quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Machado de Assis (O segredo do bonzo)

CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos*, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga* (agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte: — Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites.

A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem bradando: “Patimau, Patimau, viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos!” E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.

Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. E dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau, ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como — ouro da verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que víramos e ouvíramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço:

— Pode ser que eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la.

— Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo: — Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cume de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.

Não sabíamos de que maneira dessemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável.

Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra uma ideia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas*, lanchas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há frequente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco de uma espórtula*, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas e celestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinquenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo.

A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça: — Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo.

— Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.

Dito isto, assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e charamela*, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes*, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembleia, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu merecimento.

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu.

Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembleia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.

A assembleia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.
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* Vocabulário
Ademanes = aceno, trejeito.
Bonzo = membro de qualquer ordem religiosa, frade, sacerdote.
Charamela =instrumento medieval de sopro, de timbre estridente, com o corpo de madeira cilíndrico dotado de orifícios e com embocadura de palheta, considerado o antecessor do oboé e do clarinete modernos
Espórtula = esmola, gorjeta.
Fustas = embarcação indiana comprida e rasa, a vela ou a remo, mercante ou de guerra
Veniaga = comércio, tráfico.

Fonte:
Machado de Assis. Papéis avulsos. Publicado originalmente em 1882. Disponível em domínio público.

Madalena Castro (Canteiro de Trovas)


 A poesia me faz
pelas nuvens viajar,
só com ela eu sou capaz
de ir ao fundo do mar.
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A vida é feito uma flor
que vai se despetalar,
regue-a sempre com amor
para não vê-la murchar.
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A vida é grande ciranda
e cada vez mais rodada,
Uma hora a gente manda
Na Outra a gente é mandada.
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Cirandeira, cirandeira
venha logo cirandar,
aproveite a brincadeira
hoje é noite de luar.
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Das flores do meu jardim,
só uma eu gosto mais dela,
é o pequenino jasmim
que enfeita a minha janela.
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Doce e gostosa lembrança
eu guardo no coração,
do meu tempo de criança
vendo o luar do sertão.
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Estou sentindo saudade
dos beijos que mamãe dava,
quando eu bastante à vontade
no seu colo me deitava.
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É tão grande a singeleza
dos versos de um trovador,
e tem muito mais beleza
quando ele fala de amor.
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Eu gosto de contemplar
o luar lá do sertão,
pois ele me faz lembrar
do meu querido torrão.
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Eu levo o tempo sorrindo
contemplando a natureza,
só assim vou extinguindo
as mazelas da tristeza.
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Eu não sou nenhuma artista
gosto de ler, de escrever,
por sorte sou cordelista
isto eu faço com prazer.
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Eu queria ser doutor.
mas mudei de opinião,
passei a ser trovador,
que me traz mais emoção.
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Foi na voz de um trovador
que lá da minha janela,
escutei versos de amor
pra sua amada tão bela.
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Foi no carnaval passado
que meu grande amor perdi,
não sei quem foi o culpado…
só sei que muito sofri.
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Gosto do Bloco das Flores
onde o lirismo irradia,
me faz lembrar dos amores
que conheci na folia.
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Igualzinho ao vendaval
o nosso amor começou,
terminado o carnaval
este amor se evaporou.
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Mamãe foi a flor mais bela
que brotou no meu jardim,
bem delicada e singela
que o Senhor mandou pra mim.
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Mando daqui meu abraço
com ternura e nostalgia,
dos encontros no terraço
que a gente sempre fazia.
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Me recordo com saudade
do meu tempo de criança,
eu tinha felicidade,
amor e muita esperança.
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Na noite em que está brilhando
o luar do meu sertão,
minha mente sai voando
e me traz inspiração.
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Nesta grande brincadeira
não dou bolas pra ninguém,
eu passo uma noite inteira
cirandando com meu bem.
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O frevo enlouquece a gente,
nos faz até delirar,
e neste delírio quente
nós frevamos a sonhar.
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O poeta expressa a dor
também expressa alegria,
faz declaração de amor
nos versos da poesia.
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O teu sorriso, meu bem
tem a graça de uma flor,
quando se abrindo ela vem
no jardim do nosso amor.
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Pode até fazer calor
o sol, meu corpo queimar,
mas por sentir tanto amor
não deixarei meu lugar.
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Quando estou com meu amor,
não vejo o tempo passar,
sinto-me igual ao condor
num largo espaço a voar.
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Que coisa boa, chegou
o verão tão esperado,
mas o sol quente deixou
meu rosto quase queimado.
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Recife, nunca esqueci
do teu passado de glória,
de tudo que descobri
nos vários livros de história.
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Saudade bate e machuca,
nunca respeita o sujeito,
deixa a cabeça maluca,
se aloja dentro do peito
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Saudade é faca que corta
sem ter gume pra cortar,
e bate na sua porta
sem você nem esperar.
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Saudade é fogo que queima
machucando o coração,
e só por maldade teima
em trazer recordação.
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Ser uma grande cantora
era tudo o que eu queria,
findei sendo professora
de cordel e poesia.
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Sou mulher e sou feliz,
não devo nada a ninguém,
de tudo um pouco já fiz
e vou muito mais além.
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Todas mulheres são flores
vindas da Mãe Natureza,
despertadoras de amores
por terem graça e beleza.
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Todo o sertão agradece
ao ver a chuva caindo,
seu povo reza uma prece
e vai pro campo sorrindo.

Fonte:
https://ubt-recife.blogspot.com/

Concursos de Trovas com Inscrições Abertas


III CONCURSO DE TROVAS DE SÃO GONÇALO/RJ

Prazo: 30 de abril de 2023

Nacional / Internacional – L/F (demais países de língua portuguesa):

Tema: MILAGRE = para Veteranos e Novos Trovadores

Estadual (Rio de Janeiro) – L/F

Tema: MILAGRE

Humor (todos os trovadores independentes da categoria e âmbito)

Tema: AGULHA

– Máximo de 02 trovas inéditas por participante para todas as categorias;

– É obrigatório constar a palavra tema na trova;

– Entende-se por Novo Trovador: aquele que não obteve até a divulgação deste regulamento 03 classificações entre os 5 primeiros colocados em 3 concursos oficiais da UBT em âmbito Nacional.

Por e-mail, as trovas devem ser encaminhadas aos cuidados dos Fiel depositários do presente Concurso, conforme abaixo discriminado.
O inscrito deverá enviar no corpo do e-mail: as trovas, bem como, o concurso, âmbito (Nacional/Internacional ou Estadual) e a categoria (Veterano ou Novo Trovador) pela qual concorre o trovador, além do nome e endereço completo, telefones e e-mail.

NÃO SERÃO ACEITOS ANEXOS.

No assunto deve constar a expressão: III Concurso de Trovas de São Gonçalo 2023

(Todos os âmbitos e categorias)

Por e-mail: Fiel Depositário – Renato Alves – ra.renatoalves@gmail.com

– As decisões da Comissão Julgadora serão soberanas e irrecorríveis;
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XIV CONCURSO LITERÁRIO “POETA ZÉ MITÔCA”

Prazo: 31 de março

Âmbito Nacional/Internacional

– apenas uma trova por participante.

VETERANOS
Tema: BRANCO

NOVOS TROVADORES
Tema: MAR

ÂMBITO ESTADUAL (CEARÁ)
sem distinção de veteranos ou novos trovadores:

Tema: BODAS DE ESTANHO (referindo-se aos 10 anos da UBT Ocara

- até duas trovas por participante.

ÂMBITO MUNICIPAL (Ocara)

Tema: BRISA

– até duas trovas

JUVENTROVA

Tema: AMOR

até duas trovas

Poesia Tema Livre: um poema de até 20 linhas

Enviar por email para Aldemiza Correia: aldemizacorreia2020@yahoo.com

No corpo do email colocar, nesta ordem:

Trova, nome completo do autor, localidade, categoria, contato
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XV JOGOS FLORAIS DE CAMBUCI/RJ

Prazo: 31 de maio

TEMA LIVRE:

– 1 trova em todos os âmbitos (Nacional/Internacional, Estadual) e categorias (analisadas separadamente), por modalidade.

Modalidades: Lírica/Filosófica e Humorística

Enviar para Rogério Marques Sequeira Costa: informativoalac@yahoo.com.br
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Outros concursos e respectivos links:

I Jogos Florais de Irati PR
Prazo: 28 de fevereiro
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2022/12/concursos-de-trovas-com-inscricoes.html

I Concurso de Trovas de São Paulo/SP
Prazo:31 de março
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2022/12/concursos-de-trovas-com-inscricoes.html

XVIII Concurso de Trovas de Maranguape/CE
Prazo: 31 de março
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2022/12/concursos-de-trovas-com-inscricoes.html

X Jogos Florais de Campos dos Goytacazes/RJ
Prazo: 30 de abril
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2023/01/mais-2-concursos-de-trovas-com.html

XXII Jogos Florais de Curitiba/PR

Prazo: 31 de maio
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2023/01/xxii-jogos-florais-de-curitiba-prazo-31.html

Aparecido Raimundo de Souza (Como moeda de troca)

ANUNCIEI NO WATSAPP do grupo do prédio onde moro, que estou trocando uma caixa de som por um rádio portátil, desde que o aparelho funcione e pegue todas as estações. O meu atual não foge à regra, porém, a estação que eu gosto de ouvir, a FM-95,9, a Solta o Som, por algum motivo inexplicável, toda vez que é ligada, se transforma numa chiadeira infernal.

A coisa pegou. Todo mundo resolveu entrar na dança gostosa e se fazer presente, barganhando alguma coisa ou vendendo, aquilo que não faz mais uso. O Beto, do 501, quer se desfazer da coleção da vampiresca americana L. J. Smith, por alguma coisa mais séria. Beto deixou claro que os textos englobados nos volumes lidos não lhe convenceram. Água com açúcar. Prefere Stephanie Meyer.

Ofereci a ele o E. L. James, e o prezado deixou claro que a britânica E. L. James, apesar dos seus Cinquenta Tons de Cinza não está mais no topo das suas predileções. Dona Rosinha do 803 quer trocar seu gato por um cachorro. O gato dela solta muitos pelos, daí a preferência por um cachorro. Deixou sintetizado que o gato está com todas as vacinas em dia. Ela quer que a troca seja justa.  Que o animal a ser apresentado em substituição ao bichano também exiba toda a documentação em perfeita ordem.

A moradora do 1002, dona Vitalina quer doar uns vestidos que lhe ficaram pequenos e mais de uma dúzia de sapatos em perfeito uso.

Seu Luiz do 704 anunciou que leciona violão. Aulas a partir de 200 reais. Os interessados carecerão trazer seus instrumentos.

O Chico do 605 fez uma pergunta que deixou o músico do 704 deveras embrabecido. Escreveu:

— Dar aulas de violão sem o violão?  Entendo que o professor aí precisaria ter, pelo menos, uma meia dúzia para empréstimos.

O professor não deixou por menos. Gravou um vídeo em resposta, mostrando a sua cara furiosa e de poucos amigos:

— Caro morador, entendo que o senhor ao pretender tomar aulas de violão comigo, precisa ter a seu ao alcance das mãos. Em minha antiga casa, contava com três. Ao me mudar para cá, meu carro foi arrombado e o infeliz do meliante levou os violões, me deixando a ver navios onde só existiam partituras. Se o companheiro quiser vir tomar aulas, será bem-vindo, contudo, providencie um violão ao sabor da sua predileção.

O doutor Paulo, síndico e administrador do grupo deu um chega pra lá calando os dois brigões:

— Por favor, cavalheiros. Vamos ficar de fora das picuinhas e dos melindres.  

A Bárbara do 804 que enviuvou do marido, quer se desfazer dos ternos do falecido. Anunciou as peças com uma série de fotos a preços módicos. O engraçadinho do Pilombeta, porteiro da noite, não deixou por menos. Gravou um áudio:

— Tenho interesse nas vestimentas. A viúva vem junto?

Toda a galera pendurada caiu na gargalhada. Contei mais de 50 risadas. Novamente o doutor Paulo entrou em cena:

— Gente, vamos focar sem melindres e gracinhas. Rogo que venham ao grupo apenas aqueles moradores que desejem vender ou comprar alguma coisa que esteja sem valor ou ocupando espaço. Sugiro colocarmos a educação em primeiro lugar.

Um telefonema não cadastrado sinalizou anonimamente pedido de permissão. Foi aceito. Gravou áudio:

— Oa arde a odos. Dona Árbara do 804. Ona Árbara, aqui é o Alo Arijó. Enho interesse as oupas do eu ex. Odavia, ostaria de aber se a enhora me eixaria udar de ala e uia ara eu apê e lhe eter a espora. O ue e iz?

Sem brincadeira nenhuma. Oitenta risadas se fizeram ouvir. Algumas escritas com o tradicional kikikikikiki. Ganhou a maioria com mais de cem áudios os mais cabeludos e a revelia da proposta inicial do organizador.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

José Fabiano (Muros de Trovas) 04

 

Jaqueline Machado (Por quê?)


Nada é para sempre... Sendo assim, quero esse amor pra mim.

Tudo vai acabar em breve, tão em breve que não sei se vale o esforço da espera de provar da magia dessa chama que me contagia, e que sim, é amor. Ainda assim eu quero. E por um instante me deixo enganar pela ilusão de que tenho o poder de reter a sobrevivência desse amor que é tão lindo - o mais lindo de todos - num frasco consagrado pelo tempo divino.

Não temo a morte. Afinal, ela existe, e dela ninguém escapa. E num dia ou numa noite qualquer, por ela serei levada a viver em outro reino. Mas ao me apaixonar por você,  passei a temer a morte. E desejar só o que é infinito. Porque a realidade do que é finito referente a este amor, não me basta.

Antes do amor chegar, tudo parecia caber na pequena redoma, morada da vida, mas depois que o amor chegou, tudo se modificou dentro de mim. Um dia parece caber no espaço de um segundo, as semanas são regidas por minutos, um ano não passa de umas poucas horas. E eu querendo você por uns duzentos anos...

Mas agora há pouco, olhei para o firmamento e disse: oh, Senhor dos tempos, não seja malvado assim... Antes apreciava habitar o mundo, mas um dia queria morrer só para renascer e sentir minha alma esvoaçante evoluir nas finas camadas celestiais do infinito. Agora não quero mais nada disso. Sou uma pequena flor, e assim quero continuar a ser. E para esse amor, viver a sorrir... Só isso me importa. Nada mais.

O para sempre não existe, tudo são momentos que surgem de outros momentos e isso tudo se segue num ciclo sem fim.

Ainda assim quero esse amor que vai durar pouco,  apenas alguns segundos... E como amo esse querer...

Foi então que o tempo, vestido de nuvem e olhos de sol, apareceu para mim, e se aproximando devagar falou: - Sabe por que o ser humano  luta tanto em nome do amor mesmo sabendo que ele pouco vai durar? Por que a vida não passa de breves dias?

E eu, surpresa com a presença daquele velho de aparência jovem, respondi – Não sei.

Então ele disse: - Isso acontece porque o amor é a manifestação do Deus Supremo em estado de absoluta graça nos corações. E nem mesmo eu, o tempo, sou eterno. Só Deus vive para sempre. Mas quem vive o amor, em segundos, conhece a eternidade. E descobre o segredo de Deus por inteiro. O amor, em si, é a própria eternidade. Sabe, filha, às vezes, o ser humano é mais privilegiado do que os deuses e não se dá conta disso.

- O Tempo se foi. - E eu fiquei aqui embevecida com a beleza da grande descoberta.

Agora eu entendi... O tempo do amor não se soma em números. É por si só, uma imensidão, independente do tempo vivido...

E me dei conta de que qualquer pedaço de tempo junto de você é uma versão do infinito...

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 3


LUCIDEZ


Será loucura
Se reinventar todos os dias
Mesmo que em pensamento?
Será loucura
Ser um pouquinho feliz
Com a pessoa errada
Do que ser totalmente infeliz?
Será loucura
Ser apaixonada pela vida
Sem se importar com nada?
É, é loucura sim.
Porque o amor...
O amor é pura loucura.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

LUZES DA ALMA

Olhar perdido,
Olhar de paixão.
Olhar fingido,
Olhar de solidão.

Olhar cativante,
Olhar brejeiro.
Olhar falante,
Olhar matreiro.

Olhar saudoso,
Olhar apaixonado.
Olhar gostoso,
Olhar iluminado.

Olhar maroto,
Olhar sofrido.
Olhar fofo,
Olhar vivido.

Olhares...
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

MATURIDADE

O corpo de menina
Cede espaço às rugas,
Sinais que o tempo
Não consegue apagar.
Mulher madura
Mas com seu
Charme bem peculiar.
A vida é linda!
Basta ser vivida!
Aos 20, 40 ou 60...
O que importa
É o coração imune a indiferenças
E até mesmo às maledicências.
Envelhecer faz parte,
Mas ser feliz,
Poucos sabem.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

MEIA LUA, MINHA LUA

Lua quente
Lua ciúme
Lua solidão
Lua enluarada
Lua escuridão
Lua paixão dos amantes
Lua sonhada
Lua esquecida
Lua...
Que linda a lua...
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

MENINA MULHER

Corpos nus
Entrelaçados
Na dança da paixão.
Quero colo
Quero beijo
Quero prazer
No suor do seu abraço.
Uma flor brilha na escuridão.
É você menina mulher
Totalmente entregue
Totalmente sua
Totalmente saciada
Totalmente nua.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

NOITES DE INVERNO

Noites vazias, frias...
Uma solidão sem fim,
Te procuro...
Te acho...
Te perco...
A lua ilumina
Meu rosto molhado.
Olho o céu...
Te vejo em mim.
São estrelas,
Apenas algumas estrelas...
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O TEMPO

Sentimento escondido
Em um emaranhado sem fim.
Vontade de gritar ao mundo
O que sinto...
Mas a razão e o orgulho
Me impedem.
Prefiro sofrer calada
Prefiro chorar escondida
Prefiro sentir dor.
Que amor é esse que maltrata?
E quando tudo parecer ruir
Melhor deixar o pranto cair.
Quando tudo desmoronar
Nada melhor do que o tempo
Para curar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

OUTRORA

Houvera um tempo
Em que os olhos dela brilhavam
Irradiando felicidade por onde passasse.
Houvera um tempo
Em que o canto melodioso de sua voz
Fazia com que o mundo a seus pés se ajoelhasse.
Houvera um tempo
Em que as crianças correndo pelo jardim
Bastava para lhe fazer feliz.
Houvera um tempo...
Quão belos aqueles tempos...
Em que uma simples dança
Deixava no ar um aroma sereno
De paz e anis.
Houvera um tempo
Em que tudo eram flores, risos, na singeleza pueril.
Os tempos agora são outros...
Hoje, olhar os pássaros pela janela, lhe basta.
Faz com que seu coração pulse na calmaria
Amena e tranquila de uma tarde primaveril.

Fonte:
Enviado pela poetisa.
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.

Humberto de Campos (Entre os Papuas)

Um dos maiores sonhos da minha infância era atravessar a vida viajando. As aventuras do "Gulliver" de Swift; o "Rocambole", de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14° aniversário, exerceram tamanha influência sobre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência, senão naquelas viagens maravilhosas. Homem feito, abracei a carreira que mais se coadunava com as minhas aspirações de criança; e, como a vida fosse curta para tanto projeto desordenado, é com verdadeira alegria que os completo hoje, mentalmente, ouvindo, aqui e ali, onde os deparo, a palestra dos amigos mais viajados do que eu.

Uma destas noites, após o jantar elegantíssimo com que o desembargador Corrêa da Cunha festejou o regresso do comendador Adeodato de Barros, que voltava da sua última excursão às índias e à Oceania, tive eu um dos momentos mais felizes da minha vida, ouvindo a história desse passeio de milionário, o qual durou, como é sabido, cerca de três anos e meio. Com a sua palavra viva, segura, concisa, narrava o soberbo capitalista os episódios mais interessantes, quando, em certo momento, se voltou para as senhoras, explicando:

- O costume mais curioso que eu encontrei foi, porém, o dos indígenas das Molucas, entre os quais me demorei algum tempo.

As senhoras voltaram-se, interessadas, e o comendador começou, mexendo, pausadamente, com uma colherinha de prata, a sua taça de vinho com água e açúcar:

- Entre os papúas, o casamento é inteiramente livre. Adeptos da poligamia, como o são, em geral, os povos brutalizados, esses indígenas permitem que o homem tome, e sustente, as mulheres que bem entenda. Uma exigência é, no entanto, feita a quantos se queiram prevalecer dessa faculdade: cada casamento que o indivíduo contrai é selado com uma cerimônia bárbara, que consiste em arrancar um dente aos esposos. Ao contrário do que sucedia a certos povos antigos, entre os quais o contrato nupcial era selado com a incisão em duas veias do braço, para que o sangue dos noivos se misturasse, os papúas exigem esse sacrifício dos dentes, de modo que o beijo de núpcias é um beijo sangrento em que se confunde, num pacto horrendo, que é um símbolo da união na vida, o sangue dos nubentes.

- Que horror! - observou Mme. Schwartz, fazendo uma careta.

- Que bárbaros! - reforçou Mlle. Toledo Gomide, repetindo o mesmo gesto de nojo.

As outras senhoras comentavam esse costume dos indígenas com a mesma indignação incontida, quando Mme. Corrêa Gomes indagou, curiosa:

- Quanto tempo o comendador passou entre essas feras?

- Um ano, minha senhora.

- Sem se afastar deles?

- Não, senhora. Saí duas vezes, para ir a Amboine, capital do arquipélago.

Passado um instante, explicou, distraído:

- Mas demorei-me pouco longe deles. Fui apenas consertar a dentadura...

E continuou a mastigar, forte, com todos os dentes.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Penha de França


A água, o pão e o vinho, são os elementos que constituem o brasão deste bairro. A freguesia é, relativamente, mas as suas tradições são tão antigas como a cidade.

Freguesia criada a 13 de Abril de 1918, a Penha de França foi, durante anos, o local com mais habitantes de Lisboa.

Este bairro da zona oriental ocupa um dos pontos mais altos da capital e, do miradouro da sua igreja, avista-se o Tejo e boa parte da cidade. O que inicialmente não passava de uma ermida construída em madeira, deu lugar à igreja de sólida construção que remonta ao ano de 1597. A Igreja da Nossa Senhora da Penha foi edificada no então Cabeço de Alperche, hoje Alto da Penha de França. A igreja foi totalmente destruída com o terremoto de 1755 e, num local que era composto por quintas e hortas, ergueram-se imponentes e majestosos solares, onde viveram algumas famílias senhoriais. Reconstruída após o terremoto, a igreja atual possui no seu altar-mor a imagem de Nossa Senhora da Penha de França e, num dos lados, uma reprodução da antiga ermida. No outro extremo do altar está uma figura representando um homem adormecido com o famoso “Lagarto da Penha” que, reza a lenda, o salvou milagrosamente de um ataque de uma cobra.

Uma da tradições mais antigas é a famosa "Procissão do Ferrolho”. Corria o ano de 1599, quando um surto de peste assolou a cidade. O povo da cidade, aflito, solicitou ajuda à Senhora da Penha. O mal foi debelado e os habitantes cumpriram a sua promessa, organizando todos os anos, uma romaria à Virgem. Os crentes participavam descalços na procissão e, entre a casa do Santo António, a Sé, a Mouraria e a Penha de França, batiam nos ferrolhos das portas para acordar os devotos.

O Sporting Clube da Penha foi fundado a 8 de Dezembro de 1939. Organiza a marcha do seu bairro. Na parte cultural já obteve vários prêmios no Festival de Teatro de Amadores de Lisboa, em 1991, e honras de participação na iniciativa “Lisboa, Capital Europeia da Cultura”, em 1994.
 
 MARCHA DA PENHA DE FRANÇA
(Uma Estrela na Penha)


 Letra de Rosa Lobato Faria
Música de Fernando Correia Martins


(Refrão)
Penha de França
Penha de França
Tu és criança entre as outras Freguesias
Penha de França
A tua trança
É penteada pela mão das ventanias
Penha de França
Ninguém se cansa
E a tradição uma vez mais vai ser verdade
Entra na dança
Penha de França
Bate ao ferrolho pra acordar
Toda a cidade.

Tens Lisboa
Toda a teus pés
Vês Alfama, vês Rossio
Vês o povo entrar na Sé
Vês os barcos singrar no rio, pois é …
Foste ermida
De muita fé
Tens orgulho na tradição
E o ex-voto dum bom jacaré
Que salvou uma vez
 Quem lá está a dormir
Na igreja que um bom Português
Prometeu ao Senhor em Alcácer-Quibir.

(Refrão)
Tens fadista
Tens foliões
Que marcaram no carnaval
Tens guitarras e tens brasões
muita casa senhorial, que tal ? ...
No convento de teus avós
Jesus Cristo vela por nós
Desde o tempo em que os Homens do mar
Iam ao Ferrugento beber e cantar
És Penha de França e de Vida
Que desce a Avenida
Que sabe marchar.

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A. A. de Trovas (Jardim de Trovas) 21

 

Cláudio de Cápua (A arte e a criatura)


Tudo o que a retina humana fotografa é registrado com mais ou menos força no cérebro. A contemplação de uma paisagem, por uma pessoa de sensibilidade, pode criar sensações, inexplicáveis, em sua alma, e essa mesma paisagem, vista por outra criatura menos sensível, pode passar completamente despercebida.

A Arte é magia que penetra na alma e povoa a mente das criaturas.

É o despertar das ideias mais elevadas do ser humano.

É claro que, dependendo da categoria a que pertença esta criatura, as visões de um tema, ao invés de propiciar pensamentos sublimes, pode também contribuir para estimular pensamentos ruins.

Diante de tal questão, é desejável que a Arte caminhe sempre de mãos dadas com a moral, dentro de objetivos que, através da sensibilidade, consiga entusiasmar a criatura, atingindo subjetivamente sua inteligência.

Segundo a filosofia, o homem, antes de pensar, sente.

O pensamento nasce como fatal consequência do sentimento e desvela pensamentos, que fazem nascer diferentes estados de alma.

Quando se sente oprimida, a criatura humana, por ideias ácidas e tormentosas, refugia-se na literatura, na poesia, na música ou na contemplação de uma obra de Arte.

Diante da influência benéfica da Arte, o espírito ferido encontra o bálsamo milagroso.

Se a Arte em geral desperta sentimentos bons, estimulando novas ideias, fortalecendo a inteligência, não resta dúvidas de que é saudável estabelecer ligações permanentes com as variadas formas de beleza encarnadas pela Arte.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
Revista Santos Arte e Cultura - Setembro/2010

Fonte:
Enviado pelo autor.
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.

Mara Garin (Notícia de Jornal)

Dia destes, quente tarde de verão, saí caminhando pelo meu sítio, fotografando flores, bichos, plantas, céu, vertentes, pedras e ilusões. No limite Sul da propriedade encontrei minha vizinha lindeira, uma senhorinha envergada por muitos verões, mas de mãos firmes na enxada, que habilmente separa as ervas daninhas, de suas lindas e coloridas pimenteiras dedo de moça, ela bem disposta e sorridente questionou:

– Vizinha! Tu viu as notícias do jornal de sábado?

– Não!

– Dois moços brigaram de facões! Um caminhou até perto de casa e morreu, sentado no meio da rua, o outro caminhou até uma parada de ônibus e sentou, quase morto, esperando socorro, está bem mal no hospital, muito triste! O que tu pensa disso?

- Eu? Não penso nada, só oro pelos corações das mães! Não me interessam os motivos, não me interessam as mensagens que correm nos grupos de WhatsApp, não me interessam os que viram e não impediram, não me interessam as fotos sangrentas. Só me interessa orar pelos corações das mães!

A vizinha deu uma desculpa, falou da falta de chuva, mostrou uma nuvem cinza ao norte, que o vento soprava para longe da cidade, e, vagarosamente despediu-se e entrou em sua casa. Eu voltei pelo mesmo caminho refletindo, porque a desgraça é notícia e a arte não? Porque os textos com tristezas rapidamente são virais na Internet, enquanto a literatura mofa, em páginas de jornais, livros nas estantes ou arquivos nunca impressos? Porque a poesia e o amor não são virais?

Porque somos frutos de nossas escolhas! Enquanto eu escolho a beleza do meu mundo, a vizinha compra a tristeza espalhada no jornal, reproduzida na televisão, viralizada nas redes sociais.

Neste mesmo dia, na mesma rua, um menino de família humilde se formava professor, mas isso não vende jornal, só eu vi a beleza e o orgulho nos olhos daquela outra mãe.

Fonte:
Texto enviado por Jaqueline Machado.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LI


TE DESEJO O DOBRO!

MOTE:
Na tua festividade,
que Deus te dê algo assim,
como essa felicidade
que eu desejo para mim.
Adélia Victória Ferreira

Sete Barras/SP, 1929 – 2018, São Paulo/SP

GLOSA:
Na tua festividade,

desejo saúde e paz,
num manto só de bondade
que a nossa amizade traz!

Que teus sonhos, realizes...
que Deus te dê algo assim:
ver os teus, sempre felizes
numa ternura sem fim!

Eu te desejo, é verdade
que vivas com emoção,
como essa felicidade
que eu tenho no coração!

Mas, sendo assim, especial
em dobro, eu desejo, sim
toda a alegria ideal,
que eu desejo para mim.
= = = = = = = = =

NOITES…

MOTE:
Noites feitas de saudades,
de lembranças, de meiguice:
Tão curtas na mocidade,
e tão longas na velhice!
Alfredo de Castro

Pouso Alegre/MG, 1922 – 2011

GLOSA:
Noites feitas de saudades,

noites cheias de carinho,
revivo com ansiedade
as noites do meu caminho!

São noites de nossas vidas,
de lembranças, de meiguice:
com alegrias sentidas,
como se a noite sorrisse!

Mas as noites, na verdade,
diferem completamente,
tão curtas na mocidade,
e tão distantes da gente!

Não resta nem a lembrança
das noites de quixotice...
Hoje são sem esperança,
e tão longas na velhice!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

QUANDO EM TEUS BRAÇOS…

MOTE:
Neste amor grande e bendito,
quando em teus braços me ponho,
o nosso amor é infinito,
e é sem limite o meu sonho...
Aloísio Alves da Costa

Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
Neste amor grande e bendito,

que sempre uniu a nós dois,
eu sinto, já estava escrito,
no ontem, nosso depois!...

Me sinto no paraíso,
quando em teus braços me ponho,
e uma canção de sorriso
vem me embalar, eu suponho!

Esse nosso amor bonito
é maior que o universo,
o nosso amor é infinito,
mas cabe dentro de um verso!

E esse verso surge, então,
apaixonado e risonho...
Eu sonho com emoção,
e é sem limite o meu sonho…
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

NADA É TÃO TRISTE…

MOTE:
Mais do que o próprio desdém,
nada nos deixa tão sós,
como saber que ninguém
sente saudades de nós...

Batista Nunes
Vassouras/RJ, 1883 - 1965, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Mais do que o próprio desdém,

até mais que a traição,
mais que a tristeza, também,
é a dor da solidão!

Sem ter, sequer esperança
nada nos deixa tão sós,
que não guardar na lembrança
o timbre de alguma voz!

Nada é mais triste, porém,
nessa cruel nostalgia,
como saber que ninguém
nos recordará, um dia!

Essa angústia, tão sentida,
de todas, a mais atroz:
é ver que ninguém, na vida,
sente saudades de nós…
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

LÁGRIMAS...

MOTE:
Lágrimas... Triste verdade
de uma ausência permanente,
é o recesso da saudade
que fica dentro da gente.

Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:
Lágrimas... Triste verdade

são as vertentes da dor
onde vemos a maldade
escondendo até o amor!

Sentimos forte presença
de uma ausência permanente,
e nossa esperança e crença
fogem repentinamente!

Enfrento a realidade
no pranto que jorra triste,
é o recesso da saudade
de um algo que, ainda, existe!

É uma lembrança real,
é o passado, no presente,
é uma marca sem igual
que fica dentro da gente.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Junho de 2005.

Alcântara Machado (Guerra civil)


Em Caguaçu, os revolucionários. Em São Tiago, os legalistas. Entre os dois indiferente, o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no voo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde.

De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.

Porém, uma manhã chegou em Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a coisa iria mesmo.

Boniteza se surpreendeu, mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.

A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas Cacundeiro.
– – – – -

Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.

Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma coisa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.

Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Polo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Polo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.

Deu um berro: - Alto!

Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.
– – – – – -

Leônidas pensou: - Que negócio será aquele?

Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente!

Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: - Que negócio será aquele? Vá chamar o major!

Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigui ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade.

Resmungou: - Já vou.

Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante!

O anspeçada* primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:

- Às seis estou lá.
– – – – – -

Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.

Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha. Toques de corneta chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.

O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando.

A sua primeira observação foi: - É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro!

O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.

O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.

O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde**.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
*Anspeçada = graduação de praça entre marinheiro/soldado e cabo.
** Ex-corde = expressão greco-latina que quer significa do coração ou que algo saiu do intimo da pessoa.


Fonte:
Alcântara Machado. Novelas Paulistas. Disponível em Domínio Público.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Isabel Furini (Poema 38): Tecer

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook
 

George Abrão (Folguedos e sabores da infância: gosto de saudade)


A velha Rua do Comércio (hoje tem outro nome), na Cidade Alta, em Jaguariaíva, minha querida terra natal, foi o palco das nossas brincadeiras de crianças. A nossa querida e saudosa rua não era pavimentada, mas para nós o pó e as pequenas pedras não incomodavam, pois em seu leito corríamos céleres quando das nossas brincadeiras. E os carrinhos de rolimãs então, quando nos pequenos declives descíamos com força total disputando velocidade. As nossas roupas e calçados sofriam quando de algum acidente ou das frenagens nas nossas “máquinas super possantes”. Reclamações das vizinhas pelo barulho e palmadas em casa pelo prejuízo nas roupas. E as escoriações nos joelhos, cotovelos e dedos, que eram os que mais sofriam.

A “piazada” da rua, de pouca idade e muita inocência, gastava as suas energias brincando muito de mãe da rua, pula-carniça, pique, balança caixão, bandido e mocinho, isso quando estávamos brincando sem as meninas, pois quando elas queriam brincar juntas, tudo era mais calmo, aí tínhamos que brincar de passa-anel, de adivinha, de escolinha, de passa-passa e até de roda, e aí eram diversas: o barquinho virou; senhora dona Sanja; bom dia minha senhorinha e outras tantas. E se nos fizéssemos de rogados e negássemos brincar com elas, quase apanhávamos.

E depois disso tudo a fome batia e todos corriam para as suas casas mitigá-la. E aí vinha a melhor parte do dia, pois o cheiro de feijão com arroz, carne e salada invadia nossas narinas e após lavarmos as mãos (obrigados pelas mães), sentávamos e haja apetite!

E por falar em comida, existem sabores que se entranharam em nossa memória e que, só de lembrar, vêm aguçar o nosso paladar e nos trazer doces lembranças. A mim, os mais marcantes são: o doce de chila* (eu apelidei de doce de vidro) que minha avó fazia; os doces de minha mãe: cajuzinho de amendoim; pudim de queijo; pamonha doce recheada com goiabada; rocambole tronco de chocolate; amor aos pedaços; bolo de fubá assado na panela, sobre a chapa; arroz-doce; cocada com creme. E seus salgados: pastel; quibe; empada; almôndegas; canudinho com salada de maionese, isso sem contar com a galinha recheada e o leitão pururuca assados no forno a lenha no quintal e do saboroso bolinho de milho verde.

E o sabor das balas de ovos e das cocadinhas de mel que comprávamos na Casa Cruzeiro do Sul e dos sorvetes do Bar Maracanã.

Além das saborosas limonadas feitas por minha mãe, lembro-me com saudade do refrigerante Crush* (que na época era produzido no Brasil) e da gasosa vermelha da Cini*.

E, acima de tudo, tínhamos a liberdade de podermos sair sozinhos, pois naquela nossa querida rua, e até em toda a cidade, todos conheciam todos, como se houvesse lá só uma família.

Minha doce Jaguariaíva!
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* Notas:
Doce de chila = doce de abóbora chila.

Crush =No Brasil, a Crush foi fabricada nos sabores laranja e uva pelas indústrias Golé e a Pakera, então franqueadas pela multinacional Cadbury Schweppes até o cancelamento da licença e a interrupção da produção.

Gasosa Cini = é uma marca de refrigerante característico e tradicional da região sul do Brasil, em especial nos estados do Paraná, onde foi fundada em São José dos Pinhais e onde se localiza a fábrica Cini Bebidas.

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Eliseu Lacerda (Por dez minutos o Carlito não morreu)


Um relato difícil de se acreditar. Maracanã cheio... festa... decisão de campeonato... um quadro lindo e, ao mesmo tempo, "arrepiante. Era muita gente. Público: mais de 164.000! Cerca de 90% vestidos de vermelho e preto. O Carlito parecia no céu: "pela primeira vez, o pai me traz ao Maracanã...” eu não acredito... acho que era o que se passava na sua cabeça.

Ano de 1992; o campeonato brasileiro chegava ao fim. Depois de uma goleada por 3 a O sobre o Botafogo, o Mais Querido estava "com a mão na taça"; eu já havia programado a compra das passagens na semana anterior; faltava apenas a primeira partida acontecer, e o primo Norbertinho me compraria os ingressos (acho que foi ele mesmo - ele e a Lúcia eram os meus "contatos" pra compra de ingressos, no Rio).

As filhas Mili e Andrea ficaram em Curitiba; assistiriam pela televisão, com um pedido meu pra gravarem o jogo. Foi o que fizeram.

 Não comentarei aqui, o que se passava na minha cabeça; são detalhes que devo dispensar. Carlito, apesar dos seus 15 anos, era pequeno. Eu vivia muito preocupado com isso; e o cuidado com ele, dentro do estádio, era fundamental para a sua segurança.

Assim que vislumbramos aquela maravilhosa galera, cantando "hinos de guerra", o Carlito correu em direção à grade de proteção, na arquibancada. Eu disse a ele que tomasse cuidado, porque os parafusos de sustentação estavam enferrujados. Mas, não me preocupei tanto com isso.

De 1988 a 1998, eu fui proprietário de uma banca de jornais, ao lado de casa. Uma das distribuidoras de revistas que me atendiam era a Ghignone. Quando o Flamengo se classificou para a final, que seria disputada em dois jogos, eu fui ao Fernando Ghignone, proprietário da distribuidora, e pedi que "bancasse" a confecção de uma faixa. Aceitou.

Bolei o seguinte texto para a faixa: "Curitiba te saúda, mengão campeão - Flaghignone". De fundo branco e letras em vermelho e preto, até que ficou bem vistosa... "com direito" a aparecer na televisão (do lado esquerdo da tela), nas seguidas chamadas do Maracanã, pela Globo (tá lá no vídeo), durante a partida preliminar entre veteranos do Mengo e pessoal da imprensa.

Conhecedor profundo do estádio, eu gostava de ficar na parte central, sentado no quinto lance de degraus (naquela época, não havia cadeiras ali); quem ficasse passando rente à grade, não tirava a minha visão do campo; ao mesmo tempo, não era tão longe que prejudicasse o reconhecimento dos jogadores. Além do mais, naquele nível ficavam as saídas da parte da arquibancada,

Estava tudo perfeito: pendurei a faixa na grade e fui "pro meu lugar"; o Carlito, maravilhado com tudo, não se desgrudava da grade (alambrado), bem sobre o lugar onde amarrei a faixa. E gritava sem parar: "... Mengo... Mengo... Mengo... Mengão e ô... Mengão... e ô!".

"Pai! Pai! Pai! Estão tirando a faixa... pai!". Corri, descendo os degraus. "Pô... larga a faixa... ela é minha...", gritei. "O senhor tem que tirar a faixa daqui", gritavam alguns membros da "Raça Rubro-negra". "Eu cheguei primeiro...", argumentei, "Não tem quem chegou primeiro... esse lugar é nosso...", respondiam, enquanto desamarravam a faixa. "Moço, põe a faixa aqui...!", gritou a Chefe da "Charanga", a uns cinco metros à minha direita; "... aqui tem espaço...". E fui pra lá, com a faixa.

Alguns torcedores me ajudaram a amarrar a faixa no novo lugar. O Carlito se deslocou e voltou a ficar com os braços apoiados na grade, sobre o ponto onde, então, coloquei a faixa. Voltei pro quinto lance de degraus, agora em frente ao novo local.

A preliminar estava tão emocionante, a minha alegria era tanta, em ver o meu "gatão", pela primeira vez no Maracanã, que não liguei para este pequeno incidente. Se alguém me dissesse o que iria acontecer, em seguida, eu jamais acreditaria. Passaram-se cerca de dez minutos, desde o deslocamento da faixa... só isso. Tempo curto demais para o que vinha depois!

"Carlito, sai! Carlito, corre pra cá... corre!", gritei desesperado.

Desci feito um louco, pra proteger o meu filho. Pavoroso, o que acontecia: à minha esquerda, exatamente no lugar onde, há dez minutos, estava a faixa, o mundo parecia desabar.

Com    aquele    "empurra-empurra",    torcedores tomando a sua “cervejinha”, farra de torcidas, o alambrado cedeu, rompendo-se num discreto estalo. Calculo "por baixo", que caíram uns 30 torcedores, contando aqueles que, curiosos, vinham ver o que acontecia "lá em baixo" e, também, caiam.

Em segundos, o barulho de sirenes de ambulâncias, corre-corre, gritos de desespero, corpos sobre o chão; em seguida, helicópteros pousavam próximo ao local, para ajudar na remoção dos feridos mais graves.

A preliminar foi interrompida imediatamente.

Pensei nas filhas, em Curitiba... elas estão assistindo, ao vivo, o acidente. Eu não tinha noção do número de mortos. "Preciso telefonar urgente pra lá...", falei com o Carlito. "Não saia daqui, de jeito nenhum... eu volto já", completei, e corri em direção aos "orelhões" mais próximos.

Mais desespero: não conseguia linha, pra falar com Curitiba. Tentei muitas vezes, até que me ocorreu telefonar pra Vila Velha e pedir a algum irmão que telefonasse pra Curitiba, avisando que estávamos bem... nada havia acontecido conosco.

Fiz bem: pela transmissão da televisão, dava pra ver, nitidamente, que a queda se verificou exatamente onde ficara a faixa, anteriormente. Mas, não podiam saber que tinha sido retirada minutos antes da tragédia; e estavam chorando, quando receberam o telefonema de Vila Velha.

O jogo Flamengo e Botafogo começou com uns cinco minutos de atraso. Houve empate por dois gols, e o Mengão foi campeão brasileiro.

Saldo do acidente: muitos feridos, alguns graves; três mortes, no local mais duas mortes no hospital, durante a semana. Antes do jogo, um torcedor rubro-negro foi morto a tiros, no estacionamento do estádio.

Graças a Deus, e "por dez minutos, o Carlito não morreu", no Maracanã.

Fonte:
Enviado por Luiz Hélio Friedrich
Ney Fernando Perracini de Azevedo (org). Safira Paranaense. Curitiba: ABRAEE/PR, 2015.

Jessé Nascimento (Sementes de Trovas)


A formiga na labuta
nos dá profunda lição;
não se curva ao peso e à  luta,
vive em perfeita união.
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Caminhos, jardins e praças,
flores, cores - que beleza!
Deus derrama suas graças
dando graça à natureza!
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Chora o coração sentindo
tristeza, nunca revolta;
os amigos vão partindo
numa viagem sem volta.
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Com meus sonhos mais singelos
embalados na esperança
venho erguendo meus castelos
desde os tempos de criança.
3° Lugar em Magé/RJ -1995
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Corres tanto, mocidade,
és pela vida levada.
Amanhã serás saudade,
serás velhice, mais nada...
1" Lugar Concurso Estudantil Rio de Janeiro -1995
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Dos outros não dependamos,
mas cada um erga a voz;
a paz que tanto almejamos
começa dentro de nós.
Menção Especial em Israel - 2015
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Leu “Campanha do Agasalho”,
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
em vez de deixar, pegou.
6. Lugar, em Cantagalo/RJ - 2017
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Lindo olhar, belo sorriso,
rosto de tal perfeição,
sugere o traço preciso
do Senhor da criação.
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Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
Menção Especial, no Uruguai - 2020
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Na padaria, o cliente:
- O pão está bem "quentinho?"
Com sorriso, a atendente;
- Veja como está "fresquinho".
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Navegando nas poesias,
nas ondas da inspiração,
iço as velas de alegrias
deixo o rumo ao coração.
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No sonho e imaginação,
vou compondo cada verso;
partindo do coração,
viajo pelo universo.
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Num cenário colorido,
cheio de encanto e alegria,
a vida tem mais sentido:
a primavera extasia!
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O genro sempre é quem dança,
a minha sogra é um porre;
o nome dela é "Esperança"
que é a última que morre.
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Por mais que as regras morais
moldem o bom cidadão,
dia a dia os imorais
na vida melhor se dão.
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Pra acreditar foi um custo;
na primeira gravidez,
levou um tremendo susto;
foram cinco de uma vez!
3" Lugar, em São Gonçalo/RJ - 2017
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Quando a razão não alcança
por mais que pareça incrível,
ter fé é ter esperança,
ter fé é crer no impossível.
Menção Honrosa, em Maranguape/CE - 2019
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Quantas vezes nós choramos
por tantas coisas banais...
Mas, jamais nos esqueçamos;
há outros que sofrem mais.
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Que a humanidade resista
ao mal que, sagaz, avança
eu sou poeta otimista:
ainda existe esperança!
Vencedora em Itaocara/RJ - 2020
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Se a tua cruz é pesada
e vives só de lamento,
hás de encontrar pela estrada
outros com mais sofrimento.
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Semelhante a um quartel
tem sido assim minha casa;
minha mulher, coronel
e eu sempre patente rasa.
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Senhor Deus, misericórdia!
Neste conturbado mundo,
nos corações põe concórdia,
mais perdão e amor profundo.
Menção Especial, em Cantagalo/RJ - 2017
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Tenho ciúme e desgosto
quando, à  noite, leve brisa
afaga o teu meigo rosto
e os teus cabelos alisa.
Menção Especial em Niterói/RJ - 2012
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Teu cego e amargo ciúme
que me desgosta e alucina
tem sido o cortante gume
que ao amor leva a ruína.
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Teu olhar, quanta ternura!
Tuas mãos, quanto carinho!
Teu amor, oh, que ventura
pôs a vida em meu caminho.

Fonte:
Enviado por Jessé Nascimento.
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.

Aparecido Raimundo de Souza (Almas aldeadas)


MARCELO REMAVA o tempo todo contra a maré. Se desmanchava no incerto do avesso e criava, ao seu redor, um universo terrificante e aziago (funesto). Vomitava, à torto e a direita, os seus imundos, como se fosse um bicho enjaulado numa gaiola imaginária. E era, de fato, um ser desprezível, metuendo (medonho) e caliginoso (extremamente tenebroso). Ao contrário dele, na sinuosidade de uma anomalia imaculada e invulnerável, uma donzela na flor da idade, mais nova que o sacripanta, cinco anos, sonhava sonhos encantados como os de uma princesa dos fabulosos contos de fada.

Marília, se constituía na joia rara. Se fundamentava num poço cálido de águas mansas, de venturas bamburriosas (*), repletas, por sua vez, de um fadário puro e sem máculas. Viera a graciosa, de uma família de tronco humilde, nascida de berço honesto, de pai e mãe sem máculas. Se tornara, por assim, uma moça linda e delicada, mimosa e prestativa, capaz de dar a própria vida, se preciso fosse, para ver seus semelhantes livres e distanciados das dificuldades e agruras impostas pela vida madrasta.

Resumindo o seu currículo: Marília trazia em sua alma radiosa, a ambição da sereia encantada. Onde chegava, todos se alegravam e se colocavam a seus pés. Perfeita em tudo, certinha em demasia, exceto em matéria de amor, e, logicamente, às coisas ligadas ao coração. Nesse quesito, se constituía numa jovem donzela completamente alienada. Se fizera amordaçada, presa, sem saída em face de ter aparecido em seu caminho aquele traste vindo dos quintos. Marcelo, sem dúvida alguma, a sombra negra oscilante. O malandro plantado num vagabundo parlapatão (fanfarrão), erradio e capadócio (trapaceiro) de si mesmo.

“Bon-vivant”, se transformara num empecilho para a sua família. Não trabalhava, não produzia, não tinha emprego certo. Se fazia ferrenho às calçadas do alheio tirânico e draconiano (exigente), ferrenho às noções do tempo ambíguo e da realidade em que vivia. A sua exatidão, aliás, girava em torno de amigos os mais estranhos. Rapazes (filhos de abastados pais com bolsos recheados) entre dezoito e vinte e três, que passavam os dias ao deus dará, procurando incautos para conseguirem vantagens ilícitas. Viviam de baques e golpes, roubos e furtos.

Se prestavam à assaltos e outras canalhices próprias de quem não aprendeu a honrar e a dar valor ao que é certo, distinguindo, com seriedade, o bom e o mau. De roldão, o esplendoroso do feio; o estragado do sadio; o ruim do péssimo. Enfim, todas essas variações sopesadas de uma forma plena, sem intenções segundarias dignas de algum valor moral. Marcelo se moldara à semelhança de ratos de porão. Verme espargido do bom senso. Mamão mofado, alma impura, estragada, vida desregrada em sintonia meridiana com os bafejos dos ventos tenebrosos que sopravam em seus caminhos.

Ventos que vinham de longe e carregavam presságios perversos. O infeliz, por azar da virginal, estava caidinho por ela. Queria a Marília, só via a Marilia, respirava seus cabelos. Cobiçava, a todo custo, fazer dela a sua esposa e mãe de seus filhos. Esposa e mãe de seus filhos? Não, isso não! Jamais! Longe passava tal ideia. Se arrimava o âmago de tal situação, num absurdo tenebroso em sua mente doentia. Marcelo acolhia algo assim mais prático e ligeiro, fugaz e transitório. Um método espúrio (falso) que não oferecesse nenhum tipo de retenção que lhe pudesse ser ou se moldar desfavorável.

Dito de forma mais explícita: o crápula almejava um trololó passageiro. Uma troca de carinhos sombrios e obscuros, tétricos e apavorantes. O prófugo (falso) queria se aproveitar da ingenuidade daquela pérola generosa, pacata criaturinha, inocente criança, e fazer dela uma “mulher-coisa” sem norte. Almejava transformar a vidinha daquela interiorana numa meretriz de boate periférica. Uma vadia sem nome, sem rumo, sem apoio, mercê da sorte. O desmiolado tencionava, ainda, afogar seus instintos bestiais e ganhar o mundo.

Os pais dela em trilhos opostos, se desdobravam em lágrimas. Avisavam, se debatiam e imploraram. Rezaram sermões compridos, davam conselhos os mais diversos. Contudo, a pomba rola contaminada pelo frescor da lombriga sem juízo, levada por palavras melosas, não escutava. Não dava ouvidos. Não atinava com o abismo imensurável logo à frente. Um abissal imensurável que a esperava, para leva-la para o fundo de um despenhadeiro sem volta. De fato, um dia o inevitável aconteceu. Marília engravidou de gêmeos. Marcelo, arisco ao saber da prenhez, deu asas aos pés. Botou sebo nas canelas.

No desalumiado abrolhoso (amargurado) de uma noite recém pousada, o excomungado picou a mula tomando rumo ignorado. Marília, a barriga farta, os pais em desespero, toda a família e demais consanguíneos em polvorosa nunca mais ouviram falar do hilota (pobre). Num domingo, quase a completar nove meses, Marilia achou que não deveria mais continuar dando trabalho aos autores de seus dias. Com essa ideia estapafúrdica sediada à quilômetros do acarinhar de um novo porvir, depois que todos se recolheram, tomou uma decisão deveras drástica.  Caminhou até a rodovia que cortava as cercanias do pequeno povoado.

Estrada longa essa via, assoberbada pelo tráfico intenso, não tinha um minuto de calmaria. De repente, o momento oportuno se fez real. Uma carreta ligeira na noite sem estrelas, pintou veloz. Marília esperou o momento certo. Quando o veículo se aproximou ganhando a curva fechada, ela, inopinadamente, voou de uma pequena elevação e aterrissou à frente. Pulou com tudo, numa corredeira agitada, não permitindo que o motorista tivesse o tempo necessário para acionar os freios. O impacto, com a força do seu gesto impensado, se afigurou tremendo. Se compôs aterrador, calamitoso, inflexível, angustiante, violento e fatal.  

Pedaços de seu corpo se espalharam num amplexo contumaz para a morte certeira, precoce e horrivelmente inóspita. Partes deles foram igualmente esmagados por outros veículos que vinham logo atrás e tantos demais que cruzavam em contrário. Gritos irrefreáveis vincaram a calmaria da noite sem lua, num imenso de céu sem estrelas.  Da cena do desastre, restou apenas, na manhã seguinte, um silêncio denso de santo sepulcro. À lembrança do fato, três cruzes de madeiras toscas restaram fincadas na via pública, mostrando, num desvanecido, o palco fatal da ocorrência que se fizera sombria e inimaginável.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

* Bamburriosas– Aqueles que fazem fortuna da noite para o dia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.