quinta-feira, 16 de março de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Página de duas vidas)


“Então num susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido.”
Clarice Lispector

ELA SÓ QUERIA UM LAR. Um amor dentro dele, para chamar de seu. Em busca desse amor, veio de longe. Deixou a família, abandonou a cidade pequena do interior de Minas, deu adeus aos amigos... e partiu. Seguiu radiante, jubilosa e refestelada, envolta numa quimera fermentada com alto teor de um sucesso dúbio que achava que tivesse ao alcance das mãos. Ao chegar na localidade onde morava, o seu futuro amor descobriu, entre lágrimas e dissabores, desencantos e desencontros, que esse amor, a fonte que reproduzia a chama vital, não era real.

O amor que ela almejava, se fazia platônico. Não correspondia, de forma alguma, às suas expectativas. Apesar disso, tentou várias vezes ser feliz. Fez de tudo. Buscou o impossível. Ultrapassou a ponte movediça do além da conta, a passagem que interliga a afeição profunda (ainda que fortuita e problemática) para dar frontalmente com o incerto e o tenebroso, passando a conviver com o algaraviado. Acabou fazendo das tripas uma esquizofrênica decepção.

Todavia, o seu “Love”, meio que alienígena, louco de pedra, vazio de alma, oco de sentimentos, jogou tudo para o alto. Macambúzia, como se saída, de repente, de um festim macabro, sem ter como continuar vivendo uma mentira insana de conotação progressiva, regressou para a cidade-berço de onde viera. Foi-se, coitada, magoada, esvaziada, perdida em seu próprio mundo de emoções não vividas, tampouco vivenciadas.

Entretanto, apesar dessa estranheza claustrofóbica, tipo uma dissociação inconsequente e ultrajante, algo dentro dela não se conformava. O amor imerso em paixões desconexas, atrelado a milhões de mimos guardados, alimentava o desejo ardente de estar perto dele. Verdade, que às vezes, o seu amor se fazia bonançoso. Em outras, ele a tratava como se fosse uma qualquer. Um lixo, uma peça de roupa velha que se deixa de lado.

Apesar dos pesares, e de lhe vir à mente as palavras dele, palavras ásperas, repetitivas como saídas de um mantra mal ensaiado, “não quero morar com ninguém, quero viver sozinho”, ela não se entregava à realidade que se lhe mostrava brutal, onde todo um contrário repleto de negras nuvens cobrindo seu porvir, anunciava um forte temporal sinistramente avassalador.

Agredida moralmente por todos esses tapas e bofetões em seu rosto, ungido com o desprezo do descaso, "usque" (até) de uma catástrofe anunciada, ela deu a louca e resolveu partir para dar uma nova chance a ele e, claro, a si mesma. Retornou.  Ele, levado pela mesma e antiga loucura insana, fora dos pilares que sustentam a realidade, se camuflou a uma doidice despropositada. O receio seguiu firme, sério, conclamando a instauração de um futuro caos. A mesma pusilanimidade com a outra face oculta voltava à tona.

Com ela, vinha, de roldão, escorrendo como suor por sua epiderme, a frase que ela pensava não fosse jamais ouvir: “não quero morar com ninguém, quero viver sozinho”. Palavras amargas jogadas em seu rosto. Um semblante terno, meigo, gentil, uma tez que só queria ser amada, tocada, beijada, acarinhada e ele, cego, não das vistas mas, igualmente, de âmago vazio, nunca entendeu verdadeiramente a complexidade dessa vida que só queria na verdade ser dele.

E não só ser dele. De viver para ele, ter com ele uma eternidade que por puro azar, somente se entrelaçava sozinha dentro do seu espírito de gostar infindo. Ele, intocável, soberbo, sem noção, idiotizado na sociedade da sua fraqueza, não percebeu (ou não quis dar o braço a torcer), seguiu idêntico atalho. Quando descobriu que ela se constituía verdadeiramente no elo perfeito que o levaria aos píncaros da plenitude, se deu conta que o tempo... ah, o tempo, esse havia se passado.

No lugar dele, deixou plantado um adeus estranho, inexorável, um até nunca mais sem volta, sem talvez os benfazejos de um novo amanhã. As impressões do amor que ela queria dar para ele viraram uma espécie de via indexada e sem retorno. Ficou retido nessa senda a sua enorme solidão. Ele se embruteceu. Não mais sorri, deixou de ser expansivo. E quando imprime um gesto de agrado, o faz, movido em pose maquinal, em trejeito temporário, frio, gélido. Ainda agora, ele debalde, tenta reencontrar os caquinhos da imagem do seu íntimo que se rompeu em mil fragmentos.

Em algum lugar por onde passou, minúsculos cavacos (farpas) ficaram enterrados, submersos num distante aquém do intransponível. Sabe, conscientemente, que não mais terá de volta às mãos, o espelho inteiro e intacto, que chamejava lindamente o seu paraíso sem máculas.  Na verdade, ele não distingue exatamente onde os carreiros (caminhos) se divorciaram. Sabe, porém, que ficou de tudo uma dor ingrata, um incômodo nojento, uma importunação pegajosa.

Ele conscientiza que o destino lhe fechou diante da sua opulenta imbecilidade, a porta que daria acesso ao voo da empolgação da paz interna, da sorte, da ventura, enfim, ele tem pleno conhecimento que o avião partiu sem que tivesse embarcado. Mesmo que adentre outra aeronave para seguir logo atrás, não conseguirá alcançar o ponto nevrálgico e pérnicie (ruína) na sequência do almejado. Em razão disso, recorda a todo instante os momentos que passou ao lado dela.

Vem à lembrança como água jorrando em nascente, os passeios que nunca foram dados, as deambulações que nunca se concretizaram ou melhor, que não se ampliaram além da pizzaria e do churrasquinho à noite, variando, ainda, essas breves marchas, às idas e vindas ao supermercado, ou ao banco, começo de mês, quando ela precisava sacar a sua aposentadoria.  De todo esse estrago, restou o “apartado”. Na bifurcação impiedosa do destino, cada um seguiu o seu lado escolhido.  

Ela e ele vivem o desatino cruel de terem seu próprio “armagedon” em tempo imediato. Ela se descobriu portadora de cardiomegalia (“coração grande”). Ele se pega ressabiado às voltas com uma “hiperplasia” (hipertrofia da próstata). Para ambos, grosso modo, uma espécie de atrofia decadente a ser vivida a longo prazo, para o resto de seus dias se faz latejante. Os dois se falam, trocam mensagens via WhatsApp.

No fundo, ele e ela —, ela e ele, são dois mortos insepultos, vivendo memórias de cicatrizes antigas. Cada um a seu bel prazer, tentando dizer a si mesmo, a todo instante, que o passado, num sopro milagroso do divino se foi para sempre, se desfraldou além fronteira, fugiu incólume, desapareceu temeroso, evaporou medrado, desassomou batendo em retirada. Ele e ela —, ela e ele vivem, ou melhor dito, vegetam na pele, a essência catártica de uma tragédia grega de um tempo desmesurado.

Nada para eles é apaziguador. Ao contrário, a longitude, a cada dia, aumenta o sofrimento. Se avolumam as tristezas, faz crescer, de modo centuplicado o pavor, engrossando a insegurança e, via igual, progredindo a largos passos ampliando o caos para que o vindouro se torne lúgubre e próximo de uma ruptura sem retorno. Viver um amor assim, bonito de se ver, porém apartado pelo longor (lonjura) da distância, não é outra coisa senão um infindável jogo de desprazeres obumbrados de cafifes (dificuldades) e desditas (infortúnios), azares e desgraças a se perderem no “horizonte desparalelado” de cada um algemado, a bem da verdade, em grossas correntes de um mundinho particular oculto bem longe da nossa conhecida realidade terrena.

Fonte:
Texto e foto enviado pelo autor

quarta-feira, 15 de março de 2023

Adega de Versos 102: Paulo Roberto Oliveira Caruso

 

George Abrão (Crendices da minha infância)

As crianças de hoje, tão instruídas pela Internet e pela mídia, já em quase nada mais creem, para elas tudo é natural e cientificamente comprovado. Mas, quando eu era criança (há muito tempo!), era compelido a aceitar muitas crendices, e as aceitava. Talvez, algumas delas fossem para que eu não fizesse nada errado ou perigoso, outras para que não cometesse gula ou outros pecadilhos. Lembro-me de tantas coisas que hoje podem soar inocentemente, mas que para mim eram regras de vida:

Na mesa de café, se por um acaso, eu estivesse comendo um pedaço de pão e este caísse ao chão, vovó me dizia:

- Recolha e beije o pão, menino, pois assim nunca lhe faltará alimento e também porque no pão está Nosso Senhor Jesus Cristo.

E eu, obedientemente, recolhia o pão e o beijava.

À noite, quando nos sentávamos na calçada frontal de nossa casa e eu começava a apontar as estrelas com os dedos, lá vinha recriminação:

- Não faça isso, pois irão nascer verrugas em suas mãos!

E eram tentas as recomendações:

Quando eu brincava de pular carniça com os meus amigos, mandavam-nos parar, pois criança que é pulada para de crescer; se assobiasse à noite chamaria cobras; não se podia deixar o chinelo virado, pois assim o pai ou a mãe poderia morrer; e comer manga com leite? Fazia muito mal; pepino com leite era veneno (se fosse assim a raça árabe teria se extinguido, pois sempre como pepino com coalhada e estou vivo); se eu comesse banana à noite, passaria mal (e o estômago tem relógio?); se eu cruzasse com um gato preto na rua teria sete anos de azar (e o que tem a cor do gato com isso?); se passasse por debaixo do arco-íris eu viraria mula sem cabeça (e como passaria por baixo de um fenômeno luminoso?); e a melhor de todas: se eu cantasse na quaresma viraria mula de padre (seria a mula do padre diferente das outras?).

E com a casa, todos os cuidados eram poucos:

Se quebrasse um espelho teria sete anos de azar; uma vassoura colocada atrás da porta espantava as visitas chatas; se jogasse sal no fogo espantaria o azar; colocar um elefante (enfeite) sobre um móvel traria dinheiro, só que o bicho deveria estar com a tromba erguida e com o traseiro virado para a porta; jamais um guarda-chuva deveria ser aberto dentro de casa, pois isso traria infortúnios e problemas familiares.

E em minha vivência:

- Se eu, ao mentisse, que fizesse figa ou cruzasse os dedos atrás, nas costas, pois assim não seria condenado pelo pecado; na festa do meu aniversário eu devia desembrulhar o presente, colocá-lo sobre a cama e jogar o papel debaixo dela, para ganhar mais; quando estivesse chovendo muito e eu desejasse que a chuva passasse, deveria jogar uma peneira no meio do quintal ou colocar um ovo na janela para Santa Clara; e quando eu perdia um dente deveria colocá-lo no parapeito da janela e dizer: - “Ratinho, ratão, leve este dente e traga-me “cincão” (cinco cruzeiros, na época)”. Às vezes ele trazia!

Quando eu saia para a rua, minha mãe sempre recomendava:

- Filho, não passe por debaixo de escada, dá azar! (e até poderia dar, se uma lata de tinta ou uma ferramenta caísse sobre a minha cabeça).

E sete era o número da mentira.

E agosto o mês do desgosto.

E sol com chuva previa casamento de viúva.

E sexta-feira 13? Dia aziago.

E a melhor crendice de todas:

A mulher que tem o segundo dedo do pé maior que o primeiro, manda no marido! (Por isso, meus amigos solteiros, antes de casar olhem bem nos pés das namoradas. Para os que já são casados não tem mais jeito, o negócio é obedecer!)

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 9


ANSEIO

Por mais que em convulsões o mundo trema,
rumo ao caos que implacável nos atinge...
Por mais, seja negado o suave lema,
"Paz e Amor", que de sangue hoje se tinge...

Por mais que o desencanto fel esprema
nas almas secas de quem já nem finge,
creio sempre num Deus, que é Luz suprema!
Sol que clareia o Bem... e o Mal restringe!

E mesmo envolta cm sombras de amargura,
mesmo que os dias sigam mais tristonhos
e a vida cada vez menos segura,

fujo à incerteza que o momento traz,
mantendo vivo, a incrementar meus sonhos?
um doce anseio de encontrar a Paz!
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GLÓRIA À PADROEIRA

Gloriosa Virgem Mãe Aparecida,
nossa Nação quer luzes e padece!
E se a teus pés se curva, enternecida,
de joelhos canta e o seu cantar é prece!

Virgem Morena, mais tranquila é a vida
de quem a bênção tua… acalma e aquece!
E este Brasil tão grande, Mãe querida,
feliz menino, ao te louvar, parece!

Teu manto azul — de beijos relicário —
que nos cerca de paz a ampla fronteira,
a esperança estendida ao mundo hostil!

Cada lar seja sempre o teu santuário,
ó Virgem Santa, perenal padroeira
da imensa realidade que é o Brasil!
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O POETA NÃO MORRE...

O Poeta não morre?! — Fantasia!
A dor calcando ao peito, amargurado,
morre, sim, o Poeta, a cada dia,
em cada sonho seu que é destroçado!

Morre ao pensar que a chama da Poesia
morreu também - se morre o ser amado!
E cria no presente a idolatria
de fazer do passado altar sagrado!

Morre o poeta, sim... se a vida o esquece!...
Mas se cantam seus versos... ergue os ombros,
canta feliz e vivo permanece!

Tão vivo como sempre, segue a esmo:
- Fênix, renascida entre os escombros,
a surpreender a todos... e a si mesmo!
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ORQUÍDEA

Presa ao tronco, sob alta ramaria,
fidalga, a orquídea viça. Ao seu encanto,
pasmam os colibris e se extasia
a noite que a abrilhanta com seu pranto!

Espiritual, ao solo repudia
ansiando pelo espaço, no mais santo
desejo de ser pura. A fantasia
lhe esmera a forma e lhe colore o manto.

Flor sonhadora, em busca do infinito,
reclusa no seu páramo selvagem,
guarda o fascínio e a sedução de um mito!

E em sua altiva solidão de asceta,
retrata a orquídea a mais perfeita imagem
da alma utópica e lírica do poeta!
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PRECE DE PAZ

Ah! Senhor... Sei que tanto já me deste!...
Viver é bom... E eu Te agradeço... mas...
dá-me um cantinho na Mansão celeste,
onde eu possa, afinal... achar a PAZ!

A PAZ sem restrições... PAZ inconteste
que só benesses, aos que a abraçam, traz!
— A PAZ da mansidão, que não investe
além das proporções do que nos dás!

E que seja essa Paz intensa e pura!
PAZ que as agruras da alma anestesia!...
Paz que eu provei nos braços da ternura!...

— Dá-me, Senhor, a Paz de quem perdoa
a Vida cruel, que num tristonho dia,
a invejar minha Paz... Sem dó roubou-a!...

Fonte:
Enviado por Jean.
Jean Carlos Gomes (org.). XIII Coletânea Século XXI. Volta Redonda/RJ: Gráfica Drumond, 2022.

Leda Maria Bechara (O fim da festa)

Amanhece. Rita se espreguiça preparando o corpo para mais um dia de expediente. E uma tarefa árdua, porém gratificante. Levanta-se já animada e se banha, enquanto sua mãe prepara seu café. Afinal o dia será puxado. Amanhece também para Beto e Toninho, no apartamento em que moram dividindo despesas. Levanta, Beto! Diz Toninho apressado: Temos que passar ainda na lavanderia para pegar as roupas que vamos precisar. Beto abre os olhos sonolentos e se espreguiça longamente. Num pulo chega ao banheiro e volta de lá já banhado e vestido. O café é na padaria em frente. Estas três pessoas formam um grupo de amor, consciência, altruísmo e abnegação. Seu trabalho: Animação de festa infantil; sua doação: trazer de volta esperança num hospital de crianças acometidas pelo câncer.

Quantos pequeninos já felizes faziam sorrir e quantos outros tornavam felizes no seu compromisso com a alegria. Chegaram a lavanderia e de lá correram para o hospital. Vestiram-se apressadamente e maquiaram-se na mesma velocidade. Rita magrinha e de estatura mediana vestia uma fantasia de palhaço, cor de rosa com grandes pompons lilases. Combinava uma peruca lilás anelada, um chapeuzinho rosa choque e uma grande flor amarela presa a ele. Toninho alto e gordinho vestia uma camisa xadrez, uma enorme gravata borboleta, uma calça de cetim amarelo ouro e um sapato de palhaço de uns 40 cm de comprimento, na cabeça um minúsculo chapéu vermelho. Beto envergava uma camisa de cetim vermelha, gravata amarela e uma calça larga com bambolê na cintura, Esta em xadrez vermelho e branco, os suspensórios eram vermelhos. Na calça, Beto colocava pequenos brinquedos que na hora da "festa" distribuía às crianças. A maquiagem era apropriada e o nariz vermelho e redondo completava o traje. Enquanto se caracterizavam iam assumindo a postura da alegria própria daqueles personagens. Riam, modificavam a voz, caiam, viravam cambalhotas; Assim adentravam pelas alas onde as crianças se achavam internadas. Algumas sentadas na cama, outras em cadeira de rodas e um suporte com soro sempre ao lado delas. Outras permaneciam deitadas, desanimadas; a maioria tinha a cabeça sem cabelos o que às vezes dificultava saber se era um garoto ou uma garotinha.

O olhar, triste e sofrido, a princípio ficava indeciso. Aos poucos, porém era como se uma luzinha fosse se acendendo e a cada cambalhota, balão que ganhavam a cada palhaçada, o sorriso que ia aparecendo, a princípio tímido, se tornava uma gargalhada gostosa. Era como se o tempo abrisse uma pausa e o antes e o depois desses momentos de alegria não existissem.

Os três amigos se superavam a cada vez que ali retornavam. Sentiam-se no céu cercado por anjos, longe da dor e do sofrimento. Os pequenos pacientes sentiam-se da mesma forma. A vida voltava a ter sentido, e o amor e a felicidade, as únicas coisas que importavam. Deus estava ali com sua misericórdia. Naquele dia uma enfermeira pediu silencio para que todos pudessem ouvir uma boa noticia. Trazia pelas mãos uma menininha pálida e magrinha cujos cabelos começavam a nascer. Anunciou então que Vera estava de alta curada e ia hoje de volta para casa. Uma esperança iluminou seus olhinhos atentos e todos aplaudiram.

Após os aplausos no breve silêncio, ouviu-se ao longe, no CTI, o apito intermitente do aparelho cardiológico anunciando que um coração parava de bater. Felizmente as crianças não sabiam o significado daquele ruído. Os três amigos entreolharam-se, mas como bons palhaços, continuaram seu numero.

Aqui fora os risos, a alegria (apesar das dores), a festa da esperança. Lá dentro... a despedida da festa da vida.

Fonte:
Enviado por Lucília Trindade Decarli.
Messias da Rocha. Múltiplas palavras: volume III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.

Jaqueline Machado (A Primeira Dama da Trova)



Carolina Ramos é uma escritora, poeta e trovadora, membro da Academia Santista de Letras e da Academia Feminina de Letras, nascida em Santos, SP, no ano de 1924.

Carolina é nacionalmente conhecida como a Primeira Dama da trova, pois foi o grande amor da vida do príncipe da trova, Luiz Otávio, cujo verdadeiro nome era Gilson de Castro, nascido a 18 de julho de 1916 e falecido a 31 de janeiro de 1977, de amiloidose.  

Ele fundou a trova literária no Brasil, na década de 1960.

Em uma de suas obras mais conhecidas “O Príncipe da Trova”, Carolina descreve a vida e morte do trovador, e o inesquecível romance vivido entre o príncipe e a própria autora, no decorrer dos anos de 1973 a 1977.

No mesmo ano em que se conheceram, Carolina foi a primeira mulher a receber o prêmio “Magnífica Trovadora” em Nova Friburgo, no ano de 1973, com o tema “Silêncio” . Essa premiação é oferecida ao trovador ou trovadora que consegue se classificar entre os dez primeiros por três anos seguidos na capital da trova, Nova Friburgo, RJ.

Eis as trovas:

Angústia, imensa, dorida,
pior que a dor de morrer,     
é não ter apego à vida
e ser forçado a viver...
(10º lugar Nova Friburgo - 1971)

Sempre acolho de mãos postas
e humilde tento aceitar          
o silêncio das respostas
que a vida não sabe dar.
(8º lugar Nova Friburgo - 1972)

Mãos tristes, temendo ausências,    
se despedem com revolta...
- Nosso adeus tem reticências
que acenam gritando: - Volta!
(1º lugar Nova Friburgo - 1973)


Certa vez nos Jogos Florais em Porto Alegre, a trovadora declarou: “Não fui a mulher de Luiz Otávio, fui seu amor... Emotiva como sou, não esqueci essa explicação.

É... Os poetas amam diferente...

Essa notável mulher é uma deusa no mundo trovadoresco. É a nossa Baba Yaga, o útero, o sangue, a mãe primeira das trovas nascidas do amor. E hoje, prestes a completar 99 anos de história de vida, no dia 19 próximo, ela ainda fala de amor de uma maneira tão encantadora e profunda, que me emociona a alma.

Há um ano perdeu seu segundo grande amor, Cláudio, com quem viveu mais de 40 anos.

Numa troca de conversa por email, ela disse:

“Querida amiga Jaqueline, dentro do possível estou bem, apesar dos pesares. Ainda não consegui superar o trauma de perder meu marido, embora tendo Deus do meu lado, Cláudio foi o meu segundo grande amor.

“Quarenta anos de casados sem sequer uma rusga, Difícil superar sua ausência.

E confesso que não sei dizer qual dos meus dois amores foi o mais importante em minha vida. Sei apenas que ambos dividem ao meio o meu sofrido coração.”

Em breve, a escritora publicará a biografia do seu segundo grande amor. Não podemos deixar de ler a biografia de Luiz Otávio, e nem a de Cláudio. Fico emocionada só de pensar.

Carolina Ramos reside em Santos, tem duas filhas, um filho, quatro netos e cinco bisnetos.

Num mundo onde os amores são descartáveis, e mesmo os relacionamentos sérios são cheios de conflitos, e que tantas pessoas sequer acreditam mais no amor, Carolina Ramos é o exemplo de uma mulher inatingível pelo tempo, uma eterna menina a nos ensinar que sim, o amor existe, merece ser cultivado e eternamente vivido.

À Carolina Ramos, de quem muito me orgulho de ser amiga, meus sinceros aplausos!



Fonte:
Texto e fotos enviados por Jaqueline Machado.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Vanice Zimmerman (Tela de Versos) 14

Fonte da imagem e triverso: facebook da autora


Humberto de Campos (Pedras preciosas)

Segurando o almirante pela manga da casaca impecável, a baronesa forçou-o a sentar-se, de novo:

- Não, senhor, não pode ir. Tem que contar-nos, agora, a virtude de todas as pedras preciosas exibidas pelas senhoras que aqui se acham.

- Eu? - obtemperou o ilustre marinheiro, levando a mão clara ao peitilho espelhante da camisa.

- Sim, senhor. É este o seu castigo.

E imperativa:

- Sente-se!

Generalizada, de novo, a palestra, a viscondessa de São Germano indagou, com sincero interesse:

- É verdade, almirante é certo, mesmo, que a ágata é "porte-malheur" (má sorte)?

- É verdade, afirmam isso... - acrescentou Mme. Sampaio Gomes.

O almirante contestou:

- É uma invenção recente, essa, D. Violeta. Os antigos, pelo menos, não dão notícia dessa propriedade. Plínio, que a ela se refere longamente, atribui-lhe a virtude de tornar os atletas invencíveis. Os egípcios indicavam-na como infalível contra mordedura das víboras, dizendo-se, mesmo, que as águias a colocavam no ninho para afugentar as serpentes, que lhes perseguiam os filhos.

- E o rubi? - indagou a baronesa.

- O rubi é a pedra dos espíritos esclarecidos. Teofrasto aponta-o como um dos incentivos misteriosos da inteligência, circunstância que a levou, ao que parece, a ser adotada como pedra simbólica dos bacharéis. Outros acreditam que ele preservava contra a peste, contra os venenos, e contra outros perigos da vida. É, mais ou menos, como a esmeralda.

- Como a esmeralda?

- Sim. A esmeralda fortalece, também a inteligência, e cura, segundo Plutarco, as mordeduras de cobra. Alberto, o Grande, recomendava-a contra a epilepsia e Cornélio Agripa contra as hemorragias.

Foi por essa altura que a encantadora D. Ritinha, que até então se limitara a sorrir, fazendo companhia ao contentamento dos outros, aventurou, cândida:

- Mas, há pedras portadoras de desgraças; não há, senhor almirante?

- Dizem que a opala é desse número, minha senhora; mas eu não creio.

- Não crê?

E entre a atenção geral:

- Pois, olhe, há dois anos, meu marido ia sendo vítima de uma dessas pedras de mau agouro. Esteve muito mal!

- E que pedra foi essa? Pode-se saber?

A moça não lhe sabia o nome; a baronesa correu, porém, pérfida, em seu auxílio:

- Era o carbúnculo; não era, Dona Ritinha?

A jovem senhora, desabituada àquele meio super-civilizado, bateu com a cabeça, confirmando, ingênua, a horrenda perversidade:

- É isso mesmo; era o carbúnculo. – e compadecida: - Quase ele morre, coitado!...

 Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Professor Garcia (Reflexões em trovas) 21


A chuva em seu acalanto,
não causa ofensa ao sertão!
Mata a sede e acaba o pranto
dos olhos tristes do chão!
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Ainda espero o teu regresso,
se é que ainda esperas por mim;
pedir que voltes, não peço,
mas te espero até o fim!
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À luz da velha candeia,
uma sombra faz trapaça;
é a solidão que passeia,
enquanto a noite não passa!
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A noite, as sombras passando,
e uma delas, na verdade,
é a da saudade embalando
a sombra de outra saudade!
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Ao lembrar dos tempos idos,
na vida, quanta lembrança!...
Contando os sonhos perdidos,
vi meus sonhos de criança!
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A vida é uma aquarela
pintada de muitas cores;
na moldura, a cor mais bela,
é a cor da estação das flores!
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A vida, com seus desvãos,
dá-me alguns sorrisos francos,
com os netos, passando as mãos
nestes meus cabelos brancos!
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A voz que me rouba a calma
nas horas de solidão,
é a voz de alguém, sem ter alma,
num corpo sem coração!
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Busco a esmo, mundo afora,
rastros de um velho andarilho,
que se fez raio de aurora
no coração de seu filho!
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Cercada de lenda e encanto,
teu poço nunca secou...
Meu Caicó canta o canto
que o Seridó lhe ensinou!
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Creia amigo! Amigo, creia,
que nunca estará sozinho;
quem crê na fé que semeia
forra de luz seu caminho!
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Da infância, nunca me esqueço;
pois, guardo com fortes laços,
traços do mesmo endereço
que viu meus primeiros passos!
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Esses teus lábios, menina,
lembram-me os lábios da flor,
na cor rubra mais divina
da embriaguez de um terno amor!
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Eu sinto, pai, nos meus ais,
nossa união, em fortes elos,
nas impressões digitais
impressas nos teus chinelos!!!
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Grita poeta, e o medo vence-o,
que a tua voz, que é teu grito...
Rompe os grilhões do silêncio
e abre as portas do infinito!
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Mesmo envolto em densas brumas,
se o mar, zangado se alteia,
deixa com beijos de espumas
rugas, de espumas na areia!
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Meu ninho, meu velho ninho,
onde a ternura se espalha,
vive no mesmo cantinho
e é lá, que o amor se agasalha!
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Minha musa inspiradora,
a tua beleza é tanta,
que se fores pecadora,
são teus pecados de santa!
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Não quero o bem que se alcança
com fama e falsos lauréis;
mas manter viva a esperança
ó Pai, que tenho aos teus pés!
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Na solidão da clausura
reza um monge solitário,
buscando a paz, na ternura
das contas do seu rosário!
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O amor, envenena e acalma;
mas, se o amor, por amor clama,
nem parece que tem alma
no corpo do amor, que se ama!
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Olhando a nuvem no céu,
eu deduzo por exemplo,
que a nuvem vagando ao léu,
protege o teto do templo!
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O Sol, cai numa armadilha
da noite, sábia senhora,
para que a luz andarilha
durma até o romper da aurora!
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Pela fé, tudo se alcança
e, a velhice me enternece,
que o poeta, é sempre criança
e criança, nunca envelhece!
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Se a ganância não tem cofre,
eu não entendo o mister,
daquele que tanto sofre,
por ter bem mais do que quer!
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Se a primavera passou,
o outono, um pouco desfez...
Vou tentar com o que restou,
ser primavera outra vez!
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Sem saber o que se alcança,
nem na vida, o que me espera...
Vou semeando esperança
nas cinzas da primavera!
= = = = = = = = = 

Sem ter certeza de nada,
sem saber o que me espera...
Vou semeando na estrada
sementes de primavera!
= = = = = = = = = 

Se o teu olhar, não me acalma,
nem prendo mais tua voz...
Sinto que há mãos em minha alma
puxando os laços dos nós!
= = = = = = = = = 

Se tu, não foste o melhor,
teus sonhos não foram vãos!...
Pois, sinto, pai, teu suor,
no suor de minhas mãos!
= = = = = = = = = 

Toda tarde, um velho sino,
nas notas de um si bemol,
desperta a dor do destino
da agonia do arrebol!
= = = = = = = = = 

Viver de amor, vivem poucos,
mas iludido, eu me assumo;
é que esses meus sonhos loucos,
são meus sonhos de consumo!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Machado de Assis (Três consequências)

D. Mariana Vaz está no derradeiro mês do primeiro ano de viúva. São 15 de dezembro de 1880, e o marido faleceu no dia 2 de janeiro, de madrugada, depois de uma bela festa do ano-novo, em que tudo dançou na fazenda, até os escravos. Não me peçam grandes notícias do finado Vaz ou, se insistem por elas, ponham os olhos na viúva. A tristeza do primeiro dia é a de hoje. O luto é o mesmo. Nunca mais a alegria sorriu sequer na casa que vira a felicidade e a desgraça de D. Mariana.

Vinte e cinco anos, realmente, e vinte e cinco anos bonitos, não deviam andar de preto, mas cor-de-rosa ou azul, verde ou granada. Preto é que não. E, todavia, é a cor dos vestidos da jovem Mariana, uma cor tão pouco ajustada aos olhos dela, não porque estes também não sejam pretos, mas por serem moralmente azuis. Não sei se me fiz entender. Olhos lindos, rasgados, eloquentes; mas, por agora quietos e mudos. Não menos eloquente, e não menos calado é o rosto da pessoa.

 Está a findar o ano da viuvez. Poucos dias faltam. Mais de um cavalheiro pretende a mão dela. Recentemente, chegou formado o filho de um fazendeiro importante da localidade; e é crença geral que ele restituirá ao mundo a bela viúva. O juiz municipal, que reúne à mocidade a viuvez, propõe-se a uma troca de consolações. Há um médico e um tenente-coronel indicados como possíveis candidatos. Tudo trabalho vão! D. Mariana deixa-os andar, e continua fiel à memória do morto. Nenhum deles possui a força capaz de o fazer esquecer; — não, esquecer seria impossível; ponhamos substituir.

Mas, como ia dizendo, estava-se no derradeiro mês do primeiro ano. Era tempo de aliviar o luto. D. Mariana cuidou seriamente em mandar arranjar alguns vestidos escuros, apropriados à situação. Tinha uma amiga na corte, e determinou-se a escrever-lhe, remetendo-lhe as medidas. Foi aqui que interveio a tia dela, protetora do juiz municipal:

— Mariana, você por que não manda vir vestidos claros?

— Claros? Mas, titia, não vê que uma viúva...

— Viúva, sim; mas você não vai ficar viúva toda a vida.

— Como não?

A tia foi ao cabo:

 — Mariana, você há de casar um dia; por que não escolhe já um bom marido? Sei de um, que é o melhor de todos, um homem honesto, sério, o Dr. Costa...

 Mariana interrompeu-a; pediu-lhe que, pelo amor de Deus, não lhe tocasse em tal assunto. Moralmente, estava casada. O casamento dela subsistia. Nunca seria infiel ao “seu Fernando”. A tia levantou os ombros; depois lembrou-lhe que fora casada duas vezes.

— Oh! titia! São modos de ver.

A tia voltou à carga, nesse dia à noite, e no outro. O juiz municipal recebeu uma carta dela, dizendo que aparecesse para ver se tentava alguma coisa. Ele foi. Era, na verdade, um rapaz sério, muito simpático, e distinto. Mariana, vendo o plano concertado entre os dois, resolveu vir em pessoa à corte. A tia tentou dissuadi-la, mas perdeu tempo e latim. Mariana, além de fiel à memória do marido, era obstinada; não podia suportar a ideia de lhe imporem coisa nenhuma. A tia, não podendo dissuadi-la, acompanhou-a.

Na corte tinha algumas amigas e parentas. Elas acolheram a jovem viúva com muitas atenções, deram-lhe agasalho, carinhos, conselhos. Uma prima levou-a a uma das melhores modistas. D. Mariana disse-lhe o que queria: sortir-se de vestidos escuros, apropriados ao estado de viúva. Escolheu vinte, sendo dois inteiramente pretos, doze escuros e simples para uso de casa, e seis mais enfeitados. Escolheu também chapéus noutra casa. Mandou fazer os chapéus, e esperou as encomendas para seguir com elas.

Enquanto esperava, como a temperatura ainda permitia ficar na corte, Mariana andou de um lado para outro, vendo uma infinidade de coisas que não via desde os dezessete anos. Achou a corte animadíssima. A prima quis levá-la ao teatro, e só o conseguiu depois de muita teima; Mariana gostou muito.

Ia frequentes vezes à Rua do Ouvidor, já porque lhe era necessário provar os vestidos, já porque queria despedir-se por alguns anos de tanta coisa bonita. São as suas palavras. Na Rua do Ouvidor, onde a sua beleza era notada, correu logo que era uma viúva recente e rica. Cerca de vinte corações palpitaram logo, com a veemência própria do caso. Mas, que poderiam eles alcançar, eles da rua, se os da própria roda da prima não alcançavam nada? Com efeito, dois amigos do marido desta, rapazes da moda, fizeram a sua roda à viúva, sem maior proveito. Na opinião da prima, se fosse um só talvez domasse a fera; mas eram dois, e fizeram-na fugir.

 Mariana chegou a ir a Petrópolis. Gostou muito; era a primeira vez que lá ia, e desceu cortada de saudades. A corte consolou-a; Botafogo, Laranjeiras, Rua do Ouvidor, movimento de bondes, gás, damas e rapazes, cruzando-se, carros de toda a sorte, tudo isto lhe parecia cheio de vida e movimento.

 Mas os vestidos fizeram-se, e os chapéus enfeitaram-se. O calor começou a apertar muito; era necessário seguir para a fazenda. Mariana pegou dos chapéus e dos vestidos, meteu-se com a tia na estrada de ferro e seguiu. Parou um dia na vila, onde o juiz municipal a cumprimentou, e caminhou para casa.

 Em casa, depois de descansada, e antes de dormir teve saudades da corte. Dormiu tarde e mal. A vida agitada da corte perpassava no espírito da moça como um espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou subiam a Rua do Ouvidor, as lojas, os rapazes, os bondes, os carros; via as lindas chácaras dos arredores, onde a natureza se casava à civilização, lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-do-chão, dando para o jardim, com dois rapazes à mesa, — os tais dois que a requisitaram à toa. E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos.

Dois dias depois, apareceu na fazenda o juiz municipal, a visitá-la. D. Mariana recebeu-o com muito carinho. Tinha no corpo o primeiro dos vestidos de luto aliviado. Era escuro, muito escuro, com fitas pretas e tristes; mas ficava-lhe tão bem! Desenhava-lhe o corpo com tanta graça, que aumentava a graça dos olhos e da boca.

Entretanto, o juiz municipal não lhe disse nada, nem com a boca nem com os olhos. Conversaram da corte, dos esplendores da vida, dos teatros, etc.; depois, por iniciativa dele, falaram do café e dos escravos. Mariana notou que ele não tinha as finezas dos dois rapazes da casa da prima, nem mesmo o tom elegante dos outros da Rua do Ouvidor; mas achou-lhe em troca, muita distinção e gravidade. 

Dois dias depois, o juiz despediu-se; ela instou para que ele ficasse. Tinha-lhe notado no colete alguma coisa análoga aos coletes da Rua do Ouvidor. Ele ficou mais dois dias; e tornaram a falar, não só do café, como de outros assuntos menos pesados.

Afinal, seguiu o juiz municipal, não sem prometer que voltaria três dias depois, aniversário natalício da tia de Mariana. Nunca ali se festejara tal dia; mas a fazendeira não achou outro meio de examinar bem se as gravatas do juiz municipal eram semelhantes às da Rua do Ouvidor. Pareceu-lhe que sim; e durante os três dias de ausência não pensou em outra coisa. O jovem magistrado, ou de propósito, ou casualmente, fez-se esperar; chegou tarde; Mariana, ansiosa, não pôde conter a alegria, quando ele transpôs a porteira.

“Bom! disse consigo a tia; está caída.”

E caída ficou. Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e filósofa, acreditou e fez crer que, se Mariana não tem vindo em pessoa comprar os vestidos, ainda agora estaria viúva; a Rua do Ouvidor e os teatros restituíram-lhe a ideia matrimonial. Parece que era assim mesmo porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e veio para cá. Outra consequência da vinda à corte: — a tia ficou com os vestidos. Que diabo fazia Mariana com tanto vestido escuro? Deu-os à boa velha. Terceira e última consequência: um pequerrucho.

Tudo por ter vindo ao atrito da felicidade alheia.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente em A Estação, em 31 de julho de 1883.

domingo, 12 de março de 2023

Varal de Trovas n. 578


 

Célio Simões (O presente que não recebi)

Era início de novembro de 2017. Muita gente em Belém se preparava para viajar aproveitando o feriado de finados, que por recair numa quinta-feira, deixava “imprensada” a sexta, fazendo a delícia de quem demanda os balneários esticando até o domingo, quando todos voltam para novo período de espera, até outro favorecimento do calendário.

Dominando o desejo de curtir esses dias na ensolarada Salinas decidi ficar, pois tinha que resolver uma pendência sobre passagens aéreas em uma agência de viagem. E lá estava eu no dia 2 fazendo isso, quando o aparelho celular tocou.

Do outro lado era Ivaneide, a secretária de uma das associações profissionais que faço parte, dizendo que havia em sua sala um cidadão procurando por mim. Em princípio estranhei, pois as pessoas interessadas em meus serviços como advogado costumam ir ao escritório, depois de combinar dia e hora para serem atendidas.

Coisa incomum mesmo. Fui informado que o sujeito insistia em saber meu endereço residencial, afirmando que já estivera no meu local de trabalho e não havia me encontrado. Intrigado, pedi que ela passasse o telefone para ele. Eu queria averiguar de quem se tratava. Um tom de voz rouco e profundo, permeado de um resfolegar de alguém muito cansado, sem maiores rodeios me saudou:

- Como vai o senhor? Lembra de mim? É o seu amigo Joel!

- Perdoe, mas não me lembro...

- É que já faz muito tempo. Eu era o vigia da rua, quando o senhor morava no Jardim Independência, no bairro de Nazaré.

E a partir daí começou a descrever com detalhes, o número da minha antiga casa, a marca do meu carro, o nome dos meus vizinhos, o alagamento que houve por lá durante uma monumental chuva de inverno, dando-me a plena certeza que realmente tinha laborado por lá, tão minucioso era seu discurso sobre aquela época, afirmando que de mim recebera muita ajuda para suprir suas necessidades pessoais e familiares. Eu simplesmente nada recordava, nem de sua fisionomia, nem dos favores que supostamente lhe fiz.

Prosseguindo na conversa, disse que não mais residia em Belém e sim no interior do Estado, para onde se mudara definitivamente há dois anos. E que de lá me trouxera um presente, pois sabendo da minha predileção pelos peixes dos nossos rios amazônicos, estava de posse de uma caixa térmica (isopor) com pescado especialmente preparado para me entregar.

Quem me conhece mais de perto sabe da minha inclinação culinária por peixes. Meus olhos devem ter brilhado. Mesmo desconfiado, ditei-lhe ao telefone o meu atual endereço, que ele foi anotando com a ajuda da Ivaneide, pois sua baixa escolaridade não lhe permitia fazê-lo sozinho. Feito o registro, esclareceu:

- Voltei pra Belém para acompanhar minha filha que mora aqui. O senhor lembra da Ana Maria? Era aquela garotinha que ia lá no meu serviço levar o lanche, quando eu fazia as “viradas” de fim de semana. Agora é uma mulher feita, mas sofre de um grave problema de saúde. Ela vai fazer uma cirurgia muito difícil e está precisando de ajuda. O senhor poderia ajudá-la?

Achando a conversa ainda mais inusitada, registrei de memória o nome do hospital onde a moça estava internada e o número do apartamento, prontificando-me a visitá-la assim que eu pudesse. Antes de se despedir, disse-me com um ar de indisfarçado júbilo:

- O senhor não sabe, mas agora eu sou espírita!

- Pôxa, que bom! – Foi o que eu achei de melhor para responder.

- E como espírita, vivo em contato com os seres de luz. Quero lhe dizer que o senhor está perto de receber uma graça muito especial!...

- Amigo, muito obrigado, respondi. Deus lhe pague e lhe proteja...

Depois desta última frase dita por mim, o telefone passou a emitir fortes estalidos até que foi desligado, não me possibilitando mais falar com ele ou com a Ivaneide. Instintivamente atribuí o fato ao péssimo serviço de telefonia fixa ou móvel que dispomos. Por excesso de cautela, liguei para a portaria do prédio onde moro e seu Mundoca, veterano porteiro, atendeu. Disse-lhe que um amigo ia entregar um isopor com peixe e por se tratar de perecível, que avisasse imediatamente nossa empregada, que se incumbiria de apanhá-lo. Recomendei porém, que não permitisse a subida de ninguém ao apartamento pelo motivo óbvio: Infelizmente Belém, antes tranquila, tornou-se uma cidade perigosa e violenta, exigindo todos os cuidados no quesito segurança.

Nesse dia, regressei no fim da tarde e ao indagar na portaria, informaram-me que ninguém deixara ali nenhum isopor com peixe. No outro dia a mesma coisa. Quer ver que seu Joel esqueceu o assunto ou não encontrou meu local de moradia, pensei. Daí me veio à mente o compromisso que com ele assumi de fazer uma visita à filha doente, de quem eu esquecera depois de tantos anos.  

Moleque, ainda, ocupei a vaga deixada por um tio, que fixou residência no Rio de Janeiro, na Sociedade São Vicente de Paulo na minha cidade, dedicada a obras de caridade. Mais tarde, ginasiano, fiz parte da Sociedade Estudantil de Assistência Social (SEAS) que arrecadava donativos para famílias pobres; e até hoje eu e minha esposa, prestamos alguma ajuda aos carentes, na medida das nossas possibilidades. Assim, movido pelo dever de solidariedade, parti para o hospital.

Lá chegando, informei à recepcionista a finalidade da minha presença. Ela, após o protocolo de identificação, indicou-me o apartamento, que fui procurando com cuidado para não incomodar os pacientes, alguns deles atendidos nos próprios corredores. Ao postar-me em frente ao número que eu havia memorizado, bati levemente e uma voz frágil, como se estivesse a quilômetros, lá dos sumidouros do aposento ordenou:

- Pode entrar!

O que aconteceu lá dentro me deixaria perplexo! Soubesse disso eu nem teria entrado. Sou cético para certas situações, no entanto há coisas para as quais é difícil encontrar explicação. Empurrei devagar a porta, ao tempo em que um cheiro forte e adocicado de éter invadiu meus pulmões, quase me fazendo retroceder.

No cômodo, de dimensões reduzidas, não havia ninguém além dela: uma moça franzina, cabelos pretos em desalinho, sob um lençol que lhe chegava ao busto, tendo uma agulha de soro fisiológico espetada no braço esquerdo. Sua palidez intensa e o aspecto enfermiço eram reveladores de seu precário estado de saúde. Fiquei intrigado pois quem devia de estar ali, tomando conta da filha doente não estava, justamente o pai - seu Joel. Com muito tato, iniciei a conversa:

- ...Ana Maria?

- Sim? Quem é o senhor?

- Você era pequena e não se lembra de mim. Sou amigo do seu pai. Pelo telefone, ele me disse que você estava doente, informou o local de sua internação, a cirurgia que você vai fazer e da ajuda que está precisando. Pena que ainda não recebi o isopor com peixe que ele trouxe de presente pra mim...

- Isopor com peixe?

- Sim, ainda estou esperando. Ele sabe que eu gosto muito de peixe.

Notei que a lividez de sua pele se acentuou até transformar-se numa máscara mortuária esculpida em sua tez, porém achei que era da própria doença. Como ela quedou-se muda, voltei a falar tentando humanizar as reações da jovem:

- O que posso fazer por você? Como faço para ajudá-la?

- Eu não estou precisando de nada – respondeu com expressão fechada.  

- De nada? Mas foi seu pai que me pediu para vir aqui verificar o que você está necessitando, pois vocês se mudaram para o interior e...

- Quero lhe dizer que nós nunca nos mudamos para o interior - cortou ela interrompendo-me com certa aspereza. E mal disfarçando o incômodo causado pela minha presença, prosseguiu:

- Sempre vivemos em Belém, no bairro do Parque Verde. E quanto ao papai, acho impossível ele ter-lhe trazido qualquer presente.

- Mas foi o que ele me disse quando conversamos...

Desabando numa crise de pranto, com expressão de dor estampada no rosto lívido vincado pela unha do sofrimento, Ana Maria fitou-me com olhos girovagos balbuciando com dificuldade:

- Só pode ser engano. Papai morreu de infarto no Dia de Finados. Anteontem fez dois anos. Ele está enterrado aqui em Belém, no Cemitério São Jorge. O senhor não pode ter conversado com ele...
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

 Do livro de Célio Simões, “RECADOS DA MEMÓRIA”, 2.ª edição, Editora Cultural Brasil, 2018, pg. 22/27. O autor é advogado, professor, escritor, palestrante e poeta, membro titular da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Benedita Azevedo (Triversos Escolhidos) 1


a chuva está forte
e o relâmpago risca o céu
cadela se esconde
= = = = = = = = =

ainda manhãzinha
olhares fixos na rede
esperam sardinhas
= = = = = = = = =

além da montanha
já se vai a tarde outonal
enfeite do jantar
= = = = = = = = =

bacalhoada
chega à hora do jantar
o marido faminto
= = = = = = = = =

caminhadas de inverno
orelhas sob o vento
parecem queimar
= = = = = = = = =

casa de veraneio
da janela para a rua
cheiro de peixe frito
= = = = = = = = =

cercado dos peixes —
tudo tão abandonado
com o mar de inverno
= = = = = = = = =

clarão da manhã
as pedras à beira mar
guardam lótus brancas
= = = = = = = = =

começo de férias
invade a quadra da escola
o mar agitado
= = = = = = = = =

culto das imagens
o turista esqueceu-se
do seu veranear
= = = = = = = = =

desvãos de praia
cheias de pobreza as casas
sob a chuvarada
= = = = = = = = =

Dia da mentira
o avô engana os netos
e volta à infância
= = = = = = = = =

dia prolongado
também o trabalho aumenta
na horta da casa
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Domingo de Ramos
a procissão acompanha
o padre e a cruz
= = = = = = = = =

em plena calçada
pescador conserta a rede
tempo de bagre
= = = = = = = = =

família reunida
na mesa do restaurante
filé de dourado
= = = = = = = = =

férias de verão
peixe frito no barraco
dá água na boca
= = = = = = = = =

fim de carnaval
restos de fantasia
no meio da rua
= = = = = = = = =

gritos ritmados
pescadores puxam a rede
cheia de peixe-espada
= = = = = = = = =

joga a meninada
debaixo de um aguaceiro
tombos e risadas
= = = = = = = = =

lembra um lenço branco —
o leve pouso da garça
entre os pescadores
= = = = = = = = =

manhã de verão
sabor de peixe com arroz
à beira da praia
= = = = = = = = =

maré outonal
as ondas quebram na areia
bem devagarinho
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marulhar das ondas
folguedos de carnaval
à beira da praia
= = = = = = = = =

noite do folclore
a lua parece dançar
sobre as ondas
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noite tropical
últimos raios de sol
clareiam a praia
= = = = = = = = =

padaria cheia —
o pão doce da vitrine
atrai uma abelha
= = = = = = = = =

paisagem distante
a neblina de Petrópolis
desde o quintal
= = = = = = = = =

revoada na praia
aves tornam a partir
na tarde de outono
= = = = = = = = =

roçado de milho
só restam talos em pé –
gafanhoto peregrino
= = = = = = = = =

súbito aparece
a lua sobre o Atlântico
valeu a espera
= = = = = = = = =

vento da manhã
os barcos pra lá e pra cá
cheios de sardinhas
= = = = = = = = =

velho sorridente
distribui panfletos –
chuva de inverno

Fonte:
Enviado pela autora.
Benedita Azevedo. Praia do Anil. Curitiba: Araucária Cultural, 2006.

Michelle Golden (Como Escrever Histórias Tristes) Deixando a história ainda mais triste, final


1. Não seja melodramático.


Esta é uma das ciladas de histórias tristes. Não faça seus leitores se sentirem forçados a simpatizar com os personagens. Evite fazer descrições muito trágicas ou diálogos emotivos demais, ou pode acabar perdendo a mão.

Às vezes, é difícil notar situações melodramáticas, principalmente quando se está muito próximo da história. No primeiro esboço, talvez você fique um pouco afobado para registrar tudo o que tem em mente — então não tenha medo de substituir tudo depois. Ainda assim, quando fizer uma revisão, seja bem rígido e específico.

Corte as partes das descrições ou dos diálogos que não sejam indispensáveis. Geralmente, quando se trata de uma história triste, menos é mais. Caso descreva a morte do cachorro da Maria, por exemplo, só o faça em uma ou duas frases, para que o público sinta o momento por conta própria e não seja forçado a adotar determinada perspectiva.

Pense também na perspectiva geral do público. No mundo de hoje, histórias tristes são comuns demais, e as pessoas acabam não se importando com as tragédias que são genéricas. Na vida real, por exemplo, é muito comum ouvir falar de mortes e doenças nos telejornais. Evite ser melodramático fazendo uma introspecção sobre as emoções de personagens específicos: sim, perder um animal de estimação é triste, mas por que a Maria está infeliz especificamente? Que tipo de tristeza ela sente?

2. Ponha a qualidade da história acima de qualquer coisa.

As pessoas não gostam de obras que são trágicas sem motivo aparente. Todos curtem ler histórias de qualidade, com humor, bons diálogos e personagens humanos e propensos a mudar. Coloque esses traços em primeiro lugar e só depois pensar nos eventos que os cercam.

Mergulhe na cabeça dos personagens. Crie histórias e passados que não tenham a ver com os eventos trágicos que eles estão vivendo. Dê a eles traços críveis de personalidade, hobbies e interesses etc., para que eles não sejam definidos somente pelos traumas.

Torne a tragédia algo orgânico na história. Não "mate" a mãe da protagonista de repente, por mais que tenha mostrado sinais de doença antes, ou vai parecer uma estratégia barata para criar compaixão por Maria. Se quiser matar alguém, dê alguns sinais de antemão. Mostre-a, por exemplo, nervosa porque tem uma consulta médica.

3. Acrescente uma pitada de humor.

Histórias trágicas demais podem incomodar os leitores e, por isso, muitas tramas tristes também têm partes mais leves. Por exemplo: o romance A culpa é das estrelas, de John Green, inclui bastante humor em meio ao drama, enquanto o filme Flores de aço é conhecido por conseguir misturar risos e lágrimas. Inspire-se nesses exemplos.

4. Lembre o leitor dos bons momentos nas horas mais tristes.


Conforme revisa a história, você pode ficar tentado a deixá-la mais triste. Passe um pente fino pelo texto e tente encontrar maneiras de deixá-lo mais emotivo. Para isso, você pode, dentre outras coisas, relembrar épocas mais felizes do passado.

O que torna momentos tristes tão incômodos é a maneira com que eles contratam com épocas mais contentes, o que pode tocar o coração de qualquer um.

Quando for descrever uma cena triste, fale um pouco sobre um momento mais feliz da história. Por exemplo: cite uma cena anterior, na qual o cachorro da Maria fez um barulho engraçado, que parecia "Olá", e provocou risadas na garota e sua mãe. Depois, quando o animal estiver à beira da morte, ele pode tornar a fazer esse barulho, mas dessa vez com um toque de tristeza.

5. Faça os leitores se apaixonarem pelos personagens.


Reexamine as qualidades deles. As pessoas vão ficar mais tocadas se os personagens tiverem um impacto positivo nos outros. Para isso, quando alguém for morrer na história, por exemplo, escreva algumas frases elogiando o impacto que esse indivíduo gerou. No exemplo, diga algo como "Bob abanou a cauda ao ver Maria, sem deixar de ser o companheiro leal de sempre".

6. Trace paralelos entre tragédias.


Essa é uma ótima maneira de deixar a história mais triste e aumentar o impacto emocional nos leitores.

No exemplo, dá para criar um paralelo bem claro entre a morte do cachorro e a morte do pai da Maria. Ela pode ficar triste porque não conseguiu evitar o inevitável — mais uma vez. Assim, os leitores vão ficar tocados pela personagem e pelo que ela viveu.
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Michelle Golden, Ph.D., professora de inglês em Athens, Georgia. Conquistou seu Mestrado em Educação para Professores nas Artes da Linguagem em 2008 e recebeu seu título de Doutora em Inglês pela Georgia State University em 2015.

Fonte:
Wikihow.  
https://pt.wikihow.com/Escrever-Hist%C3%B3rias-Tristes

Aparecido Raimundo de Souza (Pedinte)

O SUJEITO ENTRA no coletivo lotado usando a porta de saída. Traz nas mãos uma caixinha de isopor suja, com algumas moedinhas dentro. Antes de começar a falar, ou melhor, a pedir, chacoalha o recipiente que faz um barulho peculiar de pratinhas se chocando uma com as outras. Dá, então, início ao seu rosário de queixumes. Berra:         

“Boa noite, meus caros irmãos. Como podem ver, estou aqui pedindo a ajuda de vocês para comprar alimentos para minha família. Tenho mulher, três filhos menores, a minha do meio, sofre de bronquite asmática crônica e eu não tenho recursos nem condições de chegar na farmácia e comprar os medicamentos que o médico receitou”.

Faz uma pausa breve. E segue, aos gritos:

“Minha esposa era empregada doméstica, lavava, passava, e cozinhava para um ricaço que morava numa mansão lá para as bandas de Água de Cima. Como moramos longe e não dava para ela ir e voltar todos os dias, ela dormia no emprego. Ontem, coitada, ela foi mandada embora porque o patrão dela, um sujeito safado, pilantra, vinha, há tempos, fazendo “propostas indecente”, dando cantadas e mais cantadas”.

Nesse momento, começa a chorar:

“Queria abusar dela, de qualquer jeito e para isso, vivia pedindo para minha esposa ser boazinha e se deitar com ele. Em troca, meus irmãos, ele disse que daria dinheiro, roupas e joias. Como minha esposa é crente, e temente à Deus, ela veio enrolando o desgraçado. Veio engabelando dia após dia, semana após semana. Sexta-feira agora, o infeliz chegou mais cedo e resolveu passar a “carroça adiante dos burros.

“Aproveitando que a sua mulher ainda não havia chegado da escola, onde leciona inglês, o calhorda partiu para cima de minha esposa, rasgou as vestes dela, e arrastou a indefesa para um dos banheiros. Minha esposa começou a gritar, e, graças a Deus, o endemoniado largou dela. Minha querida esposa se ajoelhou e orou.

“No final da oração, meus irmãos, ela disse estas palavras: ‘Vade retro, Satanás’ e, graças ao bom Deus, misericordioso, um milagre aconteceu. O tinhoso passou a mão nas chaves de seu carro e foi pra rua”.  

Faz uma nova pausa e enxugou as lágrimas:

“Quando a patroa chegou, minha esposa relatou o ocorrido, mas, a mulher, disse que ela estava mentindo, acertou os ‘dias trabalhado’ e mandou ela embora. Por isto, meus amados irmãos, ao invés de eu estar roubando, ou assaltando, fumando maconha ou pedra de craque, eu estou aqui pedindo aos irmãos, se Deus tocar nos “seus coração” e puder me ajudar com dez, vinte, cinquenta centavos eu ficarei agradecido.  Você que é pai, você que é mãe, sabe como é difícil quando “os filho” da gente pede um pão pra comer e a dispensa está vazia, sem nada.

“Me ajudem, irmãos. Quero deixar um versículo para que meditem e através dele Deus abençoe a vocês e toque seu coração. Provérbios, capítulo 27, versículo 7, diz assim: ‘quem está com o estômago cheio rejeita até o mel; mas, para quem está com fome, até a comida amarga é doce’.

“Obrigado a todos, boa noite, a quem ajudou. Que Deus abençoe a quem colaborou e a quem não pode dar nada também, mas me ouviu e, mesmo não tendo nada com isso, me prestigiou emprestando “seus ouvido” aos “meus clamor””.

Agradeceu ao motorista e, pela mesma porta que adentrou no coletivo, saiu. Acompanhei sua figura e percebi que, às carreiras, ingressou na lotação superlotada que vinha logo atrás.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.