terça-feira, 10 de maio de 2022

Malba Tahan (O estratagema de Takla)


Conta primeiro os teus inimigos e poderás calcular, depois, as tuas inquietações.
Al-Harini (1054-1122)


Corria o terceiro mês do ano de 698. Na velha cidade de Damasco vivia, nesse tempo, um homem de meia-idade, de ar retraído e modesto, que se chamava Mosab Ali Hosbã. A vida de Mosab, acorrentada à pobreza e à vulgaridade, retalhada pelos desenganos, muito longe estava de ser considerada feliz. Quando moço, em Medina (sua cidade natal), exercera a árdua profissão de falcoeiro e fizera-se muito destro na falcoaria.

Três vezes viajara pelo Iraque, e tendo ido, em caravana de peregrinos, até a Pérsia, a convite de um príncipe caçador, aprendera contas, cálculos, geometria e todos os estranhos segredos da astrologia, com dois sábios sacerdotes de Khorassã. Em consequência de uma queda desastrada (durante uma caçada no Iêmen), o falcoeiro Mosab ficou capenga. Impossibilitado de continuar em trabalhos de falcoaria, vendeu sua rica falcoada e mudou-se para Damasco, altamente prestigiada em todo o Oriente por ser a capital do califado.

Sob o céu damasceno conheceu Mosab a jovem Takla, filha de Mekoul (o escriba), com a qual se casou. A profissão adotada por Mosab, em Damasco, não era das mais rendosas. Impelido por gênio simplório e acanhado, fizera-se talebe, isto é, professor. O seu feitio calmo e paciente tornara-o muito estimado. Ensinava cálculos, música, astrologia e noções de geometria. As lições eram mal pagas e, com o minguado salário que recebia, mal podia Mosab manter Takla, sua esposa, e Laila, sua filha. É bem verdade que Takla, diligente e hábil, colaborava para a economia do lar, bordando pequenos tapetes com legendas do Alcorão. Esses tapetes (chamados “os tapetes de Takla”), enriquecidos com figuras geométricas, eram vendidos aos ricos damascenos e aos mercadores de Alepo.

Ora, aconteceu — Maktub!* — que certa manhã (como de costume) preparava-se o bom talebe para sair (já se achava, aliás, na porta de sua casa) quando dele se acercou um desconhecido de turbante claro e albornoz de seda. Tinha a fisionomia de um adolescente e os seus olhos eram claros. Presa à cintura, uma adaga finíssima, ornada de cornalinas. Trocadas as saudações habituais, disse o visitante do albornoz de seda, com ar compenetrado:

— Chamo-me Nhamã Yaussef, e sou um dos oficiais do califa. Venho procurá-lo por ordem expressa do nosso glorioso soberano Abd al-Malik bin Marwan, emir dos árabes. O rei deseja receber, em audiência, o talebe Mosab Ali Hosbã. É urgente!

O frio da palidez cobriu o rosto de Mosab. O rei mandava-o chamar? Exprimiria aquele espantoso e inesperado convite uma honra excepcional. Aparecia com o esplendor lendário de um tapete mágico capaz de arrancar o talebe da realidade triste da vida e levá-lo ao país encantado dos sonhos.

Mosab tremia, emocionado. Que poderia prever de tudo aquilo? Sentiu gotas de suor riscando arabescos em sua testa.

— Permiti, nobre capitão — gaguejou, arredondando os olhos de espanto —, que eu possa me vestir com mais apuro! Não seria correto aparecer em trajes tão rudes na presença do nosso incomparável emir. Voltarei dentro de poucos instantes.

E Mosab, no nervosismo em que se achava, deixou o oficial do califa na porta e correu para os aposentos internos de sua casa.

— Takla! — gritou ele, já no harém, chamando a esposa. — Quero o meu turbante novo e os meus trajes de festa! O rei quer falar comigo!

— Falar contigo? O rei? — duvidou Takla, com desabrimento, receosa de que o marido, envenenado pelas complicações geométricas e astrológicas, tivesse perdido a luz da razão.

— Sim — confirmou Mosab. — Apressa-te, mulher! Vai o califa receber-me, agora mesmo, em audiência especial. Não é sonho, nem delírio! Um capitão da guarda está à minha espera, na porta. Que será?

— Sim, que será?

A dúvida, numa inquietação sem limites, cintilava nos olhos negros e expressivos de Takla.

E, quando Mosab vestia seus trajes mais novos, enfiava a djallaba* mais fina e enrolava na cabeça vistoso turbante cinza, tentava adivinhar a razão daquele honroso chamado.

— Desejará o rei colher alguma informação sobre astrologia? — arriscou Mosab, ansioso por ouvir a opinião da esposa.

Takla não aceitava esse palpite. Nada de astrologia. O ambicioso Abd alMalik, filho de Marwan, não olhava para as estrelas do céu, nem acreditava nos adivinhos da Terra. Recebera, certamente, algum documento secreto da Pérsia e queria que Mosab (apontado como verdadeiro Koodjha) traduzisse as letras e revelasse o segredo. Era isso, com certeza, e nada mais, Inch’ allah!*

O fato é que Mosab Ali Hosbã, o talebe medinense, sempre capengando, com todas as inquietações da incerteza, foi levado à presença do grande monarca Abd al-Malik, filho de Marwan, comendador dos crentes. Os nobres muçulmanos que viram o talebe atravessar, com passos arrancados, os amplos e luxuosos salões do palácio, indagavam entre cochichos e sorrisos desdenhosos:

— Que pretenderá o rei ouvir desse astrólogo da perna torta?

A verdade do caso não transpareceu, pois a audiência, por determinação do califa, foi cercada do maior sigilo. No divã ficaram, apenas, o emir dos árabes, o prestigioso Abd al-Malik, e o talebe Mosab, seu convidado. Todos os secretários, guardas e servos se retiraram.

Depois de convidar o astrólogo a sentar-se a seu lado (pondo-lhe democraticamente a mão espalmada sobre o ombro), o rei assim falou, sem preâmbulos, em tom amistoso:

— Tenho recebido de ti, ó talebe, ótimas e fidedignas informações. Latif, minha atual favorita, amiga de tua esposa Takla, falou-me várias vezes, com muito interesse, a teu respeito. E estou resolvido (para agradar à sedutora Latif) a nomear-te para o cargo de grão-vizir.

— Grão-vizir? — repetiu Mosab, a alma arrastada por um simum de espanto. — Grão-vizir?

— Exatamente — confirmou o califa, com absoluta naturalidade, anediando a barba. — Quero que exerças as funções de chefe do meu governo. És um homem pobre, bem sei, mas honesto e trabalhador. Conheces os altos segredos da geometria de Euclides e da astrologia; sabes fazer as contas mais complicadas com os números. Escreves com facilidade e correção. Estou certo de que poderás desenhar, a qualquer momento, a marcha dos sete planetas pelo céu. Informaram-me, também, da tua impecável lealdade. Ninguém põe em dúvida a tua sabedoria naquilo que diz respeito ao Livro de Alá. Julgo-te, portanto, perfeitamente capaz de controlar os meus vizires, vigiar as despesas do tesouro e dirigir a administração do califado.

Vivia Mosab o momento culminante de sua vida; sentia-se estonteado, quase vertiginoso; batia-lhe descompassadamente o coração; procurava dominar-se e ouvir com o máximo respeito as palavras do rei.

O califa, reclinando-se sobre as largas almofadas, olhos semicerrados, enclavinhando os dedos, prosseguiu:

— Só poderei, entretanto, lavrar a tua nomeação depois que tiveres respondido a duas perguntas muito sérias que vou formular a teu respeito.

— Aguardo a vossa inquirição, ó comendador dos crentes! — acudiu Mosab, com lenta mesura, sinceramente emocionado. — Direi a verdade, quaisquer que sejam as consequências. Iallah!*

— Está bem — retorquiu Abd al-Malik num olhar vago. — Sinto-me confortado com a segurança de tua palavra. A primeira pergunta (a mais simples talvez) é a seguinte: Tens amigos entre os damascenos?

— Ora, ora, por Alá! — respondeu Mosab com um sorriso de intenso orgulho. — Tenho amigos, e bons amigos, por toda parte. Desde a mesquita até o mercado. Entre ricos e pobres, sábios e ignorantes, conto com centenas e centenas de legítimos e verdadeiros amigos! Ainda ontem, ao cair da tarde…

— Muito bem — acudiu o rei, interrompendo-o, naqueles rodeios, com bom humor. — As boas amizades formam os alicerces da verdadeira felicidade. Já ouvi, de um poeta do deserto, esta sentença: “Se os amigos me fugirem, é bem certo, de mim fugirão todos os tesouros.” Passemos, agora, à segunda pergunta, que reputo muito grave: Tens, meu caro talebe, inimigos entre os muçulmanos?

— Oh, não! — protestou Mosab, com veemência, esforçando-se por ser claro e decidido. — Desconheço o que seja um desafeto. Inimigos? Creio que nunca os tive. Esforço-me por desfazer as intrigas, os mal-entendidos; não me incomodo com os mexericos e sou surdo às insinuações malévolas. Tenho, por norma, esquecer as ofensas e perdoar as injúrias. Assim procedendo, transformo as malquerenças em afeições; os ódios, em indiferenças; as aversões, em estimas. Eis a minha confissão: não tenho inimigos, ó rei do tempo!

— Se assim é — declarou, sem detença, com reprovadora frieza, o califa —, lamento muito, mas não poderás ser nomeado grão-vizir. Seria realmente absurdo que o chefe do meu governo, o primeiro-ministro do Islã, fosse um homem neutro na vida, sem o menor traço de caráter, destituído de qualquer paixão política, sem fibra, sem partido, aviltado pela fraqueza, falho de sentimentos. Todo aquele que possui uma parcela diminuta de personalidade vê logo aparecer, a seu lado, a sombra tortuosa de um inimigo.

E como o bom e ingênuo talebe, olhos em terra, se mostrasse sucumbido diante daquele inesperado desfecho, o califa retornou, num gesto largo, indefinido, tornando-se taciturno:

— Observa, ilustre Mosab, o meu caso, por exemplo. Sou o rei, o sucessor de Marwan, o glorioso (que o Eterno o tenha em sua paz!). Pois bem, tenho inimigos cruéis, impiedosos, dentro e fora das terras árabes! Mas vamos adiante: Maomé, o Clarividente Profeta, o Enviado de Deus, teve inimigos rancorosos, muitos dos quais tentaram, por todos os meios e com todas as armas, arruiná-lo, vencê-lo e matá-lo! Mais ainda: Alá, que é Único, Onipotente, Misericordioso, também não está isento de inimigos. Que são os ateus e os hereges, senão inimigos irreconciliáveis de Deus?

Não sabia Mosab disfarçar o desapontamento que o esmagava. Sentia-se perdido, aniquilado, naquela tempestade de objeções. Vendo-o triste e sucumbido, resolveu o rei, num gesto magnânimo, abrir a porta para novas esperanças. E disse-lhe:

— Não desisto, apesar de tudo, da ideia de aproveitar a cooperação de meu caro Mosab, de Medina, e por isso vou fazer, ao ilustre geômetra, especial concessão: dentro de 24 horas terás de arranjar, no mínimo, sete inimigos damascenos. Inimigos de verdade. Pessoas desejosas da tua desgraça. Espero-te amanhã, neste mesmo divã, depois da terceira prece. Habilita-te com sete inimigos e volta. Serás nomeado grão-vizir! Palavra de rei!

Ao retornar do palácio de Abd al-Malik, capengando pelas ruas estreitas e tortuosas de Damasco, sentia-se o bom Mosab confuso, estonteado, como um ébrio. Estivera a dois passos da glória, da riqueza, e tudo parecia fugir diante de seus olhos! Perdia aquela oportunidade rara, raríssima, de ser o grão-vizir de Damasco! E isso por quê? Porque era um homem simples, pacato, inofensivo, sem inimigos!

O califa exigira dele sete inimigos! Como fazer, em poucas horas, sete inimigos, ele, que em quarenta e cinco anos de vida, pelo Iraque e pela Pérsia, adestrando falcões pelo deserto, formulando horóscopos, não fizera nenhum?

Ao cruzar a rua dos Tecelões, ao lado da loja de Simão Mureb, avistou Mosab um velho aguadeiro, magro, esfarrapado, que puxava pela rédea de um burrinho. O homem repetia com voz dolente: “Água! Água fresca! Água da fonte!” Estranho pensamento assaltou o talebe. Para iniciar a conta dos sete (refletiu) vou agredir aquele miserável aguadeiro. Será fácil segurá-lo pelo ganzuz*; com dois ou três socos atiro-o no chão, espanto o burrinho, derramo a água… Arrependeu-se logo dessa ideia. A agressão seria, além de estúpida, covarde. Que culpa tinha o aguadeiro do fracasso de sua vida?

Mais acertado (prosseguiu Mosab em suas intempestivas reflexões) será procurar o xeque Ismahil Mukbel e fazê-lo sabedor das insinuações malévolas que circulam a respeito de sua primeira mulher, Rahif. O honrado Ismahil fará um escândalo. Os irmãos de Rahif ficarão furiosos. E ganharei, com a indiscrição, vários inimigos (quatro, cinco, talvez).

A lembrança da intriga sórdida repugnava-o. O xeque Ismahil era homem bom, cordato, sempre o acolhera com generosa amizade. Grande indignidade seria golpeá-lo daquele modo.

O mais prático (considerou Mosab, seguindo a trilha incerta de seus pensamentos) seria procurar os poetas Nacif, Zogaib e Amin (que se tinham na conta de talentosos) e declarar, sem rebuços, em voz alta, na presença de várias pessoas: “Os versos que vocês escrevem são tolices, baboseiras sem nexo, desconchavos sem métrica!” E feita essa crítica (verdadeira, aliás), a conta dos sete inimigos estaria iniciada com três nomes: Nacif, Zogaib, Amin… Ficariam faltando apenas quatro.

Essa extravagância, de criticar poetas, foi logo rejeitada. Mosab sentia-se bem em companhia dos poetas. Não o agradava ferir os homens de pensamento.

E, naquele entrechoque de pensamentos, entrou Mosab em sua casa, aturdido, desolado; esbarrava nas paredes; apoiava-se nos móveis como um bebedor de haxixe. Takla, sua esposa, correu ao seu encontro e interpelou-o, aflita. Por Alá! Que havia ocorrido no palácio? Que pretendia o califa? Por que voltava ele assim abatido, estonteado?

Narrou Mosab tudo o que ocorrera durante a audiência, e a fez ciente da exigência inominável do califa: ele, Mosab, seria nomeado grão-vizir se arranjasse (até a terceira prece do dia seguinte) sete inimigos, inimigos verdadeiros!

— Mas isto é facílimo — declarou Takla, alçando para ele os grandes olhos pretos. — Nada poderá impedir a tua nomeação. Os inimigos surgirão, às dúzias, pelas ruas, pelas praças, pelas mesquitas…

— Inimigos? — protestou Mosab, com recalcada melancolia, encolhendo tristemente os ombros. — Como arranjar sete inimigos no meio dessa gente simples, hospitaleira, que me acolhe com tanta simpatia?

— Deixa o caso por minha conta — tranquilizou-o Takla em tom de meia sinceridade, a abanar-se com seu grande leque. — Senta-te ali, naquela almofada, lê duas ou três suratas* do Livro, enquanto eu vou providenciar. A exigência do rei será atendida, hoje mesmo, de modo espetacular. Amanhã (queira Alá!) serás o grão-vizir!

Preparou Takla, em dois instantes, o narguilé do marido. Colocou o fumo, trocou a água e avivou a brasa. E, deixando tudo em ordem, afastou-se rápido e, ato contínuo, subiu para o terraço de sua casa.

Mosab, na inquietação em que se achava, não conseguia ler. As letras do Alcorão dançavam diante de seus olhos. As palavras de Alá confundiam-se em seu pensamento.

Ele, Mosab, o talebe medinense, chegaria ao triunfo supremo do grãoviziriato? Caminhando pelas veredas sem fim do pensamento, imaginava-se na corte damascena, ao lado do rei, revestido do manto de honra, recebendo homenagens dos xeques, dos nobres muçulmanos e dos oficiais. Elevado ao alto cargo de grão-vizir, deixaria aquela casa modesta, úmida e triste e iria viver em suntuoso palácio com pátios floridos e janelas abertas para o jardim: teria mais de vinte servos, escravos e auxiliares. Muitas festas poderia oferecer aos amigos e aos poetas. Festas com jantares e músicas. De quando em quando, uma cantora egípcia, uma dançarina cristã. Sua filha Laila seria pedida em casamento por um nobre, dono de cinco mil tamareiras. Ele, Mosab, o talebe, nomearia os cádis; designaria os funcionários; e por sua indicação seriam escolhidos os governadores. Os generais mais arrogantes viveriam a bajulá-lo. Teria, à sua disposição, verbas imensas; as gratificações só seriam pagas com o seu “visto”; o ouro incontável do Tesouro Público rolaria, dia e noite, por suas mãos.

E tudo isso perdido. A miragem desaparecia como se ele (pobre talebe!) fosse um beduíno perdido no deserto de Roba-el-Kali! Como engendrar, em poucas horas, sete inimigos?

— Que estás aí a malucar, a falar sozinho? — perguntou Takla, reaparecendo, risonha, na porta do harém. — Anima-te, meu marido! Já está tudo providenciado. Amanhã serás nomeado grão-vizir do califa Abd alMalik. Querias sete inimigos? Arranjei-te setecentos, sem sair deste bairro em que moramos!

— Por Alá, ó filha de meu tio! — exclamou Mosab, trêmulo de espanto e com inquietação na voz. — Que loucura foi essa? Ouvi teus passos quando subias para o terraço. Que fizeste aos nossos vizinhos?

— Tranquiliza-te — chalaceou Takla, com a maior fleuma, tendo nos lábios um riso superior. — Nada fiz que pudesse ferir o teu nome, ou macular a tua reputação de talebe. Chamei, apenas, as minhas amigas mais íntimas e disse-lhes a verdade: “Quero comunicar a todas que meu marido vai ser, amanhã, depois da audiência, nomeado grão-vizir do rei.” Todas elas estão bem a par das minhas relações com Latif, a favorita do califa. Sabem que Latif aprendeu a bordar comigo; os pratos saborosos que Latif prepara foram inventados por mim. Mas, mesmo assim, a surpresa foi geral. A formosa Rihana, esposa do teu amigo Hussein, não quis acreditar. Vi-me obrigada a jurar pelas barbas de Mafoma e pela felicidade de Laila. Oadad, sobrinha de Tufik Jaouad, rosnou furiosa: “O califa está louco! Como poderá um capenga exercer as funções de grão-vizir?” E sabes qual a observação de Jolikha, filha de Danho Murad? Disse apenas, com momices na voz: “Não dou sete dias de vida para o governo desse califa imbecil!”

— E Rahif? — indagou Mosab. — Qual foi a opinião da primeira esposa do xeque Ismahil Mukbel?

Takla sorriu novamente. Luzia-lhe nas pupilas um fulgor de intensa satisfação. Respondeu:

— A delicada Rahif, sempre de cabelos bem pintados, fitou-me com ironia e comentou com certo desfastio, fazendo uma careta enjoada: “Meu marido tinha razão. Esse califa não sabe escolher seus auxiliares.”

— Mas tudo isso, minha querida Takla — lamentou Mosab meio embaraçado, com nervosa firmeza —, nada significa para os nossos planos. Essas aleivosias assacadas por suas amigas perdem-se ao vento; ficarão sobre a areia da minha indiferença. E a situação para mim continua insolúvel: sem inimigos, impossibilitado de servir ao rei!

— Aí é que estás enganado — acudiu Takla, com certa excitação jubilosa. — O teu erro é completo. Essas quatro contarão a novidade a vinte ou trinta; essas vinte ou trinta transmitirão a notícia a mais de cem. De cem o salto será para mil. Todos os maridos serão devidamente informados do caso. Antes que o nurezin chame os fiéis para a prece da noite, mais de cinco mil damascenos estarão a par da escolha do novo grão-vizir. Cada um deles dirá, com surdo rancor: “Fui preterido pelo capenga!” Julgar-se-ão todos roubados, esbulhados, ludibriados. Trezentos invejosos ficarão, esta noite, remoendo as suas cruas decepções. O ódio, inspirado pela inveja, irá se aninhar no coração dos ambiciosos. E amanhã, ao soar da terceira prece, terás não sete, mas setecentos inimigos rancorosos em Damasco!

Ao cair da tarde, na hora em que o Sol rasava o horizonte, o talebe foi reconduzido ao divã do califa.

Abd al-Malik parecia aprazer-se com aquela visita; recebeu-o com simpatia e interpelou-o, risonho, com um leve traço de ironia na voz:

— Por Alá, ó talebe! Conseguiste, dentro do prazo, atingir a conta de sete, por mim fixada? Ou continuas com a vida livre das flechas da inimizade?

— Rei dos árabes! — arriscou timidamente Mosab, inclinando-se, respeitosamente. — Minha esposa Takla assegura que devo ter mais de setecentos inimigos nesta opulenta cidade de Damasco.

E o talebe relatou ao rei o estratagema de Takla e o resultado que obtivera reunindo as amigas (e só as mais íntimas) no terraço de sua casa.

— Ouahyat-en-nebi!* — exclamou o califa. — É então verdade que Takla, tua esposa, fez correr pela cidade, como certo, coisa resolvida, a notícia de tua nomeação? Só agora encontro justificativa para a estranha atitude de vários vizires e xeques durante a audiência desta manhã. Muitos deles fizeram, assinaladamente, péssimas referências ao teu nome e revelaram tremendas infâmias a teu respeito. O xeque Tufik Jaouad, que pretende governar o Iraque, chegou a insinuar que o meu amigo Mosab tem cúmplices no Egito, com os quais se corresponde em dialeto, revelando segredos do Estado; Hassen Rahmi, o jurista, contou-me que já viu o “talebe capenga, ex-falcoeiro” (a expressão é dele), preparando sortilégios para matar pessoas da família real. Assegurou-me o velho Ismahil Mukbel, em tom de chalaça, que não passas de um astrólogo ignorante e confuso. Ao ouvir aquelas acusações que sabia serem falsas, infames, caluniosas, disse de mim para comigo: “O talebe Mosab julga-se livre dos inimigos, mas, na realidade, tem mais inimigos em Damasco do que um ladrão de camelos.” Mas agora está tudo explicado. Creio estar bem a par do ocorrido. Todos esses rancorosos inimigos foram inspirados pela inveja, e surgiram, de ontem para hoje, graças ao estratagema de Takla.

Ao ouvir aquelas palavras, o bom Mosab rejubilou-se em seu íntimo. Inolvidável lição recebera de sua esposa. A inveja é a grande inspiradora de malquerenças, inimizades e ódios.

O califa Abd al-Malik, depois de refletir alguns momentos, declarou, aprumando-se severo e hirto entre as almofadas:

— Amanhã, sem falta, na presença dos xeques, com todas as honras, tomarás posse do cargo de grão-vizir. Espero, de hoje em diante, conduzir com mais eficiência os negócios públicos, e conto com tua sábia e judiciosa colaboração.

E rematou, com um olhar malicioso:

— Peço-te apenas uma coisa: quando tiveres qualquer dúvida sobre algum problema do califado, consulta a inteligente e prestimosa Takla. Feliz o marido que pode ser inspirado e esclarecido por uma boa esposa.
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* Notas:
Djallaba = espécie de túnica.
Ganzuz = raspada a cabeça do árabe, fica no alto um montículo de cabelos que é denominado ganzuz.
Iallah! = Por Deus! Exaltado seja Deus!
Inch’ allah! = expressão traduzida por: “Queira Deus!”
Maktub! = Estava escrito!
Ouahyat-en-nebi! = “Pela vida do Profeta!”
Suratas = são denominadas suratas os capítulos do Alcorão, em número de 114.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.

Estante de Livros (Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais)

Obra-prima de François Rabelais, propõe o entretenimento dos leitores cultos através da folia e do exagero da época.

Série de cinco livros de Rabelais narra a vida e as aventuras dos gigantes Gargântua e seu filho Pantagruel, satirizando os costumes da França do século XVI. O texto é escrito numa veia humorosa, extravagante e satírica, e apresenta muita crueza, humor negro e violência (listas de insultos explícitos ou vulgares preenchem vários capítulos). Os censores da Universidade de Sorbonne tacharam a obra de obscena, e no clima social de opressão religiosa que prevalecia, era tratada com desconfiança. De acordo com Rabelais, a filosofia de seu gigante Pantagruel, o "Pantagruelismo", se baseava numa "certa alegria de espírito, confeitada no desprezo pelas coisas fortuitas". Rabelais estudara grego antigo e o aplicara na invenção de centenas de palavras novas na obra, algumas das quais tornaram-se parte da língua francesa.

Pantagruel

O título completo da obra comumente conhecida pelo nome de Pantagruel é "Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, Rei dos Dipsodos, filho do Grande Gigante Gargântua". Embora muitas edições modernas dos trabalhos de Rabelais ponham Pantagruel como o segundo volume da série, ele na verdade foi o primeiro a ser publicado, em cerca de 1532 sob o pseudônimo de "Alcofribas Nasier", um anagrama de François Rabelais. Pantagruel era a continuação de um livro anônimo intitulado As Grandes Crônicas do Grande e Enorme Gigante Gargântua. Este texto inicial de Gargântua desfrutava de grande popularidade, apesar da sua estrutura fraca. Os gigantes de Rabelais não são descritos como tendo qualquer altura fixa, como nos dois primeiros livros de As Viagens de Gulliver, mas variam de tamanho de capítulo em capítulo para tornar possível uma série de imagens espantosas, como se fossem histórias inventadas. Por exemplo, num capítulo Pantagruel é capaz de caber numa sala de tribunal para defender uma causa, mas noutro o narrador reside na boca de Pantagruel por seis meses e descobre uma nação inteira vivendo ao redor de seus dentes.

No começo do livro, a esposa de Gargântua morre durante o parto de Pantagruel, que acaba por se tornar tão gigante e erudito quanto seu pai. Rabelais disponibiliza um catálogo dos seus itens de leitura, que consiste em sua maioria de livros com títulos engraçados e decisões proferidas em processos judiciais absurdos. Ele torna-se amigo do festeiro piadista Panurgo e, junto a um grupo de amigos, eles embebedam um exército invasor de gigantes, incendiam seu acampamento, e afogam os sobreviventes em urina. Epistemão, decapitado na luta, se recupera quando Panurgo costura sua cabeça de volta no pescoço. Ele relata que as almas no inferno são mal pagas e trabalham em empregos ruins, mas que essa é a extensão máxima de seus tormentos. Outra batalha é ignorada pelo narrador, que estava ocupado explorando a civilização na boca de Pantagruel naquela hora.

Gargântua

Após o sucesso de Pantagruel, Rabelais revisou seu material original e produziu uma narrativa aprimorada da vida e feitos do pai de Pantagruel n'A vida mui horrífica do grande Gargântua, pai de Pantagruel, mais conhecida pelo nome abreviado de Gargântua. Este volume começa com o nascimento miraculoso de Gargântua após uma gestação de onze meses. O parto é tão difícil que sua mãe ameaça castrar seu pai, o Sr. Grandgousier. O gigante Gargântua nasce pedindo cerveja. Depois de uma educação indiferente em casa, ele é enviado para Paris, onde as multidões o irritam tanto que ele afoga milhares de civis numa enchente de urina (os sobreviventes riem tanto que a cidade é renomeada "Par Ris"). Ele rouba os sinos de Santo Antônio, mas os devolve depois de um sofista fazer apelos ridiculamente egocêntricos para o seu regresso. Enquanto ele estuda diligentemente em Paris, os padeiros do vizinho Sr. Picrochole insultam os viticultores de Grandgousier, e consequentemente são atacados por eles. Um ataque maciço de retaliação contra as terras de Grandgousier finalmente é parado em Sevilha pelo impiedoso Frei João. Grandgousier clama pela paz, mas Picrochole rechaça suas tentativas. Gargântua e o Frei João reúnem as tropas e (depois de Gargantua quase engolir seis peregrinos que haviam caído acidentalmente em sua salada) vencem uma grande batalha, fazem Picrochole recuar para a sua cidade e o derrubam. Como recompensa, o Frei João recebe fundos para estabelecer a "anti-igreja" conhecida como a Abadia de Thelema, que se tornou uma das parábolas mais notáveis da filosofia ocidental.

Pode ser considerada uma crítica às práticas educacionais da época, um clamor pela escolaridade gratuita, ou uma defesa de todos os tipos de noções sobre a natureza humana.

O Terceiro Livro

Rabelais voltou à história do próprio Pantagruel nos três últimos livros. No Terceiro Livro de Pantagruel, o estilo narrativo torna-se uma paródia do debate filosófico, onde o grosseiro Panurgo tem a última palavra. Ele dá sermões contra as restrições morais e a favor da dívida, mas aceita a oferta de Pantagruel de pagar todos os seus credores. Vendo-se financeiramente estável pela primeira vez, Panurgo procura conselhos sobre com quem deve se casar.

Vários augúrios (abrir um livro de Virgílio numa página aleatória, induzir um sonho profético por meio de jejum) e conselheiros (uma Sibila de Panzoust, o mudo Nariz-de-Cabra, o velho poeta Raminagrobis, Frei João, um grupo de sábios doutores e advogados e um tolo) todos concordam que, se ele se casar, sua esposa irá traí-lo, bater nele e roubá-lo; mas ele interpreta suas profecias numa luz mais favorável. Num breve interlúdio, Pantagruel defende o juiz Brindlegoose, que tem pronunciado sentenças baseando-se no lançar de dados por 40 anos, com o argumento de que ele é um velho idiota e que portanto é favorecido pela Fortuna. Como uma última tentativa de resolver a questão do casamento, Pantagruel e Panurgo fazem uma viagem pelos mares para consultar o Oráculo de Bacbuc (a "garrafa divina").

O Quarto Livro

A viagem continua. O livro pode ser visto como uma releitura cômica da Odisseia, ou da história de Jasão e os Argonautas. No Quarto Livro, talvez o mais satírico, Rabelais critica o que entende como a arrogância e opulência da Igreja Católica, das figuras políticas da época e superstições populares, e ele aborda várias questões religiosas, políticas, linguísticas e filosóficas.

O grupo vai à Ásia Oriental e compra muitos animais exóticos. Panurgo briga com o comerciante de ovelhas Dingdong, e vinga-se dele afogando a ele e seu rebanho. Eles passam pelas ilhas dos Meirinhos, cujos camponeses cobram para os outros baterem neles. Durante uma terrível tempestade, Panurgo está paralisado de medo, mas finge bravura depois. Após matarem um monstro marinho e serem informados da morte do gigante Quaresma, eles chegam à Ilha Selvagem, cujos habitantes homens-salsichas confundem Pantagruel com seu inimigo Quaresma, e o atacam. A batalha é interrompida por um porco divino voador, que lança mostarda no campo de batalha. Eles vão à Ilha do Vento, cujo povo se alimenta de ar, a uma terra estéril onde um camponês e sua esposa enganam o diabo, e à arrogantemente católica Papimania, onde o povo venera o Papa e seus decretos. Após passarem por uma nuvem de palavras e sons congelados, chegam a uma ilha que venera Gáster, o deus da comida. O livro termina quando Pantagruel dispara uma saudação na ilha das Musas, e Panurgo se borra de susto por causa do som, e de medo do "gato célebre Rodilardo".

O Quinto Livro

Foi publicado postumamente em cerca de 1564, e narra as novas jornadas de Pantagruel e seus amigos. Numa ilha, o grupo encontra pássaros vivendo na mesma hierarquia da Igreja Católica. Noutra, o povo é tão obeso que costumeiramente se corta a pele para fazer com que a gordura vaze. Na próxima ilha, eles são aprisionados pelos temíveis Gatos-Forrados, e só são capazes de escapar respondendo a uma charada. Mais além, encontram uma ilha de advogados que se alimentam de processos judiciais prolongados. No Reino dos Chorões, eles sem saber assistem a uma partida de xadrez com peças humanas ao lado da milagreira e prolixa Rainha Quintessência. Passando pela abadia das sexualmente prolíficas Semicolcheias, pelos elefantes e pela Ilha de Cetim, eles chegam aos domínios da escuridão. Conduzidos por um guia da Terra das Lanternas, eles vão pelas profundezas da terra até o Oráculo de Bacbuc. Depois de muito admirar a arquitetura e as muitas cerimônias religiosas, eles chegam à própria garrafa sagrada. Ela profere uma única palavra: "bebei". Após beber o texto líquido de um livro de interpretação, Panurgo conclui que o vinho lhe inspira à ação correta, e imediatamente promete se casar tão rapidamente e tão frequentemente quanto possível.

Embora algumas partes do livro 5 sejam verdadeiramente dignas de Rabelais, a atribuição do último volume a ele é discutível. O livro cinco não foi publicado até nove anos após a morte de Rabelais e inclui muito material que é claramente emprestado (como de Luciano: História verdadeira; e de Francisco Colono: Sonho de Polífilo) ou de menor qualidade do que os livros anteriores. Nas notas à sua tradução de Gargântua e Pantagruel , Donald M. Frame propõe que o livro 5 pode ter sido formado a partir de material inacabado que uma editora mais tarde teria remendado num livro.

Temas

Pantagruel e Gargântua não são ogros cruéis, mas sim gigantes bondosos e glutões. Este gigantismo lhes permite descrever cenas de festas burlescas. A infinita gula dos gigantes abre as portas a numerosos episódios cômicos. Assim, por exemplo, o primeiro grito de Gargântua ao nascer é: "A beber, a beber!". O recurso aos gigantes permite também alterar a percepção normal da realidade; sob esta ótica, a obra de Rabelais se escreve no estilo grotesco, que pertence à cultura popular e carnavalesca.

As últimas intenções de Rabelais são enigmáticas. No "Aviso ao leitor" de Gargântua, diz querer antes de tudo fazer rir. Depois, no "Prólogo", com uma comparação aos silenos de Sócrates, sugere uma intenção séria e um sentido mais profundo oculto atrás do aspecto grotesco e fantástico. Na segunda metade do prólogo, porém, critica os comentaristas que buscam sentidos ocultos nas obras. Conclui-se que Rabelais quer deixar o leitor perplexo e procura a ambiguidade para perturbá-lo.

Análise de Bakhtin

Um exemplo da mudança de tamanho corporal dos gigantes. Acima, as pessoas são do tamanho do pé de Pantagruel, enquanto abaixo, Gargântua mal chega ao dobro da altura de um humano.

Mikhail Bakhtin, em seu livro Rabelais e seu mundo, explora Gargântua e Pantagruel e é considerado um clássico dos estudos renascentistas. Bakhtin dizia que, por séculos, o livro de Rabelais fora mal-interpretado. Ao longo do livro, Bakhtin tenta fazer duas coisas: primeiro, recuperar seções de Gargântua e Pantagruel que no passado teriam sido ignoradas ou reprimidas; e, em segundo, fazer uma análise da estrutura social da Renascença com o objetivo de encontrar o equilíbrio entre a linguagem que era permitida e a que não era. Por meio desta análise, Bakhtin aponta dois subtextos na obra: o primeiro é a "cultura de carnaval", que Bakhtin descreve como uma instituição social, e o segundo é o realismo grotesco, que é definido como um modo literário. Assim, em Rabelais e seu mundo, Bakhtin estuda a interação entre o social e o literário, assim como o significado do corpo.

Bakhtin explica que carnaval na época de Rabelais é associado com a coletividade; pois aqueles que comparecem a um carnaval não constituem apenas uma multidão mas são vistos como um todo, organizados numa forma que desafia a organização sócio-político-econômica. De acordo com Bakhtin, “Todos eram considerados iguais durante o carnaval. Aqui, na praça principal da cidade, uma forma especial de contato livre e familiar reinava entre pessoas costumeiramente divididas pelas barreiras da casta, propriedade, profissão e idade”. No carnaval, o sentido único do tempo e espaço faz com que o indivíduo se sinta parte de um coletivo, a tal ponto de deixar de ser ele mesmo. É nesse ponto que, por uso da fantasia e máscara, um indivíduo troca de corpo e se renova. Ao mesmo tempo, surge uma consciência ampliada da unidade e comunidade sensual, material e corporal do grupo.

Também diz que em Rabelais a noção do carnaval está conectada à do grotesco. A coletividade que participa do carnaval está consciente de sua unidade no tempo assim como de sua imortalidade histórica associada à sua morte e renovação contínua. De acordo com Bakhtin, o corpo precisa de um tipo de relógio para ficar ciente de sua atemporalidade.

Influência cultural

O adjetivo "pantagruélico" deriva-se de Pantagruel, relativo a refeições fartas em alegre companhia; típica é a expressão "banquete pantagruélico" ou "almoço pantagruélico". Similarmente de Gargântua deriva "gargantuano", que significa enorme, insaciável, e que por sua vez deriva do substantivo garganta.

Rabelais, ao capítulo 51 do terceiro livro de Pantagruel, atribui a descoberta da cannabis a Pantagruel, derivando-lhe o nome Pantagruelião.

São apelidadas de "Dedo de Gargântua", do nome do gigante inventado por Rabelais, duas formações geológicas:

A morena lateral da geleira da bacia do morro de Pila (Gressan), na área da microbacia do córrego Gressan no Vale de Aosta, onde hoje existe a reserva natural Côte-de-Gargantua; O menir do Fort-la-Latte, na Bretanha.

É chamado Gargântua também o buraco negro do filme Interstellar, em torno do qual se desenrola boa parte dos eventos narrativos.

Ilustrações

As ilustrações mais famosas e reproduzidas de Gargântua e Pantagruel foram feitas pelo artista francês Gustave Doré e publicadas em 1854. Mais de 400 desenhos adicionais foram feitos por Doré para a segunda edição (1873) do livro. Uma edição publicada em 1904 foi ilustrada por W. Heath Robinson.[14] Outro conjunto de ilustrações foi feito pelo artista francês Joseph Hémard e publicado em 1922.

Esta obra é uma sátira escolástica e engloba frades, a Corte de Roma, os reis, a magistratura e a justiça.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Varal de Trovas n. 558

 

Rascunhos Poéticos Potiguares II


Zila Mamede
(Nova Palmeira/PB, 1928-1985, Natal/RN)

BILHAR

a Ludi e Oswaldo Lamartine

Na medida exata
em que a noite corre
não fico: me ausento
como quem morre

Entre lousa e livro
- único disfarce
que concedo ao tempo -
mudo-me a face

que, no entanto, vária,
inábil, reprimida,
perde-se no encontro
tátil da vida

Bola sete em rude
pano de bilhar
marco meu sem rumo
jogo-de-amar.
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Wellington Dantas Cavalcanti
Natal/RN

S I S M O


Por não saber
o que eu tenho sido
é que, às vezes, conspiro contra mim mesmo
— me firo.

Por não saber onde tenho andado
fico parado
à beira desse abismo
e, não raro, penso:
por que não me atiro?

Para onde tenho ido
quase não o tenho percebido.
De tal modo, que sempre assim me surpreendo:
sem sentido.
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Francisco Walflan Furtado de Queiroz
São Miguel/RN, 1930 – 1995

AUTORRETRATO

                                                               A Luis Carlos Guimarães

Não tenho a beleza de Rimbaud, nem o rosto torturado de Baudelaire.
Tenho sim, olhos negros, negros como os de Poe.
Meus cabelos são soltos, em desalinho
Como os de algum anjo ou demônio.
Minha pele, queimada eternamente de sol, tem o sal do mar
E a cor morena dos que são náufragos.
Minhas mãos são pequenas, tristes embora,
Como as mãos de alguém que só as estendeu para o adeus.
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Wotson de Assis
Currais Novos/RN

Brilho da esperança


 E eu debruço minha saudade ao vento
O olhar voa bem longo... bem distante
E as sombras da rua falam sussurrante
No ouvido aguçado de meu sentimento.

A noite dorme sozinha em meu relento
Nesta solidão que pulsa a todo instante
Parece que paira num silêncio pulsante
Que grita, em meu coração, sonolento.

E já tomado assim, pelo o meu cansaço,
Pressinto minha sorte esvair no espaço,
Mas entre o meu vazio algo me ilumina.

Aos poucos, uma figura surge na janela
Um adorno cintilante, exposta, tão bela,
É a luz da lua que penetra minh´neblina.
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Tarzan Leão de Souza
Ipueiras/RN

SENDAS GERAIS


Ipueira,
a um dia distante do mar,
seus riachos só enchem no inverno
e depois seca vem visitar.
Me criei nessas ruas descalças,
eu descalço à procura do mar.
Menino pobre andando nas ruas
com carrinho ou cavalo de pau.
O meu sonho era um dia crescer
e sair mundo à fora — cigano! —
retirante e amante da paz.

Ipueira,
se não pude ser um vaqueiro,
nem tropeiro igualzinho ao vô Chico,
hoje sou cantador de outras terras,
violeiro das sendas gerais.
E quando um dia a saudade apertar,
e de tanta dor não puder nem cantar.
Assossegue que eu estou voltando,
para os meus que deixei a chorar.
Estou voltando, me espere, eu te amo,
seu moleque andarilho voltou.

Altino Afonso Costa (Macucos I)


Chego à tarde de viagem por uma estrada poeirenta e olho o que resta da minha vila.

A velha Igreja Matriz de Santa Terezinha, outrora pintada de branco e hoje suja de terra escura levada pelo vento e o tropel do gado solto pela praça, antes protegida por paineiras frondosas. Paineiras e bancos toscos; saudade da infância e das ilusões perdidas mergulhadas no tempo.

Infância despreocupada com o futuro, amores de adolescentes, nas noites quentes e enluaradas daquele sertão.

Quantos poemas inspirados na loucura dos momentos que custavam a passar.

Velhos, jovens e crianças, conhecidos como se fizessem parte de uma só família.

Gente pioneira, desbravadores de sertões; plantadores de café, arroz, algodão, milho, feijão e criadores de gado.

Gente desiludida com a Revolução Paulista, temendo a terrível Captura, com a geada e a queimada indiscriminada do café para assegurar melhores preços em pleno Governo de Getúlio Vargas.

Homens e mulheres de mãos calejadas, frontes enrugadas pela ação do sol abrasador, faces marcadas pelo  tempo e pelo sofrimento.

O nascimento era um ato não desejado e a morte um lamento triste revivido no dia de finados.

Gente que veio de longe com o coração transbordando de esperança e fazia festejos com muita alegria, fogos de artifícios, quermesses e bailes em chão batido de terra, no barracão sustentado por bambus e coberto com encerados usados na lavoura.

Leilão de frangos, leitões e cabritos assados, muita bebida e agitação: Simples festa provinciana.

Assim o tempo passava. Mortes prematuras, velhos agonizantes.

Sepulturas modestas no cemitério cujo terreno fora doado pelo meu pai, numa esquina da Fazenda Santa Rosa.

O Joaquim farmacêutico era o clínico e o parteiro da população; figura gorda, bonachona, que nadava em pé nas correntezas do Rio Tibiriçá.

Luz precária gerada com motor diesel.

Posto telefônico local com gentil telefonista que demorava uma eternidade para completar uma ligação que não se ouvia.

Velhos amigos, velhas lembranças e grande vontade de chorar sobre as ruínas dessa vila que nos viu nascer, crescer e ficar homem.

Velha praça despedaçada, cercada de poucas casas, semidestruídas pela ação do tempo e pela pobreza do povo.

Macucos da minha infância, como posso esquecer-te? Vejo que fiquei velho como tu, vila dos meus amores...

E agora, cheio de espanto com a tua destruição, como posso deixar de chorar vendo-te assim, espelho da minha vida?

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro enviado por Dinair Leite.

domingo, 8 de maio de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 3

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 59, 60 e 61

A MODA AUTORITÁRIA


Rosemilde não está preocupada com o futuro do país. Nem com o vestibular que vem aí, e no qual pretende defender uma vaga na Faculdade de Comunicação. O que lhe põe vinco na testa é o sempre anunciado reaparecimento das saias curtas.

— Curtas até onde? Quantos centímetros? Os costureiros internacionais não dizem, e isto é muito importante. Eu tenho pernas longas, será que vão encompridá-las ainda mais?

Rosemilde pressente a ameaça dos estilistas à estética do seu corpo:

— Eles fazem de nós o que querem, nos despem, nos escondem, nos modificam, nos fantasiam, nos usam. Eu acho que nós, mulheres, é que devemos administrar nossos corpos. Mas são os homens que ditam as leis da moda. Aliás, nem são leis, são decretos-leis ou atos institucionais mal redigidos. Se ainda não conseguimos libertar-nos da tirania dos costureiros, como é que iremos reivindicar os nossos direitos maiores?

(Mas se Saint Laurent e outros ditadores estabelecerem um teto razoável de centímetros, Rosemilde é capaz de ficar quieta e obediente.)
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AQUELE BÊBADO

— Juro nunca mais beber — e fez o sinal da cruz com os indicadores.

Acrescentou:

— Álcool.

O mais, ele achou que podia beber. Bebia paisagens, músicas de Tom Jobim, versos de Mário Quintana. Tomou um pileque de Segall. Nos fins de semana, embebedava-se de Índia reclinada, de Celso Antônio.

— Curou-se cem por cento do vício — comentavam os amigos.

Só ele sabia que andava mais bêbado que um gambá. Morreu de etilismo abstrato, no meio de uma carraspana de pôr de sol no Leblon, e seu féretro ostentava inúmeras coroas de ex-alcoólatras anônimos.
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AQUELE CLUBE

O Clube dos Desconfiados teve existência breve. Sua utilidade era indiscutível. Por isso congregou inúmeros desconfiados, que em sociedade se sentiriam mais garantidos contra possíveis más intenções e surpresas desagradáveis. Uma vez reunidos e organizados, com estatutos e diretoria, passaram a desconfiar uns dos outros e de si mesmos. Marcada assembleia geral extraordinária para exame da situação, ninguém compareceu. Ficaram todos nas esquinas próximas, espiando quem entrava na sede. O porteiro, desconfiadíssimo, sumiu.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Otto Lara Rezende (Palavras inventadas)


Se fosse no tempo do prof. Castro Lopes e se dependesse de sua vontade, lobismo e lobista jamais teriam licença de entrar na nossa língua. E muito menos no dicionário. Castro Lopes combatia sem trégua os partidários dos barbarismos. Em particular os galiciparlas recorriam ao francês, língua da moda. Caricaturado na peça O carioca, em 1886, o professor morreu em 1901.

História antiga, do tempo em que Adão jogava pião. Mas Castro Lopes testemunhou a chegada do automóvel ao Brasil. Com a novidade, veio a palavra chauffeur. O professor trepou nas tamancas e parou o trânsito, o que na época era fácil. Abaixo o galicismo! Patriota que nem um Policarpo Quaresma avant la lettre, atirou-se à luta.

Hoje, chauffeur virou chofer. Todo mundo já esqueceu que vem de chauffer, esquentar. E também se diz motorista, brasileirismo que se deve a Medeiros e Albuquerque. Mas o prof. Castro Lopes deu tratos à bola e criou a palavra cinesíforo, a partir do grego. Não pegou, mas ficou no ar, envolto na aura de pilhéria que até hoje cerca o nome do seu criador. Melhor sorte teve com outros neologismos também saídos da caturrice de seu bestunto. Menu por exemplo, virou cardápio.

Em Portugal e em parte aqui também, se diz lista. Mas cardápio fez carreira. Já convescote, para substituir pic-nic, depois aportuguesado em piquenique, é um preciosismo que traz uma nota galhofeira. Cyro dos Anjos o emprega no Abdias com intenção humorística. Mas o fato é que o prof. Castro Lopes entrou no dicionário e no dia a dia da conversa. É o obscuro herói do vitorioso cardápio. Hoje, se metesse a combater os angliciparlas, acabaria louco.

Outro inventor de palavras foi o prof. Ramiz Galvão. Quando foi construído o edifício do Cais da Lapa, o governo entendeu que devia lhe dar um nome nobre. Sede de instituições culturais, até da Academia, Cais da Lapa soava mal. O governo apelou para o professor. Ele veio com uma lista de palavras rebarbativas. Vejam só: polilógio, logotério, sinergatério, polimátio, panetário, logossinédrio e quejandos. Todos com adequado sentido etimológico a partir do grego. Afinal, o nome que pegou foi Silogeu. Uma gracinha, não? Ali onde é hoje o Instituto Histórico, o prédio foi há alguns anos demolido. Mas a palavra sobrevive.

Fonte:
Folha de São Paulo, 5 abril 1992.

sábado, 7 de maio de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 18

 

Leandro Bertoldo Silva (Crônica -Testamento)

Existem algumas pessoas que têm verdadeira aversão quando o assunto é morte ou velório. Para muitas há qualquer coisa de mórbido ou mesmo um extremo mau gosto, embora não exista quem não tenha uma história engraçada para contar desses momentos sorumbáticos, o que causa uma das maiores controvérsias da vida ou falta dela. Não raras vezes aparece um bêbado vindo não se sabe de onde sem ninguém igualmente saber quem é — talvez amigo do finado que não pode mais prestar explicações — frente a palavras e casos desconexos proferidos aleatoriamente a causar risadas em uns e pulgas atrás da orelha de outros.

Há também os casos que viram lendas. Soube uma vez pela boca de todos os moradores de uma cidadezinha do interior de Minas que por anos não se falava em outra coisa a não ser da história de D. Etelvina, senhora de seus oitenta e poucos anos, morta, coitada, dentro do caixão e sendo velada em casa com os braços amarrados forçando-os a permanecerem na clássica posição cruzada no peito devido ter sido encontrada com eles para cima. O porquê de ter sido assim havia muitas versões e não menos controvérsias, mas foi fato necessário atar as duas mãos com barbante. Madrugada adentro entre um prato de sopa aqui outro ali, uma conversa lá outra cá, eis que D. Etelvina foi inchando devagarinho. Parece até ter escolhido o momento certo, pois quando as pessoas se reuniram para a oração final, já de manhãzinha, o barbante não resistiu à pressão dos braços de velha senhora e veio a arrebentar. Os braços, antes amarrados, como uma mola voltaram à posição vertical de uma só vez e fez espalhar flores para tudo que era lado junto com gente, cachorro, homens, mulheres, novos, idosos, até o padre e o sacristão aos gritos de misericórdia, latidos e palavrões, ao disputarem, todos, a pequena janela da sala, pois na porta já não passava ninguém. Nessas horas até os mais corajosos se revelam e não há quem mantenha posturas.

Há ainda os fatos poéticos, como aconteceu com um tio meu ao se despedir em um dos almoços de família, como eram costume todos os domingos. Depois de cantar e tocar suas modas de viola como ninguém e finda a comilança com uma generosa quantidade de gordura de porco que ele sempre colocava em seu prato e a tradicional pinguinha, ele se sentou em sua poltrona demonstrando total tranquilidade, enrolou um cigarrinho de palha, pitou calmamente e aí recostou confortavelmente, colocou o seu inseparável chapéu italiano no rosto e disse a todos: “É, está na hora de subir o morro”. O que todos pensavam ser uma sesta era o seu desenlace, assim mesmo com discrição e sem sofrimento. Morreu como viveu: feliz e rodeado de pessoas, cantando, comendo, fumando e tomando cachaça. Foi-se o “Zé do Mato”, como era conhecido, para mim o poeta da alegria e uma grande inspiração.

Quero aproveitar o ensejo da leveza e usar a mesma pergunta de um narrador de futebol ao se referir aos títulos do meu time do coração, porém direcionando-me a esses momentos derradeiros difíceis para muitos: “por que é que tem que ser tão sofrido assim?” Pois é! Não tem. Pelo menos para mim. E já que ainda estou aqui para falar sobre isso, não deixarei que me roubem a mínima oportunidade de opinar sobre um evento cuja atração principal será eu. Nada mais justo. Até mesmo porque devo elucidar aos mais supersticiosos que é fato consumado passarmos todos por esse momento e, se assim é, a única pessoa a dar informações precisas de como pensa ser este instante sou eu mais uma vez. Portanto, desejo jogar luz a essa situação e criar um evento poético, por que não? Duvida?  Vai vendo.

A propósito, o leitor atento deve ter percebido o título dessa crônica e visto lá a palavra “testamento”. Segundo o dicionário etimológico da língua portuguesa, testamento é o ato pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio para depois de sua morte. Pois bem, segundo a iminência a observância aqui não é a lei, mas a poesia. E a disposição trata-se da declaração das minhas últimas vontades. Sendo assim, atesto:

Eu, escritor dessa crônica, brasileiro, casado, inscrito em todas as leis do desejo de romantizar a vida e a morte que me cabem, estando em perfeito juízo e em pleno gozo de minhas faculdades intelectuais, sem nenhuma interdição, na presença de (03) três testemunhas a seguir qualificadas: a literatura, o amor e a gratidão, residentes e domiciliados nas Ruas dos que Escrevem, dos que nos Move e dos que me Permitiram Estar Neste Mundo, livre de qualquer instrumento ou coação, resolvo publicar a presente crônica-testamento na qual exaro minhas últimas vontades, pela forma e maneira seguinte: PRIMEIRO: Não quero choro, se possível, prefiro os sorrisos. Afinal, passei por essa vida e venci, embora esteja a passar e a vencer neste exato momento da escrita. SEGUNDO: Não quero flores. Por que matar e enterrar as pobrezinhas? Acredito que um ser, no caso eu nessa condição no momento, seja o bastante. Além do mais, perfume de flores com vela é muito característico de defunto, Deus me livre! Estar morto já é suficiente. No lugar delas prefiro bolinhas de papel. Estar coberto por elas me é muito mais agradável e mais condizente com a minha profissão. TERCEIRO: Quero papéis avulsos na entrada do recinto e também um pote de lápis para as pessoas escreverem, se desejarem, uma mensagem, um poema, a letra de uma música ou outra coisa sugerida pelo coração, fazer uma bolinha com o papel e colocá-la junto às outras. Maledicências não serão fiscalizadas, mas eu saberei e prometo transmutá-las do lado de lá. QUARTO: Quero um evento agradável. Para isso, peço que a partir de então a palavra “velório” seja modificada por “sarau” para que todos possam se divertir. A palavra “capela” se houver não precisa ser substituída na grafia, mas ressignificada, isto é, apenas caso alguém queira cantar sem o acompanhamento de instrumento, o que será maravilhoso. Caso tenha algum, que sejam violão e flauta transversal, meus preferidos. Violino é lindo, mas aumenta a tristeza e não há esse sentimento em saraus. QUINTO: Ainda sobre a música, fica valendo a popular brasileira. Chorinho não combina com o meu momento, muito menos sofrência. Essa nem morto quero ouvir. SEXTO: Como grand finale, em seu sentido literal, desejo ser conduzido ao último berço ao som de “Canon em Ré maior”, de Pachelbel. E no momento exato do plantio, para dar um ar mais poético e galante, que alguém leia em alto e bom som a poesia “Hora Eterna”, de Henriqueta Lisboa. Não lhes furtarei o prazer da procura, mas transcrevo aqui alguns versos:

[…] Vida que esplendes por que passas!
Quero viver, sentir num turbilhão
dentro do pensamento a certeza deste eu.
Sofra, embora – que importa? – O corpo
fatigado.
Quero vida, mais vida, alma, renovação,
força para reter tudo o que o céu me deu,
capacidade para amar o que foi  criado!
Vida que esplendes porque passas,
e que és amada porque findas! […]
Bem a propósito, não é mesmo?

E dito isso dou por encerrada a presente crônica-testamento na existência das (03) três testemunhas acima descritas, para as quais dedico a minha vida e que a confirmará em juízo no cartório do céu, de conformidade com a lei da arte e da natureza.

EM TEMPO: Não quero enfeites, nem placas, nem mármores frios; a terra me basta. E nela, bem perto de mim, que se plante um pé de ameixa. Dele nasci e nele eternizo. Não quero virar estrela, prefiro ser árvore. Bem viva.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 21


GRATIDÃO


A gratidão é um dos mais nobres sentimentos. Pode ser externada, quando se refere a um outro, ou guardado na intimidade, quando se refere, por exemplo, à vida, O acaso nos colocou num determinado contexto histórico e social. Este contexto pode não ser o melhor, mas devemos ser gratos por nos encontrarmos nele, do contrário não seríamos o que somos. Sejamos, pois, gratos pela responsabilidade de exercermos a cidadania.

Ser grato eu sei que redime.
É um ato de louvação...
Não há gesto mais sublime
que um gesto de gratidão.
Ademar Macedo - RN
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Gratidão, se não faltasse
nunca, no peito de alguém,
talvez o homem encontrasse
a paz que a mundo não tem.
Prof. Garcia - RN
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Gratidão... pobre coitada,
desde muitos centenários
vem sendo decapitada
pelos sujos mercenários...
Irene Lopes Guimarães - RJ
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HONESTIDADE e DESONESTIDADE

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto (Rui Barbosa).

Honestidade é a qualidade de quem prima pela honradez, decoro, probidade, etc. É obediência às normas morais e éticas existentes em uma sociedade, comunidade ou cultura. Para a maioria, a pessoa honesta é a que não mente, não furta, não rouba, não é corrupta. A honestidade traz a paz de espírito, condição para a felicidade. Mas muitos preferem trocar a paz de espírito pela riqueza a qualquer custo. Para estes, honestidade é caretice, e outros adjetivos... Daí que o homem tenha vergonha de ser honesto. A desonestidade é um empecilho ao exercício da cidadania,

Meu amigo, não se exponha,
deixando-se corromper:
lute, não tenha vergonha
de um homem honesto ser.
Gonzaga da Silva - RN
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Para viver siga o rastro
dos que acreditam e entendem
que a honestidade é o lastro
dos homens que não se vendem.
Messias da Rocha - MG
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Se todos fossem honestos
ninguém veria na praça
mendigos comendo restos
do pão que a miséria amassa.
Clarindo Batista - RN
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HUMANISMO

Humanismo, no sentido amplo, significa valorizar o ser humano e a condição humana acima de tudo. Está relacionado com generosidade, compaixão e preocupação em valorizar os atributos e realizações humanas, O Humanismo foi um movimento intelectual iniciado na Itália no século XIV com o Renascimento e difundido pela Europa, rompendo com a forte influência da Igreja e do pensamento religioso da Idade Média.

O Teocentrismo - Deus como centro de tudo - cede lugar ao antropocentrismo, passando o homem a ser o centro de interesse. O humanismo procura o melhor nos seres humanos e para os seres humanos sem se servir da religião. Entretanto, atualmente, essa dicotomia pode e deve ser minimizada. A religião também se modificou, acompanhando a evolução do mundo. A religião é parte da nossa cultura e não podemos fugir à sua influência.

Não deixemos que a maldade,
o preconceito e a ambição
destruam na humanidade
o amor de irmão para irmão!
Giva da Rocha - SP
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O homem quando em delírio,
na loucura do egoísmo,
não sente a essência do lírio
que rescende do Humanismo.
Cosme Lemos - RN
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O homem, com seus delírios
de grandeza e onipotência,
não vê nos campos os lírios,
nem sente da vida a essência.
Gonzaga da Silva - RN
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Para enxergar a cobiça
e amparar prejudicados,
não deveria a Justiça
manter seus olhos vendados!
Lucília Decarli - PR
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Mas, afinal, devemos considerar que a Justiça, enquanto instituição, na grande maioria das vezes, cumpre o seu papel, podemos até dizer transcendental.

A justiça imaculada,
tendo no céu as raízes,
não pode ser acusada
dos erros dos maus juízes.
João Rangel Coelho - RJ
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LAVRADOR

Um dos trabalhadores mais sofridos e injustiçados do mundo é o lavrador, Em qualquer tempo, passado, presente ou futuro, o lavrador sempre foi, é e será uma vítima na dinâmica das sociedades. É estarrecedor constatar que aquele que é responsável por alimentar o mundo seja, hoje e sempre, o mais incompreendido, o mais injustiçado, o mais esquecido de todos. Só mesmo o poeta, com a sua sensibilidade, é capaz de reconhecer a importância desse trabalhador.

Bendigo a mão calejada
que, num trabalho fecundo,
presa ao cabo de uma enxada,
dá cabo à fome do mundo!
Edmar Japiassú Maia - RJ
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É do romance envolvente
entre a terra e o lavrador
que a esperança da semente
se torna seara em flor.
Relva do Egypto - MG
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Lavrador, por tuas mãos,
que Deus dotou de magia,
faz-se o milagre dos grãos,
dando o pão de cada dia!
Maria Lúcia Daloce Castanho - PR
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Mas o lavrador, em geral, nunca é visto como um cidadão digno da maior consideração. É na verdade o grande herói do mundo, mas não recebe medalhas, honrarias e o respeito que merece. É simplesmente o grande injustiçado.

Cedo o lavrador levanta
a colher ingratidões,
e em cada cova que planta
vai enterrando ilusões.
Gonzaga da Silva - RN
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De alma silente e sofrida,
sem o mundo dar-lhe ouvidos.
o lavrador lavra a vida
de sonhos nunca colhidos.
Gonzaga da Silva - RN
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Vê-se na face enrugada
do lavrador do sertão
uma existência cansada
de tanta desilusão...
João Sobreira - CE
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Na roça, ganhando a vida,
o sertanejo disposto,
mostra a existência sofrida
nas rugas do próprio rosto.
João Sobreira - CE
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Quanto ao sofrimento do lavrador do sertão, eis um testemunho eloquente:

No sertão, sol causticante,
meu pai de enxada nas mãos,
foi morrendo a cada instante
por mim e por meus irmãos!...
Francisco Macedo - RN
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Será que o penar do lavrador pode ser comparado ao do poeta? Parece que até certo ponto, sim. Ambos não têm o seu trabalho valorizado, em que pese os seus esforços. O trovador põe esse fato em relevo:

Lavrador, meu camarada,
não julgues que a pena é leve:
- pesa tanto quanto a enxada
a pena com que se escreve!...
José Rodrigues - RJ
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A vida não vale nada
se a gente nada produz.
Tanto a pena quanto a enxada
abrem veredas de luz!
Thalma Tavares - SP
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Mas infelizmente,
Foi sempre pobre o talento,
na vida paradoxal;
rico é o crânio de cimento
que só pensa em pedra e cal!
Archimino Lapagesse - SC

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Nilto Maciel (As Ceias)

Serviam-se, escrupulosos.

— E as crianças? — quis saber Mário, garfo à mão.

A mastigar arroz e carne, Políbio olhou para os olhos do amigo, e, a seguir, para o quadro pendurado à parede, próximo à cabeça de Mário.

Os meninos viam televisão num dos quartos. Almoçaram cedo. Viviam com fome. Comiam feito lagartas. Todos riram, menos Sônia. Exagero do marido. Os coitados nem conseguiam engordar, tanto estudavam.

Políbio fixou novamente os olhos no quadro. Quem era o apóstolo que dormitava diante de Cristo? Teria se empanturrado de comida? Comer em demasia dava sono, dizia sua mãe. Por isso salvara-se da morte? Se não tivesse almoçado antes de todos, também teria morrido. O acaso livrou-o do veneno. Atribuíram aquilo a milagre. Deus, os santos, os anjos o protegeram.

— Vejo que vocês gostam muito de ceias. — deduziu Mário.

Sônia riu e disse não ser boa cozinheira. No entanto, sentia prazer em convidar amigos para almoçarem em sua casa.

Mário olhou para o quadro à sua direita. Não lembrava o nome, porém o conhecia. Talvez do museu de arte de ...

— A Ceia de Emaús. — gritou Sônia.

Políbio assustou-se e fez voltarem a mão e o garfo ao prato. Os outros, no entanto, não perceberam tais movimentos. Mário e Mônica mordiam pedaços de carne, enquanto Sônia falava de Caravaggio e sua pintura. Jesus muito jovem, ainda sem barba.

— Uma obra-prima.

Tantos anos passados, e tudo ainda tão nítido. Desespero, dores, gritos. A chegada dos vizinhos. Dona Ofélia a abraçá-lo, chorando. Sentia tontura, febre, dor. E ninguém imaginava a causa de tudo aquilo. Só após a consumação da tragédia, constatou-se ter sido o alimento envenenado.

Sem mais elogios para o pintor, Sônia se voltou para Políbio. Não tinha apetite? Não, aquele não era seu dia de gula. Os olhos de Sônia luziam. Seus cabelos pareciam mais negros. O rosto envelhecido do homem. Olhos pensativos. A taça com a bebida vermelha à altura do queixo. A barba rala.

— Gosto muito dessa pintura.

Sônia olhou para os olhos de Políbio e, logo, para o quadro de Louis Le Nain. Não ficava bem naquela parede. Talvez devesse ficar na sala de estar. Discutiam sempre por isso. Políbio riu. Birra dele e dela. Se contratassem os serviços de um especialista em ...

— Um decorador. — lembrou Mário.

Aqueles pobres camponeses, suas vestes, suas feições, tudo na pintura só servia para repelir apetite.

Mário e Mônica olhavam, calados, para Sônia. Ele até balançava a cabeça, em sinal de aprovação das palavras da anfitriã.

— No entanto, a traição de Judas não deveria dar apetite aos cristãos. — brincou Políbio.

Com força, Mário cortou a carne. A faca parecia rasgar o prato. Todos descalços, como no quadro dos camponeses. E neste não havia ódio, mas tristeza. Políbio depôs o garfo no prato. Mário quis virar a cabeça para trás. Sônia lembrou a salada de legumes. Mônica perguntou se a cozinheira lavava as verduras em vinagre. A cozinheira chamava-se Sônia.

Todos riram.

As crianças ainda no quarto. Presas à televisão. Pelo menos tinham pai e mãe. Um lar. Ele, não. Órfão aos cinco anos. Criado por tios e avós. Reza e missa todo dia. Ressurreição de Cristo. Balela. Órfão para sempre.

Mário falava de trabalho. Falta de tempo para se divertir, visitar amigos. Mônica concordava com ele. Vida monótona.

— Assim mesmo, ainda escrevo. — concluiu Mário.

Mônica gargalhou. Escrever não era trabalhar. E enfiou o garfo numa batatinha. Políbio ergueu a cabeça. Havia mais carne no prato de Mário.

— E Políbio, escreve ou não escreve?

Sônia olhava para o convidado. Mais acima da cabeça dele, os pés descalços dos apóstolos anunciavam a tragédia bíblica. Políbio nunca falava do passado. Sempre voltava ao presente, para daí chegar a desígnios.

Mônica deu por finda a sua refeição. Cruzou os talheres e virou-se para o marido. O rosto feminil de Cristo, as tranças caídas nos ombros lembravam rapazes modernos. A ave na bandeja parecia um frango assado. Nada havia mudado na Terra.

— Ora, mudou quase tudo. — contrastou Mário.

Insaciada, Sônia cravou o garfo num pedaço de linguiça. Caravaggio matara um homem durante uma briga. Temperamento explosivo.

— Como eu queria ser assim — lamentou-se Mônica.

Não devia pensar assim. A violência... Mário sorriu. Talvez Mônica quisesse ser como ela e não como o pintor.

— Exatamente isso. — desculpou-se a visitante.

Saciado, Políbio juntava as sobras do almoço no canto do prato. A assassina foi condenada a 30 anos de cadeia. Nunca mais a viu, desde o dia do crime. Se ainda vivia, disso não sabia. Nem queria saber.

Sônia deu um gritinho. Quase se esquecera do pudim. E levantou-se. Mário se disse farto. Mônica repetiu a frase. Quantos anos tinham os meninos?

— Vocês se casaram bem jovens.

Políbio fez as contas: 36 anos de vida, sendo 5 de inocência. O mais velho já andava na casa dos 10. E parecia ainda tão criança.

Chegado o pudim, todos os lábios sorriram. Os de Mário falaram.

— Escreva sua história, Políbio.

Sônia quis mudar de assunto. Só Deus salvava os homens. Os psicólogos já haviam insistido nessa história de escrever. Políbio não sabia escrever.

— Talvez não queira. — opinou o visitante.

Os dois casais tomaram água. Mário aceitou café. O vício do cigarro. Tossiu e fez menção de levantar-se. Antes dele, o anfitrião se pôs de pé. Auréolas douradas cingiam as cabeças dos apóstolos.

Encaminharam-se para os sofás. Sônia ofereceu um cinzeiro a Mário e perguntou se ele conhecia outras obras de Martin Schongauer. Sonolenta, Mônica fechou os olhos. E os três meninos, assustados, chegaram à sala: Brejnev morreu.

— Vou escrever minha tragédia. — anunciou Políbio.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis)


É o terceiro romance do escritor português Júlio Dinis, publicado em 1868. A ação passa-se no século XIX em Grijó - Vila Nova de Gaia onde residiu Julio Dinis (Quinta dos Canaviais e Quinta da Alvapenha). Retrata a Morgadinha, chamada Madalena Constança, uma rapariga de enorme beleza e generosidade.

Enredo

A história inicia-se com a personagem principal, Henrique de Souselas, órfão e rico residente em Lisboa, que se encontrava doente devido ao diletantismo e à sensação de inutilidade da vida urbana.

Por esse motivo resolve instalar-se em casa da sua tia Doroteia, numa aldeia no norte de Portugal, a conselho de seu médico. Aí se restabelece e conhece Madalena, a elegante, inteligente e enérgica morgadinha, e apaixona-se por ela. No entanto, este amor não é correspondido e torna-se incômodo tanto para Madalena, que não gosta de Henrique, como para Augusto, que vê em Henrique um rival.

Augusto é um professor primário pobre e honesto, que é amigo de Vicente, o herbanário que veria a sua casa destruída pela construção de uma estrada. Augusto nutre, desde criança, um amor secreto por Madalena, a Morgadinha dos Canaviais, assim conhecida, em virtude de ter herdado da sua madrinha a Quinta dos Canaviais. Certo dia, Henrique, na taberna, ridiculariza o morgado das Perdizes sendo agredido por ele e pelos sujeitos que a frequentavam. Combalido da agressão, Henrique é levado para a casa da morgadinha. Aí é tratado com todos os cuidados por Cristina, uma rapariga pura e inocente, prima de Madalena, por quem acaba por se apaixonar. Henrique pede a sua mão e casa com Cristina. Por outro lado o amor secreto de Madalena e Augusto é revelado e acabam por casar.

Análise

Na figura do protagonista, Henrique de Souselas, a obra ilustra uma das teses favoritas do autor: o efeito regenerador da vida rústica sobre um sujeito deprimido pela vida urbana. Madalena, a Morgadinha, e a sua prima Cristina representam mulheres fortes, femininas e virtuosas, dispostas a contornar as barreiras sociais por amor, como acontece com Madalena com Augusto. Está também presente, uma forte componente de crítica social, que visa o fanatismo religioso e o clericalismo hipócrita, nomeadamente à crítica da tão controversa lei da altura que proibia o enterro nas Igrejas.

Existe um filme de 1949, com o mesmo título realizado.

Fonte:
Wikipedia

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 4

 

Humberto de Campos (A Cidade Indiscreta)

O Rio de janeiro é, positivamente, a cidade mais indiscreta do mundo. A vigilância em torno de sua Majestade o Rei Alberto, cujos passos e menores gestos são acompanhados de perto pelos jornais e pelo povo, demonstrariam essa verdade, se nós próprios, míseros mortais, não tivéssemos chegado pessoalmente a essa ingrata convicção. Não há, efetivamente, no Rio, um ponto, um abrigo, um refúgio em que se possa evitar a curiosidade dos olhares e das perguntas alheias. E quando esse lugar aparece, é tal a sofreguidão com que o procuram as pessoas discretas, que ele se torna, de pronto, um dos mais movimentados da cidade.

Ainda, agora, a propósito da visita de SS. MM. os Reis da Bélgica à Escola Nacional de Belas-Artes, veio-me à lembrança um episódio ali ocorrido, e em que tomei parte, durante a última exposição de artistas nacionais.

Solicitado por Mme. Cardoso Khan a ministrar-lhe, sem a assistência do marido, uns conselhos paternais sobre um caso do seu interesse, alvitrei, por telefone, a possibilidade de um encontro em lugar reservado, onde pudéssemos conversar em respeitosa intimidade. Aceita a minha proposta, a virtuosa senhora indagou:

- Onde poderá ser?

- Na "Mére Louise", no Leblon! - lembrei.

- Não, lá, não; tem muita gente. Podiam ver-nos, maliciar, e ir dizer ao Abelardo.

- Então, na casa de D. Matilde, no Flamengo! - tornei.

- Também, não. Ela é muito relacionada. Vai muita gente lá...

Apresentados e repelidos outros alvitres, veio-me à ideia, de súbito, a revelação de um amigo, e propus:

- A senhora já foi à Exposição da Escola Nacional de Belas Artes?

- Não.

- Pois, então, vá. Chegando lá, espere por mim, que subiremos, os dois, para o terraço que há em cima do edifício, o qual está sempre deserto. Abrigados por uns respiradouros que já existem, poderemos conversar sozinhos, inteiramente à vontade.

- Não sobe lá ninguém?

- Ninguém, filha! Eu estive lá o ano passado uma tarde inteira, e não apareceu ninguém!

À hora combinada, entrava na Escola, risonha e medrosa, a elegante criatura. Fiz-lhe um sinal e ganhamos a escada. De repente, recuei.

Em cima, no terraço, havia mais gente, aos casais, do que em baixo, na Exposição!

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Edwaldo Camargo Rodrigues (Trovas Avulsas)


Amor para a vida inteira
alterna amuo e carinho.
É como qualquer roseira
que só dá flor junto a espinho.
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A pedra estava limosa:
escorregou, não caiu,
porque amparei a orgulhosa
que nem sequer me sorriu.
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A quem diz que a vida é um sonho
cheio de amor e alegrias,
que vá lá em casa, eu proponho,
conviver com minhas tias.
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Assim como o mar se agita
ao chegar a tempestade,
minh’alma sofre e palpita
quando sopra esta saudade.
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Bastou-lhe sorrir apenas,
e ela pôs-me enfeitiçado.
Noites, outrora serenas,
desde então passo acordado.
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Como é duro escrever trova,
os rigores são perversos!
Só aparece ideia nova
que não cabe em quatro versos.
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De tanto ficar parada
espionando o tal vizinho,
a saíra, equivocada,
na cabeça fez-lhe ninho.
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Disse, toda enfurecida,
ver-me a cara não querer.
Basta a lâmpada, querida,
do abajur não acender.
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Ela tem-me procurado
com fala doce e macia.
Mas sou qual gato escaldado
que tem pavor de água fria.
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Fiz o que o doutor mandou,
mas inda me dói o peito.
É porque ela não voltou:
são saudades, não tem jeito.
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Foi ver no teto a barata,
encolheu-se na poltrona.
Ao marido gritou: “Mata!”
Só com ele é valentona.
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Garantiu que preferia,
a tanta briga e aflição,
viver só. Passou-se um dia,
retornou, pediu perdão.
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Gosto muito de um soneto,
mesmo lhe pondo estrambote,
mas com trovas não me meto:
são moinhos e eu, Quixote.
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Lá no alto, nuvens escuras,
propelidas pelos ventos,
desfilam, feito amarguras,    
cá embaixo, em meus sentimentos.
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O amor por mim que ela sente
ninguém compreende ou explica.
Ela é santa, eu, impudente,
sou pobretão e ela é rica.
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Não durmo mais desde quando
ela partiu. Pouco importa,
sonho assim mesmo: ela entrando
pelo umbral da minha porta.
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No pomar, a tarde inteira
ficamos, mas foi-se embora,
deixando, toda faceira,
meus lábios roxos de amora.
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Paredes de pau a pique,
sapé trançado no teto,
mesmo assim, peço que fique,
o que importa é nosso afeto.
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Persuasiva, fervorosa
jura de amor e carinho
pode ser bem enganosa
feito a flor que oculta o espinho.
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Pise aqui, bem de mansinho,
colada assim junto a mim,
que a pomba arisca fez ninho
entre as rosas do jardim.
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Pode mesmo haver consolo
quando se perde um amor,
eu sei, não sou nenhum tolo,
mas teimo em ser sofredor.
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Porque aceito conformado
que dure pouco a alegria,
quero viver a seu lado
nem que for só por um dia.
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Prolongados, no verão,
ou mesmo curtos, no inverno:
pouco importa a duração
dos dias, se o amor é eterno.
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Quando eu era bem novinho,
logo aprendi a assobiar
imitando passarinho.
Quisera mesmo é voar!
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Quem sonha a vida passar
sem apreensão ou tormento,
é o mesmo que acreditar
que há tempestade sem vento.
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Quer espojar-se na vala,
em erro após erro incide-se,
não vou do inferno tirá-la
como Orfeu fez por Eurídice.
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Salgou demais a comida,
exagerou na pitada.
Ou é muito distraída,
ou está mesmo apaixonada.
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Sua face, clara, ora brilha,
ora retrai-se e recua,
oculta atrás da mantilha:
são fases dela e da lua.
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Tem barriga o sapo-boi,
grande barriga tem Buda.
A dela plana já foi,
agora é um deus nos acuda!
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Trai-me até com meu amigo,
um fuxiqueiro me diz.
Pode até ser, eu nem ligo:
nem todo corno é infeliz.
 
Fonte:
Trovas enviadas por João Líbero