguma das bolsas. Ih, olha só... — disse ajeitando os óculos — Eu também jurava ter lido certo o número da poltrona. A minha é essa outra. Mas uma vez aqui, se importa se eu ficar nessa mesma e o senhor ir aí ao lado?

Ou aquele homem não batia bem ou estava gozando da minha cara! Apenas me sentei e disse a ele:

— O senhor jura demais!

— Sou muito religioso, sim senhor.

A partir daí, acomodei no lugar, coloquei o cinto de segurança, borrifei álcool para todo lado, fechei os olhos, indiferente ao som longe de um ronco, e...

— Moço, desculpe, mas o senhor poderia trocar de lugar comigo?

Já ia perder as estribeiras quando vi se tratar de outra pessoa a me chamar. Dessa vez era uma moça bem nova ainda, quase menina, e me olhava com olhos um pouco assustados. Nem foi preciso esforço para adivinhar: ela, moça, ao viajar sozinha pela primeira vez, estava insegura, para não dizer medo mesmo, de ficar lá atrás do ônibus na companhia de pessoas desconhecidas. Tudo bem na frente também serem pessoas desconhecidas, mas...

— Minha mãe disse para eu tentar trocar de lugar com alguém caso eu...

— Sim, sim, tudo bem, eu compreendo. Onde você estava sentada?

Ela estava sentada muito atrás, bem ao lado do dono do ronco cujo som já não era mais longe, mas perto, insuportavelmente perto, sem contar o cheiro igualmente insuportável do banheiro. Desconfio daquela moça... Ela até podia ser uma menina ainda, mas suspeitei ter caído no maior conto do vigário. Não por acaso os olhos assustados e pedintes dela me lembraram de um certo gato do filme Shrek, mas quem poderia ter certeza? E se a suposta simulação existisse apenas na minha cabeça? Assim, passei a viagem toda sem pregar o olho e sem o roncador acordar sequer nas paradas. Ao chegar a Belo Horizonte debaixo de chuva, ainda bem para esfriar a minha cabeça, ouvi do incômodo companheiro:

— Nossa! Já chegou? Como passou rápido...

E era apenas a metade do caminho...

Tempo, tempo, tempo, tempo... Assim esperei pelas ruas e rodoviária de BH de 8h. até às 21h45 quando, por fim, chegou a hora de embarcar para a cidade de Marília, em São Paulo. Bem, “chegou a hora” é modo de dizer. Na verdade, a passagem havia sido marcada para esse horário e, antes mesmo de chegar a Belo Horizonte recebi uma mensagem da empresa de ônibus a perguntar se eu me importava em trocar o meu horário para 20h., mas sem explicar bem o motivo. Respondi positivamente, pois esperaria menos tempo para iniciar a viagem para Marília.

Ao desembarcar na rodoviária em BH, dirigi-me ao guichê da companhia para certificar aquela mensagem e pedido. Dois funcionários lá estavam, mas não sabiam do ocorrido. Porém, ao verificarem no sistema de passagens viram que os horários já estavam trocados conforme minha autorização. Tudo resolvido, e apesar daquela desconfiançazinha típica do mineiro, esperei até a hora do embarque com a pulga atrás da orelha.

Às 19h45 o sistema de som da rodoviária anunciou: “senhores passageiros, faltam 15 minutos para a próxima partida. Ocupem seus lugares”. Lá fui eu para a plataforma de embarque ocupar meu assento — dessa vez esperava ser o correto —, quando, ao querer ligar para minha esposa e dizer que tudo estava bem, percebi o celular sem bateria. Certo, 15 minutos é o suficiente para conectar o celular na carga, falar com ela e entrar no ônibus. Subi novamente com toda a bagagem as escadas até ao saguão onde ficam as tomadas de recarga, conectei rápido o celular que teimava em demorar a ligar. Nisso aquele friozinho na barriga já começava, pois o ônibus esperava ligado lá embaixo. Já estava ali mesmo, então insisti na ligação, pois minha esposa ficaria muito preocupada se eu não desse notícias. Finalmente consegui falar com ela, puxei rapidamente o telefone da tomada e fui desembestado tropicando pelas escadas em direção ao ônibus batendo as bolsas em todo mundo.

O motorista e o agente, após conferirem a passagem e acomodarem as malas no bagageiro, me autorizaram a entrar e eu, coração acelerado, sentei-me aliviado até perceber algo o qual me fez rir de nervoso: em todas as poltronas, inclusive a minha, havia entradas USB para recarregar celular... Seria cômico se não fosse trágico! E não digo isso pelo fato acabado de ocorrer, mas de um problema de última hora, o qual fez com que o ônibus antes marcado para às 21h45 e passado para 20h., saísse somente às 22h30.

A viagem transcorreu normalmente sem percalços nem nada, tirando apenas duas chateações... Os vinte e oito reais pagos em uma xícara de café com pão em uma parada, onde só então entendi o porquê de nos entregar na entrada uma plaquinha com um código de barras e só anunciar o valor do pedido no caixa na hora de pagar e, consequentemente, depois de ter comido, e a distância que era longa, longa demais! Parecia até aqueles probleminhas de matemática do tempo de escola... “Leandro saiu de Padre Paraíso, em Minas Gerais, às 21h45 de quinta-feira para chegar a Marília/SP, sábado, às 11h30, com parada prevista de 14 horas e 30 minutos em Belo Horizonte até a próxima partida. Considerando que o ônibus espacial da NASA até à lua, passando por Júpiter e fazendo uma escala pelos anéis de Saturno é 10 vezes mais perto, quanto tempo levaria para ele gritar SOCORRO??”

Brincadeira à parte, a viagem se mostrava mesmo muito longa, e o motorista a cada rodoviária na qual entrávamos – e entramos em todas, cidade por cidade – gritava duas vezes como se fosse para certificar a distância: “Rodoviária de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto; Rodoviária de Baurú, Baurú...”. E de repetição em repetição, de cidade em cidade, cheguei ao meu destino muitas horas à frente do previsto e com muita história para contar.

A volta? Bem, até contaria se não fosse o frio do ar condicionado do ônibus e eu sem blusa por tê-la esquecido na casa dos meus pais. Além disso, a minha companheira de assento, devido ao seu porte físico um tanto avantajado, ocupava o dela e a metade do meu. E eu ali, espremido entre o anelo e o suspiro, ou melhor, entre a minha sobra e o braço da cadeira. Assim, não pensava em mais nada. Eu só lembrava a minha irmã ao dizer:

— Tudo pronto para iniciar a viagem planetária? Saindo hoje para chegar só sábado, se fosse de avião chegaria ao Japão.

Seria uma boa pedida se na minha cidade existisse aeroporto... Como não tem, fui a novas aventuras, intercalando em minha cabeça novos probleminhas matemáticos que no meu tempo ainda mantinham todos os atrativos de uma boa história como aquelas que eu vivia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. Disponível na Árvore das Letras. Espaço da Literatura Independente.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 15

nada que eu faça
altera este fato

a folha de alface
é a última no prato
= = = = = = = = = = = = =

no chão
minhas sandálias
pegadas
como pegá-las?
= = = = = = = = = = = = =

furta a flor
ao crepúsculo cor de fruta
pássaro tecnicolor
= = = = = = = = = = = = =

as coisas estão pretas

uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras
= = = = = = = = = = = = =

o assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular como um paradigma da 1a conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos
torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os eua.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
= = = = = = = = = = = = =

aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
= = = = = = = = = = = = =

a lei do quão

Deve ocorrer em breve
uma brisa que leve
um jeito de chuva
à última branca de neve.
Até lá, observe-se
a mais estrita disciplina.
A sombra máxima
pode vir da luz mínima.

Fontes:
Distraídos Venceremos. 1987.
Contos semióticos. in Polonaises. 1980.
ideolágrimas. in Polonaises. 1980.

Minha Estante de Livros (Primo Basílio, de Eça de Queirós)


“O Primo Basílio” narra a história de amor entre o casal Jorge e Luísa, e a infidelidade da esposa com seu primo, Basílio. A obra de Eça de Queirós, publicada em 1878, consiste na análise da família burguesa da época e faz parte dos clássicos da literatura portuguesa.

RESUMO

A história de “O Primo Basílio” gira em torno de Jorge e Luísa, um típico casal burguês da classe média da sociedade lisboeta do século XIX. Jorge é um engenheiro, pertencente a burguesia abastada de Lisboa,  assim como sua esposa Luísa.

Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as rajadas do vento na sua prolongação uivada e triste, sobretudo à noite, quando estava debruçado sobre o compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias lânguidas, estirava os braços, com o peito cheio de um desejo, queria enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de um vestido! Decidiu casar. Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte foi despachado, e casou.

Luísa recebe uma carta informando que em breve seu primo Basílio a visitaria. Nesse mesmo período, o seu marido  faz uma viagem de trabalho, a deixando em companhia do primo e dos serviçais.

Além de primos, Luísa e Basílio namoraram durante a juventude, antes dele se mudar para Paris. Tomados pelos sentimentos do passado, os dois desenvolvem um caso extraconjugal.

Luísa era uma ávida leitora e tinha uma visão romântica da vida. Sonhadora, começa a vislumbrar em Basílio uma história de amor como as dos romances que lia.

“Que vida interessante a do primo Basílio!” – pensava. – “O que ele tinha visto!” Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances – a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva, e das cabanas dos pescadores de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto, eram pobres. Jorge era caseiro, tão lisboeta!

Para tornar a relação mais discreta, os amantes alugam um quarto bastante simples no subúrbio de Lisboa, que chamam de “paraíso”. Os encontros acontecem a partir da troca de cartas de amor.

Apesar da cautela de ambos, uma das cartas é interceptada por Juliana, a governanta da casa de Luísa, que já havia notado o romance entre a patroa e o primo.

Juliana buscava uma oportunidade de ascensão social, desta forma, passa a chantagear Luísa. Com o passar do tempo,  a prima começa a sentir que a paixão de Basílio já não é tão forte. Tenta convencê-lo a ficar, mas ele decide voltar para Paris.

O que havia de infeliz em abandonar a sua vida estreita entre quatro paredes, passada a examinar róis de cozinha e a fazer crochê, e partir com um homem novo e amado, ir para Paris! Para Paris! Viver nas consolações do luxo, em alcovas de seda, com um camarote na Ópera! … Era bem tola em se afligir! Quase fora uma felicidade aquele “desastre”! Sem ele nunca teria tido a coragem de se desembaraçar da sua vida burguesa; mesmo quando um alto desejo a impelisse, haveria sempre uma timidez maior para a reter! E depois, fugindo, o seu amor tornava-se digno! Seria só de um homem; não teria de amar em casa e amar fora de casa!

Com o retorno de Jorge, Luísa passa a sofrer ainda mais com as chantagens da governanta, que até transforma a senhora mimada em escrava, obrigando-a a realizar alguns serviços domésticos.

O marido estranha o comportamento da criada e decide despedi-la. Desempregada e em posse das cartas, Juliana intensifica as chantagens pedindo uma alta quantia em dinheiro para não revelar o segredo da ex-patroa.

Cansada das chantagens após tentar todas as soluções possíveis, Luísa não vê outra alternativa senão pedir ajuda. Ela  recorre a Sebastião, conta sobre o adultério e a história das chantagens realizadas por Juliana.  

Sebastião era um velho amigo de Jorge, e mesmo surpreso, se dispõe a ajudar.  O homem logo pressiona a empregada que mesmo resoluta, resolve devolver as cartas.

Desesperançada por perder a oportunidade de enriquecimento, Juliana entra em colapso e morre de desgosto. Luísa, por sua vez, também acaba adoecendo.

Tempos depois, Luísa, que está acamada pelas altas febres, recebe a resposta de uma das cartas escrita há meses ao primo. Curioso, Jorge recebe e a abre, descobrindo o adultério da esposa nas palavras amorosas e cheias de saudade de Basílio.

Jorge foi heroico durante toda essa tarde. Não podia estar muito tempo na alcova de Luísa, o desespero trazia-o num movimento contraditório, mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, aconchegava-lhe a roupa com as mãos trêmulas, e ela adormecia, ficava imóvel a olhá-la feição por feição, com uma curiosidade dolorosa e imoral, como para lhe surpreender no rosto vestígios de beijos alheios, esperando ouvir-lhe nalgum sonho da febre murmurar um nome ou uma data, e amava-a mais desde que a supunha infiel, mas de um outro amor, carnal e perverso. Depois ia-se fechar no escritório, e movia-se ali entre as paredes estreitas, como um animal numa jaula. Releu a carta infinitas vezes, e a mesma curiosidade roedora, baixa, vil, torturava-o sem cessar: Como tinha sido? Onde era o Paraíso? Havia uma cama? Que vestido levava ela? O que lhe dizia? Que beijos dava?

Por fim, o marido conforta Luísa. O frágil estado de saúde e o forte amor que lhe tem fazem Jorge perdoar a traição da esposa, que morre dias depois.

Com a morte da amada, ele demite as empregadas e vai morar com Sebastião. Basílio retorna a Lisboa e, ao saber da morte da amante,  faz pouco caso, pois não considerava Luísa adequada para sua classe.

ANÁLISE DA OBRA

Publicado em 1878 por Eça de Queirós, o livro “O Primo Basílio” trata-se de um romance que analisa a sociedade burguesa urbana do século XIX. A construção da obra através de personagens aparentemente felizes e perfeitos, retrata a futilidade daquela época.

O livro inovou a criação literária, oferecendo uma crítica subversiva e sarcástica dos costumes da pequena burguesia de Lisboa, atacando uma das instituições consideradas mais sólidas, o casamento.

A figura dessa sociedade é estereotipada em personagens decadentes, desprovidos de virtudes, desfrutando de sentimentos fúteis. Pertencente ao movimento do realismo em Portugal, a obra de Eça explora o adultério, a hipocrisia, o caráter, a mediocridade e os valores morais.

PRINCIPAIS PERSONAGENS

Basílio: conquistador e irresponsável, primo de Luísa que mora em Paris, foi seu namorado na infância e torna-se amante da mesma durante uma visita a Lisboa, contudo nunca a amou;

Luísa: jovem romântica, dona de casa, burguesa, casada com Jorge e adúltera. Amou seu primo Basílio, mas não foi correspondida;

Jorge: jovem engenheiro, homem simples e marido dedicado, casado e traído por Luísa com o primo Basílio;

Juliana: empregada do casal Luísa e Jorge, mulher feia, solteirona e bastarda. Inconformada com sua posição social passa a chantagear a patroa e acaba morrendo de desgosto;

Sebastião: fiel amigo de Jorge.

ADAPTAÇÕES

Em 1988, a Rede Globo produziu a minissérie “O Primo Basílio”. A trama foi adaptada por Gilberto Braga e Leonor Bassères, com direção de Daniel Filho.

Em 2007, a obra de Eça de Queirós ganhou uma adaptação para o cinema brasileiro. Com direção de Daniel Filho, o romance foi adaptado por Euclydes Marinho e conta com atuação de Débora Falabella (no papel de Luísa), Fábio Assunção (no papel de Basílio), Reynaldo Gianecchini (no papel de Jorge) e Glória Pires (no papel de Juliana).

Faça o download do PDF do livro “O Primo Basílio”

Fonte:
O Primo Basílio; Disponível em Guia Estudo. Acesso em 02 de março de 2022 às 03:15.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 550



Humberto de Campos (O Vestido)

Uma das minhas primeiras crônicas nesta folha, há três ou quatro anos, versou, se bem me lembro, sobre o milagre realizado por certas senhoras elegantes, as quais, tendo recebido do esposo um simples corte de seda, conseguem fazer com ele, por processos que só elas conhecem, quatro ou cinco vestidos de cores diferentes. Os esposos que ignoram, em absoluto, esses curiosos fenômenos de química, fecham os olhos, inteiramente, a todos os prodígios desse gênero; outros querem, porém, apoderar-se do segredo, e o resultado é tentarem obtê-lo à força, esgaravatando a esposa com uma faca ou, o que é menos bárbaro, com uma bala de revólver.

Deste último gênero, fiscalizando a mulher como quem fiscaliza uma fronteira ameaçada era, felizmente ou infelizmente, o Dr. Cantidiano de Sampaio Gutterres, figura tão conhecida no foro da cidade, e, principalmente, nas altas rodas mundanas. Chefe de família exemplaríssimo, o notável advogado não admitia que lhe entrasse em casa, sequer um alfinete sem o seu consentimento. As compras, as mais insignificantes, era ele quem as fazia pessoalmente, e isso, menos pelo temor de ser enganado no preço dos objetos adquiridos do que pelo programa, que se traçara, de tomar conhecimento de tudo que lhe entrasse no lar.

Desse cuidado do ilustre advogado, dá ideia, para honra sua, o episódio que lhe ia perturbando, há poucos dias, a vida doméstica, depois de doze anos de casado. O Dr. Gutterres havia comprado para a mulher, há um mês antes de partir para São Paulo, um vestido de seda verde, de uma que esteve em moda, no máximo, oito dias. De regresso, ao entrar em casa, sem ser esperado, encontrou-se, na escada, com a esposa, que vestia uma "toilette" nova, e, essa, amarela, gema d'ovo, e sobretudo, riquíssima. Ao defrontarem-se, ficaram os dois mais amarelos do que o vestido.

- Que quer dizer isto, senhora? - trovejou o esposo, crispando os dedos, de cólera.

D. Antonieta encarou-o, sem dizer palavra.

- Que significa este luxo, na minha ausência? - tornou, terrível, o marido. - Quem lhe deu esse vestido?

- Foi você... - sussurrou a pobre senhora, tremelicando o beicinho vermelho de "rouge".

- Eu? O vestido que eu lhe dei, então, não era verde? Como é que, agora, a senhora se apresenta com um vestido amarelo?

Ao cérebro da moça acorreu, de súbito, uma ideia, que fugiu logo, deixando apenas o rastro. Os olhos brilharam-lhe, vivos, úmidos, penetrantes, numa floração de luz, tornando-a mais jovem, mais fresca, mais linda.

- Era... - confirmou a moça

O marido encarou-a, esperando a confissão abominável. O rosto de dona Antonieta irradiou, de repente, no anúncio de uma surpresa, que podia ser um sorriso, ou uma lágrima.

- Era verde, sim... tornou, baixando os olhos: - mas...

E, perturbadíssima, sem encontrar outra saída:

- Amadureceu, Cantidiano...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Plácido Ferreira do Amaral Júnior (1958 - 2022)

O poeta faleceu neste sábado, 26 de fevereiro, devido a complicações da covid.
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A chuva bate à janela…
Numa expressão de vitória,
a natureza singela
mostra Deus na minha história.
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Ainda tenho esperança
de ter os s teus,
pois o tempo de bonança
vem sempre após um adeus.
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A sua grande vitória
foi vencer uma doença
que roubava-lhe a memória
e causava-lhe a descrença.
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A trilha de um andarilho
é feita de solidão,
num caminho sem ter brilho,
só bolhas de pés no chão...
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A vergonha que uma algema
provoca ao preso orgulhoso,
é bem maior que o problema
que lhe fez ser criminoso.
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A virtude que seduz
um olhar à compaixão,
é misericórdia, a luz
do fundo de um coração.
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Foi querer brigar de galo
encrencando numa festa,
mas sofreu um forte abalo
pois ganhou "galo" na testa!
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Lá no funk que ele ia
e bebia de montão,
ao pensar que era Maria,
agarrou um "Ricardão"...
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Meus boletos reunidos
lado a lado, em linha reta,
neste planeta, os vencidos,
dão uma volta completa!
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Não esperes vir do chão
o peixe a te alimentar,
e sim as iscas que irão
encaminhar-te a pescar.
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No Brasil, o IBGE
revela o nosso retrato.
E nos demonstra como é
a nossa nação de fato.
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Noite... Deite-me na cama!!!
E indague desta mulher,
por que ela não nos chama...
para o que der e vier...
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Nossa dura travessia
ninguém sabe o quanto dura,
sabe apenas que Deus guia
desde o ventre à sepultura.
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Num trem da velha estação,
meu destino anunciava
que na Rua Solidão,
tua ausência me esperava.
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Ofereceu seus cuidados
com total sinceridade.
Recebeu em troca dados
viciados de maldade...
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O meu signo não combina
com o teu, minha querida,
mesmo assim, a nossa sina
é viver a mesma vida.
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O tom da chuva parece
algum recado de Deus
ao julgar o tom da prece
que ele ouviu dos filhos seus.
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O velho monge ajoelha
no altar de quem é devoto;
nele, um noviço se espelha
e faz, com fé, o seu voto.
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Para o meu maior espanto,
hoje eu vi um senador
dando esmola para um santo!
Era um cheque ao portador...
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Quando quis cantar de galo
lá no quarto da vizinha,
levou coice do "cavalo"
que é marido da "galinha"...
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Respeitar é garantia
que só nos guia à moral
e faz da moral, um guia,
que nos guia contra o mal.
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Se eu medisse a minha dor
com a força do meu grito,
certamente o meu clamor
chegaria no infinito.
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Sementes eu plantei tantas,
lá no jardim da ilusão...
Só brotaram duas plantas:
a saudade e a solidão.
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Somos dois, nesta calçada
desta história que vivemos.
Mas sem um, não somos nada,
pois sem um, sei que morremos...
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Tens razão quando me dizes
para de ti, me afastar.
Somos cores com matizes
diferentes a pintar.
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Tua vida em nossas vidas
é um porto de acalantos.
Teus cuidados são guaridas
onde eu ancoro os meus prantos.
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Um “furo” de reportagem
para jornalista é gloria
gravada feito mensagem
em todos livros de História.
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Um pinto verde surgiu
no galinheiro da granja
e o papagaio sumiu,
pois se não... seria canja!
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Você que lê estes versos
nas ruas desta cidade,
não deixe em mãos de perversos
a biodiversidade.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 49) Bigode na Tuba

OSÓRIO ACHOU ENGRAÇADO a moça de bigode que pintou diante dele, no ponto, logo de manhã, enquanto esperava pela condução. Lembrou da mãe que não deixava de aconselhar: “Meu filho, com mulher de bigode, nem o diabo pode”. Aquela fêmea, contudo, trazia no rosto o sorriso descontraído da Joss Stone. Osório era gamado — gamado não, doido varrido maluco de pedra, embasbacado de carteirinha e não mudaria a sua preferência nem que a cantora inglesa pintasse diante dele de cueca samba canção, falando grosso, ou fumando um charuto cubano de Fidel Castro ou usando bigode à Olívio Dutra.

— Será que ela usa esses aparelhos que são vendidos por toda parte para fazer a barba? — cogitou com seus botões. Barba não, bigode... o dessa criatura está perfeito... pelo menos, ela cuida com apuro da epiderme...

Pensou, entretanto, em sua namorada, a Edifusa. A Edifusa, antes dele, havia namorado o Bigorna, um camarada alto e magro, grosso nos modos de tratar com as pessoas. Bigorna tocava tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo. Por isso, a Edifusa largou do sujeito. Sem contar que não parava em casa, vivia viajando para baixo e para cima e, quando dava o ar da graça, geralmente de quinze em quinze dias, não desgrudava da tuba. Edifusa reclamava que o cidadão queria que ela aprendesse a assoprar o instrumento. Edifusa, batia pé e nunca quis aprender coisíssima nenhuma, ainda mais tendo que botar na boca um “treco controlado por válvulas e feio pra chuchu igual aquele”.

— Prefiro assoprar um órgão! — disse certa vez à figura do ex ao seu ex.

— Órgão não se assopra. — de igual maneira teria respostado (*)  o mala sem alça, à contragosto. Órgão se toca com os dedos... tuba é melhor, Edifusa. Não cansa as mãos.

Ao que Edifusa insistia mudando o rumo da prosa:

— E quem toca tuba, o que é? Tubeiro, tumbeiro, tubista, ou tubuleiro?

— Músico, Edifusa. Músico. Quem toca tuba é músico. Eu toco tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo por partitura.

O primeiro ônibus se fez em carne e osso e a Cinderela de bigode não embarcou. Outros que esperavam levantaram acampamento. Só ficou ele e ela. Ela e ele. Ele, esperto e atento, aproveitou esse interregno de tempo e atentou melhor para a gazela. Um pedaço de mulher. Magra como ele gostava, altura mediana, atraente, dona de um lindo par de pernas, rosto bem trabalhado, e o mais espetaculoso. Os cabelos cor de mel compridos e bem cuidados, caindo sobre os ombros, em cascata estonteante. Só o bigodinho tirava um pouco a graça. No resto, estava longe de se jogar fora. Entre ela e a Edifusa, ganharia pontos, sem dúvida alguma, a incógnita deusa, apesar do bigode. Por um momento se imaginou nos braços dela, agarrado, como dois pombinhos apaixonados. Será que o bigode atrapalharia quando começasse a sentir a sua pele?

Deu asas a imaginação. O bigode faria cosquinha? Edifusa vivia reclamando que o do Bigorna, seu ex, tirava a sua concentração. O trocinho espetava, justo na hora das trocas das permutas dos afagos mais acentuados. Chegava mesmo a sentir arrepios, a ponto dos pelos de seu corpo encresparem de tanto que se assanhavam:

— Bigorna, não gosto de homem de bigode. Dá gastura... (*)  não adianta fazer a barba e não raspar a droga do bigode. Por que não faz, logo, de vez, barba, cabelo e bigode?

— Edifusa, o que você tem contra meu visual?

— Nada. Só maneira de falar....

Bigode, bigode, bigode. Tudo girava em torno dele. Pintou outro coletivo. De novo, por azar, a linha que o deixava na porta da empresa. Vazio, com meia dúzia de gatos pingados. A bela do bigode não deu sinal para o motorista. Nem ele.

Por certo, ao Osório a partir da perda desse buzu, ficava claro e evidenciado que chegaria fora do seu horário estabelecido. Diria ao chefe que o salto de seu sapato se soltara e, em razão disso, tivera que voltar em casa. Uau! Osório se mostrava contente com a sua decisão de ter se prostrado no ponto junto com aquela estrangeira que ele via pela primeira vez. E mais. Satisfeito com a mentira que contaria para engambelar o patrão. A do salto ter se soltado cairia como uma dádiva do céu. Mais criativa que a gafe contada por sua colega de serviço, a Fulmênia, na quarta passada. A funcionária chegou com uma hora e meia de retardo para bater o cartão contando a lorota de que haviam roubado seu aspirador de pó justo na hora em que trancava a porta da sala.

Meia hora depois, o terceiro ônibus sorrindo igual mala velha. Osório imaginou: “Agora a bigoduda se põem em marcha e eu pulo no seu vácuo”. Ledo engano! A dita cuja continuou ali, em pé, firme e plantada, sem se mover. Estaria esperando carona? Claro, alguém passaria e a arrastaria de carro. Suas suspeitas se confirmaram no instante em que, pela décima vez, a irrequieta  consultou o relógio de pulso. Osório, de repente, colocou em dúvida uma dúvida que até então ele mesmo tinha dúvidas se daria certo. Matutou: “E se essa história do meu sapato ter se soltado não colar? Vou ter o dia cortado”. O celular tocou. Osório encarou a moça, ou melhor, depositou as suas aflições no bigode dela. De novo, outra arrepsia (*), desta vez mais pirrônica (*) e contundentemente pertinaz: “Atendo ou não atendo? A droga da campainha não dava trégua. Espiou, sabendo de antemão, quem importunava. A Edifusa:

— O que você quer?

Edifusa parecia meio apreensiva e agitada:

— Amor, onde você está? Liguei no seu serviço e a secretária disse que você ainda não passou pela recepção!

— Perdi o ônibus.

— Perdeu como, amor?

— Perdendo, ora bolas.

— E agora?

— Meu sapato quebrou a sola... ou soltou, sei lá. Tive que voltar em casa e calçar outro par...

— Ta legal, amor. Mas você está bem?

— Ótimo.

— Ok, meu príncipe. Bom serviço. Beijos. Te amo!

Por azar, novo ônibus apontou na esquina. Diabos. Nada. A Majestosa do bigode não se decidia, nem ele. Firme e forte, ela se mantinha em pé e ele, idem, só filmando, os olhos atentos e esbugalhados no bigode. O celular novamente quebrou as suas divagações mais extravagantes:

— Edifusa, você de novo? O que foi dessa vez?

— Liguei para sua mãe, minha sogra. Ela está preocupada...

— Preocupada? Com o quê?

— Disse a ela que você chegaria depois da hora normal no emprego porque o seu sapato deu um problema no motor de arranque...

—... E ela?

— Garantiu, de pés juntos, que você não voltou em casa. E mais: seu quarto está do jeito que ela arrumou assim que você botou o nariz pra fora. O que é que está havendo?

Osório ia responder, mas se calou porque nesse exato momento, a estonteante do bigode se aproximou e puxou conversa. Constrangido, o rapaz não sabia se continuava falando com a namorada, ou se desligava e respondia à pergunta que a guria  lhe havia formulado. Optou por desligar. Porém, tarde demais. Edifusa, apesar do barulho reinante, conseguiu escutar a voz da outra. Fula da vida, Edifusa não se fez de rogada. Voltou à carga, agora com insistência descomedida. Sem jeito, Osório fez ouvidos de mercador. Por fim, como a praga da sua metade da maçã não desistia, resolveu. Mandaria a inconveniente da Edifusa às favas e fim de papo. Todavia...

— Sua mulher?

— Não.

— Namorada?

— Não tenho. Ando à cata de uma...

O caldo engrossou os ânimos:

— Osório seu filho de uma égua. A égua da sua mãe, minha sogra, que me perdoe. Quem é essa vagabunda que está ai ao seu lado?

Nessa altura da bomba estourada, surgiu um carro buzinando. A Rainha do bigode ficou faceira, ou melhor, ela toda em sua alegria infinda se abriu num gesto de alegria imensa que engalanou tudo ao seu redor. Até o bigode ficou mais envolvente:

— Legal te conhecer. Meu nome é Monique. A gente se “esbarra” outra hora...

Em seguida ela abriu a porta e acenou um adeus. Osório ia vomitar algo, mas estancou, atônito. Reconheceu, de imediato, aquele automóvel. E também atinou com quem pilotava o volante. O desgranhento do Bigorna. O ex da Edifusa, o tocador de tuba da Sinfônica de São Paulo. Mas alto lá: ele não estava viajando? Pois bem! A história do sapato não colou com o chefe. Osório se esqueceu que só usava tênis.
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* Vocabulário:
Respostado: dado em resposta,
Gastura:  arrepio, mal-estar,
Arrepsia:  dúvida, indecisão, vacilo
Pirrônica: Pessoa teimosa, cabeçudo, rabugento


Fonte:
Texto e vocabulário enviados pelo autor.
in Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da Vida na Privada.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 72: Thalma Tavares

 

Mia Couto (As lágrimas de Diamantinha)

Diamantinha chorava tão bem que as pessoas vinham de longe e lhe pediam:

— Chore por mim, Diamantinha.

O visitante sentava na sombra do djambalau e divulgava suas mágoas. Às vezes, pareciam tristezas de bichos. O homem, para ser humano, tem que ser desumano? O que é certo: ninguém tem ombro para suportar sozinho o peso de existir. Afinal, a vida se confirma à força de rasgão: ela dilacera logo no ato de nascer, separando mais que a própria morte. E assim, também naquela aldeia não havia quem não tivesse motivos para sentar no banco de Diamantinha, requerendo lágrimas na sombra da grande árvore.

Diamantinha gastava o tempo nesse desfilar de desgraceira. Única condição: ela devia olhar de frente o contador de tristezas, olhos nos olhos, lágrima de um umedecendo a alma do outro. No final, ela baixava o rosto, sacudindo os braços por cima da cabeça. E chorava. Cada lágrima aliviava o confessor, parecendo a mão de um anjo suavizando feridas.

Diamantinha chorava belo e aprazível: nunca ela ranhava, nem carantonheava (fazia caretas). Escorriam as lágrimas como simples transbordamento, trespassar de ondas sob as pálpebras, insuficientes diques. A tristeza despejava-lhe os olhos e lá vinha, abundante e gordo, o rosário das lagrimonas.

O marido, calculista, viu nos serviços da esposa uma hipótese de negócio. E havia até urgência: Dia mantinha se ia fatigando de brotar tanta água. Um dia, ela esgotaria as fontes. Antes que isso sucedesse, o marido decretou a seguinte ordem:

— Hoje em diante, você só chora para quem paga.

— Mas, marido, isso nem se pode.

— Não se pode!? Quem é você para saber destrançar o possível do impossível?

— É que lágrima é coisa sagrada...

— Conversa, mulher. Sagrados são os tacos, sejam cifrões, sejam cifrinhos.

— Não é desrespeito, mas me diga, marido: se é tão importante o dinheiro por que é que você não trabalha para o ganhar?

— Eu? Não posso, estou muito ocupado. Agora, por um exemplo, ando a deixar crescer os bigodes, um de cada lado.

— Você é quem sabe, marido.

O marido está sempre na mão de cima? Homem disfarça que comanda, mulher finge obediências. A ordem das coisas: mundo e vida são o inseparável casal.

E as pessoas continuaram afluindo, agora vertidas em clientes. O marido armara mesa, à entrada da sombra, e cobrava consulta. E se contentava, empilhando as moedinhas enquanto a esposa se derramava, liquidez feita. Aranha faz sua casa de quê? De lágrimas, aquilo parece seda mas não é senão o coração esfiapadinho. Disso sabia a lagrimeira Diamantinha.

Uma tarde, compareceu no djambalau um tal Florival, que mal se afamara como homem estranho, brutamonte. Dele se dizia ser bebedor de trevas, atravessado de serpente. Corria que o Florival fazia das outras vidas o que a jiboia faz com o cabritinho: enrolava-as e esmiudava-as até ficarem engolíveis. Diferença é que, depois, ele não engolia nada. Todavia, no caso real, o aspecto sobrava da aparência. O Florival tinha corpo magnífico mas era incompetente para maldades. O homem se aperfeiçoara a palerma, barata tonta, estupefato.

E tanto era que, aos domingos, o Florival se vestia de mulher, envergando sempre um mesmo vestido castanho com grandes girassóis amarelos. As flores no vestido contradiziam o aspecto malfeitor. O homem era alvo de zombarias gerais — dito, desdito e maldito. Até havia mãos que afagavam as falsas curvas do peito.

Pois nessa tarde, o Florival sentou-se na pedrinha, envergonhado a modos de justificar o vestido na conformidade de suas pernas peludas. O que ele confessou fez arrepiar a choradeira.

Disse assim: que ele desde há muitos anos lhe dedicava amor exclusivo, ímpar e imparável.

—Ama a mim, Florival?

Sacudindo a cabeça, ele lhe pediu para não ser interrompido. Pois, a cada dia lhe dava hoje, ele lhe rezava, lhe enviava as mais sutis prendas. Eram diminutas delicadezas: um raminho, um nó de capim, réstia de ninho. E ela, ela nem notava. E por razão de tanta indiferença o coração dele se encaroçou. Para poupança de sofrimento Florival se resolveu converter em mulher. Assim, colega do mesmo gênero, ele não a olharia como destino de seus desejos.

— Nós ambos somos iguais.

Diamantinha escutou tudo até ao fim. Levantou-se e espreitou entre os ramos do djambalaueiro. Puxou com força como se entendesse desventrar a árvore. Depois chorou, chorou como nunca havia feito. O marido, vendo a demora, espreitou e lhe fez sinal: havia mais para quem chorar. E fez ponto na sessão.

Na tarde seguinte, Florival regressou e foi o mesmo derrame de pranto. E de novo o marido, zeloso, ordenou parcimônia. Na terceira tarde, Diamantinha deixou que Florival se sentasse, em seus femininos trejeitos, e lhe disse:

— Não tenho mais lágrima.

E pediu um lugarzinho na pedra. Sentou-se, espremida no mesmo assento. Ficaram assim em silêncio até que Diamantinha pediu autorização para ajeitar um girassol que escapava do vestido.

—Está tão velhinho este meu vestidinho...

E trocaram conversas de mulher, os acertos que faltavam nos cabelos, o nó no lenço da cabeça, o anel que fugia pela magreza do dedo.

Diamantinha lhe pediu então:

—Dê me as suas mãos. Quero lhe dar uma coisa.

—Não precisa me dar nada, Diamantinha.

—São minhas últimas lágrimas. Me dê as suas mãos. Rápido antes que esfriem.

Florival estendeu as mãos em concha. E dos dedos de Diamantinha tombaram aqueles cristaizinhos, desfocadas águas tremeluzindo em fundo escuro. Afinal, aquilo eram diamantes, preciosos tesouros.

—São verdadeiros?

Em amor tudo é verdadeiro. Florival e Diamantinha se fitaram, até seus olhos perderem o pé. Sem dizerem palavra, se enfeitaram entre folhagens, furtando-se pelos matos. Dizem os caminhoneiros que, já noite, viram derivar pela estrada um casal de aparência estranha: ele vestido de mulher, e ela em roupas de macho. Tombava uma chuvinha leve, simulando fluir da terra para o céu. E Diamantinha, braços abertos, ajuntava novas gotas em seu peito choradeiro.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.