segunda-feira, 17 de abril de 2023

Arthur Conan Doyle (O funil de couro)

Meu amigo Lionel Dacre morava na Avenida de Wagram, em Paris. Era uma casa pequena, com 
grades de ferro e um estreito gramado na frente, à esquerda de quem passa o Arco do Triunfo.

Imagino que existira ali muito antes da construção da avenida, pois o telhado cinzento era manchado de liquens e as paredes descoradas e mofadas pelo tempo. Vista da rua era uma casa pequena, com cinco janelas na frente, se não me falha a memória, mas alongava-se para os fundos num cômodo único. Era ali que Dacre tinha a sua extraordinária biblioteca de ocultismo, e fantásticas curiosidades que eram para ele uma mania e para os amigos uma diversão. Homem rico, de gosto excêntrico e refinado, despendera boa parte da vida e da fortuna reunindo o que passava por uma inigualada coleção particular de obras mágicas, talmúdicas e cabalísticas, muitas das quais de grande raridade e valor.

Seus gostos inclinavam-no para o sobrenatural e para o monstruoso, e ouvi dizer que os seus experimentos em matéria do desconhecido ultrapassaram todos os limites da civilização e do decoro. 

Com seus amigos ingleses ele nunca mencionava tais assuntos, e assumia o tom de um erudito e virtuoso; mas um francês cujos interesses eram da mesma natureza garantiu-me que os piores excessos da missa negra foram perpetrados naquela vasta e majestosa galeria, forrada com as estantes dos seus livros e com as arcas do seu museu.

A aparência de Dacre era suficiente para demonstrar que o seu profundo interesse em assuntos psíquicos era mais intelectual do que espiritual. Não se via traço de ascetismo em seu carão maciço, mas havia uma grande força mental no seu enorme crânio abaulado, que se projetava para cima por entre os cabelos ralos, como um pico nevado emergindo de uma franja de pinheiros. Seu saber era maior que sua prudência, e seus poderes superavam de muito o seu caráter. Seus olhos pequenos, profundamente encravados na face carnuda, brilhavam de inteligência e de uma insaciável curiosidade sobre a vida, mas eram olhos de um sensual e de um egoísta. E basta quanto ao homem, pois hoje ele está morto, coitado, e morreu precisamente no momento em que se assegurava de, por fim, ter descoberto o elixir da longa vida. Não é do seu complexo caráter que me proponho falar, mas do estranho e inexplicável incidente que teve a sua origem quando eu o visitei, na primavera de 82.

Eu conhecera Dacre na Inglaterra, pois estava empreendendo umas pesquisas no Salão Assírio do Museu Britânico na mesma ocasião em que ele se empenhava em demonstrar um significado místico e esotérico em tabuinhas babilônicas, e essa comunidade de interesses nos pôs em contato.

Reparos casuais tinham levado a conversações diárias, e estas a algo que se aproximava da amizade. Eu prometera procurá-lo em minha próxima visita a Paris. Quando se apresentou o ensejo de cumprir o pacto, eu estava morando numa pequena casa de campo em Fontainebleau, e como os trens noturnos eram desconfortáveis ele me convidou para passar a noite em sua casa.

– Tenho apenas uma cama disponível. – disse ele, apontando para um amplo sofá no vasto salão. – Espero que fique bem acomodado.

Era um quarto de dormir bem singular, com suas altas paredes de volumes pardos, mas não podia haver decoração mais agradável para um rato de biblioteca como eu, e não há perfume mais grato às minhas narinas que os eflúvios leves e sutis que se desprendem de um livro antigo.

Assegurei-lhe que não podia desejar melhor alojamento ou um ambiente mais adequado.

– A decoração pode não ser conveniente nem convencional, mas pelo menos é custosa – disse ele, olhando as estantes. – Gastei perto de um quarto de milhão com esses objetos que o circundam. Livros, armas, joias, estatuetas, tapeçarias, imagens – não há quase aqui um único objeto que não tenha a sua história, e geralmente uma história que merece ser contada.

Ele estava sentado de um dos lados da lareira aberta, e eu do outro. Sua mesa de leitura ficava à direita, e uma forte lâmpada acima dela a envolvia num círculo vívido de luz dourada. Um palimpsesto parcialmente enrolado ocupava o centro, e em torno dele viam-se estranhas peças de bricabraque. Uma delas era um grande funil, como os usados para encher tonéis de vinho. Parecia feito de madeira escura, com uma borda de latão descorado.

– Que objeto curioso. – observei. – Qual é a sua história?

– Ah! – disse ele – É o que me tenho muitas vezes perguntado. Daria tudo para saber. Pegue-o o senhor mesmo e o examine.

Obedeci, e verifiquei que o que imaginara ser madeira era na verdade couro, embora o tempo o tivesse ressecado e tornado extremamente duro. Era um funil grande, e comportaria um quarto de galão quando cheio. Um aro de latão debruava a boca, e a ponta também era revestida de metal.

– Que pensa que seja? – perguntou Dacre.

– Imagino que tenha pertencido a algum vinheiro ou cervejeiro da Idade Média. – respondi – Já vi na Inglaterra canjirões do século dezessete – black Jacks, como eram chamados – da mesma cor e dureza deste funil.

– Eu diria que a data deve ser mais ou menos a mesma – disse Dacre – e, sem dúvida, deve ter sido usado para encher de líquido algum recipiente. Se, no entanto, minhas suposições forem corretas, era um estranho vinheiro o que o usava, e um estranho vaso o que era enchido. Não notou algo esquisito no bico do funil?

Levantando-o na luz, observei que a umas cinco polegadas da ponta de latão o estreito gargalo do funil de couro era todo arranhado e machucado, como se alguém o tivesse entalhado com uma faca cega. Era o único ponto em que havia uma aspereza na superfície escura e lisa.

– Alguém tentou cortar o bico.

– Chamaria a isso um corte?

– Está esfolado e lacerado. Deve ter sido necessária certa força para deixar estas marcas num material tão duro, qualquer que fosse o instrumento. Mas, o senhor o que pensa? Tenho certeza de que sabe mais do que diz.

Dacre sorriu, e seus olhinhos piscaram com malícia.

– O senhor incluiu a psicologia dos sonhos entre os seus estudos eruditos? – perguntou.

– Nem sabia da existência dessa espécie de psicologia.

– Meu caro amigo, aquela estante sobre o balcão de joias está repleta de livros, de Albertus Magnus para a frente, que não tratam de outra coisa. É uma ciência em si mesma.

– Ciência de charlatães.

– O charlatão é sempre um pioneiro. Do astrólogo veio o astrônomo, do alquimista, o químico, do mesmerista, o psicólogo experimental. O curandeiro de ontem é o médico de amanhã. Mesmo coisas sutis e impalpáveis como os sonhos serão no devido tempo reduzidas ao sistema e à ordem. Quando esse tempo chegar, as pesquisas dos nossos amigos naquela estante já não serão divertimentos do místico, mas os fundamentos da ciência.

– Supondo que assim seja, o que tem a ver a ciência dos sonhos com este grande funil preto debruado de latão?

– Já lhe explico. Como sabe, eu tenho um agente que está sempre à espreita de raridades e curiosidades para a minha coleção. Algum tempo atrás ele ouviu falar num adeleiro de um dos cais que adquirira uns velhos trastes encontrados num armário de uma velha casa situada nos fundos da rua Mathurin, no Quartier Latin. A sala de jantar dessa velha construção é decorada com um escudo de armas, asnas e bandas encarnadas em campo prateado, que investigações mostraram ser o brasão de Nicholas de la Reynie, alto funcionário do rei Luís XIV. Não cabe dúvida de que outras peças achadas no armário remontam aos primeiros tempos desse rei. A inferência é, pois, que fossem todas propriedades desse Nicholas de la Reynie, que foi, ao que me consta, o cavalheiro especialmente encarregado de manter e executar as leis draconianas daquela época.

– E então?

– Sugiro-lhe que pegue outra vez o funil e examine a borda metálica superior. Vê nela alguma inscrição?

De fato havia nela uns sulcos, quase obliterados pelo tempo. A impressão geral era de uma sequência de letras, a última das quais guardava certa semelhança com um B.

– Parece-lhe ver um B?

– Sim, com efeito.

– A mim também. Aliás, não tenho qualquer dúvida de que seja um B.

– Mas o fidalgo de que fala teria um R por inicial.

– Exatamente! Aí é que está a beleza da coisa. Ele possuía esse objeto curioso, e no entanto tinha iniciais de outrem gravadas nele. Por quê?

– Não posso imaginar. E o senhor?

– Bem. Posso, talvez, adivinhar. Não percebe alguma coisa desenhada na borda, um pouco adiante?

– Diria que é uma coroa.

– Sem dúvida é uma coroa; mas, se a examinar em boa luz, verificará que não é uma coroa comum. É uma coroa heráldica – uma insígnia de nobreza, e consiste numa alternação de quatro pérolas com folhas de morango, o distintivo de um marquês. Podemos deduzir, portanto, que a pessoa cujas iniciais terminam num B tinha a prerrogativa de usar essa coroa.

– Então este simples funil de couro pertencia a um marquês?

Dacre fez um sorriso enigmático.

– Ou a algum membro da família de um marquês – respondeu. – É o que claramente se conclui desse aro gravado.

– Mas o que tem tudo isso a ver com sonhos?

Não sei se foi devido a uma expressão no rosto de Dacre, ou a uma sutil sugestão nos seus modos, mas um sentimento de repugnância, de inexplicável horror, assaltou-me enquanto eu contemplava a velha e surrada peça de couro.

– Mais de uma vez recebi importantes esclarecimentos por via dos meus sonhos – disse o meu companheiro na feição didática que gostava de assumir. – Agora, adotei como regra sempre que me vejo em dúvida sobre alguma questão especial, colocar ao meu lado enquanto durmo a peça em causa, e esperar uma elucidação. O processo não me parece tão misterioso, embora ainda não tenha a sanção da ciência ortodoxa. Segundo a minha teoria, qualquer objeto que tenha estado intimamente associado com algum supremo paroxismo de emoção humana, quer de prazer quer de dor, reterá uma certa atmosfera ou conexão passível de comunicar-se a uma mente sensitiva. Quando falo de uma mente sensitiva, não me refiro a uma mente anormal, mas a uma mente educada e cultivada como a sua ou como a minha.

– Quer dizer, por exemplo, que se eu dormisse junto àquela velha espada pendurada na parede, poderia sonhar com algum incidente sangrento em que essa mesma espada tivesse participado?

– Um excelente exemplo, já que, por sinal, essa espada foi usada por mim dessa maneira, e eu vi em meu sono a morte do seu dono. Ele pereceu numa breve escaramuça, que não me foi dado identificar, mas que ocorreu ao tempo das guerras dos frondistas. Pensando bem, algumas das usanças populares são a prova de que o fato já era conhecido dos nossos ancestrais, ainda que nós, em nossa sapiência, o classifiquemos entre as superstições.

– Por exemplo?

– Por exemplo, colocar um bolo de noiva sob a cama para provocar no ocupante sonhos agradáveis. É um dos muitos exemplos que o senhor encontrará citados numa pequena memória que estou escrevendo sobre o assunto. Mas, voltando ao ponto, uma noite eu dormi com esse funil perto de mim e tive um sonho que sem dúvida lança uma luz bem singular sobre o seu uso e origem.

– Como foi esse sonho?

– Sonhei... – Ele interrompeu-se e uma expressão intensamente interessada surgiu-lhe nas feições massudas. – Por Júpiter, é uma grande ideia. Será uma experiência sobremodo interessante. O senhor é um excelente paciente psíquico, com nervos que respondem prontamente a qualquer estímulo.

– Nunca me pus à prova nesse campo.

– Vamos prová-lo hoje. Posso pedir-lhe como um favor especial que, ao ocupar esta noite esse sofá, durma com esse velho funil junto à sua cabeceira?

O pedido pareceu-me grotesco; mas eu mesmo, em minha complexa natureza, tenho uma grande inclinação para tudo que é fantástico e incomum. Não acreditava nem um pouco na teoria de Dacre, nem esperava resultados da tal experiência; ainda assim, divertia-me prestar-me a ela. Dacre, com muita gravidade, puxou uma mesinha para junto do sofá e colocou o funil sobre ela. Conversamos mais um pouco, depois ele me desejou boa noite e deixou-me.

Por algum tempo fiquei sentado a fumar junto ao fogo lento da lareira, repassando em pensamento o curioso tema da conversa, e a estranha experiência que possivelmente me aguardava.

Por cético que eu fosse, havia algo impressionante na segurança de Dacre, e o ambiente extravagante que me rodeava, aquela enorme sala, aqueles objetos heteróclitos e não raro sinistros dispostos ao redor incutiam-me na alma um sentimento de solenidade. Por fim despi-me, apaguei a candeia e me deitei. Depois de muito remexer-me, adormeci.

Tentarei descrever com a máxima fidelidade possível a cena que me veio em meus sonhos. Ela se conserva ainda hoje em minha memória mais claramente do que qualquer coisa que eu tenha visto com meus olhos despertos.

Era um aposento que tinha a aparência de uma cripta. Quatro rins partindo dos cantos subiam para juntar-se numa abóbada pontuda. A arquitetura era tosca mas robusta. Evidentemente fazia parte de um grande edifício.

Três homens de preto, com curiosos chapéus de veludo negro de grandes copas, estavam sentados em linha sobre um estrado atapetado de vermelho. Seus rostos eram tristes e solenes. À esquerda, de pé, dois homens em túnicas longas sobraçavam pastas que pareciam recheadas de papéis. À direita, olhando para mim, uma mulher pequena, de cabelos louros e olhos singulares, azuis-claros – olhos de criança. Já passara da primeira juventude, mas não podia ainda dizer-se de meia-idade. Seu talhe tendia à corpulência e seu porte era orgulhoso e confiante. O rosto estava pálido mas sereno. Era um rosto estranho, bonito mas felino, com um quê sutil de crueldade na boca pequena, reta e firme e no queixo arredondado. Estava envolvida numa espécie de camisolão branco, comprido e solto. Ao lado dela um padre magro e ansioso, que continuamente erguia um crucifixo diante dela. Ela voltou a cabeça e encarou fixamente, para além do crucifixo, os três homens de negro, que eram, pressenti, os seus juízes.

Enquanto eu olhava espantado, os três homens puseram-se de pé e disseram qualquer coisa, mas eu não pude distinguir palavras, embora percebesse que era o do centro que falava. Depois retiraram-se majestosamente, acompanhados dos dois com papéis. No mesmo instante vários indivíduos de aspecto rude, vestindo grossos gibões, entraram azafamadamente e removeram primeiro o tapete vermelho, depois as tábuas que formavam o estrado, de modo a desimpedir por completo o recinto. Retirado aquele anteparo, vi algumas singulares peças de mobília atrás dele. Uma parecia uma cama, com rolos de madeira em cada extremidade e uma manivela para regular-lhe o comprimento. Outra era um cavalo de madeira. Havia vários outros objetos esquisitos, e diversas cordas penduradas que passavam em polias. Não era muito diferente de um moderno ginásio.

Depois que a sala foi esvaziada, uma nova figura apareceu em cena. Era um homem alto e magro, todo vestido de negro, com uma face austera e descarnada. O aspecto dele fez-me estremecer.

Sua roupa era lustrosa de graxa e pintalgada de manchas. Portava-se com dignidade lenta e impressionante, como se a partir de sua entrada assumisse o controle de tudo. A despeito da aparência rude e da sórdida indumentária, era agora a sua alçada, a sua sala, o seu comando. No antebraço esquerdo ele trazia um feixe de cordas finas. A dama olhou-o de alto a baixo com um olhar indagador, mas sua expressão se manteve inalterada. Confiante – desafiadora mesmo. Com o padre se passava coisa bem diversa. Seu rosto estava mortalmente branco, e eu vi a umidade brilhar e escorrer em sua testa alta e fugidia. Ele levantou as mãos em oração e continuamente se inclinava para murmurar palavras agitadas ao ouvido da mulher.

O homem de negro adiantou-se e, tomando uma das cordas do braço esquerdo, amarrou as mãos da mulher. Ela as manteve docilmente estendidas para ele enquanto ele o fazia. Em seguida ele agarrou-lhe o braço com uma preensão brutal e a conduziu em direção ao cavalo de madeira, que era pouco mais alto que a cintura dela. Ela foi erguida e deitada sobre o cavalo, o rosto voltado para o teto, enquanto o padre, trêmulo de horror, se precipitava para fora da sala. Os lábios da mulher moviam-se rapidamente, e embora nada ouvisse eu sabia que ela estava orando. Seus pés pendiam de cada lado do cavalo, e eu vi que os labregos que serviam de ajudantes tinham amarrado cordas aos seus tornozelos e prendido as outras pontas a argolas de ferro chumbadas ao piso de pedra.

Meu coração confrangeu-se dentro de mim quando vi esses preparativos ominosos, mas ainda assim a fascinação do horror me pregava no lugar, e eu não conseguia desviar os olhos do insólito espetáculo. Um homem entrou na sala com um balde de água em cada mão. Um outro o seguia com um terceiro balde. Os baldes foram colocados ao lado do cavalo de madeira. O segundo homem tinha na outra mão um colherão de pau – uma concha com um cabo reto – e entregou-a ao homem de negro. Ao mesmo tempo um dos ajudantes aproximou-se trazendo um objeto escuro, que mesmo no meu sonho inspirou-me uma vaga impressão de familiaridade. Era um funil de couro. Com horrível violência ele o introduziu... mas eu não pude mais suportar. Meus cabelos se eriçaram de horror. Contorci-me, debati-me, rompi os laços do sono e emergi com um grito na minha própria vida, e dei comigo deitado e tremendo de terror na enorme biblioteca, com o luar jorrando através da janela e projetando estranhos arabescos negros e prateados na parede oposta. Ah! que abençoado alívio sentir-me de volta ao século dezenove – sair de um subterrâneo medieval para um mundo em que os homens tinham no peito corações humanos. 

Sentei-me no sofá, tremendo em todo o corpo, a mente dividida entre o horror e a gratidão. Pensar que coisas como aquela tinham sido praticadas – que pudessem sê-lo sem que Deus fulminasse os celerados! Seria tudo uma fantasia, ou representava realmente algo que acontecera em dias negros e cruéis da história do mundo? Enterrei a cabeça latejante nas mãos trêmulas. E então, de repente, meu coração pareceu parar no peito, e eu não consegui sequer gritar, tamanho era o meu terror. Alguma coisa avançava para mim na escuridão da sala.

É um horror seguindo outro horror que quebra o espírito de um homem. Eu não podia refletir, não podia orar; tudo que podia era ficar sentado como uma imagem congelada e fitar o vulto escuro que se aproximava pela grande galeria. Então ele penetrou no feixe de luar, e eu voltei a respirar. Era Dacre, e sua fisionomia revelava que ele estava tão assustado quanto eu.

– Foi o senhor? Pelo amor de Deus, o que houve? – perguntou ele em voz rouca.

– Puxa, Dacre, que prazer vê-lo! Estive no inferno. Foi horrível.

– Então foi o senhor quem gritou?

– Suponho que sim.

– Ecoou na casa inteira. Os criados estão apavorados. – Ele riscou um fósforo e acendeu a candeia. – Acho que podemos reacender o fogo – acrescentou, atirando algumas achas sobre as brasas. – Bom Deus, meu caro amigo, como está pálido! Parece que viu um fantasma.

– E vi... Vários.

– Então o funil de couro funcionou?

– Eu não dormiria outra vez perto dessa coisa infernal por todo o dinheiro que o senhor me pudesse oferecer.

Dacre deu uma risada.

– Imaginei que teria uma noite animada – disse. – E o senhor tirou a sua desforra, pois o seu grito não foi um som muito agradável de se ouvir às duas da manhã. Suponho, pelo que me diz, que viu a coisa toda.

– Que coisa?

– A tortura da água – a “Inquirição Extraordinária”, como era chamada nos alegres dias de “Le Roi Soleil”. Conseguiu aguentar até o fim?

– Não, graças a Deus, acordei antes mesmo que começasse propriamente.

– Ah! Tanto melhor para o senhor. Eu aguentei até o terceiro balde. Bem, é uma velha história, e agora estão todos em suas covas; seja como for, portanto, que diferença faz a maneira como lá chegaram? O senhor provavelmente não faz ideia do que era o que viu?

– A tortura de alguma criminosa. Deve ter sido uma terrível malfeitora, se os seus crimes foram proporcionais ao castigo.

– Bem, temos esse pequeno consolo – disse Dacre, traçando o roupão em volta do corpo e curvando-se para mais perto do fogo. – Eles foram proporcionais ao castigo. Isto é, se estou certo quanto à identidade da dama.

– Como é possível que conheça a sua identidade?

Em resposta, Dacre apanhou de uma prateleira um velho volume encadernado em velino.

– Ouça isto. Está em francês do século XVII, mas eu irei traduzindo aproximadamente à medida que leio. O senhor julgará por si mesmo se eu decifrei ou não o enigma.

“A prisioneira foi levada perante as Grands Chambres e Tournelles do Parlamento, reunidas como corte de justiça, acusada de ter assassinado M. Dreux d’Aubray, seu pai, e seus dois irmãos MM. d’Aubray, um deles, lugar-tenente civil, o outro, conselheiro do Parlamento. Vendo-a em pessoa, era difícil acreditar que ela tivesse realmente cometido esses atos perversos, pois era de aparência frágil e estatura pequena, tinha a pele clara e os olhos azuis. Ainda assim o tribunal, julgando-a culpada, condenou-a à inquirição ordinária e à extraordinária para forçá-la a apontar os seus cúmplices, após o que ela seria conduzida em carreta à Place de Grève para lá ser decapitada, devendo em seguida o corpo ser queimado e suas cinzas espalhadas ao vento.

“A data deste assentamento é 16 de julho de 1676.”

– Interessante, – disse eu – mas não conclusivo. Como prova que as duas mulheres eram a mesma?

– Já chego lá. A narrativa prossegue falando do comportamento da mulher ao ser inquirida. “Quando o verdugo se aproximou, ela o reconheceu pelas cordas que ele trazia nas mãos, e prontamente estendeu-lhe as suas próprias, olhando-o de alto a baixo sem dizer palavra.” Que tal?

– Sim, foi como aconteceu.

– ‘‘Ela fitou imperturbável o cavalo de madeira e as argolas que haviam torcido tantos membros e arrancado tantos gritos de agonia. Ao dar com os olhos nos três baldes de água preparados para ela, disse sorrindo: ‘Toda esta água deve ter sido trazida com o fim de me afogar, monsieur. O senhor não imagina, espero, obrigar uma pessoa pequena como eu a engoli-la toda’. ” Quer que eu leia os pormenores da tortura?

– Não, pelo amor de Deus!

– Cá está uma frase que certamente há de demonstrar-lhe que o que aqui se encontra registrado foi exatamente a cena a que o senhor assistiu esta noite: “O bom Abbé Pirot, incapaz de contemplar os sofrimentos infligidos à sua penitente, fugira apressadamente do recinto”. Isto o convence?

– Completamente. Não cabe dúvida de que se trata dos mesmos fatos. Mas quem foi afinal essa dama de aspecto tão atraente e que teve um fim tão horrível?

Em resposta Dacre chegou-se a mim e colocou a candeia sobre a mesa junto à minha cama. Levantando o malfadado funil, voltou o aro de latão de modo que a luz incidisse em cheio sobre ele. Dessa forma, a inscrição era mais claramente visível do que o fora na noite da véspera.

– Já concordamos em que isto seja a insígnia de um marquês ou de uma marquesa – disse ele. – Também estabelecemos que a última letra é um B.

– Sim, não há dúvida.

– Agora eu lhe sugiro que as outras letras, da esquerda para a direita, são M, M, um d minúsculo, A, outro d minúsculo, e então vem o B final.

– Sim, estou certo de que tem razão. Vejo os dois dês minúsculos distintamente.

– O que acabo de ler-lhe – disse Dacre – é o registro oficial do julgamento de Marie Madeleine d’Aubray, Marquesa de Brinvilliers, uma das mais célebres envenenadoras e assassinas de todos os tempos.

Quedei sentado em silêncio, assoberbado pela extraordinária natureza do episódio, e ante as provas cabais com que Dacre expusera o seu verdadeiro significado. De um modo vago vieram-me à lembrança alguns detalhes da história da mulher, sua devassidão desenfreada, a prolongada tortura do pai doente praticada a sangue-frio, o assassinato dos irmãos por motivo de mesquinhos interesses.

Lembrei-me também de que a bravura do seu fim fizera algo por redimir o horror da sua vida, e de que Paris em peso se apiedara dela em seus últimos momentos e a bendissera como a uma mártir dias depois de tê-la amaldiçoado como assassina. Uma objeção, e apenas uma, ocorreu-me ao pensamento.

– Por que as suas iniciais e o seu distintivo no funil? Certamente a reverência medieval à nobreza não ia ao ponto de decorarem instrumentos de tortura com seus títulos.

– Também a mim esta questão intrigou. – disse Dacre. – Mas ela admite uma explicação simples. O caso excitou enorme interesse na época, e nada mais natural que La Reynie, o chefe de polícia, conservasse o funil como um sinistro souvenir. Não era comum que uma marquesa da França sofresse a inquirição extraordinária. Que ele gravasse na peça as iniciais para informação de outros seria da parte dele um procedimento perfeitamente explicável.

– E isto? – perguntei, apontando as marcas no bico do funil.

– Ela era uma tigresa feroz. – disse Dacre, voltando-se para sair. – Parece-me evidente que, como outras tigresas, ela tivesse dentes fortes e aguçados.

Fonte:
Publicado em 1902, na McClure’s Magazine.
Disponível em Domínio Público.

domingo, 16 de abril de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 3

 

Olavo Bilac (O Vaso)

Oh! O lindo, o lindo vaso que Celina possuía! E com que carinho, com que meiguice tratava ela as flores daquele vaso, o mais belo de toda a aldeia! Levava-o a toda a parte e, no seu ciúme, na sua avareza, não queria confiá-lo a ninguém, com medo de que mãos profanas estragassem as raras flores que nele viçavam. Ela mesma as regava, de manhã e à noite, ela mesma as catava cuidadosamente todos os dias, para que nenhum inseto as roesse ou lhes poluísse o acetinado das pétalas. E em toda a aldeia só se falava do vaso de Celina. Mas, a rapariga, cada vez mais ciosa do seu tesouro, escondia-o, furtava-o às vistas de todo o mundo. Oh! O lindo, o lindo vaso que Celina possuía!

Certa vez (era por ocasião das colheitas), Celina acompanhou as outras raparigas ao campo. A manhã era esplêndida. O sol inundava de alegria e de luz a paisagem. E as raparigas iam cantando, cantando; e as aves nas árvores, gorjeando, e as águas do riacho nos seixos da estrada murmurando, faziam coro com elas, e Celina levava escondido seu vaso. Não quisera deixá-lo em casa, exposto à cobiça de algum gatuno. E os rapazes diziam: "Aquela que ali vai é Celina, que possui o mais belo vaso da aldeia..."

Por toda a manhã, por toda a tarde, a faina da colheita durou. E, quando a noite desceu, cantando e rindo as raparigas desfilaram, de volta à aldeia. Celina, sempre retraída, sempre afastada do convívio das outras, deixou-se ficar atrasada. E, sozinha, pela noite escura e fechada, veio trazendo o seu vaso precioso...

Dizem na aldeia que aqueles caminhos são perigosos, há por ali, rodando nas trevas, gênios maus que fazem mal às raparigas...

Não se sabe o que houve, sabe-se que Celina, chegando à casa, tinha os olhos cheios de lágrimas, e queixava-se, soluçando, de que haviam roubado as flores do seu vaso. E não houve consolação que lhe valesse, não houve carinho que lhe acalmasse o desespero. E os dias correram, e correram as semanas, e correram os meses, e Celina, desesperada, chorava e sofria: "Oh! as flores! as flores do meu vaso que me roubaram!...”

Mas, no fim do nono mês, Celina consolou-se. Não tinha recuperado as flores perdidas... mas tinha nos braços um pimpolho. E o João das Dornas, um rapagão que era o terror dos pais e dos maridos, dizia à noite, na taverna, aos amigos, diante dos canecos de vinho:

— Ninguém roubou as flores da rapariga, ó homens! Eu é que lhes fiz uma rega abundante, por que não admito flores que estejam toda a vida sem dar frutos...

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.
(Quando publicado, o autor utilizou o pseudônimo "Bob")

Caldeirão Poético LXI


Adélia Maria Woellner
Curitiba/PR

PRECE

Eu queria cantar o mundo,
com voz bem afinada,
e fazer ressoar meu canto
em cada canto,
em cada estrada.

Eu queria tocar qualquer instrumento,
que vertesse som,
que fluísse música com harmonia
e fazer cada corpo vibrar
ao compasso da minha melodia.

Eu queria ser pintor,
espalhar cores, muitas cores,
manchar telas com habilidade,
retratar a natureza, os sentimentos,
alegrar olhos e almas
e transmitir paz, serenidade.

Eu pedi a Deus tudo isso,
pois queria enternecer corações,
encher a vida de alegria,
colorir pensamentos
e despertar emoções...

Antes mesmo de nascer,
eu pedi para ser esteta...
Ah! como eu pedi a Deus!...
Pedi tanto, tanto,
que Deus me fez poeta.
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Adriana Mayrinck
Rio de Janeiro/RJ

A EMBRIAGUEZ DE UMA SAUDADE

Passo em descompasso
por ares distantes,
desfaço-me em melodias
tímidas e inaudíveis
de um lugar que ficou retido
na memória quase insana
e que traz saudade.

O olhar desfocado em miragens,
a pele marcada pelas passagens
de dores e êxtases
relembra outras paragens
que ainda cheira a maresia
e ventos quentes.

O corpo reage incansável,
com lentidão e firmeza
e grita em silêncio a sua insatisfação.

Notícias vindas de longe
de um cotidiano massacrado,
de um país humilhado
que resiste a inexistência
do que vai além.

Revolta-me o aprisionamento
a matança e a destruição
Mas líquido é o tempo
que baila na cor rubra
da essência que absorvo
em uma taça inexistente
dos sabores tropicais.

Embriago-me e retenho
o que está ao meu alcance.
Faço redemoinho com o ar e a terra
Espalho a palavra em ecos que bailam
e que liberta a esperança

que espera.
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Carlos Pena Filho
Recife/PE, 1929 – 1960

PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.
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Castro Alves
Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira/BA, 1847 — 1871, Salvador/BA

A QUEIMADA

Meu nobre perdigueiro! vem comigo.
Vamos a sós, meu corajoso amigo,
Pelos ermos vagar!
Vamos lá dos gerais, que o vento açoita,
Dos verdes capinais n'agreste moita
A perdiz levantar!

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...
Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos
O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente,
Doido, rubro, veloz, incandescente,
O incêndio que acordou!

A floresta rugindo as comas curva...
As asas foscas o gavião recurvo,
Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas.
Galopando no ar.

E a chama lavra qual jiboia informe,
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas...,
Que espadanam o sangue das cascatas
Do roto coração.

O incêndio - leão ruivo, ensanguentado,
A juba, a crina atira desgrenhado
Aos pampeiros dos céus!
Travou-se o pugilato... e o cedro tomba...
Queimado..., retorcendo na hecatomba
Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara pula; o cascavel - chocalha...
Raiva, espuma o tapir!
E ás vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre - náufragos do medo –
Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...
N’último ramo do pau-d'arco adusto
O jaguar se abrigou...
Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...
E após... tombam as selvas seculares...
E tudo se acabou!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Ruy Espinheira Filho
Salvador/BA

DESCOBERTA

Só depois percebemos
o mais azul do azul,
olhando, ao fim da tarde,
as cinzas do céu extinto.

Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.

Só depois aprendemos
a trilhar o labirinto,
mas como acordar os passos
nos pés há muito dormidos?

Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditamos sobe esta
inútil descoberta

enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca.

George Abrão (Prestígio)

Dificilmente encontramos alguém que não goste de ter reconhecido o seu valor sociocultural na comunidade aonde vive, no seu trabalho, ou mesmo perante o seu círculo de amizade.

É muito gratificante a valorização dos seus atos, o reconhecimento pelas suas obras ou maneira de viver e de conviver. Tudo isso infla o ego e faz com que a pessoa procure se aperfeiçoar a cada vez mais, para que a sua influência positiva torne-se exemplo aos demais.

Mas o prestígio não é e tão somente atribuído ao homem, mas sim a um grupo que tanto pode ser uma associação, como pode ser uma empresa. E é sobre prestígio empresarial que quero falar hoje. E para isso, dar um exemplo de algo ocorrido comigo e com a empresa onde trabalhei durante toda a minha vida e onde me aposentei.

Quando ainda eu pertencia ao quadro de empregados ativos da Caixa Econômica Federal, sempre, no mês de julho, nas férias da minha esposa, eu conseguia alguns dias de licença para irmos até a cidade de Campos do Jordão. assistir ao Festival Internacional de Inverno daquela cidade, onde compareciam musicistas do mundo todo para apresentações em diversos locais e durante todo o mês.

Pois bem, no final dos anos oitenta, no mês de julho, saímos de Piraí do Sul, onde residíamos, para nossa viagem costumeira. Só que, como eu não havia reservado hotel, ao lá chegarmos, logo percebemos que não havia vaga disponível em hotéis no centro do Bairro Capivari, onde gostávamos de nos hospedar. 

Fomos a diversos deles e a resposta era sempre a mesma: “Não temos apartamento vago, pois como o festival está no auge de audiência, muita gente veio para cá.” 

Já estávamos cansados e quase desistindo quando resolvemos ir até mais um outro hotel. Lá chegando, fomos muito bem recebidos pelo proprietário, um senhor muito educado e gentil. Só que a sua resposta à nossa solicitação foi a mesma: “não havia aposento vago”. 

Então, pensei numa possibilidade e pedi a ele que me indicasse onde se localizava a agência da Caixa, que ele disse ser bem perto. Então lhe expliquei que iria até lá, procurar o meu colega gerente, para ver se ele conseguia algo. 

Quando ele soube que eu era empregado da Caixa, incontinenti me disse: “Então o senhor trabalha na Caixa? Por que não me disse isso antes?” Confirmei-lhe minha condição de economiário e me surpreendi com o que ouvi: “Como não posso ter acomodação para um funcionário da Caixa, da qual sou cliente fiel e irrestrito?” e continuou: “Tenho um apartamento coringa, exatamente para casos como o seu, e creio que irá gostar das acomodações, pois é das melhores do meu hotel”.

E assim, graças ao prestígio da minha querida empresa Caixa, conseguimos excelentes acomodações e também tratamento diferenciado durante os dias que lá ficamos. 

Fonte:
Ebook enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

sábado, 15 de abril de 2023

Daniel Maurício (Poética) 50

 

Aparecido Raimundo de Souza (Lanche da tarde)

A MESA DO CAFÉ ESTÁ POSTA. Abarrotada e demasiadamente farta. Ao redor desse imenso móvel todo talhado em madeira de lei, sentados, comportadamente, nós, crianças esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três. Hoje não faltará o pão caseiro. Somente a “Mãe Chica”, com as mãos hábeis dadas por Deus, sabe preparar essa fogaça (pão doce e enorme). Completando, bolo de farinha de trigo com água, sal e ovos; manteiga; pipocas salgadinhas; leite tirado na hora e café moído pouco antes de ir ao coador. Como variação, torta de chocolate, bananas assadas com açúcar e canela. 

Também no cardápio: maçãs vermelhinhas em pedaços; suco de frutas geladinho; queijo cortado em retalhos; presunto e mortadela em fatias. Há igualmente, de reserva, um pacote recheado (com as famosas bolachinhas da venda de “Seu Pereira”), que aguarda, de pronto ser aberto e devorado. Da cozinha contígua, às dependências do resto da construção, ninguém parece sentir o calor abafadiço da tarde linda e comprida. Lá fora, no grande terreiro, um sol ardente se espalha e se dispersa pelo quintal da propriedade que se divorcia das vistas, calcinando a quinta (propriedade) batida e as plantinhas desprotegidas do resguardo das sombras. 

Até as águas ligeiras e cristalinas de um córrego centenário que descem das montanhas seguem numa lentidão acanhada e preguiçosa, e, ao passarem sob a diminuta ponte da divisa do sítio, dão a impressão de imprimirem uma breve pausa como que para se refrescarem debaixo de uma mangueira imponente e altiva, abrigo de dezenas e centenas de pássaros que campeiam toda a extensão dessas paragens. No extremo apartado, para as bandas onde o infinito parece se abraçar à Terra, uma quase imperceptível elevação de poeira amarela se mistura com o ar mormacento e encalmadiço do dia bucólico marchando vagarosamente para o encontro de um ponto determinado. 

De fato. É um cavalo trazendo no lombo Vovô Jeremias, que, “atrasado” para a merenda, voa sobre as patas ligeiras de um fogoso garanhão:

— Tenham calma! O avô de “oceis loguinho apeia”.

Instantes depois, como previsto, Vovô Jeremias entrega a sua montaria à Mãe Chica que, mostrando o melhor sorriso nos dentes claros, acorre a receber o cavaleiro que desmonta espavorido sacudindo as roupas:

— Boas tardes, Mãe Chica...

— Boas, “Sinhô Jeremis!”.

Vovô Jeremias, ou como o trata, a Mãe Chica, de “Sinhô Jeremis” (ela não sabe pronunciar Jeremias) se emoldura num oitentão alto e corpulento, cabelos brancos e rugas precoces vincando as faces coradas. Pecuarista (Negociante de gado de corte), esse homem de coração aberto e feições tranquilas prospera criando, comprando e vendendo rebanhos da raça Nelore. Por conta disso, possui nos arredores do povoado três fazendas com um número gigantesco desses animais. Se tornou um dos mais ricos e abastados fazendeiros e exportadores da região. Atualmente, o Senhor Jeremias desfruta do que semeou desde seu passado distante, juntamente com Maria Sinhá (a nossa Vovó Sinhá), companheira de tantos e tantos janeiros. 

Os dois, agora, vivem nessa etapa pacífica da vida, ou seja, se dedicam aos filhos e seus descendentes:

— Olá, querida!

— Olá, querido!

Após beijar a esposa, parte em direção ao espaço onde quatro boquinhas famintas o esperam. Primeiro se aproxima das meninas Luzia e Luana e as abraçam com demorados afagos. Depois, repete o mesmo gesto comigo e Roberto Júnior. Vovô Jeremias se mostra tão estimado por todos nós, que, sempre brigamos distribuindo uma série de tapas e beliscões “carinhosos” disputando acirradamente o colo do ancião. 

Nessas ocasiões é necessária a imediata intervenção de Vovó Maria Sinhá, e as promessas solenes de que, dia seguinte, providenciará junto com a Mãe Chica, o prato predileto de cada um de nós em particular. Somente dessa forma consegue acalmar os ânimos alvoroçados:

— “Nóis távamos” famintos, vovô!...

— Ué, não “tão” mais?...

— Lógico que sim, vovô!

Desfazendo-se do chapéu de abas largas, o Senhor Jeremias caminha até o lavatório e ali se alivia um pouco do calor abrasante causado pela elevação da temperatura que o acompanhou desde a cidade. 

O líquido gelado jorrando da torneira aberta sobre suas mãos enrugadas lhe traz a sensação reconfortante da missão do dever cumprido. Em seguida, sem mais delongas, se acomoda em sua cadeira predileta, levanta a mão direita e grita sorridente:

— Muito bem, pirralhos e pirralhas! Canecas nas mãos. Vamos acabar com as coisas gostosas que aqui estão!...

A mesa do café posta. Ao redor desse móvel, sentados comportadamente, nós quatro esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três:

— Venha se sentar também conosco, Mãe Chica. Afinal de contas, a sua carcaça de ossos elegantes já faz parte integrante das mobílias da casa.

Mãe Chica, recatada num intervalo necessário, não espera segunda ordem. Conspícua, sorriso largo, se acomoda ao lado de vovô Jeremias e Vovó Sinha: 

—  Pois é pra já, “Sinhô Jeremis...”.  

Enquanto isso, pela paisagem enquadrada nas janelas da ampla cozinha, ao lado do fogão de lenha, à tarde pressurosa se faz ainda mais elegante e soberba. O sol quente, bonito e majestoso, continua a admoestar, sem compaixão, as criações, as aves e as plantinhas desamparadas e indefesas do resguardo precioso das sombras.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 12 –

ADORMECENDO PALAVRAS

Sem a palavra, simplesmente silêncio.
Há, no pavio, uma chama renitente
Que queima, aos poucos... a explosão, que é iminente,
E espalha ardentes emoções no ar sombrio.

Sou um ser frágil... tenho asas, bico... garras,
Sublimo o céu em cada sonho que me dou,
Se me açoitam, sou barco, solto as amarras
E assim, no vento... ou nas correntes... amo... e vou.

Minha palavra é projétil, ave e flor...
Com ela amo, fantasio... dinamito,
Meu coração é a pulsação do meu amor.

Bendito o homem que liberta a emoção
Aprisionada, mas que voa, com seu grito,
Mas adormece dentro do seu coração.
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LÍRICO ARTEFATO

Não sigo a frota, quando a rota é sem destino.
Que poliglota fala a linguagem do mar?
... sei velejar com a inocência de um menino:
Faço um barquinho... e deixo o vento me levar.

A ingenuidade foi meu ponto de partida
Busquei amar sem questionar a alma alheia,
Fui enganado... ou me enganei, pois minha vida,
É mais que o canto sedutor de uma sereia.

Há, na candura, essa espécie de contato
Que sempre foge da frieza de um retrato
E mostra um rosto que sorri à revelia

Da poesia que se torna um artefato,
No exato instante em que o dragão foge o rato
E a explosão do amor detona a fantasia.
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METADE

Se puderes me guardar no teu olhar,
Já me basta, porque, no teu coração,
De repente não irás me libertar
Pois voar não se acostuma com prisão.

Passarinho, eu nasci para voar
E cantar para alegrar a solidão.
Quando sonho, não escolho o que sonhar,
Meu amor convive bem com a emoção.

Se puderes me levar, deixa a metade
Para mim... gosto de ver, em liberdade,
Pelo menos um pedaço de quem sou...

A outra parte, que a protejas com carinho,
Porque, quando eu estiver bem mais sozinho,
Saberei me completar com o que restou.
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PARÁFRASE SURREALISTA DE UM SONETO

Olhando as formas de um soneto antigo,
Feito bem antes do descobrimento,
Um sonetista em desenvolvimento
Buscou, atento ao texto, um novo abrigo...

... vernacular... e em vão, quis disfarçar,
Com singular astúcia, o conteúdo,
Mudou os verbos, nomes, quase tudo,
Na intenção febril de o copiar.

Mas no final do último terceto,
O cidadão selou o seu soneto
Numa paráfrase tão surreal,

Que não contendo suas emoções,
Gritou: - Leitores! Roubei de Camões,
Este soneto feito em Portugal!
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UM POETA NÃO É SÓ SUBSTANTIVO

Sempre alguém diz que sou poeta até no nome...
...mas um poeta não é só substantivo...
o que se inventa, normalmente um dia some
e é assim: reinventando, eu sobrevivo.

Sou só mais um igual a tantos que diluem
nas suas dores, os seus sonhos e anseios,
seres que aprendem a criar versos que fluem,
polinizando a flor dos próprios devaneios.

Não modelei esse poeta que há em mim...
nasci assim, com esse dom especial
de abençoar, na solidão do meu jardim,
cada botão de cada flor original.

Não me sentei numa cadeira e copiei
o que pregava um ilustre professor,
mas diluí em cada olhar o que criei,
quando encontrei no meu olhar, meu próprio amor.

Meus mestres são sempre o melhor que alguém me dê,
sem me cobrar... o amor requer fraternidade...
e Deus repassa, a qualquer cristão que Nele que crê,
esse poder que existe dentro da humildade.

Deus misturou, em cada cor que eu desenhei,
o arco-íris da melhor abstração;
autodidata, cada linha que tracei,
foi um pedaço do meu próprio coração.

Sou, sim, poeta sem registro em cartório,
meu repertório não carece de um carimbo;
a inspiração é muito mais que algo simplório;
se alguém me bate, é com meus versos que me vingo.

Poetas choram poesias, quando o riso
que eles têm fazem da página, o caminho,
da sua lágrima melhor, tão sem aviso,
deixando um rastro moldado pelo carinho.

Não sou poeta só no nome, o meu olhar
capta a vida que respira ao meu redor
e é só o amor reaprender o que é sonhar,
que faço o mundo parecer muito melhor

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

Nilto Maciel (Consciência Tranquila)

D. Evinha ainda parecia nervosa. Um milagre não terem morrido. Aquele maluco devia estar preso, bem preso. Para nunca mais quase matar pessoas indefesas. Nereida chorava de vez em quando, embora não tivesse nenhum ferimento. Apenas uma pancada no joelho. 

Preocupado com as consequências do pequeno acidente, Silvano se lamentava: quisera apenas ajudar a velhinha. Coitada, sob aquele sol do meio-dia, esperando ônibus! Mara, porém, duvidava ter sido esse o motivo da atitude do marido. Não teria parado o carro por causa da mocinha?

Revoltada, Mara contou detalhes do acidente à amiga Maria Serpa. Uma freada brusca e quase matou a velhinha e sua neta. A outra quis saber se Silvano conhecia as duas mulheres. Nem uma nem outra. Viu a mocinha à beira da calçada e parou o carro. Depois arranjou a desculpa da misericórdia pela velhinha exposta ao sol a pino. Um miserável! Vivia atrás de mulheres. Não respeitava ninguém.

Mal se deitaram, Maria Serpa puxou conversa com o marido. Se já sabia do acidente causado por Silvano. Sim, coisa sem importância. A anciã nem sofrera nada. Porém havia a mocinha. E o tarado talvez até estivesse pegando ela. Não, Silvano não seria capaz disso, jurava Coutinho. Era, sim. Disso e de muito mais. Capaz de estuprar a própria filha.

À hora do recreio, Nereida encontrou Ione. Quase morrera no dia passado. Um doido num carro. Ofereceu-lhe carona e por pouco não bateu noutro carro. Não, não o conhecia. Se estivesse sozinha, não teria entrado no carro. Apenas conversaram. Não, não fez nenhum convite. Nem tocou em suas pernas. Coitada da vozinha. Muito assustada. Talvez descuido dele. Parece chamar-se Silvano. A polícia queria prendê-lo.

Silvano contou tudo a Coutinho. Um descuido. A velhinha falava sem parar, a garota ria. Não, não conhecia nenhuma delas. Podia ter sido grave o acidente. E se a velhinha tivesse morrido? Nem pensar nisso. Quisera apenas praticar uma boa ação. Mara gostava de dizer tolices. Então não se preocupasse mais com aquilo. Não, de jeito nenhum. Tinha a consciência tranquila.

E mudaram de assunto.

Fonte:
Enviado pelo escritor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.