sexta-feira, 21 de abril de 2023

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XX

 A DESCONHECIDA

Ela chegou, sorriu. Não disse nada
e foi entrando sem pedir licença.
Depois, falou em tom de uma sentença;
"Eu vou fazer daqui minha morada."

Que conversa maluca e atrapalhada,
não vou brigar nem quero desavença
e mostrando tristeza e indiferença,
eu saí pela porta escancarada.

Depois, voltei e vi por uma fresta,
o clima que reinava era de festa,
muita música e alegria de verdade.

Um dia, ela partiu sentenciando:
contigo estive e andavas poetando,
— não soubeste que sou tua metade.
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AMOR E PAZ

Hoje, pensei na paz do teu amor
que a minha vida triste, ganharia
e lembrando que fui um sofredor,
não sinto mais o fel dessa agonia.

Não desejei ser grande nem senhor,
que o teu amor a mim já bastaria,
hoje sou mais feliz, sou servidor
e cultuo o teu ser, estrela guia.

O amor que nos uniu na caminhada
trouxe-nos paz, ventura à nossa estrada
e a água que faltava em meu deserto.

E ao recordar vitórias alcançadas,
meu desejo é sonhar nas madrugadas
sabendo que estarás aqui bem perto!
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DESPEDIDA

É tempo de partir... Quanta amizade
a gente vai deixando para trás.
Meu coração recorda com saudade
os tempos idos que a memória traz.

Vão-se os amores, sonhos e a vaidade,
tudo passou tão rápido e fugaz…
são lembranças da própria mocidade,
são saudades dos tempos de rapaz.

A Esperança que outrora me seguia
transformou-se em desgosto e nostalgia
ao recordar a mágoa que me oprime.

Chegando ao fim deste roteiro santo,
que eu possa ser a Luz que brilha tanto
que no meu verso a Inspiração sublime.
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LEMBRANDO O LAVRADOR

Eu me levanto cedo e abro a janela
para ver o romper da madrugada,
a Natureza em festa se revela
numa canção de amor bem orquestrada.

O Universo, de luz, parece tela
por um pintor supremo, executada,
tornando-se elegante passarela
onde faz coro a alegre passarada.

O sol desponta, quero uma caneta,
mas a enxada é que vem para a retreta
e quer dançar comigo no roçado...

A enxada tine e estronda pelo eito,
vou capinar a terra do meu jeito
só amanhã, que agora estou cansado!
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MEUS PESARES

Faz tanto tempo, eu me recordo agora
do amor sonhado quando jovem era,
mas que partiu levando a luz da aurora
deixando sem amor minha tapera.

Chorei e muito quando foste embora
ao constatar que a vida não espera,
e tive medo, um medo que apavora
quando se perde o amor na primavera.

Quanto tempo passou. Hoje cansado,
a lembrança avivou o meu passado,
já não procuro mais outra ilusão...

Restou somente esta saudade louca
dos beijos que deixei em tua boca,
e esta mágoa de amor no coração!

Fonte:
Enviado pelo autor.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

João Marques de Carvalho (Contos Paraenses) Desilusão

[A Fontes de Carvalho]

A sra. d. Joaquina era uma dessas impagáveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem corteja-las por distração.

Tinha ela a tez, — enrugada e mole como a casca do jenipapo maduro, — salpicada dessas manchas amarelas a que chamam sardas; encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietário Affonso, — o simpático Affonso, — vendia-lhe com muita dose de reclames e chamadas de atenção para a superioridade da fazenda.

Usava uns vestidos fora da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quais primavam os enfeites vistosos, — uma garridice da sra. d. Joaquina.

O rosto dela denunciava 45 anos bem seguros entre os refegos* da engelhada (enrugada) epiderme, — posto que os cabelos, pretos e lustrosos como a cara suada de um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos idade.

As pessoas que viviam mais intimamente com ela murmuravam frases pouco lisonjeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentável e digna do direito de aspirar a um bom casamento" — como ela pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.

Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma dessas amigas, tendo tido uma altercação com ela, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a notícia de que a nossa personagem pintava os cabelos que, se não recebessem cotidianamente os respectivos afagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar sofrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, supôs equivaler aquela afirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.

A sra. d. Joaquina possuía uma educação medíocre, apenas suficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto à educação moral; quanto à intelectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou três namorados que tivera antigamente.

Eram essas leituras um desopilativo (divertido) benéfico para o seu “spleen*” de senhora entrada em anos e voltada à lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro (negociante de ferragens) abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se em uns vinte e dois anos de existência. Ela não aceitara o amor dele, sonhando desposar um jovem barão, muito rico e elegante, como um que conhecera num romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca apareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, em um momento de lúcida reflexão, resolvera viver em calmo e econômico celibato, apenas conservando em casa a Belisária, cozinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe afagos cheios de faceiros quindins, nas horas de amor, e boas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacuri, à sobremesa.

Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jamais tivera informações exatas, depois que por espontânea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fora negociar ao rio Madeira, de onde nunca regressou, talvez pela sedução de alguma iara encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu país natal, — Portugal — afim de ir saborear à lareira, nos longos serões de inverno, — quando o suão* sibila nas grandes chaminés enegrecidas, — os suculentos nacos de paios da Beira, — daqueles paios tão glutonamente decantados pelo ilustre poeta João Penha.

Por essa arte, achava-se a sra. d. Joaquina disponível, e a dizermos tudo, deveremos acrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de cativar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono de uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros langorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, em uma impassibilidade de múmia. Ela armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flores, fazia-lhe presentes de toalhas de labirinto e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando ele ia à casa da família dela, chegava-lhe fósforos acesos aos charutos, roçando os dedos nos dele, para silenciosamente lhe revelar a sua paixão.

Contudo, nada o comovia, e a sra. d. Joaquina rebelava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memória todos os seus atos relativos ao bom andamento daquele amor.

Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.

A fina amabilidade do jovem lisboeta, de uma elegância tão natural, atraiu as boas graças da digna solteirona, que logo simpatizou com ele. Em menos de um mês o Raul tinha na sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma atenciosa admiradora do "seu caráter austero."

Ele, para retribuir-lhe as afabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.

Levada pelas erupções daquele seu coração vulcânico, ela começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da Natividade. Cedo surpreendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessário, inteirou o parente sobre o afeto dela, para obedecer aos ditames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisória senhora.

Ou porque trouxesse de Lisboa os germes de uma bronquite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pálido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma sufocação, seguida de agudas dores na parte interna do tórax, as quais comunicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expeliu um pouco de sangue vivo.

— Santo Deus, que vejo?! — exclamou o tio, assustado. — Já, um medico, depressa! continuou, a correr atônito pela sala....

O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou três recomendações sobre o tratamento.

Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemóptise*. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.

Depois de ausculta-lo, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o médico aconselhou-o a partir para Portugal assim que pudesse. Assoberbado por tão assustadora recomendação, o bondoso Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saiu seis dias depois.

No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrimas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:

— Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!

— Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!

Chegando á cidade do Tejo, estava Raul em um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto pudesse fazer-lhe mal. Estes úteis entretenimentos levaram-no a esquecer-se da sra. d. Joaquina.

Passaram os meses. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os médicos lhe recomendassem que não viesse ao Brasil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradável. Fez-se caixeiro viajante de uma conceituada casa comercial, para ir fazer cobranças pelas províncias.

Na véspera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão, — ao Alentejo, — estava ele arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso de um paletó que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objeto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe dera a sra. d. Joaquina.

— Ah! que esquecimento o meu! — exclamou. — Que juízo não terá feito a meu respeito a impagável senhora....

E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescrito.

"Meu bom amigo, — leu. — Devo dizer-lhe uma coisa, que há muito aflue-me aos lábios, sem todavia sentir-me com ânimo de faze-lo: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ela do romance A Caridade Cristã, de Escrich, — pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquele fui é que era genuinamente dela, só dela; o Raul bem o conheceu). Espero ansiosa a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia dúzia de água circassiana, para eu dar de presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua eternamente, — JOAQUINA."

Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura daquele modelo de ortografia, propriedade de termos e sintaxe; mas, logo fez-se mais sério e:

— Ora bolas! — disse. — Só os cabelos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos... E era falsa aquela cor de azeviche!... Que desilusão!…
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* Vocabulário:
Refegos = dobras em pessoas gordas.
Spleen baço, segundo os gregos caracterizava sentimentos relacionados ao "pessimismo, ceticismo e um irresistível tédio.
Suão = diz-se de ou vento quente de sul e/ou de sudeste.
Hemóptise = é a eliminação de sangue do trato respiratório pela tosse.
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João Marques de Carvalho (1866-1910), escritor, diplomata e jornalista, Fundador da Academia Paraense de Letras. Foi um dos poucos escritores a conseguir na Amazônia paraense publicar uma produção literária tanto em periódicos quanto em volumes, a exemplo de poemas, contos e romances. Em prefácios de livros e publicações periódicas de naturezas diversas, o escritor paraense levantou com entusiasmo e veemência a bandeira do Naturalismo, estilo literário considerado excessivamente realista e cru, que adotou, defendeu e cultivou ao longo da carreira. Dessa maneira, Marques de Carvalho colocou- se na contracorrente da produção literária cultivada na província do Pará, pois a maioria dos colegas de ofício radicados na Belém oitocentista se demonstrava mais afeita ao Romantismo.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889. Disponível na Wikipedia. https://pt.wikisource.org/wiki/Contos_paraenses/Desillus%C3%A3o. Acesso em 21.04.2023. Convertido para o português atual por J. Feldman.

Stephanie Wong Ken (Dicas de Escrita) Formas de Criar um Vilão Verossímil em Ficção, parte 1

Um bom vilão pode ajudar a prender a atenção dos leitores e avançar o enredo de qualquer obra de ficção. Em vez de ser a personificação do mal, esse personagem tem que ser complexo e repleto de contradições, desejos e necessidades. Para criá-lo, comece fazendo um brainstorming de ideias e pense em uma história que o torne ainda mais interessante. Por fim, você também pode torná-lo complexo e verossímil para que o leitor crie uma conexão emocional com ele.

MÉTODO 1: FAZENDO UM BRAINSTORMING DE IDEIAS

1) Baseie o vilão em uma pessoa de verdade

Pense em alguém que conhece e acha um pouco maldoso ou complicado, escolha uma celebridade ou um criminoso que apareça bastante na mídia ou junte partes de várias pessoas em um personagem só.

Por exemplo: você pode usar um assassino em série da sua região ou um parente que fez algo horrível no passado como base para o vilão.

2) Use o seu maior medo para criar o vilão

Pense no que você mais teme e crie o vilão em cima disso. 

Por exemplo: se é morrer, torne o personagem a personificação da morte; se são aranhas, crie uma aranha gigante (e assim por diante). Assim, os leitores vão compartilhar da sua repulsa por ele.

Por exemplo: a vilã de Misery - Louca Obsessão, de Stephen King, foi baseada no vício em drogas e álcool que o autor enfrentou na juventude. King tinha medo desse vício e, por isso, transformou-o na personagem.

3) Torne o vilão parecido com o protagonista 

O vilão tem que ter traços e qualidades parecidos com os do protagonista (ou herói) da história, como as mesmas experiências ou a sensação de abandono na infância, por exemplo. Eles podem ter aspectos morais e valores diferentes, mas com certa semelhança — para que o leitor tenha empatia pelos dois. 

Por exemplo: o vilão pode sentir a mesma solidão que o protagonista e decidir fazer coisas violentas e maldosas para alcançar o seu objetivo, enquanto o herói vai pelo caminho da paz. 

Não use conceitos abstratos, como doenças, a guerra ou um conglomerado de empresas. Os leitores podem ter dificuldade para entender esses conceitos e, portanto, ter empatia pelo personagem. Evite-os para não causar confusão.

Se quiser usar um conceito abstrato como vilão, transforme-o em um personagem palpável. Por exemplo: crie um empresário sinistro para representar uma empresa corrupta ou um traficante de armas para representar a guerra.

4) Leia obras com bons exemplos de vilão

Busque esses exemplos em gêneros diferentes e veja como os autores os tornam críveis e interessantes para os leitores. Preste atenção às descrições físicas e às histórias dos personagens. Algumas sugestões:

Misery - Louca Obsessão, de Stephen King.
A saga Harry Potter, de J. K. Rowling.
A série As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin.
1984, de George Orwell.
O Talentoso Ripley, de Patricia Highsmith.
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continua… Método 2: Dando um passado ao vilão
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Stephanie Wong Ken é uma escritora que mora no Canada. Seus textos já foram publicados por Joyland, Catapult, Pithead Chapel, Cosmonaut's Avenue e outras. Possui Mestrado em Ficção e Escrita Criativa, pela Portland State University.

Fonte:
Wikihow. Disponível em https://pt.wikihow.com/Criar-um-Vilão-Verossímil-em-Ficção.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 27: A promessa

 

Arthur de Azevedo (Banhos de mar)

Manuel Antônio de Carvalho Santos,
Negociante dos mais acreditados,
Tinha, em sessenta e tantos,
Uma casa de secos e molhados
Na Rua do Trapiche. Toda a gente
- Gente alta e gente baixa -
O respeitava. Merecidamente:

A sua firma era dinheiro em caixa.
Rubicundo, roliço,
Era já outoniço,
Pois há muito passara dos quarenta
E caminhava já para os cinquenta.
O bom Manuel Antônio
(Que assim era chamado),
Quando do amor o Deus (Deus ou demônio,
Porque como um demônio os homens tenta,
Trazendo-os num cortado)
Fez-o gostar deveras
De uma menina que contava apenas
Dezoito primaveras,
E na candura de anjo
Causava inveja às próprias açucenas.

Tinha a menina um namorado, é certo;
Porém o pai, um madeireiro esperto,
Que no outro viu muito melhor arranjo,
Tratou de convencê-la
De que, aceitando a mão que lhe estendia
Manuel Antônio, a moça trocaria
De um vaga-lume a luz por uma estrela.

Ela era boa, compassiva, terna,
E havia feito ao moço o juramento
De que a sua afeição seria eterna;
Porém dobrou-se à lógica paterna
Como uma planta se dobrara ao vento.

Sabia que seria
Tempo perdido protestar; sabia
Que, na opinião do pai, o casamento
Era um negócio e nada mais. Amava;
Sentia-se abrasada em chama viva;
Mas... tinha-se na conta de uma escrava,
Esperando, passiva,
Que um marido qualquer lhe fosse imposto,
Contra o seu coração, contra o seu gosto.

Calou-se. Que argumento
Podia a planta contrapor ao vento?

No dia em que a notícia
Do casamento se espalhou na praça,
A Praia Grande inteira achou-lhe graça
E comentou-a com feroz malícia,
E na porta da Alfândega,
E no leilão do Basto
Outro caso não houve era uma pândega!

Que às línguas fornecesse melhor pasto
Durante uma semana, ou uma quinzena,
Pois em terra pequena
Nenhum assunto é facilmente gasto,
E raramente um escândalo se pilha.
Quando um dizia: - A noiva do pateta
Podia muito bem ser sua filha,
Logo outro exagerava: - Ou sua neta!

O moço desdenhado,
Que na tesouraria era empregado,
E metido a poeta,
Durante muito tempo andou de preto,
Com a barba por fazer, muito abatido;
Mas, se a barba não fez, fez um soneto,
Em que chorava o seu amor perdido.

Do barbeiro esquecido
Só foi à loja, e vestiu roupa clara,
Depois que a virgem que ele tanto amara
Saiu da igreja ao braço do marido.

Pois, meus senhores, o Manuel Antônio
Jamais se arrependeu do matrimônio;
Mas, passados três anos,
Sentiu que alguma coisa lhe faltava:
Não se realizava
O melhor dos seus planos.

Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,
Na qual pudesse reviver contente,
E este sonho insistente,
E essa firme esperança
Fugiam lentamente.
À proporção que os dias e os trabalhos
Seus cabelos tornavam mais grisalhos.

Recorreu à Ciência:
Foi consultar um médico famoso,
De muita experiência,
E este, num tom bondoso,
Lhe disse: - A Medicina
Forçar não pode a natureza humana.
Se o contrário imagina,
Digo-lhe que se engana.

Manuel Antônio, logo entristecido,
Pôs os olhos no chão; mas, decorrido
Um ligeiro intervalo,
O médico aduziu, para animá-lo:
- Todavia, Verrier, se não me engano,
Diz que os banhos salgados
Dão belos resultados...
Experimente o oceano! -

No mesmo dia o bom Manuel Antônio,
Á vista de juízo tão idôneo,
Tinha casa alugada
Lá na Ponta d'Areia,
Praia de banhos muito frequentada,
Que está do porto à entrada
E o porto aformoseia.

Nessa praia, onde um forte
Do século dezessete
Tem tido vária sorte
E medo a ninguém mete;
Nessa praia, afamada
Pela revolta, logo sufocada
De um Manuel Joaquim Gomes,
Nome olvidado, como tantos nomes;
Nessa praia que... (Vide o dicionário
Do Doutor César Marques) nessa praia,
Passou três meses o quinquagenário,
Com a esposa e uma aia.

Não sei se coincidência
Ou propósito foi: o namorado
Que não tivera um dia a preferência,
Maldade que tamanhos
Ais lhe arrancou do coração magoado,
Também se achava a banhos
Lá na Ponta d'Areia...

Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:
Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,
Sem receio, sem medo
De deixar a senhora ali sozinha,
Para a cidade vinha
Num escaler que havia contratado,
E voltava à tardinha.

Tempos depois - marido afortunado!
Viu que a senhora estava de esperanças...

Ela teve, de fato,
Duas belas crianças,
E o bondoso doutor, estupefato,
Um ótimo presente,
Que o pagou larga e principescamente!

Viva o banho de mar! ditoso banho!
Dizia, ardendo em júbilo, o marido.
- Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!
Doutor, meu bom doutor, agradecido!

Pouco tempo durou tanta ventura;
Fulminado por uma apoplexia,
Baixou Manuel Antônio à sepultura.

O desdenhado moço um belo dia
A viúva esposou, que lhe trazia
Amor, contos de réis e formosura.

E no leilão do Basto,
Diziam todos os desocupados
Que nunca houve padrasto
Mais carinhoso para os enteados.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Arthur de Azevedo. Contos em verso. Publicado originalmente em 1909.

Raul Arruda Filho (Iabadabadu!)

O Brasil é o país das crônicas – e dos cronistas. Em cada esquina (ou jornal ou revista), alguém está de plantão, pronto para colher, na fonte, as boas (e más) histórias que integram o cotidiano. Nesse caminhar trôpego, “ligeiramente embriagadíssimo”, como repetia mestre Nereu Goss, a crônica é uma espécie de comentário datado sobre algum acontecimento – e que, se não fosse pelo registro fatual, acabaria desaparecendo na seqüência de eventos “maiores” que constituem a vida urbana.

Como nunca foi considerada “a” musa da literatura brasileira, muito antes pelo contrário, não falta quem a classifique como um gênero “menor”, quer dizer, sejamos francos, texto de segunda classe, desses bem vagabundos, que qualquer um (qualquer um!) pode escrever para ganhar uns trocados.

A turma “do contra” costuma usar uma fórmula divertida: dizem que se trata de uma forma híbrida (e o uso da palavra “híbrida” sempre está envolto no papel celofane do desprezo) de literatura e jornalismo, e que só existe para preencher aquele espaço que não foi utilizado com a notícia. Trocando em miúdos, um calhau, cujo futuro é embrulhar o peixe (ou coisa pior) no dia seguinte à sua publicação.

“São os teus olhos”, rebatem os cronistas, toda vez que recebem uma crítica negativa, uma patada amorosa, recalques de quem não sabe (ou não quer) dizer “eu te amo”. Tia Zulmira explica, complica, simplifica, amplifica. Ou deixa pra lá, porque “as amargas, não”, como dizia um velho cronista, Álvaro Moreyra, escritor que, como poderia ser diferente?, ninguém lembra mais, inclusive porque jamais participou de “reality show” ou gozou de merecidos 15 minutos de fama na Rede Globo.

De qualquer maneira, a crônica consegue ser refratária à “sua mais completa tradução”. E isso é um desafio para o mundo acadêmico. Basta lembrar que, nessa seara, alguns teóricos não economizaram papel e tinta de impressão para impressionar o distinto público com as certezas do mundo. Esforço em vão, diga-se de passagem, pois o santo Graal – ainda – continua desaparecido. Por isso, entre lamentos e sorrisos colgate (modelo gato de Cheshire), algumas “otoridades”, não podendo eludir o deserto das indefinições, acabaram iludindo a si mesmas com o “embromeichom”. Existem vários estudos refinadíssimos, trezentas notas de rodapé, bibliografias quilométricas, biscoitos finos, sabor quase (quase!) idêntico ao daqueles amanteigados dinamarqueses. Todos concluem em agradável surpresa: tudo continua como dantes, no quartel de Abrantes.

De qualquer forma, alguma coisa se salvou: os comentários sobre a linguagem que a crônica utiliza para se comunicar com o leitor. Transitando entre o relato coloquial e a prosa poética, ela permite aventuras estilísticas que abrangem desde a compreensão do mundo através do particular até o escracho monumental. De fato, a crônica é aquele texto onde você pode soltar expressões como “iabadabadu”, “aiou, Silver” ou “fala, amendoeira” no meio da frase e ninguém vai reclamar do conteúdo – ao contrário, são essas situações humanas, demasiadamente humanas (um lampejo daquela cena em que o cara molhava o biscoito no chazinho tépido e entrava em transe para escrever umas 3.000 páginas) que possibilitam ao leitor o reencontro com a ilusão, momento em que é possível acreditar que toda a sabedoria do mundo estava contida nas sagradas páginas do Almanaque Sadol (ou Biotônico Fontoura ou Capivarol). Vai dizer que você não se lembra disso?

Noves fora zero, o aspecto secundário da contradição principal (como lembrava, didaticamente, o camarada Mao Tse Tung) está na constatação de que a crônica, com exceção de alguns clássicos (Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo), jamais foi convidada para tomar assento no panteão das letras. Nos jornais, tudo bem. Nas últimas páginas das revistas, nenhum problema. No entanto, como ensina a regra que divide a idolatrada salve salve em Casa Grande e Senzala, “é preciso saber o seu lugar”.

Que tal começar com algum Fernando Sabino? Não é preciso escolher, qualquer um dos seus livros está repleto de “quero mais”, o cara sabia das coisas e escrevia como se estivesse conversando com o leitor, aquela mistura de sabedoria e bom humor que só os gênios conseguem reunir.

Ou Aldir Blanc e Ivan Lessa? Aldir Blanc, náufrago de boleros e sambas-canções (“Eu hoje me embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra lá, dois pra cá”), fez questão de colocar na lâmina do microscópio social a verdadeira tragédia suburbana: churrasco no quintal, cerveja gelada, palavrões e a sadia sacanagem com a vítima que estiver de plantão. E, óbvio, um imenso dane-se para o politicamente correto! Ivan Lessa é um pouco diferente: com um texto mais aristocrático, nunca negou as raízes de quem nasceu em berço de ouro e leu tudo antes dos vinte anos – agora, olhando as ruínas, cospe sabedoria nos menos aquinhoados. Pois é, com esses dois sujeitos todo cuidado é pouco, toda palavra é armadilha, “Você conhece o Lochas?” “Aquele que...”

Ou Antonio Maria e Stanislaw Ponte Preta? Nos textos dessa distinta dupla, as dores de corno são passageiras habituais do bonde que leva os cafundós do Judas até o lugar onde o diabo perdeu as botas. Nesse cenário fofo, não dá para evitar a parada obrigatória, algum boteco sórdido, onde, ao final da noite, muitos guerreiros tentam afogar as mágoas com martelinhos de pinga com mentruz, ou, se o sujeito ainda dispuser de alguma força, no corpo de alguma das “certinhas do Lalau”, verdadeiro bilhete de loteria premiado (aquele mesmo que tantas vezes ficou para trás, acenando promessas).

Também é possível ler alguma coisa do Luís Fernando Veríssimo, prato cheio para quem gosta de humor pasteurizado, revestido com o verniz intelectual pequeno-burguês, típico de quem, na infância, sempre teve dinheiro para completar o álbum de figurinhas. Pelo mesmo caminho segue um escritor de qualidade, apesar de chatinho: Rubem Braga. Esbanjando uma lírica que sempre defendeu que o Rio de Janeiro é o umbigo do mundo, o ilustre cronista definitivamente desconhecia o que significa morar em palafita, andar de pés descalços por não ter dinheiro para comprar chinelo ou as delícias de roubar manga (como fez tantas vezes o Carlos Heitor Cony, que, guardadas as devidas proporções, é vinho de outra pipa, safra nobre, item de colecionador).

Há outros cronistas. Claro que há. Um punhado de humoristas, um caminhão de trágicos. Além dos “mais ou menos” – desses há milhares, bilhões. É cronista que não acaba mais, Deus nos acuda! De qualquer maneira, uma seleção de craques poderia ser escalada assim: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, José Carlos de Oliveira, Roberto Drummond, Nelson Rodrigues, Lourenço Diaféria, João Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Millor Fernandes. Na reserva: Raul Drewnick, Maria Rita Kehl, Zuenir Ventura, Mário Prata, Marcelo Rubens Paiva, Martha Medeiros e Danuza Leão, entre tantos outros.

Por essas e outras, muitas outras, só nos resta lembrar Fernando Sabino, que, em momento ternurinha, parodiou um verso de Manuel Bandeira, e escreveu que queria que as suas crônicas fossem puras como um sorriso. Nunca me pareceu que estivesse pedindo algum absurdo.

Fonte:
Escritores do Sul. Acesso em 17 out 2011.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “04”

 

Jaqueline Machado ( O Estrangeiro, de Alberto Camus)

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei”.

A abertura de “O estrangeiro",  obra escrita pelo escritor francês Albert Camus e publicada em 1942, é uma das mais famosas da literatura. 

Esta fala inicial é proferida pelo protagonista, Mersault, que demonstra frieza e quase desdém em relação à triste noticia.

Veja bem: “Hoje mamãe morreu”. Essa frase tem um tom neutro, talvez um tanto reflexivo, mas não diz muita coisa, e já na frase seguinte: “Talvez ontem, não sei”. É revelada a indiferença do filho em relação à perda de sua mãe. Ele, estranhamente, não parecia estar bem a par sobre o instante do falecimento da idosa, que vivia num asilo.

A narrativa trata de um cara  estrangeiro de si mesmo. Já que era um ser humano sem humanidade, insensível às coisas fundamentais da vida: amor, família, estudo e trabalho. Vivia num eterno “Tanto faz”. Aliás, esta frase é uma constante no livro, quase um mantra.   

Mersault corre para resolver tudo do enterro, como faz qualquer cidadão de bem, mas durante o velório, não chora, bebe café e ainda cochila.

Logo depois, parte para casa e pensa: preciso dormir umas doze horas. No outro dia vai à praia com a namorada e ao cinema assistir um filme engraçado.

Quando Maria, sua namorada, pergunta se ele a ama, ele responde que não. Ela quer casar. Ele leva o convite em consideração, já que isso parecia ser importante para a moça, mas para ele, casar ou não, não tinha importância alguma.

Em seguida, recebe de seu chefe uma proposta de trabalho em Paris. E o que ele responde ao patrão? “Tanto faz...

A história passa por uma reviravolta, quando um de seus vizinhos bate na amante e pergunta se Mersault  pode testemunhar a seu favor, dizendo que a briga foi uma coisa banal. Ele aceita. Como recompensa, ganhou uns dias numa praia. Nessa praia, nota a presença do irmão da moça espancada, que começa a perseguir o agressor. O calor é intenso, o sol ardia em sua pele, a água parecia um mar de fogo. A ira tomou conta do seu íntimo. Irritadíssimo, puxou sua arma e atirou no homem. Um tiro bastava para matá-lo, mas ele aproximou-se do corpo e atirou mais quatro vezes.

Por nada, matou um homem, comprando uma briga que nem era dele. É processado, condenado à execução, e fica a refletir: - “Que importa ser condenado à morte? Morrer aos trinta e poucos ou aos setenta? De toda forma estamos todos condenados à morte”. E aí entra outra vez a intenção do tanto faz.

Segundo os críticos literários, esta obra foi inspirada no absurdismo que é a teoria filosófica de que a vida em geral é absurda. E sem nexo. Mas psicanaliticamente falando, nos faz refletir profundamente a insensibilidade, o que torna um ser humano incapaz de sentir, de apaixonar-se pela existência.

O sentido da vida se encontra dentro do indivíduo que sente o perfume das flores, que vê beleza nos astros e que ama amar tudo e a todos. Sem essas percepções, realmente tudo perde a cor, o valor... O sentido de tudo se faz nulo e a razão de existir se torna ausente. Ok! Até aí, eu entendo, mas o que leva de fato um ser humano ser um estrangeiro em sua própria natureza? Sinceramente, nem Freud explica. 

Fonte:
Texto enviado pelo autora.

Luiz Otávio (Um coração em ternura…) 11

CANTIGAS DE CONTRASTES

Os homens, infelizmente,
não concordam com a Sorte.,.
— Alguns suplicam a Vida...
Outros procuram a Morte...

Há tanta gente descrente!
E nós — felizes, querida...
…Há tanta vida na gente!
E quanta gente sem vida!

No meu sonho apaixonado,
tanta realidade eu ponho,
que penso quando acordado,
que a Realidade é um Sonho!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

HIPÓTESES

Se eu ficasse surdo!?...
Que tristeza se eu nunca mais ouvisse!
Um doce canto... este rumor da Vida
das aves a taful tagarelice...
e a tua veludosa voz, querida,
tão cheia de ternura e de meiguice...
Que tristeza se eu nada mais ouvisse.

Se eu ficasse mudo!?...
ah que tortura se eu ficasse mudo!
Ouvir a tua voz apaixonada,
em carícias macias de veludo,
não podendo sequer dizer um nada,
para dizer-te tendo n'alma: tudo...
Ah! que tortura se eu ficasse mudo!

Se eu ficasse cego ?!...
Que desgraça se nunca mais eu visse!
Não ver o azul do céu, o azul do mar!
Não ver essa expressão toda meiguice,
que tomas logo após eu te beijar
ou escutando coisas que eu já disse...
Que desgraça se nunca mais eu visse í

Mas julgo que pior inda seria:,
que ser surdo, ser cego ou então mudo,
se acaso o teu amor perdesse um dia,
pois se eu perdesse o amor perdia tudo...
Ah! não poder te amar! oh! que tristeza!
Que vida tão atroz, minha querida!
— Falar… Ouvir-te a voz... Ver-te a beleza!
Sem ter o teu amor, — a própria vida!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

O CORRER DO TEMPO

Há anos tão venturosos,
tão repletos de alegrias,
que ao passarem, nós julgamos
ter vivido apenas dias...

E há dias tão tormentosos,
tão cheios de desenganos,
que julgamos ter vivido
nestes dias, muitos anos!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

VELHO TRONCO
(Á Colombina)

Aquele velho tronco derrubado,
vai renascendo, aos poucos, outra vez…
Deu sombra ao caminhante fatigado!
Teve flores e frutos! Foi copado!
Aos homens quanto Bem ele já fez!

Mas um dia de morte foi ferido,
por este mesmo alguém de instintos brutos
que viera, um dia, exausto, combalido,
após longo caminho percorrido,
— provar a sua sombra e os seus frutos...

Imita o velho tronco derrubado,
ó poeta de alma livre, caluniado,
ferido por um mal que nunca fez!
Esquece o teu algoz de instintos brutos!
Da-lhe outra vez teus versos: — os teus frutos,
e a Sombra do Perdão mais uma vez…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Aparecido Raimundo de Souza (Coisas)

MINHAS MÃOS AMANHECIDAS vieram lavar meu rosto de saudade. Nesse instante, o destino ingrato parece dar uma pausa. Uma delonga mínima, onde tudo está na mais profunda calma e mansidão. Qual o quê! Tudo em derredor não vai além de uma impressão passageira. Na verdade, minha alma está poluída, congestionada de tantas sujeiras. Impurezas, frutos de um bocado de estercos deixados pela sórdida tristeza que habita em meu ser. Igualmente da agonia escárnia que não me deixa. Não me resta outra saída, pelo menos nesse momento crucial, senão chorar.  

Me debulhar em lágrimas sentidas como uma criança que se perdeu dos pais em meio de uma multidão de estranhos. Tento extravasar os momentos cruciantes que me tolhem a vontade de respirar, de continuar vivendo, de ser um pouco feliz. O meu coração está preso a correntes fortes, como também minha alma. Ambos não se movimentam nem para um lado, nem para outro. Somente a procissão das lágrimas caminhantes conseguem me libertar das amarras fortes que me prendem e propiciam um pouco de sossego, um bocadinho da paz que realmente mereço. Contudo, apesar dos pesares, embora continue com o peito despedaçado, consigo vislumbrar uma tênue luz no fim do túnel. 

Sinto que do céu se esvaem pingos de ternura. À medida que caem, escorrem paralelo ao furacão desenfreado que flui do recôndito do meu “eu” interior. Nessa confusão desordenada, apenas sou um pedaço perdido de mim. Resíduos de um amor fracassado, de um caminho interrompido, de um amanhã que não nasceu. Me sinto uma coisa fútil, banal. Me vejo como restos desfalecidos de um corpo sem vida. No fundo, me assemelho a destroços de uma existência inteira jogada à mercê de fortes temporais. Olho para o infinito distante e procuro alguma brecha lá em cima. Uma lacuna-escape, onde possa enfiar minha tristeza e conversar um pouco com Deus. 

Ensaio uma prece: Oro baixinho: “Ó Pai Eterno, venha em meu socorro! Sem sua presença em minha vida o que será de mim? Não sei de nada. Nem mesmo do que me espera, se é que alguma coisa me aguarda. Se abre, diante de minha estrada, um futuro incerto. O caminho percorrido até este momento, me fechou todas as passagens. A única ponte que poderia me devolver ao passado, ficou tão longínqua que mal consigo enxergar a trilha de regresso”.  
De repente, do nada, uma luz – uma luz no fim do túnel (embora ofuscada por densas nuvens negras), me dá um pouco de alento. Afinal de contas, minhas mãos amanhecidas continuam lavando meu rosto entristecido. No fundo, queria retirar da face, o sol sem brilho que me asfixia. 

Quem me dera arrancar de uma vez por todas o meu olhar perdido. Bem ainda afastar a visão deformada das coisas que me cercam. Como seria gratificante espantar para bem longe os fragmentos de sonhos mal sonhados... abraçar as empolgações que encontrei há muito tempo atrás, numa quimera de esquecimento? Sei que tudo o que restou de mim está aqui. Do que fui, também está aqui. Do que construí está aqui. Do que terminou, do que sou agora, tudo, tudo jaz aqui. Será que atinei com a descoberta de algo importante? Difícil dizer! Tenho consciência de que meu tempo acabou. É por isso que cansei de caminhar por estradas de agonia, buscando em cada cidade por onde passei, um coração solitário, como o meu, que me desse pousada. 

Quisera encontrar uma mão amiga que me estendesse e me abrigasse com aconchego, amor, carinho, sobretudo, que me reconstruísse... meu tempo, realmente acabou. De onde estou agora, daria tudo de mim para voltar a bolinar no fiozinho do destino. Abriria mão dos dias que ainda me restam para sobreviver a essa jornada longa, cansativa e maçante que me atropela os dias, notadamente aqueles que me foram levados pelos momentos de solidão. Enfim, continuo vencido. Tenho, pois, que tirar do rosto –, preciso arrancar do meu rosto, essas mãos amanhecidas –, esconder no caderno do passado a vida desfeita em cinzas. Urgentemente fazer rebrilhar no olhar, a ilusão de um novo dia de sol e de esperanças. 

Tenho que prosseguir e progredir. Topar com alguma coisa que garanta a minha permanência nessa terra cansada de sofrer junto comigo as intempéries e as preocupações com um porvir desfeito, soterrado, desmoronado... careço, urgentemente regressar ao viver. Contudo, compreendo, meu tempo acabou. Apesar disso, positivo voltar a sorrir, a cantar, a amar, a ser feliz e alegre. Apesar desse quadro desolador, do tempo ter se escasseado, apesar dessa tristeza mesquinha... alimento a convicção e a certeza de estar construindo algo sólido e maciço. Algo realmente inquebrável e talvez até imutável. Me entojei desse olhar não aderente ao brilho das boas coisas da vida. 

Me amofinei dessa solidão apática que teima e me persegue. Meu tempo acabou, mas estou vivo, e como tal, sonho coisas lindas. Não com castelos de areia, ou sereias encantadas. Não quero um mundo de ilusões deformadas pelas torpezas do espaço que agora me esmaga. Nada disso me fará feliz.  Sonho com um amanhã menos cruel e opressivo. Farejo dias de sol, sem ventos fortes. Profetizo, enfim, com a liberdade de ser eu mesmo. Sem ninguém para tolher os caminhos, as sendas a serem seguidas. Engendro mais:  romantizo coisas palpáveis, ainda que difíceis para conseguir, jamais perderei o foco. Meu tempo acabou. Apesar dele ter findado, não desistirei de alcançar tudo o que almejei, e, se necessário for, aplicarei uma boa dose de perseverança e amor em minha alma. Beberei um cálice de vontade férrea, para enfrentar as lutas e as pelejas que surgirem. Quero me esquecer no tempo. Fluir como as águas de um rio imenso e desembocar no mar. 

O mar, para mim, significa transpor o túnel que tenho à frente.  Chegar do outro lado. Mesmo sabendo que meu tempo acabou. Mesmo tendo consciência que minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudade. Ainda assim, e, sobretudo, haverei de plantar no útero da vida, a semente de um ser vivente. Um ente que desabroche para o mundo. Como as flores de um jardim se abrindo para encantar a natureza. Estou retirando do meu rosto as mãos amanhecidas. Essas, cuja via sacra é uma espécie de relicário de recordações. Reminiscências que não devem, jamais, despertar do sono eterno que vislumbro para elas. Picuinhas do meu passado tristonho e melancólico. Fragmentos que residem dentro de mim:  mazelas que devem ficar, para sempre, sepultadas desse lado do túnel.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Arquivo Spina 52: Artur José Carreira

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 80

Tanta coisa que a gente não saboreia, não degusta e diz que não gosta.  E assim se perde o sabor da vida.  E são tantos !

O sabor de uma comida, um bom papo sem hora para terminar, um viagem (quase) sem rumo, a leitura de um poema, pescaria com os amigos. A listinha vai longe... 

E se dispensamos ou contestamos iguarias, momentos ou prazeres, é quase certo que renunciamos verdadeiros regalos que fazem a vida ser saborosa. Porque sabores não faltam no mundo. O que pode faltar é a capacidade de sentir, degustar e saciar com prazer.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.