sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVIII


APÓS A TEMPESTADE


O vento chega e sopra muito forte
anunciando, em trovões, a tempestade,
as folhas arrancadas sem piedade
revoam à mercê da injusta sorte.

Raios cortam o céu de Sul a Norte,
prenúncio de pavor, calamidade,
estrondos são ouvidos na cidade
gerando medo, caos e a própria morte.

Tristonha, a tarde se vestiu de escuro,
e a chuva desabou estrepitosa
como se castigasse o povo impuro.

A noite chega e adentra pela fresta,
céu estrelado e a lua tão formosa
e a Natureza, eu vi, estava em festa!
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CONVERSA NO TREM

- “Esta vida não faz nenhum sentido,”
dizia o passageiro do meu trem,
- “o mundo inteiro, veja, está perdido,
- esperança não há para ninguém.”

Assim falava o homem ressentido
das promessas que, feitas por alguém,
sequer foram cumpridas e incontido
ele se lamentava do desdém.

- “Mas a vida é assim mesmo,” outro dizia,
- “a tristeza anda ao lado da alegria
e a calma vem após a tempestade.”

Por que, então, meu coração sedento
tem que provar a dor e o sofrimento
para alcançar a tal felicidade?
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O MAR

A noite chega e a solidão do mar
vem me trazer, de leve, um vento fino,
a saudade povoa o meu pensar,
enquanto as vagas seguem seu destino.

E o mar, em movimento, quer mostrar
o poder que fascina ao peregrino,
provocador, feliz, quer carregar
dissabores e mágoas... imagino.

E traz em oferenda a tempestade,
fica agitado e cheio de vontade,
erguendo-se em espumas seu furor.

Depois, torna-se calmo e exuberante,
belo e tranquilo, mostra-se pujante,
esquecendo, talvez, da própria dor!
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O PODER DO AMOR

Quanto mais penso no poder que o amor
exerce sobre mim e me fascina,
convenço-me, serás o meu torpor,
não importa o que diz a medicina.

Se estás comigo, sinto o teu calor
e uma paz silenciosa me domina,
o tempo não mais corre com rancor
e o teu olhar, meus olhos, ilumina.

Eu quero me prender neste pecado,
e em teu amor ficar acorrentado
como fiquei nos versos que compus.

E prometo cantar com tal Doçura
uma canção de Paz e de Ventura
que o nosso Amor nos levará à Luz!
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O TEMPO

O tempo não perdoa e passa velozmente
levando de roldão venturas e bonanças,
O sonho, o entusiasmo, a mágoa, o amor ardente
estão presentes, hoje, apenas nas lembranças.

Uma saudade fala ao coração da gente
e promete calar nossas desconfianças
por um momento só, que a vida, certamente,
vai nos cobrar bem caro o fim das esperanças.

E quando a hora chegar, um vulto solitário
há de se aproximar trazendo um vestuário
e sorrindo, dirá; não temas, sejas forte.

E um silêncio trará a sensação terrível:
- a vida chega ao fim sem fazer o impossível,
restando tão somente o fantasma da morte!

Fontes:
- Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.
- Blog do autor. https://filemon-martins.blogspot.com/

Aparecido Raimundo de Souza (Marlucia)


TEM GENTE que Deus coloca no nosso caminho só para nos dar paz. Que nos empurra para o melhor de nós, que nos guia para a estrada do bem. Gente que é sorriso em dia feio, que é suporte quando parece faltar chão.

Tem gente que pensa e repensa jeitos e maneiras de nos fazer bem, que se preocupa e demonstra o melhor de si. Gente que é abraço, mesmo de longe, e a certeza que tudo vai dar certo. Que empresta coração para a gente morar, que planta pensamentos bonitos nos dias da gente…

Meu coração é muito precioso por isso. Não guarda mágoas nele. Dentro apenas pessoas especiais que marcaram a minha vida. E você, Marlucia, marcou a minha vida, não só ela, todos os meus sonhos, de maneira dupla.

Me deu duas filhas maravilhosas. Amanda e Luana são os retratos vivos de um amor que vingou. Que deixou marcas em nós, e que, por essa razão, será eterno, apesar de hoje estarmos cada um seguindo por sendas diferentes.

Você me lembra aquela passagem conhecidíssima de um cidadão que pediu à Deus uma coisa e recebeu outra. Recorda da historinha? Vou resumir, para não me tornar chato.

... Certa vez, um homem pediu ao Altíssimo uma flor e uma borboleta. Mas o Todo Poderoso lhe deu um cacto e uma lagarta. O pobre homem ficou triste, pois não entendeu o motivo do seu pedido ter vindo errado. Daí pensou: - também, com tanta gente para atender… e resolveu não questionar...

Passado algum tempo, conclui a história, o homem foi verificar o pedido que deixou esquecido. Para sua surpresa, do espinhoso e feio cacto, havia nascido a mais bela das flores e a horrível lagarta se transformou em uma belíssima borboleta... ’.


Com você, Marlucia, tem sido assim. Deus sempre age certo. O seu trilhar é o melhor, mesmo que aos nossos olhos pareça estar dando tudo errado. Se você pediu à Deus uma coisa e recebeu outra, confie. Tenha a certeza de que Ele sempre dará o que você precisa, no momento certo, na hora certa, tudo no tempo DELE.

Nem sempre o que você deseja, é o que você precisa. Como Ele nunca erra na entrega de seus pedidos siga em frente sem murmurar ou duvidar. Resumindo, o espinho de hoje, será à flor de amanhã!

Para você, nesse dia especial, o melhor de mim, para você que deu o melhor de si, para mim, tantos anos atrás. E agora, recebe nesse dia, nesse dia que não é só seu, mas de todos nós, notadamente de nossas filhas Amanda e Luana, como presentes do pai maior, dois netos lindos, maravilhosos. João Eduardo e Heitor. Que Deus lhe abençoe e guarde.

Carinhosamente,
Aparecido


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 5: Memórias de seda

 

A. A. de Assis (Mãos dadas)


A natureza é solidária. Sem solidariedade nada existiria. Os animais dependem dos vegetais, os vegetais dependem dos minerais, os minerais dependem dos vegetais, os vegetais dependem dos animais... O fantástico círculo da vida.

Há solidariedade em tudo. Veja o corpo humano: funciona como se fosse uma orquestra. O coração, os pulmões, os rins, os ossos, as veias, as mãos, as pernas. Da cabeça ao dedinho do pé, é um time só, coeso e harmônico. Se um dos componentes entra em pane, todo o organismo, em variados graus, sente a diferença.

Solidariedade, mútua ajuda, cooperação. Numa palavra: amor. Tudo na natureza é uma permanente relação de amor. Deveria ser assim também a convivência humana.

Estamos saindo de uma pandemia que causou prejuízo e dor em todos os lugares do mundo, atingindo a humanidade inteira. Foi um período de universal sofrimento, mas ao mesmo tempo uma oportunidade seriíssima para a gente refletir e tentar mudar o jeito de viver.

Os sobreviventes teremos muito o que agradecer, por todo o sempre, à heroica rede de solidariedade que tornou possível enfrentar o desafio até a chegada das vacinas e a recuperação da esperança. Agradecer aos cientistas, aos médicos, profissionais de enfermagem, voluntários para testes, laboratoristas, infectologistas, farmacêuticos, motoristas, seguranças, equipes de limpeza, auxiliares de serviços gerais, enfim a cada um dos que, com valentia e abnegação, se uniram por nós neste gravíssimo momento da história.

Nunca, antes, foi tão visível a fundamental importância da solidariedade, da capacidade humana de amar o próximo. É hora, portanto, de olhar para o céu e pedir a Deus que nos ajude a crescer como pessoas. Sursum corda. Corações ao alto.

Tudo é solidariedade, em toda a natureza. Só o ser humano permanece conscientemente egoísta. Por ambição, por arrogância, por vaidade, voltam-se irmãos contra irmãos, filhos contra pais, amigos contra amigos, colegas contra colegas. A humanidade é uma família doente. Precisa de tratamento urgente.

Quem pode ajudar nesse tratamento? Pais, professores, dirigentes religiosos, jornalistas. Cada um pode contribuir um pouquinho, pelo menos diminuindo a carga de estímulos à discórdia e colaborando mais assumidamente para a valorização dos bons exemplos de paz, justiça, bondade, mútuo respeito.

Podem dizer que insistir nessa linha é romantismo. Que seja. Bendito romantismo. Já brigamos demais. Agora é hora de serenar os ânimos. Discordar, discutir, debater no acidental, mas somar esforços no essencial.

Temos todos, entre nós, múltiplas diferenças. Isso é natural. Mas precisamos uns dos outros, da mesma forma que o coração precisa dos pulmões e os pulmões precisam do coração. Mãos dadas, intenções honestas, solidariedade. Sursum corda.

Fonte:
Blog do autor. Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11.8.2022

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 12


Alma de sorriso brando,
sua ternura tem alma;
a mãe é santa? até quando,
na aflição seu filho acalma!
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Aqui, quando tu te aqueces,
que a aurora muda de cor...
As nuvens juntam-se em preces,
em preces rubras de amor!
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Cantando vai para a escola,
a criança de pé no chão;
leva a ilusão na sacola
e enche a vida de ilusão!
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Comparo a espuma dançando
nas ondas, sempre a cantar,
a bordadeiras, bordando
as saias brancas do mar!
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Entre os véus da noite escura
e, os lençóis da ingratidão,
dorme a criança de alma pura,
sempre à espera de outra mão!
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Lembrei do altar da capela,
dos ritos de um velho sino,
que unindo o meu peito ao dela
selou o nosso destino!
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Linda trova pequenina,
gigantesca mundo afora...
Tens nesse olhar de menina
centelhas da luz da aurora!
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Logo assim que, o sol se põe,
diz-me o silêncio e acredito,
que sem tinta, alguém compõe
partituras no infinito!
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Meus olhos, cegos sem dor,
teus lábios cegos, sem dono;
somos dois cegos de amor
curtindo o mesmo abandono!
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Minha vida é tão singela,
que a esperança é quem descobre,
que em pobreza de alma bela
há riqueza de alma nobre!
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Na madrugada sem dono,
num silêncio que arrepia,
caem lágrimas sem sono
dos olhos da nostalgia!
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Não lamente os desenganos;
que o tempo com seus desvãos,
vai pondo os calos dos anos
nas rugas de nossas mãos!
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Na voz dos igarapés,
no choro dos manguezais...
Ouve-se a voz das marés
pranteando os seus tristes ais!!!
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No fogão velho apagado,
entre as cinzas do fogão,
vi meus sonhos do passado
soprando a cinza e o carvão!
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No saco de quem mendiga,
sobra o pão que mata a fome;
mas no pão de quem castiga,
falta a massa que se come!
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Num banco velho sem perna,
sobre uma pedra no chão...
Vi nele, a prisão eterna
do mantra da solidão!
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O amor tem tanta ternura,
que às vezes, me causa espanto,
quando uma lágrima pura
vira uma gota de pranto!
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O meu amor mais profundo,
não é por amor qualquer...
Mas pelo amor, que há no mundo,
da esposa, mãe e mulher!
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O rio, a mata, a emoção!
A alvorada e o sol poente,
que preito de gratidão
que Deus nos deu de presente!
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O orvalho que rega a planta,
é o mesmo que me seduz;
minha alma, orvalhada, canta,
e orvalha a vida de luz!
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Prossigo mesmo sozinho,
sem me sentir no abandono;
tendo Deus em meu caminho
não sinto a idade do outono!
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Se a saudade me persegue,
por capricho ou por maldade,
mesmo que tudo me negue,
não sei viver sem saudade!
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Se à tardinha, os versos meus,
revelam triste desgosto,
é a tristeza dando adeus
à solidão do sol posto!
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Se tu crês, abre a janela,
que a luz do sol quer te ver;
é a luz mais forte e mais bela
aos olhos do amanhecer!
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Sou como as flores caídas,
que aos poucos, sendo pisadas,
vâo adubando outras vidas,
à espera de outras floradas!
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Teu peito é um eterno cofre,
ó mãe, com tanta ternura,
que cura a dor de quem sofre
e a dor de quem não tem cura!
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Tomei mil drogas fatais,
fiz sessões de acupuntura...
Saudade - é a dor de meus ais,
que a medicina não cura!
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Tua tristeza parece,
ó, velho mar, dos meus ais,
o choro triste, da prece,
das mães rezando no cais!...
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Varrendo o chão que pisei,
mesmo apesar da distância...
Não tardou, logo encontrei
vestígios de minha infância!
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Vejo em tantas reticências
de um mundo que se desfaz,
que há muitos, temendo ausências,
e há poucos, pedindo paz!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Machado de Assis (O Caso do Romualdo)


Um dia, de manhã, D. Maria Soares, que estava em casa, descansando de um baile para ir a outro, foi procurada por D. Carlota, companheira antiga de colégio, e sócia agora da vida elegante. Considerou isso um benefício do acaso, ou antes um favor do céu, com o fim único de lhe matar as horas aborrecidas. E merecia esse favor, pois de madrugada, ao voltar do baile, não deixou de cumprir as rezas do costume, e, logo à noite, antes de ir para o outro, não deixará de persignar-se.

D. Carlota entrou. Ao pé uma da outra pareciam irmãs; a dona da casa era, talvez, um pouco mais alta, e tinha os olhos de outra cor; eram castanhos, os de D. Carlota pretos. Outra diferença: esta era casada, D. Maria Soares, viúva: — ambas possuíam alguma coisa, e não chegavam a trinta anos; parece que a viúva contava apenas vinte e nove, posto confessasse vinte e sete, e a casada andava nos vinte e oito. Agora, como é que uma viúva de tal idade, bonita e abastada, não contraía segundas núpcias é o que toda a gente ignorou sempre. Não se pode supor que fosse fidelidade ao morto, pois é sabido que ela não o amava muito nem pouco; foi um casamento de arranjo. Talvez não se pode crer que lhe faltassem pretendentes; tinha-os às dúzias.

— Você chegou muito a propósito, disse a viúva a Carlota; vamos falar de ontem... Mas que é isso? que cara é essa?

Na verdade, a cara de Carlota trazia impressa uma tempestade interior; os olhos faiscavam, e as narinas moviam-se deixando passar uma respiração violenta e colérica. A viúva insistiu na pergunta, mas a outra não lhe disse nada; atirou-se a um sofá, e só no fim de uns dez segundos, proferiu algumas palavras que explicaram a agitação. Tratava-se de um arrufo, não briga com o marido, por causa de um homem. Ciúmes? Não, não, nada de ciúmes. Era um homem, com que ela antipatizava profundamente, e que ele queria fazer amigo da casa. Nada menos, nada mais, e antes assim. Mas por que é que ele queria relacioná-lo com a mulher?

Custa dizê-lo: ambição política. Vieira quer ser deputado por um distrito do Ceará, e Romualdo tem ali influência, e trata de fazer vingar a candidatura do amigo. Então este, não só quer metê-lo em casa — e já ali o levou duas vezes — como tem o plano de lhe dar um jantar solene, em despedida, porque o Romualdo embarca para o Norte dentro de uma semana. Aí está todo o motivo do dissentimento.

— Mas, Carlota, dizia ele à mulher, repara que é a minha carreira. Romualdo é trunfo no distrito. E depois não sei que embirração é essa, não entendo...

Carlota não dizia nada; torcia a ponta de uma franja.

— O que é que achas nele?

— Acho-o antipático, aborrecido...

— Nunca trocaram mais de oito palavras, se tanto, e já o achas aborrecido!

— Tanto pior. Se ele é aborrecido calado, imagina o que será falando. E depois...

— Bem, mas não podes sacrificar-me alguma coisa? Que diabo é uma ou duas horas de constrangimento, em benefício meu? E mesmo teu, porque, eu na Câmara, tu ficas sendo mulher de deputado, e pode ser... quem sabe? Pode ser até que de ministro, um dia. Desta massa é que eles se fazem.

Vieira gastou uns dez minutos em sacudir diante da mulher as pompas de um grande cargo, uma pasta, ordenanças, fardão ministerial, correios do paço, e as audiências, e os pretendentes, e as cerimônias... Carlota não se abalava. Afinal, exasperada, fez ao marido uma revelação.

— Ouviu bem? O tal seu amigo persegue-me com os olhos de mosca morta, e das oito palavras que me disse, três, pelo menos, foram atrevidas.

Vieira ficou alguns instantes sem dizer nada; depois começou a mexer com a corrente do relógio, afinal acendeu um charuto. Estes três gestos correspondiam a três momentos do espírito. O primeiro foi de pasmo e raiva. Vieira amava a mulher, e, por outro lado, cria que os intuitos do Romualdo eram puramente políticos. A descoberta de que a proteção da candidatura tinha uma paga, e paga adiantada, foi para ele um assombro. Veio depois o segundo momento, que foi o da ambição, a cadeira na Câmara, a reputação parlamentar, a influência, um ministério... Tudo isso atenuou a primeira impressão. Então ele perguntou a si mesmo, se, estando certo da mulher, não era já uma grande habilidade política explorar o favor do amigo, e deixá-lo ir-se de cabeça baixa. Em rigor, a pretensão do Romualdo não seria única; Carlota teria outros namorados in petto. Não se havia de brigar com o mundo inteiro. Aqui entrou o terceiro momento, o da resolução. Vieira determinou-se a aproveitar o favor político do outro, e assim o declarou à mulher, mas começou por dissuadi-la.

— Pode ser que você se engane. As moças bonitas estão expostas a serem olhadas muita vez por admiração, e se cuidarem que já isso é amor, então nem podem mais aparecer.

Carlota sorriu com desdém.

— As palavras? disse o marido. Não podiam ser palavras de cumprimento? Podiam, decerto...

E, depois de um instante, como lhe visse persistir o ar desdenhoso:

— Juro que se tivesse a certeza do que me dizes, castigava-o... Mas, por outro lado, é justamente a vingança melhor; faço-o trabalhar, e... justamente! Querem saber uma coisa? A vida é uma combinação de interesses... O que eu quero é fazer-te ministra de Estado, e...

Carlota deixou-o falar, à toa. Como ele insistisse, ela prorrompeu e disse-lhe coisas duras. Estava sinceramente irritada. Gostava muito do marido, não era loureira, e nada podia agravá-la mais do que o acordo que o marido procurava entre a conveniência política e os sentimentos dela. Ele, afinal, saiu zangado; ela vestiu-se e foi para a casa da amiga.

Hão de perguntar-me como se explica que, tendo mediado algumas horas, entre a briga e a chegada à casa da amiga, Carlota ainda estava no grau agudo da exasperação. Respondo que em alguma coisa há de uma moça ser faceira, e pode ser que a nossa Carlota gostasse de ostentar os seus sentimentos de amor ao marido e de honra conjugal, como outras mostram de preferência os olhos e o método de mexer com eles. Digo que pode ser; não afianço nada.

Ouvida a história, D. Maria Soares concordou em parte com a amiga, em parte com o marido, posto que, realmente, só concordasse consigo mesma, e acreditasse piamente que o maior desastre que podia suceder a uma criatura humana, depois de uma noite de baile, era entrar-lhe em casa uma questão daquelas.

Carlota tratou de provar que tinha razão em tudo, e não parcialmente; e a viúva diante da ameaça de maior desastre, foi admitindo que sim, que afinal quem tinha toda a razão era ela, mas que o melhor de tudo era deixar andar o marido.

— É o melhor, Carlota; você não está certa de si? Pois então deixe-o andar... Vamos nós à Rua do Ouvidor? ou vamos mais perto, um passeiozinho...

Era um meio de acabar com o assunto; Carlota aceitou, D. Maria foi vestir-se, e daí a pouco saíram ambas. Vieram à Rua do Ouvidor, onde não foi difícil esquecer o assunto, e tudo acabou ou ficou adiado. Contribuiu para isso o baile da véspera; a viúva alcançou finalmente que falassem das impressões trazidas, falaram por muito tempo, esquecidas do resto, e para não voltar logo para a casa, foram comprar alguma coisa a uma loja. Que coisa? Nunca se soube claramente o que foi; há razões para crer que foi um metro de fita, outros dizem que dois, alguns opinam por uma dúzia de lenços. O único ponto liquidado é que estiveram na loja até quatro horas.

Ao voltar para casa, perto da Rua Gonçalves Dias, Carlota disse precipitadamente à amiga:

— Lá está ele!

— Quem?

— O Romualdo.

— Onde está?

— É aquele de barbas grandes, que está coçando o queixo com a bengala, explicou a moça olhando para outra parte.

D. Maria Soares relanceou os olhos pelo grupo, disfarçadamente, e viu o Romualdo. Não ocultou a impressão; confessou que era, na verdade, um sujeito antipático; podia ser trunfo em política; em amor, devia ser carta branca. Mas, além de antipático, tinha um certo ar de matuto, que não convidava a amá-lo. Elas foram andando, e não escaparam ao Romualdo, que vira Carlota e veio cumprimentá-la, afetuoso, posto que também acanhado; perguntou-lhe pelo marido, e se ia naquela noite, ao baile, disse também que o dia estava fresco, que tinha visto umas senhoras conhecidas de Carlota, e que a rua parecia mais animada naquele dia do que na véspera. Carlota foi respondendo com palavras frouxas, entre dentes.

— Exagerei? perguntou ela à viúva no bonde.

— Qual exageraste! O sujeito é insuportável, acudiu a viúva; mas, Carlota, não te acho razão na zanga. Pareces criança! Um sujeito assim não faz zangar ninguém. A gente ouve o que ele diz, não lhe responde nada, ou fala do sol e da lua, e está acabado; é até um divertimento. Já tive muitos do mesmo gênero...

— Sim, mas não tens um marido que...

— Não tenho, mas tive; o Alberto era do mesmo gênero; eu é que não brigava, nem lhe revelava nada; ria-me. Faça a mesma coisa; vai rindo... Realmente, o sujeito tem um olhar espantado, e quando sorri fica mesmo com uma cara de poucos amigos; parece que sério é menos carrancudo.

— E é...

— Bem vi que era. Ora zangar-se a gente por tão pouca coisa! Demais, ele não vai embora esta semana? Que te custa suportá-lo?

D. Maria Soares tinha aplacado inteiramente a amiga; enfim, o tempo e a rua perfizeram a melhor parte da obra. Para o fim da viagem, riam ambas, não só da figura do Romualdo, mas também das palavras que ele dissera a Carlota, as tais palavras atrevidas, que não ponho aqui por não haver notícia exata delas; estas, porém, confiou-as à viúva, não as tendo dito ao marido. A viúva opinou que elas eram menos atrevidas que burlescas. E ditas por ele deviam ser ainda piores. Era mordaz esta viúva, e amiga de rir e brincar como se tivesse vinte anos.

A verdade é que Carlota voltou para casa tranquila, e disposta ao banquete. Vieira, que esperava a continuação da luta, não pôde encobrir o contentamento de a ver mudada. Confessou que ela tinha razão em mortificar-se, e que ele, se não estivessem as coisas em andamento, abriria mão da candidatura; já o não podia fazer sem escândalo.

Chegou o dia do jantar, que foi esplêndido, assistindo a ele vários personagens políticos e outros. De senhoras, apenas duas, Carlota e D. Maria Soares. Um dos brindes de Romualdo foi feito a ela; — um longo discurso, arrastado, cantado, assoprado, cheio de anjos, de um ou dois sacrários, de caras esposas, acabando tudo por um cumprimento ao nosso venturoso amigo. Vieira interiormente mandou-o ao diabo; mas, levantou o copo e agradeceu sorrindo.

Dias depois, seguia Romualdo para o Norte. A noite da véspera foi passada em casa do Vieira, que se desfez em demonstrações de aparente consideração. De manhã, levantou-se este cedo para ir a bordo, acompanhá-lo; recebeu muitos cumprimentos para a mulher, à despedida, e prometeu que daí a pouco iria ter com ele. O aperto de mão foi significativo; um tremia de esperanças, outro de saudades, ambos pareciam pôr naquele arranco final todo o coração, e punham tão-somente o interesse, — ou de amor ou de política, — mas o velho interesse, tão amigo da gente e tão caluniado.

Pouco tempo depois, seguiu o Vieira para o Norte, a cuidar da eleição. As despedidas foram naturalmente chorosas, e por pouco, esteve Carlota disposta a seguir também com ele; mas a viagem não duraria muito tempo, e depois, ele teria de percorrer o distrito, cuidar de coisas que tornavam difícil a condução da família.

Ficando só, Carlota cuidou de matar o tempo, para torná-lo mais curto. Não foi a teatros nem bailes; mas visitas e passeios eram com ela. D. Maria Soares continuava a ser a melhor das companheiras, rindo muito, reparando em tudo, e mordendo sem piedade. Naturalmente, o Romualdo foi esquecido; Carlota chegou mesmo a arrepender-se de ter ido confiar à amiga uma coisa, que agora lhe parecia mínima. Demais, a ideia de ver o marido deputado, e provavelmente ministro, começava a dominá-la, e a quem o deveria, senão ao Romualdo? Tanto bastava para não torná-lo odioso nem ridículo. A segunda carta do marido confirmou-a nesse sentimento de indulgência; dizia que a candidatura tinha esbarrado num grande obstáculo, que o Romualdo destruíra, graças a um imenso esforço, em que até perdeu um amigo de vinte anos.

Tudo caminhou assim, enquanto Carlota, aqui na corte, ia matando o tempo, segundo ficou dito. Já disse também que D. Maria Soares ajudava-a nessa empresa. Resta dizer, que não sempre, mas às vezes, tinham ambas um parceiro, que era o Dr. Andrade, companheiro de escritório do Vieira, e encarregado de todos os seus negócios, durante a ausência. Este era um advogado recente, vinte e cinco anos, não deselegante, nem feio. Tinha talento, era ativo, instruído, e não pouco sagaz, em negócios do foro; para o resto das coisas, conservava a ingenuidade primitiva.

Corria que ele gostava de Carlota, e mal se compreende um tal boato, pois a ninguém confiou nada, nem mesmo a ela, por palavras ou obras. Pouco ia lá; e quando ia procedia de modo que não desse azo a nenhuma suspeita. É certo, porém, que ele gostava dela, e muito, e se nunca lho declarou, menos o faria agora. Evitava até ir lá; mas Carlota convidou-o algumas vezes a jantar, com outras pessoas; D. Maria Soares, que o viu ali, também o convidou, e foi assim que ele achou-se mais vezes do que pretendia em contato com a senhora do outro.

D. Maria Soares desconfiou previamente do amor do Andrade. Era um dos seus princípios desconfiar dos corações de vinte e cinco a trinta e quatro anos. Antes de ver nada, suspeitou que o Andrade amava a amiga, e só tratou de ver se a amiga lhe correspondia. Não viu nada; mas concluiu alguma coisa. Então considerou que esse coração abandonado, tiritando de frio na rua, podia ela recebê-lo, agasalhá-lo, dar-lhe o principal lugar, numa palavra, casar com ele. Pensou nisto um dia; no dia seguinte, acordou apaixonada. Já? Já, e explica-se. D. Maria Soares gostava da vida brilhante, ruidosa, dispendiosa, e o Andrade, além das outras qualidades, não viera a este mundo sem uma avó, nem esta avó se deixara viver até aos setenta e quatro anos, na fazenda sem uns oitocentos contos. Constava estar na dependura; e foi a própria Carlota que lho disse a ela.

— Parece que até já está pateta.

— Oitocentos contos? repetiu D. Maria Soares.

— Oitocentos; é uma boa fortuna.

D. Maria Soares olhou para um dos quadros que Carlota tinha na saleta: uma paisagem da Suíça. Bela terra é a Suíça! disse ela. Carlota admitiu que o fosse, mas confessou que preferia viver em Paris, na grande cidade de Paris... D. Maria Soares suspirou, e olhou para o espelho. O espelho respondeu-lhe sem cumprimento: “Pode tentar a empresa, ainda está muito bonita”.

Assim se explica o primeiro convite de D. Maria Soares ao Andrade, para ir jantar à casa dela, com a amiga, e outras pessoas. Andrade foi, jantou, conversou, tocou piano, — pois também sabia tocar piano, — e recebeu da viúva os mais ardentes encômios. Realmente, nunca tinha visto tocar assim; não conhecia amador que pudesse competir com ele. Andrade gostou de ouvir isto, principalmente porque era dito ao pé de Carlota. Para provar que a viúva não elogiava a um ingrato, voltou ao piano, e deu sonatas, barcarolas, rêveries, Mozart, Schubert, nomes novos e antigos. D. Maria Soares estava encantada.

Carlota percebeu que ela começava a cortejá-lo, e sentiu não ter intimidade com ele, que lhe permitisse dizer-lho por brinco; era um modo de os casar mais depressa, e Carlota estimaria ver a amiga em segundas núpcias, com oitocentos contos à porta. Em compensação disse-o à amiga, que pela regra eterna das coisas negou-o a pés juntos.

— Pode negar, mas eu bem vejo que você anda ferida, insistiu Carlota.

— Então é ferida que não dói, porque eu não sinto nada, replicou a viúva.

Em casa, porém, advertiu que Carlota lhe falara com tal ingenuidade e interesse, que era melhor dizer tudo, e utilizá-la na conquista do advogado. Na primeira ocasião, negou sorrindo e vexada; depois, abriu o coração, previamente aparelhado para recebê-lo, cheio de amor por todos os cantos. Carlota viu tudo, andou por ele, e saiu convencida de que, apesar da diferença de idade, nem ele podia ter melhor esposa, nem ela melhor marido. A questão era uni-los, e Carlota dispôs-se à obra.

Eram então passados dois meses depois da saída do Vieira, e chegou uma carta dele com a notícia de estar de cama. A letra pareceu tão trêmula, e a carta era tão curta, que lançou o espírito de Carlota na maior perturbação. No primeiro instante, a sua ideia foi embarcar e ir ter com o marido; mas o advogado e a viúva procuravam aquietá-la, dizendo-lhe que não era caso disso, e que provavelmente já estaria bom; em todo caso, era melhor esperar outra carta.

Veio outra carta, mas do Romualdo, dizendo que o estado do Vieira era grave, não desesperado; os médicos aconselhavam que tornasse para o Rio de Janeiro; eles viriam na primeira ocasião.

Carlota ficou desesperada. Começou por não crer na carta. “Meu marido morreu, soluçava ela; estão me enganando”. Entretanto, veio terceira carta do Romualdo, mais esperançada. O doente já podia embarcar, e viria no vapor que dali sairia dois dias depois; ele o acompanharia com todas as cautelas, e a mulher podia não ter cuidado nenhum. A carta era simples, verdadeira, dedicada e pôs um calmante no espírito da moça.

Com efeito, Romualdo embarcou, acompanhando o doente, que passou bem o primeiro dia de mar. No segundo piorou, e o estado agravou-se de modo que, ao chegar à Bahia, pensou o Romualdo que era melhor desembarcar; mas o Vieira recusou formalmente uma e muitas vezes, dizendo que se tivesse de morrer, preferia vir morrer ao pé da família. Não houve remédio senão ceder, e por mal dele, expirou vinte e quatro horas depois.

Poucas horas antes de morrer, o advogado sentiu que era chegado o termo fatal, e fez algumas recomendações ao Romualdo, relativamente a negócios de família e do foro; umas deviam ser transmitidas à mulher; outras ao Andrade, companheiro de escritório, outras a parentes. Só uma importa ao nosso caso.

— Diga à minha mulher que a última prova de amor que lhe peço é que não se case...

— Sim... sim...

— Mas, se ela, a todo o transe entender que se deve casar, peça-lhe que a escolha do marido recaia no Andrade, meu amigo e companheiro, e...

Romualdo não entendeu essa preocupação da última hora, nem provavelmente o leitor, nem eu, — e o melhor, em tal caso, é contar e ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez; ouviu, disse que sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte, entrava o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido que daqui partira. Imaginem a dor da pobre moça, que aliás receava isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. Chorara em todo esse tempo, e rezou muito, e prometeu missas, se o pobre Vieira lhe chegasse vivo e são: mas nem rezas, nem promessas, nem lágrimas.

Romualdo veio à terra, e correu à casa de D. Maria Soares, pedindo a sua intervenção para preparar a recente viúva a receber a fatal notícia; e ambos passaram à casa de Carlota, que adivinhou tudo, apenas os viu. O golpe foi o que devia ser, não é preciso narrá-lo. Nem o golpe, nem o enterro, nem os primeiros dias. Saiba-se que Carlota retirou-se da cidade por algumas semanas, e só voltou à antiga casa, quando a dor lhe consentiu vê-la, mas não pôde vê-la sem lágrimas. Ainda assim não quis outra; preferia padecer, mas queria as mesmas paredes e lugares que tinham visto o marido e a sua felicidade.

Passados três meses, Romualdo tratou de desempenhar-se da incumbência que o Vieira lhe dera, à última hora, e nada mais difícil para ele, não porque amasse a viúva do amigo, — realmente, tinha sido uma coisa passageira, — mas pela natureza mesmo da incumbência. Entretanto, era forçoso fazê-lo. Escreveu-lhe uma carta, dizendo que tinha de dizer-lhe, em particular, coisas graves que ouvira ao marido, poucas horas antes de morrer. Carlota respondeu-lhe com este bilhete:

Pode vir quanto antes, e se quiser hoje mesmo, ou amanhã, depois do meio-dia; mas prefiro que seja hoje. Desejo saber o que é, e ainda uma vez agradecer-lhe a dedicação que mostrou ao meu infeliz marido.

Romualdo foi nesse mesmo dia, entre três e quatro horas. Achou ali D. Maria Soares, que não se demorou muito, e os deixou sós. Eram duas viúvas, e ambas de preto, e Romualdo pôde compará-las, e achou que a diferença era imensa; D. Maria Soares dava a sensação de uma pessoa que escolhera a viuvez por ofício e comodidade. Carlota estava ainda acabrunhada, pálida e séria. Diferença de data ou de temperamento? Romualdo não pôde averiguá-lo, não chegou sequer a formular a questão. Medíocre de espírito, este homem tinha uma dose grande de sensibilidade, e a figura de Carlota impressionou-o de modo, que não lhe deu lugar a mais do que à comparação das pessoas. Houve mesmo da parte de D. Maria Soares duas ou três frases que pareceram ao Romualdo um tanto esquisitas. Uma delas foi esta:

— Veja se persuade a nossa amiga a conformar-se com a sorte; lágrimas não ressuscitam ninguém.

Carlota sorriu sem vontade, para responder alguma coisa, e Romualdo rufou com os dedos sobre o joelho, olhando para o chão. D. Maria Soares levantou-se afinal, e saiu. Carlota, que a acompanhou até à porta, voltou ansiosa ao Romualdo, e pediu que lhe dissesse tudo, tudo, as palavras dele, e a doença, e como foi que começou, e os cuidados que lhe deu, e que ela soube aqui e lhe agradecia muito. Tinha visto uma carta de pessoa da província, dizendo que a dedicação dele não podia ser maior. Carlota falava às pressas, cheia de comoção, sem ordem nas ideias.

— Não falemos do que fiz, disse o Romualdo; cumpri um dever natural.

— Bem, mas eu agradeço-lhe por ele e por mim, replicou ela estendendo-lhe a mão.

Romualdo apertou-lhe a mão, que estava trêmula, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Ao mesmo tempo, olhou para ela e viu que a cor pálida ia-lhe bem, e com o vestido preto, tinha um tom ascético e particularmente interessante. Os olhos cansados de chorar não traziam o mesmo fulgor de outro tempo, mas eram muito melhores assim, como uma espécie de meia-luz de alcova, abafada pelas cortinas e venezianas fechadas.

Nisto pensou na comissão que o levava ali, e estremeceu. Começava a palpitar, outra vez, por ela, e agora que a achava livre, ia levantar duas barreiras entre ambos: — que se não casasse, e que, a fazê-lo, casasse com outro, uma pessoa determinada. Era exigir demais. Romualdo pensou em não dizer nada, ou dizer outra coisa qualquer. Que coisa? Qualquer coisa. Podia atribuir ao marido uma recomendação de ordem geral, que se lembrasse dele, que lhe sufragasse a alma por certa maneira. Tudo era crível, e não prenderia assim o futuro com uma palavra. Carlota, sentada defronte, esperava que ele falasse; chegou a repetir o pedido. Romualdo sentiu um repelão da consciência. No momento de formular a recomendação falsa, recuou, teve vergonha, e dispôs-se à verdade. Ninguém sabia o que se passara entre ele e o finado, senão a consciência dele, mas a consciência bastava, e ele obedeceu. Paciência! era esquecer o passado, e adeus.

— Seu marido, — começou —, no mesmo dia em que morreu, disse-me que tinha um grande favor que pedir-me, e fez-me prometer que cumpriria tudo. Respondi-lhe que sim. Então, disse-me ele que era um grande benefício que a senhora lhe fazia, se se conservasse viúva, e que lhe pedisse isto, como um desejo da hora da morte. Entretanto, dado que não pudesse fazê-lo...

Carlota interrompeu-o com o gesto: não queria ouvir nada, era penoso. Mas o Romualdo insistiu, tinha de cumprir...

Foram interrompidos por um criado; o Dr. Andrade acabava de chegar, trazendo à viúva uma comunicação urgente.

Andrade entrou, e pediu a Carlota para lhe falar em particular.

— Não é preciso, retorquiu a moça, este senhor é nosso amigo, pode ouvir tudo.

Andrade obedeceu e disse ao que vinha; este incidente é sem valor para o nosso caso. Depois, conversaram os três durante alguns minutos. Romualdo olhava para o Andrade com inveja, e tornou a perguntar a si mesmo se lhe convinha dizer alguma coisa. A ideia de dizer outra coisa qualquer começou a turvar-lhe novamente o espírito. Ao ver o jovem advogado tão gracioso, tão atraente, Romualdo concluiu, — e não concluiu mal, — que o pedido do morto era um incitamento; e se Carlota nunca pensara em casar, era ocasião de fazê-lo. O pedido chegou a parecer-lhe tão absurdo, que a ideia de alguma desconfiança do marido veio naturalmente, e atribuiu-lhe assim a intenção de punir moralmente a mulher: — conclusão, por outro lado, não menos absurda, à vista do amor que ele testemunhara no casal.

Carlota, na conversação, manifestou o desejo de retirar-se para a fazenda de uma tia, logo que acabasse o inventário; mas, se demorasse muito tempo iria em breve.

— Farei o que puder para ir depressa, disse o Andrade.

Daí a pouco saiu este, e Carlota, que o acompanhara até a porta, voltou ao Romualdo, para dizer-lhe:

— Não quero saber o que foi que meu marido lhe confiou. Ele pede-me o que por mim mesmo faria: — ficarei viúva...

Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio-termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.

— Como ia dizendo, continuava ele, seu marido...

— Não diga mais nada, interrompeu Carlota; para quê?

— Será inútil, mas devo cumprir o que prometi ao meu pobre amigo. A senhora pode dispensá-lo, eu é que não. Pede-lhe que se conserve viúva; mas que, no caso de não lhe ser possível, pedir-lhe-ia bem que a sua escolha recaísse no... Dr. Andrade...

Carlota não pôde ocultar o espanto, e não teve só um, mas dois, um atrás do outro. Quando Romualdo concluía o pedido, antes de dizer o nome do Andrade, Carlota imaginou que ia citar o dele mesmo; e, rápido, tanto lhe pareceu um desejo do marido como uma astúcia do portador, que a cortejara antes. Esta segunda suspeita entornou-lhe na alma um grande desgosto e desprezo. Tudo isso passou como um relâmpago, e quando chegou ao fim, ao nome do Andrade, mudou de espanto, e não foi menor. Esteve calada alguns segundos, olhando à toa; depois, repetiu o que já dissera.

— Não pretendo casar.

— Tanto melhor, disse ele, para os desejos últimos de seu marido. Não lhe nego que o pedido me pareceu exceder do direito de um moribundo; mas não me cabe discuti-lo: é questão entre a senhora e a sua consciência.

Romualdo levantou-se.

— Já? disse ela.

— Já.

— Jante comigo.

— Peço-lhe que não; virei outro dia, disse ele estendendo-lhe a mão.

Carlota estendeu-lhe a mão. Pode ser que se ela estivesse com o espírito quieto, percebesse nos modos do Romualdo alguma coisa que não era a audácia de outrora. Na verdade, ele estava agora acanhado, comovido, e a mão tremia-lhe um tanto. Carlota apertou-lha cheia de agradecimento; ele saiu.

Ficando só, Carlota refletiu em tudo o que se passara. A lembrança do marido pareceu-lhe também extraordinária; e, não tendo ela jamais pensado no Andrade, não pôde furtar-se a pensar nele e na simples indicação do moribundo. Tanto pensou em tudo isso, que lhe ocorreu finalmente a posição do Romualdo. Esse homem tinha-a cortejado, parecia querê-la, recebeu do marido, prestes a expirar, a confidência última, o pedido da viuvez e a designação de um sucessor, que não era ele, mas outro; e, não obstante, cumpriu tudo fielmente. O procedimento pareceu-lhe heroico. E daí pode ser que já não a amasse: e foi, talvez, um capricho de momento; estava acabado; nada mais natural.

No dia seguinte, ocorreu a Carlota a ideia de que Romualdo, sabendo da amizade do marido com o Andrade, podia ir comunicar a este o pedido do moribundo, se já o não tinha feito. Mais que depressa, lembrou-se de mandar chamá-lo, e pedir-lhe que viesse vê-la; chegou mesmo a escrever-lhe um bilhete, mas mudou de ideia, e, em vez de pedir-lho de viva voz, determinou fazê-lo por escrito. Eis o que escreveu:

Estou certa de que as últimas palavras de meu marido foram apenas repetidas a mim e a ninguém mais; entretanto, como há outra pessoa, que poderia ter interesse em saber...

 Chegando a este ponto da carta, releu-a, e rasgou-a. Parecia-lhe que a frase tinha um tom misterioso, inconveniente na situação. Começou outra, e não lhe agradou também; ia escrever terceira, quando vieram anunciar-lhe a presença do Romualdo; correu à sala.

— Escrevia-lhe agora mesmo, disse ela logo depois.

— Para quê?

— Referiu aquelas palavras de meu marido a alguém?

— A ninguém. Não podia fazê-lo.

— Sei que não o faria; entretanto, nós, as mulheres, somos naturalmente medrosas, e o receio de que alguém mais, quem quer que seja, saiba do que se passou, peço-lhe que por nenhuma coisa refira a outra pessoa...

— Certamente que não.

— Era isto o que lhe dizia a carta.

Romualdo vinha despedir-se; seguia daí três dias para o Norte. Pedia-lhe desculpa de não ter aceitado o convite de jantar, mas na volta...

 — Volta? interrompeu ela.

— Conto voltar.

— Quando?

— Daqui a dois meses ou dois anos.

— Cortemos ao meio; seja daqui a quatro meses.

— Depende.

— Mas, então, sem jantar comigo uma vez? Hoje, por exemplo...

— Hoje estou comprometido.

— E amanhã?

— Amanhã vou a Juiz de Fora.

Carlota fez um gesto de resignação; depois perguntou-lhe se na volta do Norte.

— Na volta.

— Daqui a quatro meses?

— Não posso afirmar nada.

Romualdo saiu; Carlota ficou pensativa algum tempo.

 “Singular homem! pensou ela. Achei-lhe a mão fria e, entretanto...”

Depressa passou a Carlota a impressão que lhe deixara o Romualdo. Este seguiu, e ela retirou-se à fazenda da tia, enquanto o Dr. Andrade continuou o inventário. Quatro meses depois, voltou Carlota a esta corte, mais curada das saudades, e em todo caso cheia de resignação. A amiga encarregou-se de acabar a cura, e não lhe foi difícil.

Carlota não esquecera o marido; ele estava presente ao coração, mas o coração também cansa de chorar. Andrade que a frequentava, não pensara em substituir o finado marido; ao contrário, parece que principalmente gostava da outra. Pode ser também que fosse mais cortesão com ela, por ela ser menos recente viúva. O que toda a gente cria é que dali, qualquer que fosse a escolhida, tinha de nascer um casamento com ele. Não tardou que as pretensões de Andrade se inclinassem puramente à outra.

 “Tanto melhor” pensou Carlota, logo que o percebeu.

 A ideia de Carlota é que, sendo assim, não ficava ela obrigada a desposá-lo; mas esta ideia não a formulou inteiramente; era confessar que estaria inclinada a casar.

 Passaram-se ainda algumas semanas, oito ou dez, até que um dia anunciaram os jornais a chegada de Romualdo. Ela mandou-lhe um cartão de cumprimento, e ele deu-se pressa em pagar-lhe a visita. Acharam-se mudados; ela pareceu-lhe menos pálida, um pouco mais tranquila, para não dizer alegre; ele menos áspero no aspecto, e até mais gracioso. Carlota convidou-o a jantar com ela daí a dias. A amiga estava presente.

Romualdo foi circunspecto com ambas, e, posto que trivial, conseguia pôr nas palavras uma nota de interesse. O que, porém, realçava a pessoa dele era, — em relação a uma, a transmissão do recado do marido, e a respeito da outra a paixão que sentira pela primeira, e a possibilidade de vir a desposá-la. A verdade é que ele passou uma noite excelente, e saiu de lá encantado. A segunda convidou-o também para jantar daí a dias, e os três reuniram-se outra vez.

— Ele ainda gosta de ti? perguntava uma.

— Não, acabou.

— Não acabou.

— Por que não? Há tanto tempo.

— Que importa o tempo?

E teimava que o tempo era coisa importante, mas também não valia nada, principalmente em certos casos. Romualdo parecia pertencer à família dos apaixonados sérios. Enquanto dizia isso, olhava para ela a ver se lhe descobria alguma coisa; mas era difícil ou impossível. Carlota levantava os ombros.

Andrade supôs também alguma coisa, por insinuação da outra viúva, e tratou de ver se descobria a verdade; não descobriu coisa nenhuma. O amor de Andrade ia crescendo. Não tardou que o ciúme viesse fazer-lhe cortejo. Pareceu-lhe que a amada via o Romualdo com olhos singulares; e a verdade é que estava muita vez com ele.

Para quem se lembra das primeiras impressões das duas viúvas, há de ser difícil ver na observação do nosso Andrade; mas eu sou historiador fiel, e a verdade antes de tudo. A verdade é que ambas as viúvas começavam a cercá-lo de especiais atenções.

Romualdo não o percebeu logo, porque era modesto, apesar de audaz, às vezes; e da parte de Carlota não chegou mesmo a perceber nada; a outra, porém, houve-se de maneira que não tardou em descobrir-se. Era certo que o cortejava.

Daqui nasceram os primeiros elementos de um drama. Romualdo não acudiu ao chamado da bela dama, e esse procedimento não fez mais do que irritá-la e dar-lhe o gosto de teimar e vencer. Andrade, ao ver-se posto de lado, ou quase, determinou lutar também e destruir o rival nascente, que podia ser em breve triunfante. Já isso bastava; mas eis que Carlota, curiosa da alma do Romualdo, sentiu que este objeto de estudo podia escapar-se-lhe, desde que a outra o quisesse para si. Já então eram passados treze meses da morte do marido, o luto estava aliviado, e a beleza dela, com ou sem luto, fechado ou aliviado, estava no cume.

A luta que então começou teve diferentes fases, e durou cerca de cinco meses mais. Carlota, no meio dela, sentiu que alguma coisa batia no coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as baterias; Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha; mas o desejo do morto? No fim de cinco meses as duas viúvas estavam brigadas, para sempre; e no fim de mais três (custa-me dizê-lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota iam meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.

Fonte:
Machado de Assis. Contos avulsos. Publicado originalmente em A Estação, de 15/9/1884 a 15/11/1884.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Isabel Furini (Poema) 34: Aula de filosofia

 

Angela Maria de Godoy Theodorovicz (Os meninos)


Encontrei este texto escrito há algum tempo. Já tinha me esquecido dele. Talvez até tenha sido providencial tê-lo encontrado. Andava procurando não sei o quê e lendo-o encontrei saudade, delícias e revivi momentos de felicidades. Tentei reescreve-lo, não consegui. Está escrito como se deve. Mudei apenas o primeiro parágrafo, mais na forma do que no conteúdo, e acrescentei este que agora escrevo. Explicação desnecessária estará pensando o leitor. Em parte é, foi apenas um velho texto encontrado a relembrar coisas do passado. Em parte não, encontrei sentimentos a me dizer o quanto o passado se faz presente numa imensidão de lembranças que não se perdem, não se apagam. Lembranças de pequeninas coisas do dia-a-dia, de fatos corriqueiros do cotidiano, que, no final das contas, são o que enriquecem nossas vidas, que ficam para sempre como marca da nossa existência.

Voltando ao texto, nenhuma criança foi tão presente na minha vida como dois filhos de amigos meus, que aqui vou chamá-los simplesmente de Primeiro e Segundo, com o sentido que roubo de um dos diálogos mais lindos entre Romeu e Julieta: de que aquilo a quem chamamos rosa não perderá seu perfume se acaso tiver outro nome.

Estes dois foram-me tão próximos e tão queridos como só teriam sido meus filhos, se os tivesse tido. E mais, desde que começaram a falar é que me chamam de tia e faz tanto tempo que nem sei dizer se naquela época já existia esse modismo de chamar os mais velhos de tios. O que sei é que, com eles, sempre estive tão envolvida emocionalmente que sinto, senão de sangue e direito mas, de coração, como meus verdadeiros sobrinhos.

Durante a primeira década de suas vidas vivemos muitos próximos, numa convivência quase que diária, compartilhando hábitos, costumes, brincadeiras e brigas. Estivemos juntos nas alegrias e tristezas e as primeiras foram tantas e tão intensamente vividas que poucas lembranças restaram das segundas. Fizemos muitos passeios divertidos e foram muitos os finais de semana no campo, no nosso sítio, com banhos de rios e brincadeiras de esconde-esconde e pega-pega e também muitos cortes nos pés, tombos e joelhos ralados e também muitos momentos de raivas e muitos beijos e abraços e soluços e lágrimas. Passamos juntos muitas Páscoas e aniversários memoráveis. Dessa nossa convivência muito aprendi e dela muito me recordo.

O Primeiro nasceu primeiro, o que é óbvio. O Segundo veio depois, o que também é óbvio. O que não é óbvio é que veio logo depois, o que não deu ao Primeiro “aquela” vantagem de ser o mais velho, nem ao outro “aquela” vantagem de ser o caçula. Para mim eles eram simplesmente os meninos e era impossível ver um sem o outro.

O Primeiro veio ao mundo muito pequenino, muito aquém do que se espera para um bebê. Era tão diminuto que cabia na palma da mão do pai, mas de tamanho suficiente para preencher todo o meu coração. Quando o Segundo chegou, soube imediatamente que em meu coração havia lugar para mais um.

O Primeiro sempre foi mais calado, aprendeu a ler muito cedo, muito antes de ir para a escola. Adorava histórias e as lia em voz alta e com precisão nos acentos e pontuações. O Segundo foi sempre mais falante, dispersivo e agitado. Preferia as conversas do dia-a-dia, os causos que escutava dos adultos, os assuntos corriqueiros e sempre adormecia em meio a uma história contada pelo irmão. Seu ritmo corria em compasso diferente. Com eles entendi as sutilezas de se ler nas entrelinhas.

O Primeiro era mais meticuloso, mais detalhista, nas coisas da alma e do corpo. Desde muito pequeno suas opiniões eram seguras, firmes e cheias de argumento. O Segundo era mais bonachão e desligado, consigo, com todos e com tudo, mas nem por isso menos sensível. Se com um me identificava, com o outro aprendia.

O Segundo era muito participativo, gostava de ajudar e não media esforços para estar sempre presente, não importasse qual fosse a brincadeira. O Primeiro era mais arredio, distante, reflexivo e geralmente se colocava na posição de observador. De um jeito ou de outro, ambos tinham presença marcante.

O Segundo gostava de aventuras, de esportes. O Primeiro se irritava com ambas as coisas. O Segundo preferia as brincadeiras de correr, andava descalço, se sujava na terra. O Primeiro não via graça em nada disso e chorava se visse sujeira nas mãos. Foi assim que aprendi a respeitar as diferenças.

O Segundo sempre foi forte de corpo, com ombros largos, postura atlética e musculosa. O Primeiro sempre foi muito magrinho, com as pernas compridas e finas, o peito frágil e franzino. Era o físico adaptado ao espírito e foi quando acreditei que isso fazia sentido.

O Primeiro comia pouco e sem entusiasmo. Das frutas, gostava de maçã e melancia. Dos grãos, mostrava algum interesse por milho. Eram poucos os legumes que gostava e nunca quis experimentar repolho por causa do nome. O Segundo estava sempre com fome. Exceto feijão, comia de tudo e com gosto. Se as refeições para um eram obrigações, para o outro eram puro prazer. Isso me ensinou que em tudo há prós e contra.

E o tempo foi passando, como é natural que passe. E como nada dura para sempre, nossas vidas foram tomando rumos diferentes. Passamos a nos ver muito amiúde, em encontros que se distanciavam por meses, até por anos.

Quando os encontrava ficava surpresa de vê-los se tornando homens: a voz esganiçada, passando do grave para o agudo  o roçar da penugem da barba sobre meus lábios, quando os beijava no rosto  suas conversas tomando rumos mais sérios, sobre a profissão a escolher, sobre o futuro.

Hoje nos vemos muito raramente. A diferença de idade pesa muito quando um lado chega aos vinte e o outro passa dos cinquenta.

Hoje eles curvam seus corpos quando me abraçam. São eles que me envolvem com seus braços longos e fortes no aconchego de seus peitos largos.

E agora me ponho a recordar essas coisas e me pego imaginando que viverei o suficiente para ver os meninos desses meninos. Gosto de pensar que eles também me chamarão de tia e que terão muito a me ensinar, e então voltarei a esse texto para completá-lo.

Dorothy Jansson Moretti (Tertúlia da Saudade) I


Trovas Infantis    


"Ao céu vai o bem dotado.
E o criminoso aonde vai?"
Diz o filho do advogado:
"Não sei... isso é com meu pai..."
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Guri do boné virado,
estilingue... palavrão...,
hoje, vigário ordenado:
- Pax vobiscum, meu irmão!
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"O canivete, meu bem",
diz ao garoto o vizinho,
"é teu! Vai ver o que tem
dentro do teu tamborzinho!"
= = = = = = = = = = =

Pancada de chave inglesa
amontoou o Garcês,
que para a própria surpresa,
acordou falando inglês!
= = = = = = = = = = =

"Por que é que  eu te chamo, Nei,
de "porquinho" ... faz favor?"
"É que ainda eu não cheguei
ao tamanho do senhor..."
= = = = = = = = = = =

"Que tanto estudas, Leal?"
"Geografia, Seu Garcês."
"Humm... e onde está Portugal?"
"Na página cento e três."
= = = = = = = = = = =

"Vovô, feche os olhos já!
Vi papai dizendo à Guida
que quando você fechá,
vamo ficá bem de vida!”
= = = = = = = = = = =

TROVAS VÁRIAS

A brisa afasta a cortina,
e uma nesga de luar,
fugindo à fria neblina,
vem aos meus pés se abrigar.
= = = = = = = = = = =

A existência é definida
não por azar, mas por sorte:
quanto mais cheios da vida,
mais perto estamos da morte.
= = = = = = = = = = =

“Ai doutor, não acredito...
Picada por um “barbeiro?
Veja, só! Pois o maldito
me disse que era engenheiro!!!”
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A lua, em passo indeciso,
muda o andante da sonata,
pondo pausas de improviso
no pentagrama de prata.
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A nova-rica não topa
sugestão de amigo seu.
Diz que não vai para a Europa
porque não fala europeu.
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Dizemos que o tempo voa,
e enquanto filosofamos,
ele vive aí, à toa,
e somos nós que voamos.
= = = = = = = = = = =

Dizem que amas de mentira,
mas gosto de acreditar,
e até que um dia eu confira,
vou-me deixando enganar.
= = = = = = = = = = =

Em bando sutil, as garças,
pontilhando o lamaçal,
são quais pérolas esparsas,
adornando o pantanal.
= = = = = = = = = = =

Em cada tarde a cair,
vejo a vida em agonia,
aos poucos se despedir
na morte de mais um dia.
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Eu me faço de blindado.
Amor? Bobagem... Pieguice...
Meu medo é que, apaixonado,
eu me envolva na tolice.
= = = = = = = = = = =

Guardo os bons tempos da vida,
e os maus procuro esquecer,
mas a memória, atrevida,
teima em roubar-me o prazer.
= = = = = = = = = = =

Irrequieto, o molecote,
no jeitinho turbulento,
parece um mini-quixote,
perseguindo um catavento.
= = = = = = = = = = =

Matuto filosofante
vendo filme que arrepia:
“E esse era o ”inferno de Dante...”
“Imagine o de hoje em dia!”
= = = = = = = = = = =

Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombros fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos...
e eis-me sonhando outra vez!
= = = = = = = = = = =

O amor, ao termo da vida,
deixa na pauta apagada    
uma só nota sentida,
canto de cisne... mais nada.
= = = = = = = = = = =

O cara, dentro do armário,
diz: “Não é o que você pensa...
“Eu já sei”, responde o otário,
“o gajo é o lá da despensa.”
= = = = = = = = = = =

Ora eloquente, ora mudo,
teu olhar é uma charada:
promessa sutil de tudo,
no fútil revés de um Nada.
= = = = = = = = = = =

Os erros que fiz na vida
quero apagar sem alarde
mas, a consciência revida
e, aos brados, me diz: é tarde!
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"Para sempre!" Será mesmo?
Não importa a duração
é promessa feita a esmo,
mas aquece o coração.
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Presença eterna do ausente,
perfume em frasco vazado,
saudade é sombra incoerente
num coração apagado.
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Que bela seria a vida
se, acima de ódios mortais,
uma ponte fosse erguida
unindo margens rivais!
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Somos tão bem afinados,
que, em termo gramatical,
podíamos ser chamados
"encontro consonantal"!
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Trem-de-ferro, o teu apito
lembra-me um sino plangente:
tanta mágoa no teu grito,
tanta saudade na gente!"
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Triste e sozinha eu me deito,
mas encontrando um desvão,
a lua invade o meu leito,
e afugenta a solidão.

Jaqueline Machado (O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman)

O Papel de Parede Amarelo, da autora Charlotte Perkins Gilman, é um símbolo da luta feminista. Porém, na época em que foi lançado, fim do século XIX , ele não foi interpretado como um conto feminista, escrito na intenção de colaborar com a luta pelos direitos iguais entre homens e mulheres. Nesse período, as mulheres viviam submissamente sob a égide do patriarcado machista. E muitos dos leitores reconhecem esta obra como sendo uma história de terror.

O livro conta a história de uma mulher que está sofrendo de problemas ligados à psique. Emocionalmente fragilizada. o marido, que é médico, a leva para passar uns tempos em uma casa de campo com a finalidade de tratá-la. É orientada a se dedicar ao repouso absoluto. Não se preocupar com os deveres de casa, falar pouco e, principalmente, não escrever. Afinal, o ato de escrever liberta o imaginário e isso poderia fragilizá-la ainda mais mentalmente e dar-lhe impulsos a devaneios.  Contudo, o conto é contado em forma de um diário que ela mantém, escondida do marido.

O quarto que foi escolhido para seu repouso e tratamento, tinha sido, anteriormente, um quarto de criança. Na parede havia um papel de parede amarelo, cheio de trinques e manchas em determinadas partes, e esse papel tragou-lhe a atenção.
 
Ela começa, então, a “estudar” o papel e passa a achar que ele está influenciando sua melhora. Ela acha que tem uma mulher no papel, que sai de manhã e volta à noite e fica “rastejando” ao longo da parede.  

"...Por muito tempo fui incapaz de distinguir o que era aquela coisa em segundo plano, aquele subpadrão indistinto, mas agora estou bastante certa de que se trata de uma mulher.“ - Disse ela depois de um período de contemplação.
 
Nessa época, a palavra do marido, assim como é ainda hoje em algumas circunstâncias, era equivalente à palavra de Deus. Por isso, a mulher segue sem cogitar as orientações do esposo, que subestima a sua cura, a deixando confinada de toda sociedade, sem perceber que isso pioraria a sua doença,

Ela provavelmente passava por um período de ansiedade ou depressão, embora no século XIX não se falasse de tais problemas como em dias atuais. Ainda assim, a conclusão da mensagem é: mulheres são seres frágeis e devem permanecer, sadias ou doentes, sob a tutela do pai, dos irmãos e, por fim, do marido.

Para dar um pouco de sossego a sua mente, escrevia escondida. Se fosse descoberta, seria repreendida como se repreende uma criança...

Fonte:
Texto enviado pela autora.

11° Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras (Sonetistas premiados)


Dentre as 193 obras inscritas.

1º Lugar:
Edy Soares
Vila Velha, ES
Soneto: Rosas de Hiroshima e Nagasaki;

2º Lugar:
Ricardo Camacho
Rio de Janeiro, RJ
Soneto: Estrelas;

3º Lugar:
Gilliard Santos
Fortaleza, CE  
Soneto: Quinas Vivas.

Menção Honrosa (em ordem alfabética por autor):

Adailton Almeida de Souza
Passos, MG

Soneto: Canção Ausente;

Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora, MG

Soneto: Das Chuvas e do Sol;

Bernadete Costa
Joinville, SC

Soneto: Murmúrios;

Cris Dakinis
São Pedro da Aldeia, RJ

Soneto: Soneto do Poeta Apaixonado;

Elvira Drummond
Fortaleza, CE

Soneto: Incertezas;

Fernando Antônio Belino
Sete Lagoas, MG

Soneto: Mais que Sorte;

Geraldo Trombin
Americana, SP

Soneto:  Pássaro-pedra;

Jayme Cardozo dos Santos Jr.
Mogi Guaçu, SP

Soneto: Sensibilidades;

José dos Reis Santos
Passos, MG

Soneto: Soneto das Horas Perdidas;

Márcia Jaber
Juiz de Fora, MG

Soneto: Meu Anjo;

Narcélio Lima de Assis
Caucaia, CE

Soneto: Desprendimento;

Rodrigo Ortiz Vinholo
São Paulo, SP

Soneto: Amor e Liberdade;

Romildo Gouveia Pinto
Curitiba, PR

Soneto: Soneto do Amor que Resta;

Rommel Werneck
Santo André, SP

Soneto: Inglês XI;

Sérgio Fonseca
Rio de Janeiro, RJ

Soneto: Chuva de Vento.

Fonte:
Edy Soares

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 13

 

Isabel Furini (Um caixão para Ruperto)


Quando Ruperto, o erudito, morreu, havia nevado na parte norte da Itália e as crianças brincavam com neve nas ruas. Quando Ruperto morreu, algumas aves revoavam no céu, talvez aproveitando que a neve havia parado de cair. E nessa manhã, quando Ruperto, o erudito, morreu, nascia uma criança albina de um parto difícil, e uma moça, que estava catatônica há meses, levantou-se e começou a dançar, e uma menina triste, que perdera a mãe, depois de ficar no quarto durante muitas semanas, correu até a rua para brincar com a neve. E no mesmo horário em que Ruperto morreu, o padre Antônio viu uma luz expandir-se e afastar-se do lado de fora da igreja.

 Padre Antônio, o pároco do povoado, fora chamado na noite anterior para dar a extrema unção ao Ruperto. Encontrou o moribundo pálido e suado, apesar do frio. A boca muito aberta tentando respirar. Faltava-lhe o ar e ainda assim sua mão direita segurava um lápis pequeno, e a esquerda apertava a borda do livro que tentara terminar durante toda a sua vida. Ele não conseguiu a chave para sair do dicionário perfeito. Como é de costume, os dicionários vão avançando de um verbete a outro verbete, que comente de maneira mais exata o tema estudado.

– Faltou uma palavra, padre, só uma palavra... – disse o moribundo.

O padre pegou o lápis da mão de Ruperto e, ao tentar tirar o livro, o moribundo tentou levantar a cabeça, sem voz e com um olhar de desespero, apertou fortemente o enorme caderno. A obra de sua vida, a obra inacabada. Uma idosa chorava de seu lado.

Ruperto não tinha parentes, mas a vizinha gostava dele apesar de ter fama de louco. Era um homem pacífico. Um estudioso. Alguém que dedica sua vida a escrever um livro, só um livro, não pode ser má pessoa. Só os loucos aferram-se às coisas como se tivessem o poder de perpetuar a existência. Ruperto aferrou-se ao seu dicionário quando sua esposa morreu, passava o tempo lendo e escrevendo, e sua vida foi tomando forma graças a ele. Mas antes de morrer, entendeu que havia fracassado. Fracassado. Bem lhe dissera, há vinte anos, a duquesa Maria Paola, que era impossível terminar uma obra dessas. Era contra Deus fazer um manuscrito em que cada palavra era explicada por outra e essa por outra e essa por outra até por fim voltar à primeira. Voltar? Tentar voltar, porque Ruperto fracassou e não conseguiu voltar à primeira palavra.

O padre, impressionado com a teimosia e o trabalho de Ruperto, decidiu fazer uma pequena homenagem: um caixão redondo.

– Por que, padre? – perguntou curioso Giuseppe, o carpinteiro.

– É para Ruperto continuar sua obra no céu. – respondeu o padre. Ele tentou criar um dicionário em que cada palavra remitia a outros verbetes e desejava que os verbetes esclarecessem uns aos outros, até voltar à primeira palavra. Um círculo aparente. Mas não... – disse o padre, coçando o bigode. Na realidade era uma espiral!

Ao dizer isso, o padre Antônio pensou que o caixão redondo não seria representativo de Ruperto e decidiu pedir para o carpinteiro fazer um caixão em espiral.

– Um caixão espiral? – o pobre homem olhou-o com os olhos enormes. Pela primeira vez em anos abriu os olhos em toda a sua plenitude, pois, acostumado com os mortos, trabalhava a madeira dos caixões com os olhos quase fechados.

– Um caixão espiral? – perguntou novamente.

Em anos de profissão, havia escutado solicitações estranhas e sempre havia obedecido, como a do conde Francesco, que pediu para enterrar o pai em um caixão branco por fora e azul com estrelas prateadas pintadas por dentro, para que se lembrasse do caminho do céu. E aquela senhora que vivia perto rio, depois da ponte, qual era seu nome? Esqueceu, mas se lembrava dos olhos azuis e das lágrimas quando ela solicitou um caixão com a imagem de Santa Lúcia na tampa para a sua irmã. E aquela mulher de mais de 80 anos, que fora abandonada antes do casamento pelo noivo e se manteve virgem, antes de morrer, solicitou um desenho da genitália masculina no lado de dentro da tampa, para ter em morte o que não havia conseguido em vida. Eram tantas as lembranças... Mas um caixão espiral? Nunca ninguém havia solicitado!

Giuseppe estava confuso. Seu tio fazia caixões e lhe havia ensinado a arte. Giuseppe abraçou a profissão de uma maneira quase mística. Achava que era um dever e uma missão dada por Deus. Por isso nunca ficava zangado quando a família de sua esposa zombava dele. Sua esposa queria que ele trabalhasse com seu irmão vendendo frutas no mercado, pois se sentia constrangida de dizer que o trabalho de seu marido era fazer caixões. Mas Giuseppe amava seu trabalho e não cedia às reclamações da esposa. Ele sempre obedecia às solicitações realizadas pelos clientes.

Giuseppe sempre fazia dois moldes, o primeiro para o caixão e outro para a tampa. Ambos de tamanho real. Tinha muito cuidado com os painéis laterais, pois deviam encaixar perfeitamente para serem presos às bordas da base. A medida da tampa precisava ser correta, especialmente a medida dos ângulos, para o ajuste perfeito da tampa, poucos sabiam disso, mas ele escutara alguém dizer ao seu tio que os segredos de um bom caixão são o tipo de madeira usado, os entalhes e o encaixe correto da tampa. Um encaixe torto prejudica o caixão, ainda mais os construídos com madeira nobre. Giuseppe era cuidadoso e o caixão sempre saía de acordo com o molde. Ele observava se todas as partes estavam corretas antes de prender os painéis laterais na base e entre eles. A borda inferior de cada painel deveria estar bem encaixada à base, e a tampa, ajustada corretamente.

Pela primeira vez, Giuseppe não sabia como construir um caixão! Como era um homem honesto, falou:

– Padre Antônio, eu nunca fiz um caixão espiral.

O Padre decidiu pedir ajuda. Reuniram-se então no salão nobre da prefeitura os homens mais inteligentes e todos os que trabalhavam com madeira: marceneiros, carpinteiros, agentes funerários, engenheiros, professores, administradores, decoradores e o próprio prefeito, que estava cansado da administração da cidade e só pensava na próxima viagem a Veneza – Veneza, local de belas mulheres.

O alvoroço produzido no povoado pela forma do caixão foi tal que até as carpideiras deixaram de chorar e começaram a discutir sobre maneiras de fazer um caixão espiral.

– Espiral ou espiralado? – perguntou um marceneiro. – Eu faço formas espiraladas desenhadas na madeira.

Todos respiraram aliviados. O agente funerário ordenou fazer um caixão comum, e com uma faca gravaram imagens de espirais.

Giuseppe continuava desenhando espirais em uma folha.

– Não foi isso o que pedi. – disse o padre Antônio com autoridade. – Eu quero um caixão com forma de espiral.

Novamente começaram as discussões em busca de uma solução. Como fazer um caixão de forma espiral? Espiral dá voltas sobre si mesma. Espiral é um quase círculo que se abre para dar origem a outro quase círculo, que se abre para dar origem a outro quase círculo, que se abre para...

– É impossível fazer um caixão desses! – disse o marceneiro.

– Silêncio! – gritou Giuseppe. – Se ele quer um caixão espiral, terá um caixão espiral.

– Forte o suficiente para suportar o peso do Ruperto? – perguntou o padre.

– Será forte o suficiente. – prometeu o carpinteiro.

E ele mesmo pegou uma madeira de três metros por três e desenhou uma espiral. A espiral começava no centro e girava para a direita. Cada traço afastava-se do centro e crescia em direção ao exterior, como uma fuga premeditada, como o centro de uma galáxia, que se estendia para chegar aos confins de si mesma.

– Padre, o senhor quer uma Via Láctea! – exclamou Giuseppe, que gostava de observar e estudar as estrelas.

E seu lápis tornou-se um instrumento sagrado. E todos fizeram silêncio. O padre Antônio disse que a Via Láctea é uma espiral gigantesca, como o dicionário de Ruperto, que talvez não estivesse brincando com as palavras, mas tentando chegar à palavra primordial que deu origem... origem ao universo! E seus olhos abriram-se tão grandes que pareciam duas fogueiras queimando numa noite escura.

Então Giuseppe, o carpinteiro, homem do povo, falou:

– Padre Antônio, podemos cortar a madeira e deixar um espaço entre as linhas. É isso o que deseja? Um espaço vazio?

– Um espaço vazio! – gritou o padre, que era um homem iluminado.

Um espaço... Era essa a solução. Sempre é necessário um vazio para que Deus possa preencher. Esse foi o mistério que Ruperto procurou durante toda a sua vida e morreu sem saber que, como falaram os pitagóricos, um ponto deu origem ao universo e que a origem das palavras, que deu origem aos verbetes circulares, não era outra palavra como pensava Ruperto, mas um silêncio. O silêncio primordial, o silêncio que antecedeu o Verbo.

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 1


COLHEITAS DE AMOR


I

Tudo era inverno em mim quando chegaste.
O altivo coração, que fora outrora
um Chimborazo ardente de desejos,
enregelado e inerte - adormecera!...

Não mais cantavam pássaros nos ramos.
E as flores todas dos jardins dos sonhos,
hirtas de frio, a tiritar, jaziam
despetaladas pelo chão de neve.

Tudo era inverno em mim quando chegaste.
Sobre o busto de Palas de minha alma
já o corvo augural pousado estava,

grasnando o “never more” da descrença.
Tudo era inverno em mim quando chegaste,
qual fruto sazonado ao sol do estio!

II

Vinhas da Canaã dos meus sonhares
para o deserto hostil dos meus desgostos,
trazendo em teu sorriso alegre e franco
o mágico esplendor de vinte auroras.

Como Ruth a Booz então me deste
do teu ardente amor farta colheita.
Da amendoeira em flor sentei-me à sombra
e fui feliz no vale do teu seio!

Deixei as vinhas de Nabot, malditas,
onde a ambição domina e o vício medra,
como o joio floresce nos trigais...

E não mais precisei, por graça tua,
ó doce Sherazade dos meus sonhos,
colher frutos de amor noutras searas!
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DIZE-ME ENTÃO...

Tu, que não crês no amor, dize-me agora
qual a ilusão que, plácida e risonha,
consola o desespero de quem chora
e inspira o devaneio de quem sonha!

Pediste amor ao pôr do sol e à aurora,
sem ver, na sua súplica tristonha,
que a quem supremo bem do alheio implora,
importa que igual bem sempre reponha.

Procura o teu destino e os teus prazeres,
e saberás que as crenças mais queridas
são fagulhas de Deus na alma dos seres...

E assim verás que o amor nunca encontraste,
porque se o procuravas noutras vidas,
no próprio coração nunca o buscaste!
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PAIXÕES

Posto que homem sou, feito de carne e osso,
sou sujeito a paixões como qualquer mortal.
Vibra e palpita em mim, num constante alvoroço,
todo o sensualismo atávico ancestral!

Domino-o porque sei, desde os tempos de moço,
sobrepor às paixões do instinto um nobre ideal.
O beijo que se paga é sempre um beijo insosso,
todo o amor que se compra é sempre amor banal!

Pode rugir feroz a besta dos desejos!
A carne pede a carne, a boca pede beijos,
mas tu, ó alma boa, o corpo me dominas!

A menos que, por fim, vencida te entregares
à sede de prazer que vem dos lupanares
e à fome de amor comprado às messalinas!
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SOBRE A SAUDADE

Quem sente saudade, sente
pouca esperança também.
Mas como é triste se a gente
nem uma, nem outra, tem.

Sentir saudade é pungente,
ao se esperar quem não vem;
porém, mais sofre o descrente
que nunca espera ninguém!

Assim, no claustro da vida,
o amor nos faz como um monge
que aguarda a luz prometida.

Por que mais vale, por certo,
uma esperança mais longe
que um desengano mais perto.
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VERSOS À ITAPERUNA
(Poema declamado pelo autor na festa que marcou o Primeiro Encontro de Valores Itaperunenses, em 11/09/1976)

I

Eu amo a minha terra e estimo a minha gente
como um filho a seus pais e a seus irmãos germanos.
E embora esteja longe há vinte e tantos anos,
só o meu corpo partiu! A alma ficou presente!

E bem maior não há, neste mundo inclemente,
(Bem por graça de Deus dado aos seres humanos)
do que a glória de ter, em meio aos desenganos,
em reciprocidade o afeto que se sente!

É este, - Itaperuna, - o meu maior anseio:
Ser querido por ti, que me nutriste o seio,
E me mim sempre encontraste a devoção e o apreço.

Ser querido por ti, que eu amo e que venero,
na mesma proporção do muito que te quero,
e não na proporção do pouco que mereço!

II

O certo é que ninguém mais do que eu te adora,
pois que és o meu lugar, o meu berço e o meu teto,
onde de um lar cristão gozando o doce afeto
eu era mais alegre e mais feliz que agora!

Meu céu só tinha então o resplendor da aurora!
E o caminho da vida era florido e reto!
Com a esperança a afagar meu coração inquieto,
não via a dor que punge e a mágoa que devora.

Um dia, Deus o quis, eu te deixei, tristonho.
Que te importa a razão? E porque o fiz, e o sonho
com que embalei meu ser buscando outro destino?

O fato é que parti e encaneci bastante...
Sou um triste que lembra a alegria distante,
sou um velho que chora os tempos de menino!

III

E hoje que estou aqui, tranquilo em teu regaço,
qual um peixe a nadar no lago onde nasceu,
trago-te a saudação e o carinhoso abraço
do menino que sou, que sem querer cresceu!...

Todo o bem que possuo, - Itaperuna, - é teu!
Esta lira que empunho e esse talento escasso.
E o saudável vigor que o teu leite me deu,
pago-te em gratidão nos versos que te faço.

Que riquezas não tem quem te dedica às rimas;
quem busca no cascalho um veio de obras primas,
na bateia do Belo emprega o engenho seu.

Eis a razão por que, à falta do ouro e gemas,
eu te ofereço agora estes humildes poemas:
são pedras sem valor, mas o garimpo é meu!

Fontes:
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.
Athos Fernandes. Ofir. 1977.