sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Isabel Furini (A frase do Bill G.)

Depois de trabalhar durante cinco anos no departamento administrativo de uma empresa de alimentos, Arnaldo começou a ter problemas. Chegava tarde ao trabalho. Bebia. Foi encaminhado para avaliação psicológica. Os amigos ficaram revoltados.

– Justo ele!.. Tão bom amigo, tão popular – comentava a turma da cerveja.

Todas as sextas-feiras, à tardinha, depois de sair do trabalho, a turma reunia-se no bar da esquina para beber e contar piadas. Arnaldo era o rei. Entre cervejinhas e batatas fritas divertia o grupo, contando piadas com o jeitinho de Ary Toledo. Plínio, apelidado Dumbo pelas orelhas de abano, chegava a chorar de tanto rir... Arnaldo sabia imitar voz de mulher, voz de velho, voz de tímido, voz de cafajeste. Esse Arnaldo deveria ser ator! - comentava Dumbo, grande admirador do piadista.

Alguns achavam que essa turma da cerveja era de nada. Não falam de nenhum assunto interessante, só bebem e contam piadas, reclamava Antônio enquanto entregava um relatório para João, chefe do setor. Isso é bom para um dia, continuou, mas já faz cinco anos que essa turma se reúne e é sempre o mesmo.

Arnaldo não só era bom em contar piadas. Ele era bom em inventar piadas, tinha uma certa capacidade de ironizar os companheiros... Algumas de suas frases ficaram famosas como: “O bumbum de dona Dolores, é tão grande que dá dores.” “ O estagiário é tão magro, que uma azeitona é suficiente para o almoço ”. “Joanita é tão obesa, que vestida de verde parece uma mesa de sinuca”. Enfim, o Arnaldo gostava mesmo de zombar dos outros.

Essa sexta-feira o escritório estava agitado. Os funcionários conversavam entre eles. Os encarregados de diversos setores murmuravam palavras nervosas. Na segunda-feira chegaria um cara novo, indicado pela diretoria. Um novo gerente, inteligente, jovem e inovador.

– Inovador como um tambor. - brincou Arnaldo.

Segunda-feira de manhã, logo cedo, o estacionamento já estava lotado. Os funcionários ocuparam seus lugares. Até Vaninha, a secretária, chegou 15 minutos antes e ligou o computador. Os olhos estavam fixos na porta de vidro. Tânia, da contabilidade, espionava pela janela.

Um carro preto, importado, estacionou na vaga preferencial. Dois homens saíram do carro, ambos vestidos com ternos escuros. Tânia gritou: Deve ser ele!.. Deve ser o novo diretor!…

Minutos depois, a porta do elevador abriu-se. Dois homens caminharam lado a lado. Arnaldo zombou: Homens de preto, no silêncio da sala e avançou alguns passos em direção à porta de vidro. Um funcionário abriu a porta. Arnaldo não podia acreditar...

– Meu Deus! Esse cara foi colega de escola... depois se formou e foi para o exterior. Nós o chamávamos de nerd... nerd... nerd Ental... nerdental!.. Porque era um verdadeiro nerd. Gostava de ler história, arqueologia, filosofia, sei lá, essas baboseiras. Esse cara vai ser o diretor da empresa? Quem diria!..

O dia passou rápido. Arnaldo percorreu todas as escrivaninhas contando para os colegas anedotas da época de estudante. Coitado do Zulmar, o novo diretor, tinha medo de falar com meninas. Coitado do Zulmar, o novo diretor, era o melhor da turma em notas, porque o cara era um pateta. Eu sempre pegava peças nele, gabava-se Arnaldo.

Três dias depois, os funcionários foram chamados para falar com Zulmar. Quando a secretária chamou por Arnaldo, ele piscou um olho para Vaninha e entrou na sala, pintada de branco com grandes faixas roxas e cópias de quadros famosos na parede direita, olhando tudo com ar triunfante. Quando Zulmar foi dar-lhe a mão, ele esquivou-se e lhe deu dois soquinhos no ombro para mostrar que era o dono da situação. Logo, sorridente, sentou-se na poltrona e colocou os pés sobre a escrivaninha.

O diretor sentou-se em seu lugar, em silêncio, e pegou a ficha. Olhou-o fixamente por algum tempo e por fim falou:

– Há cinco anos que você tem o mesmo cargo.

– Sim, eu não ligo para isso, mas se me quer nomear chefe estou disposto a chefiar a empresa. – brincou.

– A empresa vai entrar um novo ritmo de trabalho, queremos qualidade total. – explicou o diretor com seriedade. – Lamentavelmente, você não se adapta bem a mudanças. Disse as últimas palavras com tom autoritário.

– Não, não é isso Nerdental!… falou rindo Arnaldo.

O diretor não riu. Ficou em silêncio. Apoiou as costas na cadeira e, por alguns minutos, ficou balançando a cadeira enquanto fitava Arnaldo. Ele começou a ficar nervoso. Depois o gerente fez algumas anotações na ficha e olhando fixamente para o funcionário, disse com voz indiferente:

– Pode passar pelo RH.

– Não, escute, só falei Nerdental para lembrar dos velhos tempos. Não precisa.... não...

O diretor, impassível, pediu para a secretária chamar outro funcionário. Arnaldo saiu gritando, sentiu-se injuriado com a atitude do diretor. Mas teve que obedecer e falar com o gerente do RH. Lá começaram os problemas. Depois de cinco anos de trabalho, Arnaldo começou a ter problemas na empresa. Foi nesse momento que a turma da cerveja ficou revoltada. Arnaldo foi encaminhado para avaliação psicológica.

– Sabe por que está aqui? – perguntou a psicóloga.

– Sim! – gritou Arnaldo – porque esse nerd miserável, cretino, foi nomeado diretor e se acha o dono do mundo e...

Arnaldo ficou quase uma hora falando mal do diretor. A psicóloga entendeu que Arnaldo tinha raiva reprimida, não apreciava o triunfo alheio e tinha problemas de relacionamento.

– Com a turma da cerveja, dou-me muito bem! - gritou o Arnaldo para defender-se.

A psicóloga olhou-o atrás de suas lentes grossas. Predisposição para alcoolismo – escreveu em seu caderno de notas.

Coitado do Arnaldo. Foi rebaixado para auxiliar. Começou a frequentar o bar todos os dias, até que chegou ao trabalho bêbado, quase caiu sobre o computador, derrubou alguns papéis, deitou-se na cadeira e dormiu.

O chefe do setor falou em despedi-lo, mas o novo diretor, com muita calma, explicou que alcoolismo é doença e pediu para o encarregado ser paciente e falar com o RH para achar uma solução.

A notícia se espalhou, e todos ficaram comovidos. Comentavam que o novo diretor era um homem justo e queria ajudar os funcionários problemáticos.

Arnaldo não queria falar com a psicóloga, mas foi orientado a fazer terapia para continuar no emprego. Dia a dia sua raiva era maior. Tudo estava bem antes de chegar esse nerdental. O Dumbo foi o único que continuava apoiando-o. Os outros afastaram-se da turma da cerveja e começaram a escutar com atenção o que dizia o diretor. Esse cara é um vitorioso, comentavam os funcionários.

Arnaldo odiava o diretor. E seu ódio era autodestrutivo, pois o diretor, longe de ser menosprezado por ser nerd, como na época de escola, era admirado pela maioria. – Um cara inteligente, que veio de baixo... um verdadeiro exemplo!..

Uma noite, Arnaldo chegou à casa de sua irmã, quase bêbado e gritou durante vinte minutos seu ódio contra o novo diretor da empresa.

Paulino, o cunhado, tranquilo, disse para Arnaldo aceitar a realidade.

– Talvez o novo diretor o esteja sacaneando. Se o diretor tem um plano para prejudicá-lo, ele o está fazendo com tanta classe, que ninguém enxerga a verdade. Arnaldo, você deveria seguir o que falam as pessoas bem sucedidas. Não conhece essa frase do famoso empresário Bill G., que está rolando na Internet?

– Não!.. Qual frase?

– Bill G. disse para um grupo de estudantes: “Nunca zombe de um nerd, pois um deles será seu chefe”.

Fonte:

Nelson Maia Schocair (Nas areias da poesia)


 A RAIZ DA POESIA

O jardineiro planta a palavra,
semente efêmera;
rega o jardim morfológico
e lava as cicatrizes de suas desventuras;

A seiva esverdeada e culta
escorre ao vento lúdico de seu fazer;

Cada novo fruto entorpece
o pássaro de luz
que faz seu ninho no galho
da árvore poética.
Pronto!

O machado crítico se agiganta,
zune no ar
e destrói-lhe a raiz:
Sua obra jaz morta numa folha de papel…
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DÊIXIS

Não pretendo compor anáforas:
remissões são fraquezas contumazes;
Tampouco entendo as catáforas:
o futuro é inexorável surpresa;
Faço êxodo de mim!
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JURAS

Jurei amar, e não cumpri;
Jurei falar, e não calei;
Jurei gerar, e não pari;
Jurei viver, e não nasci…
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NOSSOS SUORES…

Fomos feitos da argila que reveste o campo,
somos revestidos da ramagem que recobre os morros,
estamos recobertos da umidade que brota da nascente,
brotamos dos suores que escorrem das grutas magistrais!
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O MENESTREL E A DONZELA

Bom dia, Santa Donzela,
folgo ver-te com saúde,
airosa, cheirosa e bela,
no dedilhar do alaúde.

Permita-me o atrevimento
de postar-me assim tão perto:
não rogo pranto ou lamento,
mas paixão, de peito aberto.

Trago a ti, em verso, um canto
da amiga cotovia
– perdão, se te causo espanto –
almejo alegrar teu dia:

“Ama a lua o pôr-do-sol
a dor da tristeza errante:
no trinar de um rouxinol,
surge o amor, anjo inconstante…”
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RESPOSTA DA DONZELA AO MENESTREL

Não suporto a tua ausência,
Anjo bom, amor candente,
vivo presa à vil demência
de um pátrio poder ausente.

Rego a flor, e ela morre
– talvez de tédio padeça –
leva-me, presto, socorre,
antes que o jardim feneça…

Sonhei tuas mãos nas minhas,
misto de dor e delícias,
chorei saber que não vinhas
inundar-me de carícias.

Juro aos pés da Santa Cruz
calar o alaúde e o berro:
Ó Senhor, devolve a luz,
ou nas trevas me desterro!
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O PADRE SE APIEDA DA DONZELA

Ouve um conselho, menina:
no inverno morrem as flores…
sofrem poetas a sina…
choram donzelas amores…

Teu pecado Deus perdoa,
não cabe a mim julgamento;
tua dor, no vale, ecoa,
já te escutam o lamento…

Minha filha, faz a prece,
pede aos Anjos proteção;
esse amor que te enriquece,
pode ser-te a perdição.

Se essa estrada é perigosa,
trilha com fé teu caminho:
“Felicidade é uma rosa
que, sem regar, vira espinho!”
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A DONZELA SE CONFESSA AO PADRE DO CONDADO

Santo Padre, hei amado,
sãos instantes de ternura:
por que desejo é o pecado…
minha dor… minha loucura?

De nuvens o sol se cobre,
não muda as fases a lua,
divido o amor entre um nobre
e um plebeu que me ama nua!

Assim gira o carrossel,
todo o tempo, aventureiro:
choro por um menestrel…
durmo com um cavaleiro…

Rezo doze Ave-marias,
jamais finda essa novena:
entorpece as alegrias
o veneno da falena!

Fonte:

Adriana Regina Tozzi Pontoni (Antônia)

Era uma vez Antônia, uma garota que morava em uma bela casa, nem muito grande nem muito pequena, de tijolos à vista, que abrigava muito bem toda a sua família. Tinha um quintal imenso com um grande chorão plantado, com seus galhos e folhas caídas que abrigavam perfeitamente ela e os irmãos nos dias de muito sol, Na base do chorão, um passarinho havia sido enterrado no inverno passado. Antônia o havia encontrado na rua, caído e tentara de todas as maneiras salvar a sua vida. Falecido no mesmo dia, o animal agora morava nas raízes do chorão, o que havia rendido uma história sobre o maravilhoso pássaro que vivia no subterrâneo.

Antônia se considerava uma inventora de histórias. Tudo que pudesse ser imaginado criava vida no papel. Seus irmãos eram seus dois melhores amigos ec chamavam-se Joaquim e Damião. Os três juntos formavam uma sociedade secreta, onde campeonatos de carros de papel eram disputados, árvores eram escaladas e músicas eram criadas para torcer pela escola de samba preferida. As pernas de Antônia estavam constantemente machucadas, mas ela não se incomodava, já que o melhor amigo da escola a achava linda de qualquer jeito.

O pai era o homem mais inteligente do mundo, a mãe a mulher mais bonita dentre todas e o avô o mais bondoso. Antônia almoçava todos os domingos na casa do avô, apelidado carinhosamente de "vô Nenê". Tinha um sorriso inconfundível, falava pouco e compreendia as crianças como ninguém. Sua casa era grande e cheia de segredos. Antônia secretamente vasculhava as gavetas dos armários da casa era busca de tesouros, como talcos e perfumes que tinham cheiro de coisa velha.

O quintal da casa do avô era repleto de árvores e mudas de plantas, guardado por um pequeno cachorro preto, de dentes esquisitos e raça sem definição. Seu nome era Sucupira. Ele tossia e pigarreava como se fosse um ser humano. Algo extremamente perturbador para as crianças.

O vô Nenê adorava sentar-se na varanda da casa. Os três irmãos sentavam-se na escada, aos pés do avô, e escutavam as histórias que ele tinha para contar, quando ele decidia falar alguma coisa. Na verdade, ele não era muito contador de histórias e sempre ria em partes que, para Antônia, não tinham a menor graça. Sucupira ficava de longe, só observando.

Um dia, o vô contou uma história sobre quatro mundos, que existiam dentro de todas as pessoas, O primeiro mundo, segundo ele, era o da infância. Era o mundo mais difícil de deixar para trás, mas, mais cedo ou mais tarde, todos saiam dele para entrar no mundo dos jovens. Ainda existia o mundo dos adultos e o mundo dos velhos. O avô contava que logo após encerrar sua fase no mundo dos adultos, havia descoberto que o mundo dos velhos era bem parecido com o das crianças, e era por isso que eles se entendiam tão bem.

Uma das crianças perguntou: "Mas vô, como a gente sabe que saiu de um mundo e passou pro outro?". E ele respondeu: "Você sabe que algo chegou ao fim quando existe um recomeço. Neste momento ele deu risada e, como de costume, ninguém entendeu nada. Mais tarde, Antônia ficou pensando quando saberia que havia deixado o mundo da infância, e escreveu uma história sobre quatro planetas diferentes.

Os dias passaram com certa lentidão naquele ano. Antônia havia contraído hepatite, Joaquim havia quebrado o braço e Damião, semanalmente, aparecia com a testa enfeitada com machucados terríveis, resultado da vontade do irmão em ser o menino mais forte, mais veloz e mais ágil de todos os tempos,

Ainda naquele outono, uma tempestade forte devastou muitas casas frágeis e arrancou de vez o grande chorão do quintal, com raiz e tudo. No outro dia, Antônia correu para ver se encontrava o túmulo do passarinho, mas não havia mais nada ali. Correu para o quarto e escreveu sobre o passarinho que trocou as asas por uma capa de invisibilidade.

Na metade daquele ano, os pais avisaram Antônia que ela sairia da escola para uma outra, muito melhor, mas ela não recebeu muito bem a notícia. Chorou por dias e noites e escreveu uma nova história, sobre um casal de namorados que havia sido afastado por uma grande fenda no planeta.

Em agosto, Sucupira não conseguiu vencer o grande cão do vizinho numa briga de rua e deixou o avô sozinho. No final da primavera, o avô faleceu.

A dor era tanta que Antônia passou a sentir-se solitária, mesmo com os irmãos ao seu lado. Seu pai já não parecia mais tão inteligente, e as modelos das revistas eram bem mais bonitas que sua mãe. Que mundo horrível era aquele! As meninas da escola achavam sua saia vermelha fora de moda e os meninos tiravam sarro de suas pernas finas e machucadas. E de repente Antônia não conseguia escrever mais nada.

Quando a casa do avô foi posta à venda, ela entrou em desespero. Queria ao menos guardar um talco. Um cheiro. Um tesouro secreto. E, numa tarde, colocou a mochila nas costas, fugiu de casa e caminhou até lá. Sem a chave, começou a procurar algum tesouro no quintal. Apoiada na ponta dos pés, tentava observar pelas brechas da veneziana alguma imagem familiar. Pela janela do quarto, viu a cama antiga. O armário fedido, Uma foto do avô em cima da cômoda.

Tomada por um sentimento de amor profundo, decidiu que precisava da foto. Pegou um banquinho velho e uma pedra do jardim. Subiu no banco, quebrou o vidro da janela e, com cuidado, colocou seu braço por entre os estilhaços para conseguir destravá-la. Feito isso, pôs-se a empurrar com toda força a veneziana que abriu de supetão quando então o alarme disparou.

Entrou no quarto, pegou a foto, colocou na mochila e saiu correndo, como se algo pudesse alcançá-la e lhe roubar o avô para sempre.

Em casa, entrou no quarto apressada, fechou a porta, sentou na cama e abriu a mochila. O avô sorria para ela. Foi quando ela escreveu a história sobre o dia em que Antônia deixou o mundo da infância.

Fonte:
Enviado por Luiz Hélio Friedrich.
In Ney Fernando Perracini de Azevedo (org). Safira Paranaense. Curitiba: ABRAEE/PR, 2015.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Vanice Zimmerman (Tela de Versos) 13

 

George Abrão (O pomar da minha infância)

Era um pequeno pomar, mas a mim parecia enorme, um mundo de cores e de sabores. Havia nele um grande abacateiro, a árvore-rainha, pelo seu porte e magnitude; várias laranjeiras que produziam frutos pequenos e muito doces denominados laranja feijão-cru, nome que nunca entendi, pois se era laranja, como poderia ser feijão? Nunca mais vi esse tipo de laranja por mais que procurasse; uma mangueira que nunca frutificava e onde, certa vez, encontrei uma única manga, bem no alto, e lembro-me que a escondi para mim; um pessegueiro salta caroço cujos frutos, quando maduros, ficavam da cor de mel, deliciosos; e a goiabeira com seu tronco liso, difícil de subir, mas que eu escalava para tirar as goiabas maduras e olorosas. Às vezes, ao mordê-las, eu encontrava meio bicho de goiaba, onde fora parar a outra metade? E a pereira que quando carregava com seus enormes frutos de casca enferrujada e muito duros, chamados de pera d’água. Outra controvérsia nominal, pois se eram d’água deveriam ser moles. Serviam para doce, que minha mãe fazia, assim como de pêssego e goiaba, e guardava em caixetas - pequenas caixas de madeira com tampa de correr.

Mas do que eu gostava mais mesmo era de dois cafeeiros que ficavam um ao lado do outro formando uma espécie de muralha verde, cujas folhas iam até o chão. Certo dia, resolvi passar pela parede de folhas e me deparei com um belo espaço, parecendo uma pequena gruta. A partir daquele dia ali ficou sendo o meu refúgio quando eu queria ficar só ou para me esconder do chinelo da minha mãe. E dentro dele eu me sentia como numa casamata, imune à guerra que imaginava sendo travada do lado de fora. Na minha fértil imaginação ouvia o ronco dos aviões bombardeiros, as bombas explodindo, os tiros de canhão e de morteiro, o ra-ta-tá das metralhadoras, e eu ali, a salvo. Mas do lado de fora se ouvia somente o barulho da algazarra dos sabiás - de peito roxo, de peito branco, coleira -, dos sanhaços –verde e bandeira – no abacateiro; os piados das coleirinhas comendo semente de capim; e o tiziu, pequeno pássaro preto que pousado na cerca saltava verticalmente, batendo as asas e emitindo seu canto característico: “tiziu”.

Mas como tudo o que bom acaba logo, tivemos que nos mudar, sem alternativa. E eu, no dia da mudança, corri até o meu pomar, abracei cada árvore em forma de despedida. Entrei no meu refúgio sob os cafeeiros e reguei o solo com as minhas lágrimas.

Parti, sem olhar pata trás!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) XI

Obs. do blog: O primeiro verso e título de cada poema é do poeta colocado abaixo do título, com a página e livro onde se encontra.

QUANDO EU VOLTAR À TERRA DE ONDE VIM
Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 19

Quando eu voltar à terra de onde vim
Não chorem que essas lágrimas não trazem
O meu olhar ao chão onde se fazem
As rosas que incendeiam um jardim.

Nem rezem, nesse já morto Latim
Ladainhas que em nada satisfazem
As pálidas lembranças em que jazem
Os restos do melhor que havia em mim.

Entreguem o meu corpo ao fogo santo
Que o limpe do pecado e do quebranto
Até que dele sobre apenas pó.

E o meu penar talvez não seja em vão
Vendo que o trigo, antes de ser pão
Primeiro há de passar por qualquer mó.
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VEM TER COMIGO, À NOITE, À MINHA CAMA
Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.

No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.

Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.

Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
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TUDO O QUE SOU É MENOS DO QUE EU QUERO
José Carlos Ary dos Santos in "Cem Sonetos Portugueses", p. 146

Tudo o que sou é menos do que eu quero
Para matar a sede em que me afogo
E acabrunhado aos pés da vida eu rogo
O fim da pequenez que não tolero.

Amarrado a um corpo que é severo
Nas margens do impossível em que eu vogo
Perplexo, pobre e puro eu me interrogo
Do modo como ser mais do que um zero.

Tem razões para estar insatisfeito
O coração que trago no meu peito
Vestindo a sua estranha condição:

Com asas de voar para se erguer
O destino o condena a padecer
E a morder esse pó que há pelo chão.
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O TEU ROSTO DE SAL NA PRAIA VÃ
José Charles González in "Cem Sonetos Portugueses", p. 148

O teu rosto de sal na praia vã
Filtrava a luz do sol nesse cristal
E lá do sul, subindo o areal
Vinha a lua dizer que é tua irmã.

Sendo a razão de ser desta manhã
Silhueta esculpida num vitral
Serias Virgem numa catedral
Se não tivesses já coroa de romã.

És sereia que o mar azul trouxesse
Uma rosa de orvalho que amanhece
E, por milagre, a Terra iluminasse.

És aragem lembrando borboleta
Vestida de amarelo, azul, violeta
E que ao bater das asas nos deixasse.
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DEBAIXO DA MESA GUARDAS OS JOELHOS
Manuel António Pina in "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011)", p. 50

Debaixo da mesa guardas os joelhos
Nesse ponto preciso do ângulo reto
Das pernas que, descendo, são cateto
Que morre aos pés de uns chinelos vermelhos.

Esta cor não constava entre os conselhos
Do que era bom, prudente e tão correto
Numa donzela de berço e de teto
Que tanto se privava dos espelhos.

A barra da toalha ajuda a saia
A esconder a tez branca de cambraia
Que aos meus olhos traz louca tentação.

Esquecendo a moral e o pudor
Sinto saudades tais do teu calor
Que entre os dois vai subindo a minha mão…

Fonte:
Enviado pelo poeta. 
Disponível em Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.

Machado de Assis (O Lapso)


E vieram todos os oficiais... e o resto do povo, desde o pequeno até ao grande.
E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa súplica na tua presença.
                                               JEREM. XLII, 1, 2.

Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que e que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o Conde de Azambuja, que a principio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. Veio, ficou e morreu com o século. Posso afirmar que era médico e holandês. Viajara muito, sabia toda a química do tempo, e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis línguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos terapêuticos, e outras muitas coisas, que o recomendam á nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao contrario, a vida e a pessoa dele eram como a casa que um patrício lhe arranjou na rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao princípio.

No fim da rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Thomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas induções, vereador da câmara. Vereador ou não, este Thomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também dividas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguém a tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do século passado, um homem que, por velhacaria ou desleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição afirma que este nosso concidadão era exato em todas as coisas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe regateavam provas de afeição e apreço: e, se é certo que foi vereador, como tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.

Mas então...? La vou; nem é outra a matéria do escrito, senão esse curioso fenômeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Thomé Gonçalves, trajado com o hábito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pálio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguém. Nas janelas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina do beco das Cancelas (a procissão descia a rua do Hospício), depois de ajoelhados, rezados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer á justiça.

— Que é que me pode acontecer? dizia um deles. Se brigar comigo, melhor; não me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não pode continuar assim.

— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão importante... Mas eu como ou bebo da importância dos outros? E as minhas cabeleiras?

Este era um cabeleireiro da rua da Vala defronte da Sé, que vendera ao Thomé Gonçalves dez cabeleiras, em cinco anos, sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A procissão passara inteiramente; eles ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos ao Thomé Gonçalves. O cabeleireiro advertiu que outros muitos credores só esperavam um sinal para cair em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniência de meter na conjuração o Mata-sapateiro, que vivia desesperado. Só a ele devia o Thomé Gonçalves mais de oitenta mil reis. Nisso estavam, quando por traz deles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando porque motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tornados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das varas do pálio.

— Que tem isso? interrompeu o médico; ninguém lhes diz que está doente dos braços, nem das pernas...

— Do coração? do estômago?

— Nem coração, nem estômago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se tratava de negócios altamente especulativos, que não podia dizer ali, na rua, nem sabia mesmo se eles chegariam a entende-lo. Se eu tiver de pentear uma cabeleira ou talhar um calção — acrescentou para os não afligir, — é provável que não alcance as regras dos seus ofícios tão luteis, tão necessários ao Estado... Eh! eh! eh!

Rindo assim, amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram embasbacados. O cabeleireiro foi o primeiro que falou, dizendo que a noticia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no proposto de cobrar as dividas. Se até os mortos pagam, ou alguém por eles, reflexionou o cabeleireiro, não é muito exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilhéria, fel-a sua cosendo-lhe este babado: — Pague e cure-se.

Não foi dessa opinião o Mata-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta nas palavras do doutor Jeremias, e propôs que primeiro se examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idôneo. Convidaram então outros credores a um conciliábulo, no domingo próximo, em casa de uma D. Aninha, para as bandas do Rócio, a pretexto de um batizado. A precaução era discreta, para não fazer supor ao intendente da policia que se tratava de alguma tenebrosa maquinação contra o Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes, e, como a iluminação publica só veio a principiar com o vice-reinado do conde de Rezende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao conciliábulo um rasgo pitoresco e teatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta— e não eram todos.

A teoria de Chá. Lama acerca da divisão do gênero humano em duas grandes raças, é posterior ao conciliábulo do Rócio; mas nenhum outro exemplo a demonstraria melhor. Com efeito, o ar abatido ou aflito daqueles homens, o desespero de alguns, a preocupação de todos, estavam de antemão provando que a teoria do fino ensaísta é verdadeira, e que das duas grandes raças humanas, — a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado,— a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda, “the open, trusting, generous manners of the other”. Assim que, naquela mesma hora, o Thomé Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os vinhos e galinhas que comprara fiado; ao passo que os credores estudavam ás escondidas, com um ar desenganado e amarelo, algum meio de reaver o dinheiro perdido.

Logo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espíritos. Uns inclinavam-se á demanda, outros á espera, não poucos aceitavam o alvitre de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidários deste parecer não o defendiam senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer coisa nenhuma; eram os servos do medo e da esperança. O cabeleireiro opunha-se-lhe, e perguntava que moléstia haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o Mata-sapateiro:— “Sr. compadre, nós não entendemos desses negócios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem coisas que nunca lembraram ao diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.” Venceu este parecer; elegeram o sapateiro, o alfaiate e o cabeleireiro para entenderem-se com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliábulo dissolveu-se na patuscada. Terpsícore bracejou e perneou diante deles as suas graças jocundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a ulcera secreta que os roía. “Eheu! Fugazes...” Nem mesmo a dor é constante.

No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os três credores, entre sete e oito horas da manha. “Entrem, entrem...” E com o seu largo carão holandês, e o riso derramado pela boca fora, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande médico veio em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava nesse momento uma cobra, morta de véspera, no morro de Santo Antônio; mas a humanidade, costumava ele dizer, é anterior à ciência. Convidou os três a sentarem-se nas três únicas cadeiras devolutas; a quarta era a dele; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de objetos de toda a casta.

Foi o Mata-sapateiro quem expôs a questão; era dos três o que reunia maior cópia de talentos diplomáticos. Começou dizendo que o engenho do Sr. doutor ia salvar da miséria uma porção de famílias, e não seria a primeira nem a última grande obra de um médico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sábio de quantos cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Thomé Gonçalves não tinham outra esperança. Sabendo que o Sr. doutor atribuía os atrasos daquele cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de qualquer recurso à justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as dívidas, se era mal incurável, e, não o sendo, se as lágrimas de tantas famílias...

— Há uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente comovido, um lapso da memória; o Thomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça. Conheci isto há dois meses, estando em casa dele, quando ali foi o prior do Carmo, dizendo que ia «pagar-lhe a fineza de uma visita». Thomé Gonçalves, apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era “pagar”; acrescentou que, alguns dias antes, um boticário lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvi-la da boca do prior, supunha ser latim. Compreendi tudo; tinha estudado a moléstia em várias partes do mundo, e compreendi que ele estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem doente.

— Mas então, aventurou o Mata, pálido, o nosso dinheiro está completamente perdido...

— A moléstia não é incurável, disse o médico

— Ah!

— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dois grandes casos: um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, à noite estendia a mão para arrancar as estrelas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sair pelas janelas mais altas das casas, como se estivesse ao rés do chão...

— Santo Deus! – exclamaram os três credores.

— É o que lhes digo, continuou placidamente o médico. Quanto á dama catalã, a princípio confundia o marido com um licenciado Matias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermógenes, e, no tempo em que comecei a trata-la com um clérigo. Em três meses ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.

Realmente, era uma droga miraculosa. Os três credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia crer que o Thomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o médico a tinha em casa... Ah! mas aqui pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo, embora entretivesse relações com ele; não podia ir oferecer-lhe os seus préstimos. Thomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a responsabilidade de convidar o médico, nem os credores podiam toma-la a si. 

Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do cabeleireiro, exprimiram este alvitre desesperado; cotisarem-se os credores, e, mediante uma quantia grossa e apetitosa, convidarem o Dr. Jeremias à cura; talvez o interesse... Mas o ilustre Mata via o perigo de um tal propósito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angústia; tudo parecia perdido. O médico rolava entre os dedos a caixa de rapé, esperando que eles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que o Mata, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo; advertiu que as suas primeiras palavras tinham comovido o médico, e tornou às lágrimas das famílias, aos filhos sem pão, porque eles não eram senão uns tristes oficiais de ofício ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Thomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabeleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saúde... Saúde, sim, senhor; os calos de suas mãos mostravam bem que o ofício era duro; e o alfaiate, seu amigo, que ali estava presente, e que entisicava, ás noites, à luz de uma candeia, zas-que-darás, puxando a agulha...

Magnânimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos úmidos de lágrimas. O acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a ciência ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era também e principalmente do próprio Thomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um motivo em que ele tinha tanta culpa como o doido que pratica uma iniquidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em rapapés infindos e grandes louvores aos insígnes merecimentos do médico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a almoçar, obséquio que eles não aceitaram, mas agradeceram com palavras cordialíssimas. E, na rua quando ele já os não podia ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a ciência, a bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão simples! Tão naturais!

Desde esse dia começou Thomé Gonçalves a notar a assiduidade do médico, e, não desejando outra coisa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por ata-lo de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a ideia de “pagar”, como as ideias correlatas de “credor”, “dívida”, “saldo”, e outras tinham-se-lhe apagado da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no espirito. Temo que se me argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de Pascal é o que mais prontamente veio ao bico da pena. Thomé Gonçalves tinha o abismo de Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam nele mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o buraco.

Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retempera-lo, começou a aplicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiário, porque a cura operava-se de dois modos: — o modo geral e abstrato, restauração da ideia de pagar, com todas as noções correlatas — era a parte confiada á droga; e o modo particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de um certo credor — era a parte do médico. Suponhamos que o credor escolhido era o sapateiro. O médico levava o doente ás lojas de sapatos, para assistir á compra e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a ação de pagar; falava da fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado naquele ano de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta anos antes; fazia com que o sapateiro fosse dez, vinte vezes a casa de Thomé Gonçalves levar a conta e pedir o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabeleireiro, o segeiro, o boticário, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os últimos com o trabalho anterior, donde lhes vinha a compensação da demora.

Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as bênçãos com que eles encheram o nome do Dr. Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece coisa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Thomé Gonçalves, asmado de tantas dívidas velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela acumulação.

— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.

— Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.

Restava entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o próprio Dr. Jeremias, pelos honorários daquele serviço relevantes. Mas, ai dele! A modéstia atou-lhe a língua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou três, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era fácil; bastava insinuar-lhe a dívida pelo método usado em relação à dos outros; mas seria bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não parecer que se lhe metia à cara, entrou a rarear as visitas; mas o Thomé Gonçalves ia ao casebre da rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a cear, a falar de coisas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de ir lembrar a dívida, não chegariam a fazê-lo, porque a supunham paga antes de todas. Era o que diziam uns aos outros, entre muitas fórmulas da sabedoria popular: — Matheus, primeiro os teus; — A boa justiça começa por casa; — Quem é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Thomé Gonçalves, no dia em que falecera, tinha um só credor no mundo:— o Dr. Jeremias.

Este, nos fins do século, chegara à canonização.

— “Adeus, grande homem!” dizia-lhe o Mata, ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava á missa dos carmelitas. E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés:

— Grande homem, mas pobre diabo.

Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. 1884. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em 1883. Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Varal de Trovas n. 577

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 76

Tenho visto e ouvido pessoas falando que fulano ou sicrano são muito inteligentes, são acima da média, têm muita capacidade. Sempre vi diferente. Porque, ao que se sabe, nascemos todos iguais. 

Entonces, o que nos faz diferentes, sendo iguais? O que nos faz diferentes é a nossa cabeça: alguns são sossegados, alguns são ativos, espertos, curiosos. A curiosidade e a busca constante nos fazem enxergar mais longe, os olhos de lince atiçam pensares na busca de conhecimentos. 

Imaginemos o que se terá feito no final do mês, ou do ano, se usarmos uma hora a mais por dia buscando algo importante - uma arrumação em casa, a leitura de um livro, a semeadura da horta, o projeto que temos há tempo na cachola. 

A vida será sempre esse cadinho de viveres diferenciados, onde nascemos pequeninos e ao longo do tempo alguns seguem pequenos, outros crescem, e muitos vão às alturas em saberes e conhecimentos. 

O humanismo vestido de humildade cochicha que buscar alteridade não significa deixar de olhar para baixo, para as origens, para as ações. Seremos sempre iguais na espécie, diferentes no modo de viver, o que dá a vantagem de uns perante os outros. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 3


Alegrias coleciono
neste meu tardio amor.
É na colheita do outono
que os frutos têm mais sabor.
= = = = = = = = = 

As correntes de lembranças
me prendem mais ao passado
que o velho par de alianças
num estojo abandonado.
= = = = = = = = = 

A seu filho, desde cedo,
ministre a boa lição:
em vez de armas de brinquedo,
ponha um livro em sua mão!
= = = = = = = = = 

Desfias os teus queixumes
feito contas de um rosário.
Ladainhas de ciúmes
que me levam ao calvário!
= = = = = = = = = 

Eu não persigo a vitória
em relevantes proezas,
mas persigo, sim, a glória
de vencer minhas fraquezas.
= = = = = = = = = 

Lembranças de amor desfeito...
Silêncio em horas tardias,
pois tua ausência, em meu leito,
dorme onde outrora dormias.
= = = = = = = = = 

Meu coração se comove
por te sentir ao meu lado
quando a saudade se move
entre as sombras do passado.
= = = = = = = = = 

Meu diário! Em tuas folhas,
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas
que outros fizeram por mim.
= = = = = = = = = 

Meu leito, espaço restrito,
quando abriga teu calor,
se transforma em infinito
na explosão do nosso amor.
= = = = = = = = = 

Meus desenganos de amor
na poesia buscam fim:
eu não choro a minha dor...
meus versos choram por mim!
= = = = = = = = = 

Navegando nesta vida,
meus anseios não domino,
pois minha barca é impelida
pelos remos do Destino!
= = = = = = = = = 

No imenso teatro da vida,
temos de ser bons atores,
porque a dureza da lida
não favorece amadores.
= = = = = = = = = 

Nos dissabores da sorte
— não importa o que vier —
a mulher deve ser forte,
sem deixar de ser mulher.
= = = = = = = = = 

O Sol, sendo astro galante,
quando a noite se anuncia,
em reverência elegante,
declina, encerrando o dia.
= = = = = = = = = 

Pela trilha da saudade,
teu perfume veio a mim
para evocar, sem piedade,
um sonho que teve fim.
= = = = = = = = = 

Percebo, com desconforto,
que ainda sou teu vassalo:
nosso passado está morto,
mas não consigo enterrá-lo!
= = = = = = = = = 

Perder-te?! Nesse receio,
eu me anulei junto a ti
e, ao viver destino alheio,
a mim mesma me perdi!
= = = = = = = = = 

Quando a lembrança faz rondas
ao meu mar de fantasia,
chegas na esteira das ondas
desta saudade vadia...
= = = = = = = = = 

Quem dera os povos da Terra,
num esforço pertinaz,
em vez de bolsões de guerra,
tecessem ninhos de paz!
= = = = = = = = = 

Se até mesmo com empenho,
tentarem nos separar,
esse receio não tenho;
somos um só... não um par!
= = = = = = = = = 

Sem oásis, retirante,
na aridez do teu sertão,
única sombra flagrante
é tua sombra no chão!
= = = = = = = = = 

Seu condão de luz prateada,
com a magia que encerra,
faz da Lua a boa fada
que vela o sono da Terra.
= = = = = = = = = 

Sou navegante do rio
que tem por fonte a paixão
e deságua, sem desvio,
na foz do teu coração!
= = = = = = = = = 

Teu perfume estreita o cerco...
Eu me rendo aos teus abraços.
Que me importa se eu me perco,
quando me encontro em teus braços?
= = = = = = = = = 

Um velho colchão de palha...
teus braços... meu cobertor;
não há fortuna que valha
a fortuna deste amor!

Fonte:
Enviado pela trovadora.
Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013.