quarta-feira, 23 de março de 2022

Isabel Furini (Escritor não tem nada para fazer na vida?)

Há pouco tempo, estava saindo de uma aula, quando uma pessoa aproximou-se e disse: “Você é escritora porque não tem nada para fazer na vida, eu tenho muitas coisas para fazer... não tenho tempo para escrever”.  

Olhei-a, se essa frase tivesse sido pronunciada por um estressado executivo paulista teria sentido, mas não, ela é aposentada.

E escritor é escritor por opção ou porque não tem nada para fazer da vida? Será que escritor não tem outras atividades para ocupar o seu tempo.

Bom, no meu caso, além de escrever livros, oriento Oficinas para futuros escritores no Solar do Rosário e em outros locais, e não é só ministrar a aula, é preciso preparar o material para cada aula é isso leva tempo. Todos os professores têm o mesmo problema, preparar aulas e corrigir os textos dos alunos exige tempo.

Entre outras atividades, eu mantenho esta coluna semanal no ICNews.  E para resenhar um livro, primeiro é necessário lê-lo. Pode até ser uma leitura rápida, mas é preciso conhecer o livro. Também ministro palestras. Não são muitas, mas exigem um trabalho especial.  Faço leitura crítica, ou seja, eu leio, analiso e faço a crítica de originais. Geralmente são os novos escritores que enviam suas obras para que eu possa dar orientações.

Em síntese, para uma pessoa que é escritora “porque não tem nada para fazer na vida”, eu considero que realizo bastantes atividades.  Como disse minha amiga Helena, é bom gritar: “Oh, como estou cansada!  Fiz a leitura crítica de um livro enorme”. Ou “Hoje demorei a manhã inteirinha resenhando um livro, essa coluna dá muito trabalho!”.

É, talvez essa seja uma boa opção falar do que faço para que as pessoas vejam que escrever livros não é tarefa para desocupados nem para vagabundos.

Nos anos 90, tive a honra de visitar várias vezes Helena Kolody. Lembro-me que uma vez ela disse: “Você é humilde demais, Isabel, e humildade demais prejudica”. Maravilhosa Helena! Seu olhar sempre era certeiro. Quando escutei essa aposentada desprestigiar meu esforço e meu trabalho dizendo: “você é escritora porque não tem nada para fazer na vida”, eu percebi claramente que devia mudar minha atitude. Ao final até a galinha sai cacarejando depois de botar um ovo, ou seja, até ela faz alarde para que reconheçam seu trabalho.

Fonte:
Livros e dicas para escritores
https://livrodoescritor.blogspot.com/search/label/cr%C3%B4nica

terça-feira, 22 de março de 2022

Versejando 105

 

André Carneiro (Planetas habitados)

– Olhe como são bonitas, milhares de estrelas...

— E quase todas devem ser rodeadas de planetas como o nosso, habitados, provavelmente...

— Custa-me acreditar...

— Os cientistas dizem que há milhões, talvez trilhões de planetas, só nas galáxias mais próximas. A vida existiria como aqui.

— Devo ter pouca imaginação. Acho difícil visualizar planetas habitados, com seres iguais a nós, vivendo como nós.

— Por que "iguais e vivendo como nós"? É pretensão injustificável deduzir que só animais semelhantes tenham desenvolvido inteligência. E os objetos de forma arredondada, vistos em nossa órbita? Muita gente os vê a olho nu.

— Não seriam pessoas sugestionáveis ou com defeitos na vista? Li num artigo: essas aparições são fenômenos naturais pouco estudados, ou máquinas voadoras feitas aqui mesmo, em experiências secretas.

— Talvez, em parte. Mas já há uma boa documentação e não vejo motivo de espanto em supor que outros planetas do nosso sistema sejam habitados.

— Mas os seres que comandam ou pilotam essas naves espaciais, por que não pousam e entram em contato?

— Não passa de orgulho gratuito pensar que habitantes de outros planetas estejam interessados em dialogar conosco. Esses engenhos talvez sejam minúsculos, comandados a distância. Estarão apenas nos estudando com seus aparelhos? E é bem possível que eles sejam tão diferentes de nós que não haja uma possibilidade de entendimento imediato.

— Falariam línguas impossíveis de se aprender? Quem sabe emitam ruídos, ou comuniquem-se por gestos...

— Nossos cientistas acabariam descobrindo a chave. Ou eles, mais inteligentes, nos ajudariam a compreendê-la.

— Aquela estrela brilhante não é um planeta?

— É. Ali há condições para a vida. Talvez primitiva e diversa da nossa, pois sua temperatura é extraordinariamente alta.

— Escrevem muitas histórias sobre aquele planeta. Costumam inventar seus habitantes como sendo monstros destruidores, interessados em conquistar a galáxia...

— Histórias e hipóteses... Quem sabe eles têm mesmo duas antenas na cabeça, um olho atrás, outro na frente, quatro braços e seis patas.

— Seria engraçado se fosse assim.

— Por quê?

— Pior se tivessem dois braços, um par de olhos em cima do nariz.,.

— Seu conceito de beleza é muito exclusivista.

— Gente normal como nós poderia se entender com monstros pavorosos?

— Fique tranquilo. É provável que eles só existam nas histórias. E descobriram que lá a atmosfera é oxigênio puro. De mais a mais, o terceiro planeta possui só um terço de matéria sólida. O resto é uma substância líquida onde a vida é improvável.

— Esta conversa me abala os nervos. Imaginar monstros pernaltas, com dois olhos na frente. Toque aqui a antena.

  — Adeus. Não pense mais no assunto. E saia com cuidado para não incomodar as crianças. Seis patas fazem muito barulho...

Fonte:
André Carneiro. O homem que adivinhava. Publicado originalmente em 1966.
Livro enviado pelo autor.

André Carneiro (1922 – 2014)


Nota do Editor do Blog José Feldman: 
André Carneiro foi uma espécie de mentor para mim, desde quando o conheci nos anos 90, quando ministrava o Curso Ficção Científica na Literatura e no Cinema, na Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Graças a ele peguei o gosto por escrever contos, até então era apenas um leitor. Escrevíamos contos e líamos no curso, fazíamos cópias a todos os que participavam do curso e para o André, e todos dissecavam o conto, sempre com a palavra final dele explicando o que estava bom e o que estava “fora da casinha” no conto, geralmente era um massacre (rsrs). Recordo que ele tinha predileção pelo escritor Kurt Vonegut Jr. e nos deu um conto deste autor para dissecarmos. Achamos falhas no conto e questionamos ele sobre o autor, e ele sempre bem humorado disse ao final: "Gosto de Kurt Vonegut Jr... menos este conto". Fizemos amizade desde então, até a morte dele em 2014, em Curitiba. André Carneiro, Artur da Távola e Nilto Maciel (de Fortaleza) são 3 escritores e amigos muito queridos que guardo com muito carinho.
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André Carneiro teve uma carreira artística e literária eclética. Considerado um dos mais importantes escritores brasileiros de ficção científica de todos os tempos, também foi poeta, fotógrafo, cineasta, artista plástico, publicitário, crítico, hipnotizador clínico, entre outras atividades.

Inserido como um dos poetas mais respeitados da chamada Geração de 45 e um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro, também foi um dos destaques da chamada Geração GRD da ficção científica brasileira durante a década de 1960, ao lado de Rubens Teixeira Scavone, Fausto Cunha, Jeronymo Monteiro e Dinah Silveira de Queiroz. É o autor do gênero com maior destaque internacional, com seus contos e romances publicados em 16 países.

Natural de Atibaia, cidade do interior paulista, André Granja Carneiro nasceu em 09 de maio de 1922. Filho de Recaredo Granja Carneiro, provedor da Santa Casa de Atibaia e vereador na cidade durante muitos anos, e de Engracia de Almeida Carneiro, a primeira funcionária pública do sexo feminino no estado de Goiás, descendente do bandeirante Bartolomeu Bueno.

Foi diretor de Cultura e Turismo da Prefeitura de Atibaia e secretário da Sociedade Amigos de Atibaia, quando conseguiu para a cidade o título de Estância Hidromineral e Turística. Antes, em 1946, já havia criado a primeira biblioteca pública da cidade, que originou a Biblioteca Municipal atual. E também fundou o Clube de Cinema, com César Mêmolo Jr., que promovia debates após as sessões semanais. Além disso, como membro do Conselho de Turismo de Atibaia, criou os primeiros guias e cartazes ilustrados com fotos para a divulgação da cidade.

No Brasil é mais reconhecido como poeta. Em 1947, com outros escritores e poetas jovens, funda a Revista Brasileira de Poesia, divulgadora dos preceitos estéticos do que foi conhecida a chamada Geração de 45: a revalorização da palavra; a criação de novas imagens; a revisão dos ritmos e a busca de novas soluções formais. O poeta vê na poesia, mais do que produto intuitivo, o resultado da experiência da linguagem e da existência humana.

Junto com Péricles Eugênio da Silva Ramos, e outros organiza o 1º Congresso Paulista de Poesia (que oficializou a Geração de 45), realizado na Biblioteca Municipal de São Paulo, em abril de 1948. Tendo sido eleito secretário e com forte participação nos debates, Carneiro ganhou destaque e chamou a atenção de Oswald de Andrade, presente no evento junto com outros grandes escritores da época e que se tornou seu amigo, passando a visitá-lo com frequência em Atibaia. De acordo com o crítico Antônio Cândido (o convidado para fazer o discurso de abertura), após o Congresso Paulista, ocorreu um aumento expressivo de estreias em livros dos novos autores.

Assim, André Carneiro teve o seu primeiro livro de poesia, Ângulo e Face, publicado em 1949, pelo poeta Cassiano Ricardo, através do Clube de Poesia de São Paulo, do qual era presidente, ganhando prêmios e homenagens com sucesso nacional.

O poeta e crítico Ferreira Gullar lamenta que “a poesia sóbria e humana de um poeta como André Carneiro passe despercebida do grande publico. Ângulo e Face encerra em suas poucas páginas uma deliciosa e purificada mensagem lírica, feita de angústia e melancolia. Poemas construídos arquiteturalmente, num equilíbrio de verbalismo e emoção”. Para Oswald de Andrade, a poesia de André Carneiro neste livro “é uma continuidade modelar do Modernismo numa renovada e luminosa expressão”.

Em abril de 1949, criou o jornal literário Tentativa, junto com Cesar Mêmolo Jr. e sua irmã Dulce Carneiro (também poetisa), que alcançou grande repercussão nacional e internacional, sendo considerado, na época, o melhor jornal literário do Brasil. Uma das razões do seu sucesso foi sua isenção das polêmicas modernistas e por abrir espaço a várias tendências dos escritores das gerações 20, 30 e 45 e poetas em fase de ascensão. Além disso, sua distribuição era feita diretamente para os intelectuais e livrarias das grandes cidades e de outros países.

Em seu primeiro número, Tentativa teve a apresentação de Oswald de Andrade e o logotipo desenhado pelo pintor Aldemir Martins. Uma das grandes repercussões do jornal foi a publicação na edição nº 4, em outubro de 1949, de uma entrevista com o escritor Graciliano Ramos, falando sobre os textos e poetas da época. Vale ressaltar que Graciliano nunca havia dado nenhuma declaração à imprensa até então.

O jornal tinha entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional, seja da nova geração, como Domingos Carvalho da Silva, Lorival Gomes Machado e Cassiano Nunes, seja das gerações mais antigas, com seus autores já consagrados como Sérgio Millet e Oswald de Andrade; ou em processo de consagração, como Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux. Aparecem ainda, compondo a extensa lista de colaboradores, nomes como Guilherme de Almeida, José Lins do Rêgo, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Emílio Moura, Lygia Fagundes Teles, Autran Dourado, José Paulo Paes, Décio Pignatari e muitos outros, com participações especiais ou inéditas como Hilda Hilst, publicada ali pela primeira vez. E ainda contava com correspondentes estrangeiros em Paris, Buenos Aires, Lisboa e nas principais capitais brasileiras. Foi publicado até maio de 1951, em treze edições bimestrais.

Numa ação conjunta da prefeitura de Atibaia e do Arquivo Público do Estado de São Paulo o jornal foi reeditado em fac-símile, no livro A Geração 45 através do jornal Tentativa (Arquivo do Estado, 2006), com as principais edições impressas na época. A edição conta com artigos introdutórios do próprio André, do professor Osvaldo Duarte, da Universidade Federal de Rondônia, do jornalista Alberto Dines, entre outros.

A publicação seguinte de André Carneiro, Espaçopleno (Clube de Poesia, 1963), ganhou o prêmio Pen Clube de São Paulo. Era uma caixa de papelão no formato de 15,5×23 cm, que acondicionava 27 fólios soltos com 27 poemas ilustrados com xilogravuras. O prefácio foi de Domingos Carvalho da Silva e o planejamento gráfico e xilogravuras de Luis Dias. O crítico Wilson Martins ressaltou que “é uma obra de arte em si mesmo. Qualquer coisa como uma tradução tipográfica da poesia e nos remete ao clima intelectual de que os poemas de Mário Quintana são uma das expressões. Um dos melhores livros ultimamente publicados”.

Espaçopleno também recebeu, em 1966, o Prêmio “Alphonsus de Guimaraens”, da Academia Mineira de Letras. No prefácio, o escritor Domingos Carvalho da Silva escreveu: “O que distingue André Carneiro como poeta é principalmente a sua oposição a qualquer solução retórica. A emoção estética que ele busca é essencialmente a da revelação da beleza e do mistério das coisas. Sua poesia – que é de recusa total aos mitos clássicos, às confidências pessoais e a qualquer forma de misticismo - começa, sob o aspecto da temática e do léxico, nos dias atuais, e a celebração do submarino, da nave espacial, do engenho atômico, da radiologia, do robô, da cerâmica esmaltada, do polietileno, da publicidade subliminar e do amor também, mas um amor doméstico e quotidiano com considerações práticas”.

Mais outro livro de poesias premiado, desta vez o Prêmio Nacional Nestlé, foi Pássaros Florescem (Scipione, 1988), traduzido em inglês por Leo L. Barrow, da Universidade do Arizona, dez anos depois, com o título de Birds Flower (Las Arenas Press, Tucson, 1998), em edição bilíngue. O editor-chefe de O Estado de São Paulo e membro da Academia Paulista de Letras, Nilo Sclazo, assinala que “os poemas reunidos neste livro suscitam no leitor aquela sensação de estranheza que, segundo os estudiosos de teoria literária, constitui traço fundamental da criação original”.

O tradutor Leo Barrow já havia publicado a poesia de André Carneiro na primeira antologia do Modernismo brasileiro em língua inglesa em An Introduction to Modern Brazilian Poetry: Verse Translations (Poetry Club of Brazil, 1954), com retratos e ilustrações apresentando os poetas resenhados com desenho de Darcy Penteado, em bico de pena.

Nos anos 1960 e 1970, foi colaborador do prestigioso Suplemento Literário, caderno semanal do jornal O Estado de São Paulo, com seus contos, poesias, críticas e fotografias. Dirigido por Antônio Cândido e Décio de Almeida Prado, o Suplemento tinha como preocupação a ideia de garantir na imprensa um espaço regular para o debate de ideias e a divulgação de autores novos e consagrados, especialmente os escritores brasileiros.

O último livro de poesia de André Carneiro, a antologia Quânticos da Incerteza (Redijo, 2007), com organização de Osvaldo Duarte, numa realização da prefeitura da Estância de Atibaia, apresenta suas poesias mais maduras. Para o artista plástico, poeta e arte-educador Nestor Isejima Lampros, Quântico da Incerteza, decorre da “interposição do poeta frente à era das máquinas, da era espacial, com lirismo e às vezes com um humor que acontece quando reconhece que o mundo não pode ficar alheio à fissão atômica, mesmo às inclusões de naves espaciais, que podem infestar o meio universal, e que por sermos desacreditados, somos forçados a repudiar como conversa de carochinha. Ele transpõem a vida na cidade terrena, para a vida intergaláctica”.

No exterior, apesar de ter sido publicado na França, na primeira antologia dos melhores poetas brasileiros, Poémes du Brésil (Dessein et Tolra, Paris, 1985), a atividade mais conhecida de André Carneiro foi a de escritor de ficção cientifica, sendo o primeiro membro da América do Sul a integrar a ambicionada Science Fiction and Fantasy Writers of America, entidade profissional de escritores americanos.

Foi o único autor brasileiro na antologia The Definitive Year’s Best Selection, publicado pela editora norte-americana Putnam, em 1973, com citação do seu nome na capa como “Internacional Master”. E, também, da edição inglesa The Penguin World Omnibus of Science Fiction (Penguin Books, 1986), editada por Brian Aldiss e Sam J. Lundwall, que reuniu histórias dos quatro cantos do mundo.

Representou o Brasil no romance colaborativo de ficção científica internacional Tales from the Planet Earth (St. Martins, 1986), organizada por Frederik Pohl e Elizabeth Anne Hull, que reuniu 19 autores de países diferentes. O tema unificador era a posse alienígena de um corpo humano (com ou sem permissão de seu proprietário natural) por uma inteligência de uma estrela distante.

Em 1977, com o objetivo de divulgar a ficção científica latino-americana no mercado editorial francês, o tradutor belga Bernard Goorden selecionou alguns contos que havia traduzido, entre eles Zinga, o Robot e A Escuridão, de André Carneiro, e os publicou na coleção Ides… et Autres, da editora Recto-Verso, da Bélgica.

Como não conseguiu publicar na França, Goorden tentou na Suécia e obteve êxito, publicando o volume Det Nödvändigaste (Delta Förlag, 1978) em uma tiragem de 2.000 exemplares. E, mais tarde, conseguiu que o escritor A. E. Van Vogt, um dos mais influentes autores de ficção científica, escrevesse uma introdução, além de autorizar o uso do nome na capa, ao lado do seu. Graças a esta estratégia de marketing, a antologia foi publicada simultaneamente em alemão, com uma tiragem de 20 mil exemplares; e na Espanha Lo Mejor de la Ciencia Ficción Latinoamericana (Martínez Roc, 1982), com uma tiragem de oito mil exemplares.

A. E. Van Vogt escreveu que o conto Escuridão (“Darkness”, em inglês) não só “é um dos maiores trabalhos escritos na ficção científica, mas também da literatura mundial. Não é apenas ficção científica de ação superficial, mas literatura no seu melhor sentido. André Carneiro merece a mesma audiência de um Kafka ou Albert Camus”.

Na Suécia, seus contos foram publicados no final dos anos 1970 pela revista Jules Verne Magasinet, criada em 1940 – a única revista do mundo de ficção científica durante uma época. A partir de 1972, ela passou a ser dirigida por Sam J. Lundwall, o mais influente e importante editor de ficção científica na história da publicação sueca. Proprietário da editora Delta Förlags, Lundwall publicou uma extensa lista de livros do gênero na coleção Delta Science Fiction. Entre eles, a versão sueca do primeiro romance de André Carneiro, Piscina Livre (Moderna, 1980), que foi publicado simultaneamente no Brasil. Carlos Drummond de Andrade afirmou que “em Piscina Livre, André exercita de maneira brilhante a originalidade de ficcionista”.

Piscina Livre desenvolve uma temática onde uma nova ordem, envolvendo a sexualidade e o amor, se apresenta como pano de fundo para uma devastadora crítica à moral e aos costumes de hoje. Essa assinatura estilística da ficção de André Carneiro teve início no conto que dá nome ao seu primeiro livro em prosa, Diário da Nave Perdida (Edart, 1963), que recebeu o prêmio de Melhor Livro do Ano, do Departamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, em 1967. Para o crítico Clóvis Garcia, essa antologia “mostra a que nível de qualidade artística pode chegar a ficção científica quando tratada por um verdadeiro autor, seriamente preocupado com as reações humanas e as qualidades literárias de suas histórias”.

André Carneiro organizou a antologia de contos de ficção científica É Proibido Ler de Gravata (Multifoco, 2010), com os participantes da Confraria de Escritores, a partir da Oficina de Literatura e Poesia, em Curitiba, orientada por ele.

Seu ensaio Introdução ao Estudo da Science Fiction (Conselho Estadual de Cultura, 1967) foi o primeiro estudo em português apresentando e discutindo em seu texto alguns dos principais temas relacionados à ficção científica e recebeu o Prêmio Literário Câmara Municipal de São Paulo. A escritora Dinah Silveira de Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, o trata por “nosso mestre da ficção científica”.

Entre junho de 1962 e novembro de 1981, a Embaixada do Brasil em Madri publicou 52 números da Revista de Cultura Brasileña, cujo promotor foi João Cabral de Melo Neto, e que teve como primeiro diretor o também poeta Ángel Crespo. Na edição 28 tivemos um texto de André Carneiro: “Introducción al Estudio de la Ficción Cientifica”; na verdade, a reprodução dos capítulos 1º e 2º, além de uma parte do 5º, do livro “Introdução ao Estudo da Science Fiction”. Neste mesmo número também foram publicados cinco contos brasileiros de ficção científica dos autores Antônio Olinto, Clóvis Garcia, Leon Eliachar, Rachel de Queiroz e Zora Seljan, tirados do livro Histórias do Acontecerá (Edições GRD, 1961).

A Revista de Cultura Brasileña foi um espelho da produção cultural do Brasil da época. Mais que um boletim de informações ou notícias, a revista foi uma espécie de compêndio da cultura brasileira, em que se encontravam trabalhos assinados por, entre outros nomes de prestígio, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, José Guilherme Merquior, Otto Lara Resende, e traduções de seu diretor Angel Crespo e de Damaso Alonso.

A Universidade Federal de Pernambuco promoveu, em 2009, o seminário “Intersecções: Ciência e Tecnologia, Literatura e Arte”, com o lançamento da coletânea de ensaios de mesmo nome, organizada pela profª Ermelinda Ferreira da UFPE, que debateu, entre outras, as obras de André Carneiro. Foi publicado, também, seu conto Noite de Amor na Galáxia. Essa coletânea reuniu ensaios advindos de duas disciplinas do mestrado em Teoria da Literatura da UFPE, onde se estabelece um intercâmbio entre a literatura, as artes plásticas, o cinema e a música.

André Carneiro foi diretor de edições da Editora Edart e do Clube de Poesia de São Paulo, do qual também foi presidente, assim como foi eleito para diversos cargos na União Brasileira de Escritores. E por muitos anos foi membro do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Como diretor de propaganda da Companhia Cacique de Café Solúvel, dirigiu o lançamento do Café Pelé, onde fez inúmeros comerciais para a televisão e curtas metragens, dirigindo, nas décadas de 1970 e 1980, celebridades como Pelé e o piloto Émerson Fittipaldi.

Sua atuação no cinema nacional começou com filmes artísticos de pesquisa. Ganhou vários prêmios e um dos filmes, Solidão (1951), representou o Brasil no 13º Concurso Internacional de Cinema Amador, realizado em agosto de 1951, em Glasgow, Escócia, sendo depois exibido na França e Itália.

Além de Solidão, outros de seus curtas-metragens foram recuperados pela Fernandes & Mendonça – Som e Imagem, uma produtora de Curitiba que digitalizou alguns filmes, com telecinagem feita por Mario Mendonça e Megg Fernandes, a partir dos originais em formato 8mm. Também está disponível na internet Estudo de Continuidade e Movimento (1950), premiado em 1951 no 3º Concurso Cinematográfico Nacional para Amadores, patrocinado pelo Foto-Cine Clube Bandeirantes e realizado no Museu de Arte de São Paulo. Este curta recebeu em 1952 o prêmio “Estímulo” de melhor filme gênero experimental e representou o Brasil, junto com Último Encontro (1951), em mostras de cinema no Reino Unido, Itália, França e Holanda.

No cinema profissional, André Carneiro se destacou principalmente como roteirista, trabalhando com grandes nomes do cinema nacional como Roberto Santos, Abílio Pereira de Almeida e Walter Hugo Cury. Seu roteiro Os Pereyras (1954), ganhou o Concurso Nacional de Cinema do Quarto Centenário de São Paulo. Seu roteiro mais importante, A Vida de Meneghetti, foi vendido para o produtor italiano Carlo Ponti que, infelizmente, não realizou o filme por ter tido um grande prejuízo no Brasil.

Seu conto O Mudo foi transformado em roteiro no sofisticado filme de longa-metragem, pela Embrafilme, Alguém (1970), dirigido por Júlio Xavier Silveira, com Nuno Leal Maia, Myriam Rios e Ewerton de Castro no elenco. Já o conto O Homem que Hipnotizava interessou ao cineasta Roberto Santos, que assinou um contrato com André com a intenção de fazer um filme (em plena ditadura) de um homem que se auto-hipnotizava e transformava a própria realidade. Era o brasileiro iludido pelo governo, um símbolo do Brasil, cegado pela censura, acreditando nas mentiras do “milagre econômico” e do célebre bolo que seria repartido quando crescesse. Infelizmente, Roberto Santos morreu sem realizá-lo. Mas, o diretor e dramaturgo Ziembinsky comprou o conto para o programa Caso Especial, da Rede Globo, que foi produzido e anunciado como Mergulho no Espelho, com Marcelo Picchi, mas não foi ao ar por proibição da censura do governo militar.

Escuridão, sua história mais famosa, foi adquirida por um produtor espanhol a fim de ser transformado em filme. Publicado em 1963, Escuridão antecedeu em mais de três décadas o romance Ensaio sobre Cegueira, do escritor português José Saramago, publicado em 1995, que retrata um mundo onde as pessoas ficam repentinamente cegas. É inquietante a semelhança com a obra de Saramago ao notarmos cenas marcantes e temas comuns. Para o escritor e compositor Bráulio Tavares, a noveleta Escuridão “emprega um estilo propositalmente distanciado, em que nomes, datas, tempos e espaços parecem diluir-se na escuridão geral, deixando somente o fluir vagaroso e angustiante de uma situação impossível à qual o personagem central procura acostumar-se, com a obstinação de um bicho cuja primeira certeza, acima de todas as outras, é a de que é preciso continuar vivendo, e tentando”.

Mas, ao contrário do que se passa no livro de Saramago, lembra o jornalista e escritor Antônio Luiz M. C. Costa, nesta noveleta de André Carneiro “se enfatiza os atos de solidariedade mais que os de egoísmo. Os cegos se mostram benevolentes e dão uma ajuda desinteressada a pelo menos alguns dos desesperados, dentro dos modestos recursos de que dispõem. Apesar da situação absurda, a narrativa é muito convincente e consegue fazer do infantil medo do escuro algo mais aterrorizante que qualquer monstro, vampiro ou psicopata de filmes de terror. A sensação de desamparo e impotência que nos invade a cada vez que somos surpreendidos por um apagão noturno de poucas horas é aprofundada até ao limite”.

André Carneiro foi professor de roteiros no Senac de São Paulo, onde dirigiu o roteiro piloto do programa sobre profissões “Deu Trampo”, em setembro de 1997, para os canais a cabo da TV Senac. A partir de uma profissão, eram apresentados depoimentos sérios, mas bem-humorados, além de esquetes que satirizavam algum estereótipo da atividade. Misturava a linguagem dos programas Armação Ilimitada e TV Pirata, da Rede Globo, com ritmo jovem, mas nem tão alucinante, dos programas da MTV.

Para ele, o cinema e a fotografia estão misturados, assim todas as suas atividades têm um inegável parentesco intrínseco entre elas. Como fotógrafo, foi um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro. Sua fotografia Trilhos (1951), em que observa do alto, uma sequência vazia de linhas de bondes curvas e brilhantes, ornada por alguns poucos pedestres, é considerada um dos marcos do Modernismo fotográfico no Brasil. Está exposta no Tate Gallery, em Londres, em exibição permanente.

Em 2007, ele foi incluído com destaque na exposição coletiva Fragmentos – Modernismo na Fotografia Brasileira, da Galeria Bergamin, em São Paulo, sob curadoria de Iatã Canabrava. Foi realizada entre 21 de Abril a 26 de Maio, com a participação de 24 fotógrafos pertencentes às vertentes do fotoclubismo brasileiro, que determinaram a produção das décadas de 1940 e 1950. Esse movimento começou em São Paulo no Foto Cine Clube Bandeirante e se estendeu a outros estados. A Exposição percorreu, além de São Paulo, as cidades do Rio de Janeiro e Belém do Pará.

A mostra da Galeria Bergamin foi precursora – e em certa medida se desdobrou – da exposição Moderna Para Sempre – Fotografia Modernista Brasileira na Coleção Itaú (2013/2014), promovida pelo Itaú Cultural para celebrar o aniversário de São Paulo, lançando ao público o olhar de artistas modernos que registraram o crescimento, a urbanização e a transformação da metrópole.

Como artista plástico, André Carneiro foi o criador da pintura dinâmica, técnica que usa líquidos químicos que tomam formas em compartimentos transparentes justapostos. Perito em cortar vidros usando diamante, graças ao trabalho que realizava na loja de materiais de construção que herdou do pai, criava quadros com diversos compartimentos de vidros com líquidos de cores variadas, além de mercúrio e outros materiais. Manuseado pelo espectador, formavam milhares de combinações plásticas.

Também realizou exposições de “Poesia Colagem”, técnica com a qual criou várias capas de livros de autores brasileiros e ilustrou diversos de seus próprios poemas.

Nos anos de 1960, ganhou destaque por seus estudos e pesquisas na parapsicologia e hipnose, realizando pesquisas no Instituto Quevedo, entre outros. Sobre o tema, publicou O Mundo Misterioso do Hipnotismo, em 1963; e Manual de Hipnose, em 1978. Tornou-se um dos poucos membros brasileiros do Parapsychological Association, a mais respeitada instituição internacional de Parapsicologia, com sede nos Estados Unidos.

Em 1969, dirigiu os trabalhos no histórico “Simpósio de FC”, um evento integrante do 2º Festival Internacional do Filme, organizado por José Sanz, que aconteceu no Rio de Janeiro, em promoção do Instituto Nacional do Cinema, do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara. As palestras e exibições de filmes do Simpósio aconteceram no Teatro Maison de France. Carneiro contava com orgulho ter assistido ao filme Metrópolis ao lado de Fritz Lang, assim como 2001 – Uma Odisseia no Espaço ao lado de Arthur C. Clarke, convidados do Festival, entre outros grandes nomes da literatura mundial de ficção cientifica, como A.E. Van Vogt, Frederick Pohl, Brian Aldiss, Poul Anderson, Robert A. Heinlein, e outros.

Foi condecorado pelo governo francês com a Medalha de Prata da Cidade de Paris, da Societe D’Education et Encouragement, em 1950, por suas atividades de intercâmbio cultural e cooperação artística entre Brasil e França. Em 1951, é feito “Membre D’honneur” da Academie Ansaldi, de Paris. Em 1999, recebeu o prêmio Laurel Solidário Casa do Escritor, caracterizado por uma placa de prata gravada para celebração das datas mais expressivas na vida pessoal e artística do escritor. Em 2007, foi escolhido “Personalidade do Ano” pelos editores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica.

Em 2009, foi diplomado pela Academia de Letras do Brasil, onde também recebeu o título de Doutor Honoris Causa, pelo presidente seccional do  Paraná, o escritor, poeta e gestor cultural José Feldman, com quem manteve amizade por longos anos, desde quando ministrara cursos de ficção científica na literatura e no cinema, na Oficina da Palavra (Casa Mário de Andrade), no início dos anos 90. Segundo Feldman, graças a ele deixou de ser leitor e enveredou pela literatura. “Desde as oficinas na Oficina da Palavra, que foram três que participei, nas quais André ministrava criamos um vínculo pela nossa paixão pela ficção científica e a música. Conheci minha única esposa, Alba Krishna, poetisa e romancista, com quem estou até hoje, no curso dele. André frequentava a minha casa, no Bom Retiro, em reuniões que eu realizava com literatos e músicos nas famosas Noites de Vinho, Blues e queijos. Também frequentava a casa dele, lembro vagamente era nos lados da Lapa, em São Paulo, o que me encantava era o conteúdo dentro dela, era realmente como viajar numa nave espacial por outras dimensões. A quantidade de livros, esculturas, discos, coleções, pinturas, decorações era uma coisa bárbara, tanta coisa num apartamento tão pequeno. A gente se reunia na cozinha, o lugar mais espaçoso, para bater papo. André contava a vida dele de tal modo, alegre, cativante, que ao nos despedirmos sempre já ansiava para novo encontro para saber mais dele. Nossos encontros acabaram quando fui para Curitiba, mas quando me mudei para o interior do estado (Ubiratã e Maringá), André já com problemas na visão foi morar com o filho em Curitiba, contudo mantivemos ainda contato por emails e por telefone. André sempre me incentivou quando abracei os contos e principalmente a gestão cultural. Sempre me escrevia elogiando o meu trabalho, meu blog e os ebooks que eu produzia. Guardo com muito carinho todos os seus livros, antigos e todos que ele lançava e carinhosamente me enviava com dedicatória sempre me elogiando e incentivando.”  

Em setembro de 2012, foi homenageado com a leitura de seus poemas de ficção científica, em comemoração aos seus 90 anos, durante o VI Fantasticon – Simpósio de Literatura Fantástica, organizado pelo editor Silvio Alexandre, com realização da Biblioteca Pública Viriato Corrêa e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo,

Em julho de 2014, recebeu o Troféu MegaCon Brasil pelo conjunto de sua obra e sua valiosa contribuição para a literatura nacional, durante o evento MegaCon 2014, um encontro das comunidades nerds, geeks, otakus, de ficção científica entre outros, no campus da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba.

A Prefeitura de Atibaia (SP) promoveu a 1ª Semana André Carneiro, de 24 a 30 de marco de 2014, para homenageá-lo. A Semana contou com uma exposição dos livros de André Carneiro (que passaram a fazer parte do acervo permanente da Biblioteca Central de Atibaia), um Museu de Rua com ampliação de fotos e reproduções de fotos e de obras de artes plásticas, além da exibição do longa-metragem “Alguém”, dirigido por Júlio Xavier Silveira, baseado no seu conto O Mudo. Esse evento cultural ofereceu diversas atrações à população, como o 7º Curta Atibaia e o 8º Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual (FAIA), mostras competitivas, exibições, debates, palestras, além de atividades nas áreas de cinema, fotografia, artes plásticas e literatura.

Para o escritor Roberto Causo, Carneiro “trouxe para a ficção científica brasileira não apenas textos de qualidade, mas questões importantes e de peso junto ao mainstream literário, como a denuncia do conservadorismo social, a referência à cultura das drogas, a impermanência do real e as dificuldades de comunicação na modernidade, rendendo-lhe comparações com Franz Kafka e os mágico-realistas latino-americanos”.

A obra literária de André Carneiro se caracteriza quase que sistematicamente por um enfoque psicossocial, onde a crítica à estrutura vigente sempre se mostra aguda e sutil. A técnica do contraponto narrativo, na qual conta a história sob diferentes perspectivas, presente em algumas de suas criações, faz lembrar Aldous Huxley, de cuja literatura Carneiro era um admirador confesso. Essa estrutura narrativa, aliada aos temas sociológicos e psicológicos abordados principalmente nas suas ultimas criações, mostra uma ficção científica mais preocupada com o humano do que com o tecnológico.

Faleceu no dia 4 de novembro de 2014, aos 92 anos de idade, em razão de complicações cardiorrespiratórias, em Curitiba (PR), onde viveu seus últimos 15 anos. De acordo com seu filho Henrique, ele foi cremado sem qualquer cerimônia, como sempre quis, avesso às pompas funerárias e aos convencionalismos em geral. Suas cinzas foram espalhadas ao pé de uma pitangueira, em Atibaia, junto de algumas árvores que sempre protegeu, como um verdadeiro ecologista, antes dessa palavra se tornar conhecida. Deixou ex-esposa, a irmã, dois filhos e um neto.

Fonte:
Excertos da biografia por Silvio Alexandre para a Semana André Carneiro
https://www.semanaandrecarneiro.com.br/andre-carneiro/biografia/
Complementação por José Feldman

Laurindo Rabelo (Estragos de Amor) Parte final

XII
Das ruínas levantado,
Vê-se o espírito surgir;
Vem com passo fatigado,
Como guerreiro cansado,
À sua sombra dormir.

XIII
Presto acorda, e então, cedendo
Da fome aos cruéis assomos,
Alguns ramos segurando,
Vai colhendo, e vai tragando
Os amargos negros pomos.

XIV
Comeu, ergueu-se, é já outro!
Foi-se do rosto a meiguice!
Do tronco um ramo quebrado
Serve ao triste de cajado —
Eis a imagem da velhice.

XV
Está tudo terminado!
Está completa a sentença!
Aos fogos sucedem gelos,
Que anunciam nos cabelos
A idade da indiferença!

XVI
Lá vai o velho mesquinho,
Lá vai desacompanhado,
O caminho da existência,
Nutrido pela exp’riência,
Ao desengano arrimado.

XVII
Só seus pés tocam a terra,
Os olhos do céu na luz,
Entregue a culto profundo,
Lá vai, fugindo do mundo,
Cair nos braços da Cruz.

XVIII
Lá expira... mas dizei-lhe —
Amor! Vereis num transporte
Como seus olhos cintilam,
Como a um tempo se aniquilam
Todas as forças da morte!!...

XIX
É que amor inexorável
Nos seus planos iracundos,
Se os mortais torna cativos,
Nem minora o mal dos vivos,
Nem respeita os moribundos.

XX
Restaura as forças da vida,
Não nos consente morrer;
Porque lá nas sepulturas
Seus tormentos e torturas
Não se pode padecer.

XXI
Envenenados farpões
Nos manda em suspiros ternos;
Cinge aos olhos mago véu,
E pelos jardins do céu
Nos encaminha ao inferno.

XXII
Fugi, humanos!... fugi
De seu veneno traidor!
Sem culto, desamparados,
Sumam-se, ao tempo votados,
Altares, templos de Amor...

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 51) Reação em cadeia


O AQUILEU ERA REALMENTE um homem com agá maiúsculo. Macho até debaixo d’água. Como delegado titular da homicídios, um exemplo de policial linha dura. Queria tudo certinho e dentro dos conformes. Seus subordinados sabiam da fama, por essa razão, quando sentado em sua cadeira no amplo gabinete, ninguém brincava. Até advogado de porta de cadeia receava visitar preso nessas ocasiões. Sexta-feira passada, depois do expediente, decidiu pescar com amigos, numa cidadezinha fora do seu Estado.

Geralmente nessas pescarias rolavam muita carne no espeto, cerveja e mulheres bonitas. Até aí, tudo bem. O Aquileu não estava de serviço, nem perto de sua jurisdição, ao contrário, mais de seiscentos quilômetros o separavam da pacata Santa Gertrudes. Ademais, que mal havia sair da rotina e distrair um pouco as ideias? Como filho de Deus, gozava direitos iguais como todo ser humano mortal. Assim, passou a mão nas tralhas, tirou da garagem uma BMW vinho adquirida recentemente, ainda sem placas e com os plásticos nos bancos e ganhou mundo.

Na roda de amigos e garotas, a algazarra corria às mil maravilhas. Depois de pescar num riozinho de águas límpidas e beber todas, se embrenhou, para caçar, mato adentro, com alguns dos muitos rapazes que haviam sido convidados. No decorrer da farra, contudo, e no alvoroço que se seguiu, deixou cair, por descuido, numa espécie de clareira, todos os documentos. Daí em diante, nada restou nos bolsos que o identificasse. Pior, na história toda, é que ninguém viu a carteira rolar, nem o próprio interessado em reavê-la. Aliás, estava como os demais, fora de si e grogue. Mal conseguia parar em pé.

No domingo à noite, apesar dos companheiros insistirem para que não voltasse sozinho (afinal, passara todo o dia misturando cerveja, vinho e cachaça), Aquileu, teimoso, feito uma mula, tomou um demorado banho de cachoeira, mandou para dentro um bem nutrido e forrado prato de arroz com feijão e carne de porco e, em seguida, encarou a longa estrada de volta. Quilômetros à frente, uma blitz o fez interromper a viagem. Tinha nego armado até os dentes espalhados por todos os lados. Elementos haviam saqueado um supermercado, e levado todo o dinheiro da féria, coincidentemente com uma BMW vinho.

A Civil, e a Rodoviária fecharam o cerco. Não passava nem agulha. O que interceptou Aquileu chegou gritando:

— Pula fora, devagarinho, não faça nenhum gesto suspeito e mantenha as mãos onde eu possa vê-las.

— Sou da casa...

— Identificação?

Não havia. Somente nessa hora o Aquileu efetivamente deu conta de que deixara, ou perdera, os documentos. Absolutamente nada, ao alcance das vistas, que fizesse dele um cidadão honesto e decente.

Ainda assim, procura daqui, mexe dali, vira de um lado, futuca de outro, qual o quê. Nem os do carro, no porta-luvas, para salvar a pátria:

— O bafômetro. Tragam o bafômetro.

— Meu amigo, sou delegado de polícia.

— Identificação?

Fizeram uma vistoria minuciosa. Arrancaram tudo de dentro da BMW, inclusive uma pistola sete meia cinco, uma escopeta, duas caixas de munições e cartuchos deflagrados. Diante de tamanhas evidencias, partiram para uma geral.

Aí, nessa geral, a cobra entrou em cena e começou a fumar de verdade. Aquileu era bom de briga. Lutava, kung-fu, karatê, e capoeira, além de conhecer a fundo outros esportes violentos. Por ter recusado a assoprar o bafômetro, e por não poder provar o transporte das armas e das balas, levou um tapa no meio das ventas. Furioso, não deixou por menos. Revidou. Partiu para a desforra devolvendo o tabefe. Um esquisitão, que segurava um revolver trinta e oito, perdeu a arma e dois dentes. Outro beijou o asfalto com a testa esfolada.

Um terceiro voou longe e caiu de quatro dentro de uma valeta perto do acostamento. A confusão, de repente criou formas gigantescas. Cada um que tentava pegar à unha o Aquileu, ou ajudar os companheiros, saia com a fuça vermelha e os olhos inchados. Vendo que perdiam terreno, um dos presentes solicitou reforço pelo rádio. Pintou, na área, meia dúzia de viaturas vindas de todas as direções, sirenes ligadas e as luzes intermitentes ligadas. Um barulho infernal. Acionaram, também, o comissário do lugarejo, um velhote metido a valentão, que atendia pelo nome de Bode Chifrudo. A criatura chegou, quase no mesmo instante do pedido de socorro.

Aquileu, por mais brigão e arisco que fosse, e ainda, levando em consideração os vapores do álcool acumulado, e, exausto, de tanto dar e receber cacetadas, acabou dominado. Aliás, completamente nocauteado. Finalmente, conseguiram lhe colocar as algemas:

— Cadê o valentão? — inquiriu Bode Chifrudo.

— Tá ali, doutor.

Muito brabo e abusando do seu poder Bode Chifrudo chutou com força as costas de Aquileu:

— Então você é um delegado?

— Positivo. Seu colega. Meu nome...

— Identificação?

— Acredite, não posso provar agora, mas...

— Seus comparsas foram para onde? Que rumo tomaram? E o produto do roubo, onde esconderam? Cadê o restante das armas? Além de você, quantos mais conseguiram fugir? Desembucha de uma vez que é melhor. Lá na cadeia faço uso de uns métodos interessantes para fazer o sujeito soltar a voz. Tenho certeza que o meu amigo “delegado” —, desculpe, o doutorzinho —, particularmente, vai adorar...

Com a prisão do suspeito desfizeram a barreira. Levaram Aquileu, a BMW e as armas para a Delegacia. Na porta do prédio onde funcionava a DP, uma multidão de curiosos aguardava a chegada do comissário e do misterioso assaltante. Assim que se viu frente ao edifício, Bode Chifrudo ordenou a um agente que levasse o “delinquente” para os fundos da construção e desse um chuveiro frio no mais novo Jean-Claude Van Damme do pedaço para lhe acalmar os ânimos agitados. Em obediência, dois “canas” de olhos vermelhos e cabelos em desalinho se apresentaram para dar inicio ao tratamento vip. Esse tratamento se consistia, primeiramente, na revista corporal, ou como é conhecida, na gíria dos malandros, a “arrancada das penas do frango”.

Depois, na sequência, vinha o “banho do descarrego”, ou o jato de água fria com mangueira de bombeiro, que atirava a criatura longe. Por derradeiro, uma visita à sala especial, onde “encapuzados” faziam qualquer brutamontes soltar a língua e confessar que matou a mãe, pegou a irmã e palitou os dentes com a sogra. Nessa ordem, começaram pela camisa. Em seguida o cinto, os sapatos, o relógio, o celular, o cordão de ouro, a pulseira, até que chegou a vez da calça. Aquileu voltou a ficar endiabrado e a distribuir porradas, mesmo estando com os braços para trás, presos ao bracelete.

Todavia, apesar de fazer lamber o chão mais umas dez criaturas, seus esforços resultaram novamente em vão. Dominado, uma vez mais, por grandalhões com traços de Arnold Schwarzenegger, finalmente a jeans do delegado rolou pernas abaixo. O espanto veio junto. A comoção pegou a todos, de surpresa.

A cena que surgiu, tomou forma em rostos de aparências rudes que nunca abriram brecha para sorrisos. Olhares incrédulos seguidos de um "Oh!..." em uníssono, pipocou de canto a canto. O comissário Bode Chifrudo veio lá da recepção, onde dava entrevista à Rádio Comunitária. Tudo girava em torno de política. O prefeito, o padre, os vereadores, todos, sem distinção, se faziam presentes no átrio da delegacia.

Repórteres dos dois jornais diários, ávidos por um “furo” jornalístico, inédito naquele condado, tiveram permissão para adentrarem no recinto e fotografarem o absurdo. Um sensacionalismo chocante e bizarro que certamente aumentaria a venda dos periódicos por muitas semanas. A gargalhada vinda dos fundos da construção estrondeava apocalipticamente pelos quatro cantos e criava mais força, à medida que a notícia ia se propagando, numa velocidade incrível, de boca em boca, entre a multidão em polvorosa.

O parrudo delegado Aquileu, saradão, queimado de sol, corpo atlético e de boa aparência, no lugar da cueca, usava uma minúscula calcinha cor de rosa.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Edy Soares (Manuscritos (di)versos) 01: Sequidão Perene

  
Poema obtido no Facebook do poeta.

Nilto Maciel (Os Dez Dias de Raimundo)

Meu único filho viveu apenas dez dias. Cheguei do laboratório há pouco. A morte dele ocorreu ontem. Os médicos da equipe científica responsável pela experiência exigiram de mim absoluto sigilo. Eu, no entanto, não cumprirei a promessa.

Muita gente me chama de louco, mentiroso. Quase ninguém acredita na história desses dez dias. Mesmo quem viu de perto Raimundo. Mesmo quem acompanhou o seu desenvolvimento físico e mental em tão pouco tempo.

Quem foi a mãe? Não houve mãe. Ele nasceu em laboratório. Ao nascer, deram-lhe leite e me entregaram. “Leve-o para casa e cuide bem dele” – aconselhou o dr. Ângelo. “Traga-o amanhã, para avaliação.”

Entregou-me também um manual de instruções. No capítulo relativo a unhas e cabelos lia-se: Cortar unhas e cabelos, três ou quatro vezes, somente no primeiro dia. A partir daí, unhas e cabelos crescerão tão pouco que somente no último dia de vida da criatura será preciso chamar barbeiro e manicure.

Criatura é o nome dado pelos cientistas ao meu filho, o ser criado em laboratório. Deitei-o no banco do carro e corri para casa. Durante o percurso, jogou fora os panos e se pôs a pular no banco e balbuciar palavras. Coloquei-o no berço, fui tomar banho e almoçar.

Durante este tempo não parou de gritar. Ao meio-dia se arrastava pelo chão da casa. Algumas horas depois, falava sem parar, corria para lá e para cá, chutava bolas, gritava.

Pediu-me para ir à praia. Prevenido pelos médicos, havia comprado roupas e calçados de diversos tamanhos. Fomos ver o mar. Ele parecia acostumado às ondas. Nadou como um peixe. Regressamos no início da noite. Falava tudo, conversava sem parar. Vasculhou minha biblioteca e leu, em meia hora, alguns livros. Cansado, dormiu cedo. Também dormi cedo, preocupado com o rápido desenvolvimento de Raimundo.

Cedinho voltamos ao laboratório. O dr. Ângelo nos recebeu sorridente, abraçou o menino e o conduziu ao consultório. “Está muito bem” – assegurou, após os primeiros exames. “É como se tivesse dez anos de idade. Prepare-se para a adolescência, ainda hoje.

No carro, o menino olhava através do vidro para as meninas nas ruas. Ria, piscava, mandava beijos. Seria aquele meu pior dia? Chegados à casa, o garoto abriu a geladeira diversas vezes. Sentia muita fome.

Recebi um telefonema e passei quase uma hora em conversa. Dr. Ângelo me dava conselhos: saísse a passeio com o menino, viajasse para o campo. Para me libertar do médico, chamei Raimundo. Nada de resposta. Corri a casa em busca dele. Por onde andava o safadinho? Cansado de perambular pelas ruas, busquei o apoio do dr. Ângelo. Ele me deu sossego. O rapazinho andaria à cata de mocinhas. Voltasse para casa e aguardasse Raimundo.

À noite ele voltou. Ele e uma garota muito bonita. Falavam sem parar, de paixão instantânea, amor sem fim. A barba dava-lhe ares de maturidade. A mocinha parecia não perceber nada, nenhuma mudança no corpo dele. Como se estivesse cega. Chegada a noite, dormi no sofá. Eles tomaram conta de um quarto. De manhã ele me contou, em segredo, ter passado a noite em conúbio com a moça.

Hoje ela ainda chora a morte prematura do seu grande amor. Disse estar grávida. Será meu primeiro neto. E eu só tenho vinte e poucos anos de idade.

Ao fim do terceiro dia ele saiu de casa. Não suportava mais aquela prisão. A jovem chorou muito. Tentei impedir tal aventura. Regressou dois dias depois, cabelos grisalhos, cansado, sujo, maltrapilho. Foi conhecer o sertão. A mocinha se apavorou. Não acreditou no que viu. Aquele homem envelhecido não poderia ser o seu belo Raimundinho. Deveria ser o nosso pai. Para ela, eu e Raimundo éramos irmãos, pois parecíamos ter ambos vinte anos, quando nos conhecemos, os três.

Conduzi-a à biblioteca e contei-lhe a verdade. Ela riu de mim, chamou-me de louco, mentiroso. Só voltou a me ver no dia da morte de meu filho.

No sexto dia levei-o ao consultório do dr. Ângelo. Sentia dores na cabeça. O médico não se mostrou preocupado. É assim mesmo. No dia seguinte levei o velho Raimundo para casa. Lia sem parar, falava esquisitices, andava pela casa, ia às ruas. No nono dia percebi a loucura instalada nele. Não me conhecia, não se lembrava de quase nada. Conduzi-o de novo ao doutor.

Ele me segredou: “Hoje ou amanhã a criatura morrerá. É como se tivesse cerca de cem anos de idade. Deixe-o comigo. A experiência está apenas começando.

Eu me retirei e à noite fui vê-lo pela última vez. Já não vivia o meu filho. Eu, no entanto, não poderia retirar o cadáver. Raimundo não existira para o mundo. Nem nascimento, nem óbito. Uma experiência, apenas.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 6

FINAL ABERTO

Sou um texto vivo repleto de hiatos, vírgulas e
reticências.
Procuro interpretar-me e sem respostas me vejo
refém do silêncio.
Questiono-me e aceito o desafio e um final aberto.
Fecho-me sem epílogo, sem garantia do amanhã.
Com o olhar de uma deusa pagã a vida tremula seus
guizos.
E, para não morrer de angústia, POETIZO!
= = = = = = = = = = = = =

FONTE DE INSPIRAÇÃO

O dia amanhecia flamejante.
Dentro de mim também flamejava, amanhecIa.
No carro de boi, Sô Quincas Carreiro carreava
nossas tralhas e alegrias.
íamos para vila assistir aos rituais da Semana Santa.
Meu pai, minha mãe e eu,
todos no carro que seguia rangente estrada afora.
Cantávamos hinos de louvor.
O carro também cantava um monólogo triste
que invadia os grotões do sertão das Minas Gerais.
Dentro dele eu, meio santa, meio profana,
sonhava encontrar meu seguidor entre os seguidores de Cristo.
Quanto sonho, quanta esperança no coração daquela
criança verde!
O tempo passou e cumpriu sua meta, à revelia.
O asfalto engoliu a terra, a estrada ficou cinzenta
e meus sonhos mudaram de cor.
Só o carro de boi varou meus sentimentos,
atravessou fronteiras
e até hoje me fala de POESIA!
= = = = = = = = = = = = =

QUANDO O DIA SE FOR

Quando eu morrer, não me busquem nas campas frias
onde crescem as flores fúnebres.
Quando eu morrer, minha alma povoará os jardins
em que existem persistentes sempre-vivas,
e enormes girassóis acompanhando o sol.
E quando o dia se for e as flores se quedarem exaustas,
procurem-me nas estrelas
porque eu estarei entre elas para iluminar os poetas!
= = = = = = = = = = = = =

SEM LIRISMO

Não me importam as rimas.
Importam-me os versos que sem volteios
falam da realidade que fere o coração dos sensíveis.
Hoje quero ser poeta de palavras duras, sem nexo e
sem lirismo.
Quero o desvario dos desvairados que soltam da
garganta
o grito de uma angústia rouca.
Quero a inteligência dos loucos, a liberdade da
censura
para falar dessa loucura que me fez poeta.
= = = = = = = = = = = = =

SEMEADURA

Não sou nada, nada tenho de nobreza,
mas guardo dentro do meu nada a riqueza das
palavras.
As palavras se transformam e me transformam.
Gosto de descrever o murmúrio das águas,
a conversação da brisa e o canto dos pássaros.
Queria que meus versos varassem lonjuras,
rompessem o silêncio e dominassem o mundo
envolto nas dobras de solidão.

Fonte:
Rita Mourão. Maria, Marias. Ribeirão Preto/SP: Ed. da Autora, 2021.
Livro enviado pela poetisa.

Machado de Assis (A desejada das gentes)

- Ah! conselheiro, aí começa a falar em verso.

- Todos os homens devem ter uma lira no coração, - ou não sejam homens. Que a  lira ressoe a toda hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? É porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa...

- Vamos andando.

- Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que por aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

- Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

- Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

- Isso. Que fim levou?

- Morreu em 1859. Vinte de Abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

- Se foi em 1855...

- Em 1855.

- Devia ter vinte anos

- Tinha trinta.

- Trinta?

- Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava de vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

- Mau, nada de ironias; olhe que ironia não faz boa cama com a saudade.

- Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

- Mas se os olhos não tinham mistérios...

- Tanto não tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante e da primeira roda. Mas um dia, no antigo teatro Provisório, entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma coisa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessaram tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

- Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

- No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando calado. – Aposto que a namoras? perguntei-lhe. – Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma coisa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe na rua e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. - Estás falando sério? - Muito sério. - Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: - Este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

- Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando...?

- Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

- Brigados?

- Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que tinha nos enfeitiçado a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco nos falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

- Começo a ver uma pontinha do drama...

- Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falava das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

- Menos a pistola.

- Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma coisa  parecido com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

- Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

- Quintília não deixava ninguém estar só em campo, - não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali a tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luvas das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, - coisa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, um receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

- Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

- Vai ver que não.

- O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

- ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

- Mas conversavam de quê?

- De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou que parecia ser.

- A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros homens.

- Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada; tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

- Mas que era isso senão amor?

- Assim acreditei, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

- Enfim!

- No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa, me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada, impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

- E então?

- Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. - Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de coisas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho, e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficámos sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos; não valia a pena que chegássemos a tal ponto. - A senhora diz isso, porque não sente a mesma coisa. - Mas então é um delírio? - Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma coisa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. - Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. - É impossível; pede-me coisa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

- Treme-lhe ainda ...

- E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha , que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

- Oh!

- Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos, e dizia coisas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; como a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios , que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbulo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

- Aposto que seguiu atrás da carta! É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

- Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

- Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correu à casa dela.

- Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta ideia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui e voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois o demônio da esperança veio outra vez pousar no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. As boatos de nosso casamento correram o mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei quê, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma coisa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

- De que moléstia padecia?

- Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegámos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito, teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir; ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. - Perdida, não, murmurou o médico. - Jura que não estou perdida? - Ele hesitou, ela agradeceu-lhe. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

- Casou com o senhor, aposto?

- Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusa nem pedidos; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de Abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de Abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez, feita cadáver.

- Tudo isso é bem esquisito.

- Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meia defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

Fonte:
Machado de Assis. Várias histórias. Publicado originalmente em 1896.

Julia Martins e Grant Faulkner (Como Escrever uma História de Fantasia Convincente) Parte 4, final: Escrevendo a história


1. Esquematize a história para desenvolvê-la melhor.

As histórias de fantasia costumam trazer várias reviravoltas; por isso, é melhor você esquematizar todo o enredo em tópicos antes de começar a escrever a versão final.

Você pode dividir esse esquema do enredo em títulos e subtítulos. Os títulos são separados por
algarismos romanos, enquanto os subtítulos são distribuídos entre letras minúsculas ou números.

Por exemplo: "I. Apresentar Ramona; a. Ramona está no campo, trabalhando; b. Ela é abordada pelo espírito de Janaína, sua tia".

2. Apresente o problema central.

Fale do problema principal no início do enredo para já colocar o herói no conflito (e ajudá-lo a superá-lo aos poucos).

Por exemplo: em Jogos Vorazes, Katniss Everdeen se oferece como tributo no início do enredo; em Buffy, a Caça-Vampiros, Buffy entende que precisa aceitar o seu papel de caçadora de vampiros quando os seus amigos são atacados.

O ponto-chave de muitas histórias acontece quando o personagem principal sai de casa — talvez para embarcar em uma jornada. Por exemplo: o protagonista pode ficar sabendo que a sua mãe, que vive em outro país, está doente. Então, ele tem que cruzar todo um deserto com o remédio de que ela precisa escondido antes que seja tarde.

3. Desenvolva a personalidade do herói com conflitos mais simples.

Todo evento do enredo tem que servir para desenvolver o herói.

Use cada conflito para testar a força, as habilidades e os talentos dele — e tudo virá a calhar quando for hora de enfrentar o vilão.

Preste atenção ao que acontece nas suas histórias de fantasia favoritas. Por quais situações Harry Potter passa até aceitar o seu destino de "menino que sobreviveu"? Como Katniss aceita que ela vai liderar a revolução?

Insira conflitos menores e que levem ao problema central do enredo para testar a força, as habilidades e os poderes do personagem. Por exemplo: ele pode ter que enfrentar um grupo rival depois de tentar roubar o remédio para a mãe doente.

"Apesar de esses conflitos estarem ligados ao problema central, o protagonista nem sempre está a par do que acontece nos bastidores do enredo".

4. Escolha um fim adequado para a história.

Pense no clímax da história.

Geralmente, isso acontece quando o herói enfrenta o vilão. Amarre todas as pontas emocionais soltas, pois os leitores querem ver o quanto o protagonista cresceu ao longo do processo.

Por exemplo: talvez ele se reúna com a família e não se sinta mais abandonado.

Uma história fantástica pode ter um final feliz ou triste, com o herói vencendo ou perdendo. Você também pode encerrar o enredo com parte dos conflitos ainda no ar — ainda mais se quiser escrever uma sequência com os mesmos personagens.

Dicas

Leia várias obras de fantasia enquanto cria a sua própria. Essa é a melhor forma de melhorar a sua escrita. Se necessário, peça dicas e recomendações aos seus amigos e conhecidos.

Fonte:
Wikihow

domingo, 20 de março de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 35: Reinaldo Moreira de Aguiar

 

Sílvio Romero (O Caboclo namorado)


(Folclore do Sergipe)


HAVIA UMA MOÇA CASADA muito bonita. Por sua porta passava sempre um caboclo e numa ocasião virou-se para ela e disse-lhe: “Adeus, meu cravo.” A moça fez que não ouviu e calou-se.

No outro dia o caboclo passou e tornou a dizer a mesma coisa. A moça, não podendo mais chegar à janela, porque todas as vezes que o caboclo passava, dizia-lhe: “Adeus, meu cravo”, queixou-se ao marido. 
 
Este disse-lhe: “Não te importes, e quando ele te disser ‘adeus, meu cravo’, tu responde-lhe ‘adeus, minha rosa’, e deixa o resto por minha conta.”

No dia seguinte o caboclo passou e repetiu: “Adeus, meu cravo.” 
 
Ela virou-se para ele e respondeu: “Adeus, minha rosa.” 
 
O caboclo saiu rindo-se de contente e no outro dia já não disse “Adeus, meu cravo”, e sim perguntou à moça se ela dava licença a ele ir à casa dela à noite.

A senhora ficou incomodadíssima e não deu-lhe resposta. Chegando o marido, ela participou-lhe o ocorrido, ao que ele respondeu: “Amanhã dize-lhe que eu fiz uma viagem e que tu dás licença para ele vir conversar contigo à noite.”

Quando o caboclo passou dirigiu à moça a mesma pergunta, esta respondeu-lhe tudo quanto o marido tinha lhe dito. À noite chegou o caboclo, indo muito cheiroso e bem vestido. Já o marido da moça tinha munido dois criados, cada qual com um chicote de couro cru, e mandado deitar debaixo da cama grande porção de cansanção*.

O caboclo logo que foi chegando disse à moça que queria ir para o quarto e que ela apagasse a luz que o estava incomodando. Depois tirou toda a roupa com que estava vestido e deitou-se dizendo que estava com muito sono. Nisto o marido da moça fingiu ter chegado da viagem e esta disse ao caboclo que se escondesse debaixo da cama. O moço entrou e deitou-se, alegando que vinha muito cansado.

De espaço a espaço ele ouvia como que uma espécie de grunhido sair debaixo da cama. Passado um bom pedaço e o rapaz ouvindo sempre a mesma coisa, perguntou:

“Quem está aí?”

Responde-lhe o caboclo: “Sou eu, cachorro.”

Diz o moço: “Oh, e cachorro fala?”

Replica-lhe o caboclo: “Falo eu.”

Aí o moço levantou-se e com uma luz na mão olhou para debaixo da cama e viu o caboclo no meio dos cansanções, inchado como uma pipa e todo se coçando. O moço chamou os criados que já estavam preparados e ordenou: “Empurrem-lhe o chicote”.

O caboclo depois de ter levado uma tunda, saiu que mal acertava o caminho de casa. Levou muito tempo se tratando da grande surra que levou.

Depois de muito tempo e quando já estava bom, passou de novo o caboclo pela porta da moça, mas muito desconfiado e de cabeça baixa.

Esta para bulir com ele disse-lhe: “Adeus, meu cravo.”

Ele virou-se para ela e respondeu muito zangado: “Adeus, seu diabo!”
= = = = = = = = = = = = =
* Cansanção = planta comum no Nordeste, cuja principal característica é o fato de provocarem, assim como a urtiga, a sensação de queimadura ao toque com a pele. Ao contrário da urtiga, porém, seu efeito urticante e vesiculante (causador de bolhas) é maior e mais agudo, bastando para tanto o simples contato com seus pelos, ao pé dos quais há uma cápsula com o líquido agressivo.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3.  Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.
Livro enviado por Sammis Reachers.

Laurindo Rabelo (Estragos de Amor) Parte primeira

I
Miseráveis insensatos,
Escravos da formosura,
Curvados a seu aceno,
Buscais vida no veneno
Que vos leva à sepultura!

II
Nos seus braços reclinados,
Beijando em ternos carinhos
Divinas faces mimosas,
Livrais o néctar das rosas
Sem reparar nos espinhos!

III

“Oh! loucos, vede a verdade,
“Conhecei essa ilusão,
“Por que viveis seduzidos?”
Embalde contra os sentidos
Aflita brada a razão!...

IV
Nada alcança: tudo cede
Ao amoroso desmaio: —
Lumiando o par gentil,
Brilha amor como um fuzil,
Mas ao fuzil segue o raio.

V
Lá do monte da esperança
Cresta o fogo as verdes fraldas;
E de quanto possuía
Só conserva a fantasia
Secas, dispersas grinaldas.

VI
Suspeitas, tiranias serpes*,
Nos peitos cravando os dentes,
Com seu sangue se alimentam;
Das chagas chamas rebentam,
Das chamas novas serpentes.

VII
Em furor e desespero
Começa o triste a chorar,
Vendo a estrada que seguiu;
Morde o laço em que caiu,
Mas não pode-o desatar!...

VIII
A razão, para vingar-se,
Mais aumenta o seu flagício*,
Com semblante inexorável,
Muda, surda, imperturbável,
Assistindo ao sacrifício.

IX
Tudo é dor, tudo agonia,
E queixumes contra o fado;
Suspiros e pranto ardente,
Desespero no presente,
Saudades pelo passado!...

X
‘Té que vai desabrochando,
Pelo pranto d’aflição
Regada continuamente,
Do desengano a semente
Nas cinzas do coração.

XI
Ergue a planta a fronte altiva,
Mas de tristonha aparência;
Folhas, tronco, é toda luto;
Tem mirrado raro fruto;
Esse fruto — é a experiência.
= = = = = = = = = = = = = 
* Flagício - aflição, tortura.
* Serpes = muito velhas e muito feias.
 
continua... parte final

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional