sexta-feira, 9 de junho de 2023

Teófilo Braga (A Estrela Dalva)

(CONTO MARÍTIMO DO SÉCULO XVI)


Nisto andava tudo, que se não poderiam por os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lágrimas, e de uma amarelão, e trespassamento de manifesta dor, e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se também de vez em quando algumas palavras lastimosas, sinal certo da lembrança, que ainda naquele derradeiro ponto não faltava dos órfãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos pais que cá deixavam, etc.
Hist. trágico-marítimo, t. I, p. 55.


O sol esmaltava as cores límpidas do horizonte com uns cambiantes de púrpura e de azul, cujo cariz (
semblante) incompleto e vago reflete a melancolia suave em que a alma se concentra nessa hora fugitiva da tarde. O horizonte fechava-se lentamente, como o véu de um templo que se cerra. As virações travessas da noite volitavam encrespando a face trêmula das águas, que lhes respondiam às caricias inquietas, confidenciando com um murmúrio sonoro e confuso. O galeão soberbo da Índia singrava ufano, buscando em proa a terra querida da pátria; levado nas asas das monções propícias, a vela branca desfraldada aos ventos, tinha o garbo da garça altaneira que se libra (equilibra) vaidosa por sobre as ondas, que ela vai roçando de leve. A flâmula ondulante, hasteada no tope do mastro de mezena (mastro de ré), serpeava nos ares como em adeus silencioso às ribas (ribanceiras) odoríferas do Oriente, a despedida ao país dos sonhos e das maravilhas. A natureza como que se absorvera nos encantos desta hora; havia um segredo íntimo em cada toada perdida deste concerto do declinar do dia.

Longo tempo um mancebo encostado à amurada do navio, com os olhos fitos na corrente das vagas, permanecera absorto num cismar incessante, como quem atava na mente as aparências de um sonho mentido, como quem procurava alentar a ultima esperança que prende à vida, e que é como a hera das ruínas. Conhecia-se-lhe na respiração comprimida no peito, que ofegava de cansaço, o esforço acintoso com que procurava afastar da lembrança um sentimento funesto.

A palidez retinta nas faces cavadas pelas insônias longas e aflitivas, era a expressão dos pensamentos tenebrosos, confusos, incoerentes, que vinham povoar-lhe a ansiedade das vigílias. Quem o visse sentiria uma dor igual aquela, uma vontade irresistível de entornar-lhe em sua alma o bálsamo das consolações, com a prodigalidade do afeto com que a moça desenvolta de Magdala vinha derramar aos pés do divino Mestre os perfumes inebriantes da sua urna de alabastro.

Quem o visse na mudez expressiva daquele desalento, no desamparo e soledade de todas as alegrias da vida, sentia-se levado para ele, como por um condão fascinador, que às vezes possuem certos olhares que ninguém pode fitar e de que se tem medo. A brisa fresca da noite, que soprava do poente, como trazendo-lhe o presságio do ocaso de suas esperanças, vinha volatilizar a lágrima tímida e ingênua que tremeluzia viva na pupila cintilante.

A este tempo apareceu sobre o convés do galeão alteroso (
imponente) um outro vulto, todo armado contra a rajada aspérrima (muito áspera) da noite, que se ia cerrando:

— “Ainda aqui, Fernão Ximenez? Embebido nesse longo cismar em que o passado se te afigura doloroso e feio? Para que foges de teu irmão? Bem vês que eu procuro distrair-te dessa agonia lenta que te vai minando a essência débil da vida, desse espasmo da atonia (
inércia) que produz em ti a mudez do sepulcro. O que tens tu em uma vida de criança, inocente, sempre desprevenida, para que o ocultes a teu irmão, ao amigo que sofre com o teu sofrimento, e que exulta com as tuas alegrias?

“ Uma ave, quando é levada para um país distante, longe do ninho que lhe ouviu balbuciar os primeiros trilos de amor, quando lhe falta a bafagem tépida das auras em que se espanejava contente, desfalece à mingua, prisioneira, ralada pela saudade pungente que lhe amofina o ser. Tu, pelo contrario, à medida que os aromas quase imperceptíveis da terra abençoada da pátria nos vêm dar força para afrontar as tormentas escuras, as cerrações e os cabos perigosos, perdes o ânimo ante uma dor imaginária, e deixas-te apossar de uma ânsia, que um instante só de reflexão tranquilizaria. Vamos, serena o teu espírito; seja-te o meu coração o porto almejado onde encontres abrigo. Que receias pois? Temes encontra-la na volta desposada, nos braços de outro? Conta-me a verdade toda; amas?"

— Se com vinte anos apenas haverá quem não tenha sentido ainda esse desvario divino, que acorda de súbito em nós todas as potências da alma, que rasga brilhante a manhã de um éden terreno, dando realidade à vida, e que a um tempo vibra o estertor e o cício (
rumor) horrível dos que se confrangem no báratro (abismo) do desespero que ele gera! Eu amo, sim. É um amor que tem purpurado de risos todas as horas que me absorvo a pensar nela. Para mim é o resumo de todas as belezas do mundo. Onde a vista depara uma aparição grandiosa, deslumbrante, aí sinto uma reminiscência dela; às vezes procuro em vão formar na mente o composto do semblante engraçado, quero tê-la presente pela imaginação à minha idolatria; mas a fantasia não pode reunir em uma mesma auréola de encantos tudo quanto há de mais puro no céu e na terra. Eu estou doido. É o frenesi deste amor que me enlouquece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já se existe, mas sinto-a como a essência de um licor suavíssimo e volátil, que inebria à distância os sentidos. Ela flutua-me pairando ante a vista, como um nevoeiro da madrugada que se esvaece (desvanece) nos ares ao romper da claridade, e de que o sol faz realçar a alvura esplendente. Ela nunca me disse que me amava. Quando só em pensamentos a escuto, a dizer-me segredos introduzíveis, parece-me a bailarina indiana requebrando-se flácida, com uma morbidez encantadora, a voltear brandamente às vibrações remotas das gandharvas (seres musicais), instrumentistas do paraíso. Eu voo na mesma ondulação de harmonia, e sonho um gozo indefinível, que me exacerba mais as angústias cruciantes, quando desperto à realidade. Eu não sei mesmo se me ama. Costumado a brincar desde criança, unindo as nossas orações infantis em noites de tormenta, quando seu pai andava sobre as águas, esta confiança torna impossível o mistério, que alimenta todo o amor.

—”Aldonça!  – repetiu despercebidamente Gaspar Ximenez — a mesma, a que me torna aguerrido, audaz para afrontar estas regiões nos términos do mundo; a que jurou um dia ser minha e me prometeu a mão de esposa, que eu beijei e apertei tremulo, convulsivo!

Fernão Ximenez compreendeu estas palavras. Foram como um clarão súbito, que lampeja e cega. Os olhos arrasaram-se-lhe de água, sem as lágrimas poderem rebentar. Era incrível o que se passava em sua alma. A cólera, a alegria, a contrariedade das aspirações mais ardentes da vida, o desinteresse sublime de um coração generoso debatendo-se tudo naquela alma deserta de esperança! Gaspar Ximenez continuou, como delirando:

—Amas também Aldonça? Como ela é meiga e dócil! É a rola inocente do sacrifício. Ela há de querer a tua felicidade. O que eu disse era uma loucura. Amo-a como irmã apenas; ama-a também, mais do que eu, e será tua.

Ao ouvir estas palavras, proferidas com uma acentuação dolorosa, por uma abnegação quase impossível, Fernão Ximenez não pode represar mais tempo as lágrimas, que lhe rebentavam ferventes dos olhos. Os soluços entercortaram-lhe a voz. Ele jurara dar-lhe também um dia a maior prova de dedicação.

A este tempo, ouviu-se um berro do gajeiro (
marinheiro que fica no cesto da gávea) gritando da gávea:

— Mestre Fernão Mendonça, um negrume espesso se alcança no horizonte, que levamos, pois que a não ser a cerração do cabo, mais me parece presságio de tormenta.

O mar começava já a cavar-se. O piloto mandou logo prender o traquete (
vela grande do mastro da proa), colocar a escota (corda da vela que regula sua orientação) à bujarrona, e que o homem de quarto amurasse mais para sotavento, antes que a borrasca rebentasse de chofre. Instantes depois a marinhagem tripulava afanosa (trabalhosa) sobre o convés; a noite estendera pela amplidão dos mares o seu manto gélido de sombras, como um sudário de morte. O vento frígido sibilava na enxárcia (cabo que manobra as velas); parecia uma serpente escamosa quando assobia na floresta intrincável. A orquestra da procela rompia sonora e esplêndida, como a retrata Virgílio num incomparável hemistíquio (versos alexandrinos).

—Por San-Thiago, disse Fernão Ximenez, saindo da mudez do espanto em que o deixara a longaminidade (
generosidade) do irmão; —adivinhava-o o diabo do gajeiro, pois já as ondas guiam os castelos de proa, e lambem a ponta do gurupé (mastro oblíquo na proa). Diabo! que se tivesse mando no timão amurava mais para sotavento, e talvez que escapássemos à fúria da tormenta.

Continuava o enovelar das vagas como grandes cordilheiras sacudidas por um vulcão subtérreo (
subterrâneo). Instantes depois, o moço descia para o porão, e as marés gigantes em vagalhões, salvavam o baixel (embarcação). Soltos, desencontrados dos quatro pontos, os ventos caem de estouro sobre o galeão.

—Que San-Thiago, o bom apóstolo das Espanhas, esteja conosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a luzinha da bitácula (
caixa onde está a bússola). Que o bom Jesus dos marinheiros nos ampare nesta tribulação, Ave Maria!

A tempestade recrudescia surda à voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-no no seu marulho, e o sorveram no pélago insondável.

Sem governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre ele, estremeceu como aluído (
abalado) pelo cavername (cavernas do navio) e costado; o mastro grande, gemendo sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das águas. Por instantes ninguém respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara, gritou com intrepidez:

—Salta arriba!

A tempestade amansara consideravelmente; via-se espelhado em todos os semblantes um sorriso de esperança, iluminado ao clarão diáfano do santelmo, que reluzia no topo dos mastros.

— Salve! salve, oh Corpo Santo!—gritaram todos possuídos de um regozijo expansivo.

— Podemos agora contar com a bonança, — disse a voz animadora do padre capelão — que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o mal aventurado soldado das Índias, o bom Luiz de Camões:

Vi nos céus claramente o lume vivo,
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.

—Mestre Fernão de Mendonça!—interrompeu o gajeiro,—o galeão tem um enorme rombo na proa, e daqui a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao mar.

E foi-se cantarolando aquelas trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:

À barca, à barca, boa gente,
Que queremos dar a vela;
Chegar a ela, chegar a ela.

O tom frio com que dissera a má nova fazia julga-lo filho da rajada, como se cria nas encarnações da mitologia grega. Ouvida a fala do capitão, foram saltando todos para o batel. Pouco depois a não soberba da Índia começara a afundar-se. Ao vê-la sumir-se, o padre capelão lançou-lhe a bênção, e proferiu uns versículos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes instantes. Era como na morte de um herói, que baqueia ferido no auge da luta. As lágrimas borbotavam dos olhos dos velhos marinheiros ao perderem para sempre aquele companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar estava braseiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.

Assim foram andando à mercê das correntes, sem que transluzisse no horizonte escuro um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o estertor de uma veemente agonia. O mar e a fome infundiam na alma o tédio da vida.

O mar continuava roleiro (
manso). A este tempo uma onda encapelada rebentou quase de choque sobre o batel. Era preciso alijar para alivia-lo. O capitão deitou sortes, para ver os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrépido gajeiro. Pero Gutierrez, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenez parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava na alma, que não sabia o que se passava em volta de si. A sorte fatídica caíra também sobre o irmão. Despertou da abstração dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente compreendeu tudo com a lucidez de que o espírito se apossa nos momentos solenes da vida. Deteve-o um instante:

—Uma vez sacrificaste ao meu amor todas as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dá-la por ti.—E desprendeu-se dos braços do irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se à voragem.

Gaspar Ximenez permaneceu atônito, paralisado ante o estranho heroísmo. O sol ia já alto, o céu tornava-se límpido e sereno, o horizonte abria-se imenso, como a expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda, descobriram-no à distancia seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu heroísmo e dedicação comovera todos os corações. Quiseram unânimes recebê-lo, estava já sem forças, quase imóvel. O amor fraternal resplandecera com espanto. Os membros enregelados começaram de novo a sentir vida com a reação do calor.

O mar ia amansando progressivamente, e antes do cair da noite viram com pasmo e alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regozijo. Quando passados dias chegaram a beijar a terra de seus pais, Fernão Ximenez foi professar, cumprir o voto num mosteiro, para não tornar o amor do irmão impossível.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LVI


SOSSEGA, CORAÇÃO! NÃO DESESPERES!
 
 Sossega, coração! Não desesperes!
 Talvez um dia, para além dos dias,
 Encontres o que queres porque o queres.
 Então, livre de falsas nostalgias,
 Atingirás a perfeição de seres.
 
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
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SOU O ESPÍRITO DA TREVA
 
Sou o Espírito da treva,
A Noite me traz e leva;

Moro à beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida

Refresca-me a alma de espuma...
Pra além do mar há a bruma...

E pra aquém? Há Coisa ou Fim?
Nunca olhei para trás de mim...
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SOU UM EVADIDO
 
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
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TALVEZ QUE SEJA A BRISA
 
Talvez que seja a brisa
Que ronda o fim da estrada,
Talvez seja o silêncio,
Talvez não seja nada...

Que coisa é que na tarde
Me entristece sem ser?
Sinto como se houvesse
Um mal que acontecer.

Mas sinto o mal que vem
Como se já passasse...
Que coisa é que faz isto
Sentir-se e recordar-se?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TÃO VAGO É O VENTO QUE PARECE
 
Tão vago é o vento que parece
Que as folhas fremem só por vida.
Dorme um calar em que se esquece.
Em que é que o campo nos convida?

Não sei. Anônimo de mim,
Não posso erguer uma intenção
Do saco em que me sinto assim,
Caído nesse verde chão.

Com a alma feita em animal,
A quem o sol é um lombo quente,
Aceito como a brisa real
A sensação de ser quem sente.

E os olhos que me pesam baixo
Olham pela alma o campo e a estrada.
No chão um fósforo é o que acho.
Nas sensações não acho nada.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TENHO ESCRITO MUITOS VERSOS

Tenho escrito muitos versos,
muitas coisas a rimar,
dadas em ritmos diversos
ao mundo e ao se olvidar.
            
Nada sou, ou fui de tudo.
Quanto escrevi ou pensei
é como o filho de um mudo
– "amanhã eu te direi".
            
E isto só por gesto e esgar,
feito de nadas em dedos
como uma luz ao passar
por onde havia arvoredos.
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TENHO PENA ATÉ... NEM SEI. . .
 
Tenho pena até... nem sei. . .
Do próprio mal que passei
Pois passei quando passou.
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TENHO SONO EM PLENO DIA.
 
Tenho sono em pleno dia.
Não sei de que, tenho pena.
Sou como uma maresia.
Dormi mal e a alma é pequena.

Nos tanques da quinta de outrem
É que gorgoleja bem.
Quanto as saudades encontrem,
Tanto minha alma não tem.
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TODAS AS COISAS QUE HÁ NESTE MUNDO
 
Todas as coisas que há neste mundo
Têm uma história,
Exceto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.

Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.

Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.

Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?

Nada. Um silêncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.

Aparecido Raimundo de Souza (Unha e carne)

LUNA, A LOIRA, conheceu o Armeu e pediu para ser apresentada a ele, numa festinha de aniversário de uma de suas colegas de finais se semana. O moço de tronco bem-apessoado, contava vinte e cinco anos (enquanto ela computava dezenove). Era alto, quase um metro e noventa, corpo sarado, os cabelos compridos, presos por um elástico sujo desses de prender dinheiro. Trabalhava como pirófago por conta própria e foi exatamente pela sua profissão de nomenclatura estranha, que a Luna se interessou e resolveu grudar no pé do marmanjo com ares aristocráticos:

— Você me disse, quando fomos apresentados pela Gracinha, que é pi... pi... pi... piru, piru o que mesmo?

Armeu riu com vontade:
— Pirófago.
— Isso. E o que é? Algo que se coma?

O jovem voltou a se abrir em mais gargalhadas:
— Você não imagina?
— Não faço a menor ideia.
— Ao menos tente...
— Deixa ver: planta bananeiras?
— Não.
— Faz show com cobras venenosas?
— Está frio.
— Engole espadas?
— Cada vez mais gelada...
— Come ovos quentes tirados na hora da galinha?

Armeu se enfeitou numa fisionomia de quem parecia zangado. Longe disso:
— Credo em cruz!  Você acaba de cair de corpo inteiro num buraco no meio do Polo Norte.
— Então diga de uma vez.
— Pirófago engole...

Luna, de repente, o interrompeu, aos gritos:
— Insetos?
— Calma. Agora deixa eu falar. Você já perdeu todas as oportunidades.
— Está bem. Fique à vontade.
— Um pirófago, igual a mim...

De novo a beldade o fez se calar:
— Entorta garfos e facas...

Armeu fingiu um desagrado ensaiado. Em contínuo, se desmanchou numa ternura delicada e troçou muito sério:  
— Pelo amor de Deus, cala essa matraca. Não é nada disso. Droga!
— Não precisa ficar nervoso. Olha o coração.
— Não estou nervoso.
— Está sim.
— Não estou não.
— Está. Vejo em seus olhos.
— Não estou.
— Prove que não anda sobre cacos de vidro e diga, logo de uma vez, o que é que faz um pifógoro igual a você?
— Já disse que não estou nervoso. E não é pifógoro. O certo é pirófago. Vou ficar muito brabo, claro, se você não fechar essa boca cheia de dentes. Outro detalhe: um pirófago igual a mim, não. Todos os pirófagos fazem a mesma coisa.
— Tudo bem. Agora desembuche.
— Pirófago é o artista que engole fogo.
— Engole fogo?
— Sim senhora.
— Que horror! Não tem medo de se queimar? Dizem que “quem brinca com fogo, se queima...”.
— Agora me esclareça: por onde você engole o fogo?
— Pela boca, ora bolas.
— Não é bem isso que quero saber, mas onde você trabalha com essa coisa?
— Geralmente nas praças públicas. Nos sábados e domingos, em festinhas de aniversários e até em casamentos. No meio da semana ataco os semáforos.
— Ataca o quê?
— Os semáforos. Sinais de trânsito. Se ligou?
— Mais ou menos. Ei, você por acaso está me chamando de loira burra só porque sou loira?
— Longe de mim essa ideia de loira burra. É que você fez uma carinha deveras engraçada quando falei em semáforos.
— Não havia entendido bem. Conta, como é que você faz?
— É assim. Me preparo enquanto os veículos estão transitando. Quando o sinal fecha, eu pulo na frente dos carros e começo a engolir o fogo. Depois saio colhendo os louros.
— Os louros ou as loiras?
— Engraçadinha, você! Colho os louros.
— E o “que é exatamente os louros?”,
— Dinheiro. Grana. Bufunfa. Costumo ganhar uns bons trocados.
— Meu Deus! E nessa trajetória “pirofofagueana” você nunca se queimou?

Mais rinchavelhos (
gargalhadas destemperadamente) estrepitosos entraram em cena:
— Você é muito divertida. Queimei-me só uma vez.
— Como aconteceu exatamente?
— Bebi o fogo, sem querer.
— Mas espera aí: você não engole o fogo?
— Esse é o segredo. Eu engulo. Todavia, não posso revelar a fórmula de como é feito o preparo para as exibições.
— Tudo bem. E depois?
— Tive que desengolir. Botar para fora. Foi o diabo. Vi estrelas...
— Por que não muda de profissão?
— Porque nunca quis aprender outra coisa. Meu pai fazia isso, meus irmãos idem, ou melhor, ainda fazem. Mamãe parou recentemente em face de um incidente numa de suas apresentações. Ela perdeu as duas dentaduras. Somente uma irmã, a Donela, seguiu outra carreira.
— Qual?
— Enroladeira de mangueira.
— Que profissão é essa que também nunca ouvi falar?
— Ela casou com um bombeiro.
— Casou?
— Não exatamente. Na verdade, resolveu morar com um camaradinha que é bombeiro.
— Ah, entendi. O cidadão apaga fogo?
— Não, ele não apaga nada.
— Bombeiro que não apaga fogo?
— É. O infeliz vive de biscates: desentope pias, ralos, limpa fossas...   
— Os caras que fazem isso não são bombeiros...
— E o que são?
— Não sei o nome correto. É alguma coisa parecida com “hidréulico”, porém, tenho certeza de que não é bombeiro.
— Pois então: Donela dobra a mangueira.
— Que mangueira?
— A que o meu cunhado usa para limpar as fossas.
— E que tamanho é a mangueira?
— Espera aí. Essa conversa está tomando outro rumo. Lá vou saber se a mangueira é grande ou pequena?
— Meu querido, estou sinalizando a mangueira que ele usa para trabalhar e que a sua irmã enrola...
— Ah!... deve ter perto de uns vinte metros.

Nesse momento foi a vez da Luna se soltar em graças e dar risadas sem parar. Chegou a chorar. Depois de um certo tempo voltou ao normal:
— Desculpe. Não pude deixar de achar o fato espirituoso e cômico.
— Não quero saber e nem falar desse assunto. Vamos mudar o rumo da prosa.  E quanto a você?
— O que tem eu?
— Como ficamos nós dois? Você quis me conhecer. Pediu à nossa amiga Gracinha para ser apresentada a mim. Fomos. E daí? Tem jogo entre nós?
— Antes de responder, meu caro pirúfugo, quero ver você engolir fogo ao vivo e a cores.
— Não é pirúfugo, senhorita. É pirófago.  
— Tudo bem. Com o tempo eu aprendo a pronunciar essa droga de palavra sem errar as letras.
— Não tem medo que perto de você eu fique meio nervoso ou inteiramente perturbado e me queime?
— Tenho, logicamente.
— Você poderia vir comigo em minhas andanças. De repente, a gente se acerta... confesso, gostei de você...
— Está me pedindo em namoro ou algo nesse sentido?
— Talvez! E então?
— É um caso a pensar. Vamos que lá na frente cheguemos a um consenso?
— Luna, você viria morar comigo, se nossos caminhos seguissem em busca dos mesmos ideais?
— Certamente. Gostei de você. Faz meu tipo, é alegre...
— Ok. E se numa de minhas exibições eu me queimasse?
— Bem, se isso por acaso viesse a acontecer (e espero, em Deus, que nunca se fira), eu pegaria emprestada a mangueira do seu cunhado e juro que poria ela na sua boca...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Arquivo Spina 53: Nina Mariza (Berilo/MG)

 

Joseph Sheridan Le Fanu (O fantasma e o consertador de ossos)

Passando os olhos pelos papéis de meu valioso e respeitado amigo, o falecido Francis Purcell, que por quase cinquenta anos exerceu as árduas funções de reverendo no sul da Irlanda, dei com o documento que se segue. É um entre muitos, já que ele era um colecionador curioso e diligente das velhas tradições locais — um bem que muito abundava na área em que residia. A coleção e a organização de tais lendas eram, se bem me recordo, seu hobby; mas eu nunca soubera que o amor pelo maravilhoso e estranho o havia levado a registrar os resultados de suas investigações por escrito, até que, no papel de depositário residual, seu testamento me deu posse de todos os seus manuscritos.

Para aqueles que possam pensar que a composição de tais produções seria inconsistente com a personalidade e os hábitos de um reverendo da roça, é preciso observar que havia uma raça de padres — os da velha escola, uma raça hoje praticamente em extinção — cujos hábitos eram, por vários motivos, mais refinados, e cujos gostos mais literários do que se encontra entre ex-alunos de Maynooth.

Talvez seja preciso acrescentar que a superstição ilustrada pela história abaixo, ou seja, que o cadáver enterrado por último seja obrigado, durante os primeiros tempos de seu enterro, a fornecer aos irmãos inquilinos do campo santo onde ele jaz, água fresca para aliviar a sede ardente do purgatório, é recorrente em todo o sul da Irlanda. O escritor garante um caso em que um fazendeiro poderoso e respeitável, nas fronteiras de Tipperary, enternecido pelos calos de sua finada ajudante, colocou no caixão dela dois pares de tamancos, um pesado e um leve, um para os dias secos, outro para o tempo úmido; procurava, dessa maneira, mitigar o cansaço de suas inevitáveis perambulações em busca de água, administrando-a às almas sedentas do purgatório.

Conflitos ferozes e desesperados se seguiram ao caso de dois enterros chegando juntos ao mesmo campo santo, cada qual buscando garantir para seu morto a prioridade de sepultamento, e a imunidade do imposto cobrado aos poderes pedestres do último a chegar. Um caso ocorreu não faz muito tempo, em que os acompanhantes de um féretro em situação semelhante, temendo que seu falecido amigo perdesse essa inestimável vantagem para o outro, chegaram à igreja usando um atalho, e violando um de seus preconceitos mais fortes, jogaram o próprio caixão por cima do muro, para não perder tempo entrando pelo portão. Numerosos exemplos do mesmo tipo podem ser citados, todos tendendo a mostrar a força arraigada dessa superstição entre os camponeses do sul. Porém não devo deter mais o leitor com comentários prefaciais, mas sim continuar a apresentação do seguinte:

SÚMULA DOS PAPÉIS MANUSCRITOS DO FALECIDO REVERENDO FRANCIS PURCELL, DE DRUMCOOLAGH

Conto os detalhes que se seguem, do modo como deles me lembro, nas palavras do narrador. Talvez seja necessário observar que ele era o que se chama um homem de boas falas, que durante um bom tempo foi instrutor da juventude talentosa de sua paróquia nativa nas artes e ciências liberais que ele achava conveniente professar — uma circunstância que talvez justifique a ocorrência de grandes palavras, no curso desta narrativa, mais notáveis por seu efeito eufônico do que pela correção do emprego. Inicio, então, sem maiores delongas, a apresentação das aventuras maravilhosas de Terry Neil.

"Ih, gente, ó aqui uma história mesmo, de verdade como é verdade que vocês estão sentados aí; e eu falo mesmo que não tem um rapaz nas sete paróquias que possa contar melhor nem mais direito que eu mesmo, que foi com meu pai mesmo que aconteceu, e já perdi a conta de tantas vezes que escutei da própria boca dele, e digo mesmo, com orgulho mesmo, a palavra de meu pai era inacreditável como qualquer jura de coronel do interior, e se por um acaso um coitado lá dava azar e entrava em confusão, era ele que levavam para o tribunal para testemunhar, mas isso não quer dizer — ele era um homem honesto e sóbrio, mesmo sendo um pouquinho chegado a um copo, como qualquer um podia ver andando com ele um dia inteiro, e não tinha ninguém como ele no derredor para trabalho noturno e para cavar buraco. Ele era muito jeitoso com carpintaria, e para consertar ferramentas velhas, essas coisas. Assim ele começou a consertar osso, o que era muito natural, porque ninguém deles lá ia chegar para ele para pedir para consertar pé de cadeira ou pé de mesa. Com certeza, nunca houve um consertador de osso com tanta clientela — homem e criança, jovem e velho —, não era costume, não tinha essa coisa de quebrar e consertar osso, que alguém se lembre.

“Bom, Terry Neil, esse era o nome do meu pai, começou a sentir o coração leve e o bolso pesado, e arrumou uma terrinha para cuidar que pertencia ao senhor do Phalim, logo embaixo do castelo velho, que era um pedacinho danadinho de bom. Todos dias, todas manhãs, os coitados que não conseguiam botar o pé no chão, com braços quebrados e pernas quebradas, vinham se arrastando de todo lado para ele consertar os ossos.

“Bom, moço, tudo ia bem, na medida do possível, mas era costume quando sir Phalim viajava para fora da fazenda, alguns dos inquilinos ficavam vigiando o castelo, uma espécie de cortesia com a antiga família — era uma coisa muito desagradável para os inquilinos, porque todo mundo ali sabia que tinha uma coisa esquisita no castelo. Os vizinhos diziam que o velho avô de sir Phalim, uma boa pessoa, Deus o tenha, que já bateu as botas, ficava andando perdido no meio da noite, desde que estourou uma veia desarrolhando uma garrafa, como a gente faz, e vai continuar fazendo, se Deus quiser, mas isso não tem nada a ver. Então, como eu estava dizendo, o senhorio das terras saía da moldura, onde ficava seu retrato pendurado na parede, para quebrar as garrafas e os copos. Deus tenha piedade de nós, e beber tudo o que encontrasse pela frente — e não se pode culpar o homem por isso, mas aí se alguém da família chegasse, ele voltava pro lugar, com cara de inocente como se não soubesse de nada, aquele velho mandrião.

"Bom, meu patrão, como eu ia dizendo, um dia a família lá do castelo foi para Dublin passar uns dias, e como sempre, alguns inquilinos tinham que ficar vigiando o castelo, e na terceira noite chegou o turno do meu pai.

“Ah, vem cá”, ele fala para si mesmo, “vou ter que sentar e vigiar a noite inteira, com o espírito daquele velho malandro, louvado seja Deus,” disse ele, “fazendo serenata pela casa, e aprontando todo tipo de arte.” Porém, não tinha mesmo jeito de escapar, e então ele fez das tripas coração e subiu para lá ao cair da noite com uma garrafa de poitín (
aguardente feita geralmente de batata) e outra de água benta.

"Estava chovendo um bocado, e a noite era escura e triste, quando meu pai entrou, e a água benta ele aspergiu nele mesmo, mas não passou muito tempo e já precisou dar um gole na aguardente, para espantar a friagem do coração. Foi o velho capataz, Lawrence Connor, quem abriu a porta — ele e meu pai sempre se deram muito bem. Então quando ele viu quem era, meu pai falou que era a vez dele ficar de guarda no castelo, ele se ofereceu para ficar ali na vigília com ele, e pode ter certeza de que meu pai não recusou nem ficou com pena.

“Vamos fazer um foguinho no salão”, disse Lawrence.

"Por que não na sala da entrada?”, disse meu pai, que sabia que o retrato do fazendeiro ficava dependurado na entrada.

“Não pode acender fogo na sala”, disse Lawrence, “porque tem um ninho velho de gralha na chaminé.”

“Que coisa”, disse meu pai, “vamos ficar na cozinha, porque é muito esquisito para minha pessoa ficar sentado na sala”.

“Ah, Terry, isso não pode!”, disse Lawrence. “Se a gente vai seguir o velho costume de verdade, então tem que seguir direito”.

"O diabo que carregue o velho costume", disse meu pai — com seus botões, desculpe a linguagem, mas ele não queria que Lawrence visse que estava com mais medo ainda.

“Ah, muito bem”, disse ele. “Estou de acordo, Lawrence”.

Então vão os dois para a cozinha, até o fogo esquentar na sala — e isso não demorou muito.

"Bem, meu senhor, logo, logo eles subiram de novo, e se sentaram bem confortáveis na sala da lareira, e começaram a conversar, e a fumar, e a dar uns tragos na garrafa e, o melhor de tudo, fizeram um belo fogo de madeira podre e turfa, para esquentar bem suas canelas.

"Bem, meu senhor, como eu estava dizendo, eles ficaram conversando e fumando juntos em paz, até que Lawrence começou a querer pegar no sono, como era natural para ele, que era um empregado velho e acostumado a dormir muito bem.

“Não pode ser”, disse meu pai, “será que você tá pegando no sono, é?”

“Ah, que inferno”, disse Lawrence, “tô só fechando meus olhos, para não entrar o cheiro da fumaça da lenha, que tá fazendo eles aguar. Não se mete na vida dos outros”, disse ele, todo duro (porque ele tinha um barrigão enorme, Deus o tenha), “e anda aí,” disse ele, “com tua história, que tô escutando", disse, fechando os olhos.

"Bom, quando meu pai viu que falar não adiantava nada, continuou com a história. Por falar nisso, era a história de Jim Soolivan e seu velho bode que ele estava contando — e olha que é uma história muito da boa — tinha tanta coisa nela que dava até para acordar vigia, quanto mais segurar um cristão na hora do sono. Mas, juro, o jeito que meu pai contava, acho que nunca ninguém tinha escutado antes ou até então, porque ele berrava cada palavra, como se fosse morrer, só para ver se fazia o velho Lawrence ficar acordado. Mas, juro, não adiantou, porque o sono chegou para ele e, antes do final da história, Lawrence O"Connor começou a roncar como uma gaita de foles.”

"Ah, comida para quem tem fome", disse meu pai, "mas não é que esse aí tá difícil, esse velhaco velho, que disse que é meu amigo, caindo no sono desse jeito, e nós dois no mesmo cômodo com uma alma. A cruz de Cristo nos proteja".

Bem nessa hora que ele estava indo sacudir Lawrence para acordar, ele lembrou que se o outro acordasse com certeza ia para a cama, e então meu pai ia ficar completamente sozinho, e a coisa ia ficar pior ainda.

"Ah, droga", disse meu pai, "não vou perturbar o coitado do homem. Amigo e gente de bom coração não faria uma coisa dessas, atormentar o outro que tá dormindo, quem me dera ser desse mesmo jeito também".

"E com isso ele começou a andar para cima e para baixo, rezando suas preces, se cansando até suar, desculpe a expressão. Mas não adiantou nada; então ele bebeu um meio litro de aguardente, para clarear as ideias.

"Ah", disse ele, "queria que o Senhor me desse uma mente tranquila como a de Lawrence. Quem sabe se eu tentar consigo dormir".

Assim ele puxou uma poltrona grande para perto de Lawrence, e se arrumou nela do jeito que deu.

"Mas tinha uma coisa esquisita que esqueci de lhe contar. Ele não conseguia evitar, sem querer, de dar uma olhada de vez em quando para o retrato, e imediatamente percebeu que os olhos no quadro seguiam ele por todo canto, encarando ele, e piscando para ele, para onde ele ia.

"Ah", disse ele, quando viu aquilo, "tenho pouca chance". A má sorte me acompanhou quando vim para este lugar azarento, mas agora não adianta me desmanchar de medo, porque se é para morrer, vou suado, mas vou valente".

"Bom, meu patrão, ele tentou ficar bem à vontade, e pensou duas ou três vezes que podia cair no sono, mas acontece que a tempestade gemia e arrastava os galhos pesados lá fora, assobiando pelas chaminés do castelo. Bom, depois de ouvir o urro de uma rajada de vento, qualquer um ia pensar que as paredes do castelo estavam para cair, tijolo por tijolo, do jeito que o prédio sacudia. Mas de repente o temporal passou, tudo ficou quieto de uma só vez como se fosse noite de verão.

“Bom, seu moço, não tinha dado ainda três minutos que o vento parou, quando ele achou que tinha ouvido um barulho em cima da lareira, aí meu pai abriu os olhos só um pouquinho, e com toda a certeza ele viu o velho senhor saindo do quadro e podia jurar que parecia que estava tirando o casaco de montaria, ficou de pé, direitinho, sobre o aparador, e de lá pulou para o chão.

“Bom, o velho danado — e meu pai achou essa a pior parte de todas —, antes de fazer qualquer coisa estranha, parou um pouco, para ouvir se os dois estavam dormindo.;Assim que achou que estavam, esticou a mão, pegou a garrafa de aguardente e bebeu até a última gota.

“Bom, senhor, quando acabou de virar tudo na boca, ele devolveu direitinho pro mesmo lugar onde a garrafa estava antes. Aí começou a andar para lá e para cá pela sala, com cara de quem nunca bebeu na vida. Cada vez que passava perto de meu pai, meu pai sentia um cheiro forte de enxofre, e era aquilo que assustou ele demais da conta, porque ele sabia que era enxofre que queimava no inferno, desculpe a expressão. De todo jeito, ele sabia disso por causa do padre Murphy, que sabia o que estava dizendo — ele já morreu, Deus o tenha.

“Bem, meu patrão, meu pai estava até bem calmo até que o espírito passou perto dele, tão pertinho, Deus tenha piedade de nós, que o cheiro de enxofre tirou a respiração dele, e aí ele teve um ataque de tosse que quase caiu da poltrona onde estava sentado.

"Ei, ei!", disse o senhorio, parando de repente dois passos adiante, e virando para encarar meu pai, "é você que tá aí dentro? E como tem passado, Terry Neil?"

"Ao seu dispor", disse meu pai (do jeito que o medo permitia, porque estava mais morto do que vivo), "e fico feliz de ver o senhor meu patrão esta noite".

"Terence", disse o fazendeiro, "você é um homem sério (e era verdade mesmo), um homem trabalhador e sóbrio, e um exemplo de embriaguez para a paróquia inteira", disse ele.

"Obrigado, senhor", disse meu pai, criando coragem, "o senhor sempre foi um cavalheiro muito atencioso, Deus o tenha."

"Deus me tenha", disse o espírito (ficando com a cara vermelha de raiva), "Deus me tenha? Olha, seu cretino ignorante, seu imbecil cretino ignorante, onde deixou sua educação?  Se eu estou morto, não é minha culpa, e isso não é para ficar jogando na minha cara a toda hora, me faz o favor", disse ele, batendo o pé no chão, e parecia que as tábuas iam se espatifar embaixo dele.

"Ah", disse meu pai, "eu sou apenas um pobre homem bobo e ignorante".

"É isso e só isso mesmo", disse o senhor, "mas seja como for, não foi para ficar ouvindo suas baboseiras, nem conversando com um tipo como você, que eu vim aqui para cima — para baixo, digo eu (e embora o erro fosse pequeno, meu pai logo percebeu). Ouça bem, Terence Neil, eu sempre fui um bom amo para Patrick Neil, seu avô".

"É verdade", disse meu pai.

"E, além disso, penso que sempre fui um cavalheiro sóbrio e correto", disse o outro.

"É a fama que o senhor tem, com certeza", disse meu pai (embora fosse uma grande mentira, mas ele nada podia fazer).

"Bem", disse o espírito, "embora eu fosse sóbrio como a maioria dos homens — pelo menos como alguns cavalheiros, e embora eu fosse de vez em quando um cristão exemplar, caridoso e humano para com os pobres, por tudo isso é que não estou contente onde estou agora", como seria de esperar".

"Mas que grande lástima", disse meu pai. "Talvez sua senhoria queira que eu dê uma palavrinha com padre Murphy?"

"Segure essa língua, seu linguarudo miserável", disse o proprietário; "não é na minha alma que estou pensando" — e não sei como você pode ter a petulância de falar com um cavalheiro sobre sua alma — e quando eu quiser consertar isso", disse ele, batendo no quadril, "eu vou lá onde eles sabem o que fazer. Não é minha alma", disse ele, sentando defronte a meu pai. "Não é minha alma que me preocupa mais — estou com problema na perna direita, que quebrei no campo em Glenvarloch no dia em que matei o preto Barney." (Meu pai descobriu depois que Barney era um cavalo favorito que caiu embaixo dele, depois de saltar a cerca alta que dividia o vale.)

"Eu espero", disse meu pai, "que meu patrão não esteja preocupado por ter matado ele?"

"Segure essa língua, estúpido", disse o fazendeiro, "e vou lhe contar o porquê do problema com minha perna. No lugar onde passo a maior parte do tempo, exceto essa distraçãozinha que eu me permito vindo por aqui, preciso caminhar muito mais do que estava acostumado, e muito mais do que me faz bem também. Pois vou lhe contar uma coisa, o pessoal onde estou gosta demais de água fresca, já que não há nada melhor para beber e, além disso, o clima é quente demais para se apreciar, e eu fui indicado, para ajudar a carregar a água, e sobra só um pouquinho para mim, e dá um trabalho danado, uma tarefa cansativa, posso garantir, porque eles todos vivem secos, e bebem muito depressa, minhas pernas não dão conta de carregar tanta água. Mas o que me mata mesmo é a fraqueza da perna, e eu quero que você me dê uns dois puxões para botar no lugar".

"Ah, por favor, senhorio", disse meu pai (porque ele não queria botar a mão no espírito de jeito nenhum), "eu não teria a petulância de fazer isso com o senhor, se mesmo com os pobres coitados que eu não faço isso”.

"Pode parar com essa conversa fiada", disse o senhorio, "aqui está minha perna", disse ele, levantando-a na direção dele, "pode puxar com vontade, e se você não puxar, pelos poderes imortais não vou deixar um ossinho em tua carcaça que não vire poeira.

"Quando meu pai escutou aquilo, viu que não adiantava fingir, e então segurou a perna, e puxou e puxou, até que o suor, Deus nos abençoe, começou a escorrer por seu rosto.

"Puxe, seu danado", disse o homem.

"Às suas ordens, meu senhorio", disse meu pai.

"Puxe com mais força", disse o senhorio.

“Meu pai puxava como o diabo.

"Vou tomar um golinho", disse o senhorio, alcançando com a mão uma garrafa, "para criar coragem", disse ele, deixando cair todo o peso do corpo. Mas, esperto como ele só, estando aqui fora, pegou a garrafa errada. "À sua saúde, Terence, e agora pode puxar como o próprio diabo", e com isso ele levantou a garrafa de água benta, que mal a encostou na boca, deu um berro que parecia que ia rachar a sala, e deu uma cusparada com tal força que a perna soltou do corpo e ficou nas mãos de meu pai. Lá se foi o senhorio para debaixo da mesa, e meu pai foi recuando para o outro lado da sala, caindo de costas no chão. Quando ele voltou a si, o alegre sol da manhã brilhava através das venezianas, e ele estava caído de costas, com o pé de uma das poltronas arrancada do buraco e bem segura em sua mão, apontando para o teto, e o velho Lawrence dormindo a sono solto, e roncando mais alto do que nunca.

Meu pai foi naquela manhã falar com o padre Murphy, e daquele dia em diante, até o dia de sua morte, nunca deixou de se confessar e de ir à missa, e o que ele dizia era mais acreditado porque ele raramente tocava no assunto. E para o senhorio, ou seja, o espírito, se foi por não gostar da bebida, ou pela perda da perna, nunca mais se ouviu falar de suas caminhadas."
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Fonte:
LE FANU, Joseph Sheridan. The Purcell papers. vol.1. Publicado originalmente em 1838.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLIII


A luz que o falso se inspira
é mentir sem ter piedade,
pois, na verdade, a mentira,
passa a ser sua verdade.
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Divino Espírito Santo
vinde iluminar as mentes,
dos que se amparam no pranto
para ocultar as sementes.
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Feliz quem acena a palma
com honras de um vencedor,
se doando em corpo e alma
ao condão de um lutador.
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Fim de tarde, o sol se deita,
num leito fosforescente,
sob a lua que o deleita
numa noite incandescente.
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Mesmo à pequenez, só fale,
se crês com profundidade.
Nada existe que se iguale,
à grandeza da humildade.
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Nada existe que não passe
sob o prisma material,
ninguém foge a um desenlace
da vida, no seu final.
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Nada há que à nossa alma fira
tanto quanto a falsidade,
tão disfarçada, a mentira,
se passando por verdade.
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Não tem batalha perdida
antes do final da guerra,
mesmo a luta ser renhida
só vence quem persevera.
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Não tem júbilo maior
que viver bem o presente,
se o passado foi pior,
nunca esmoreça, mas tente!
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Nenhuma planta esmoreça
nos desertos da existência,
sem que o fruto amadureça
num legado à descendência.
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No universo da existência
o tempo não corre, voa...
e o grito da onipotência
sobre as montanhas ecoa.
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Nunca faças do passado
o arquivo de frustrações,
nem do sonho fracassado
um fracasso sem razões.
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Nunca seja a mendicância,
uma extensão da opulência,
que agita o berço da infância,
nos braços da adolescência.
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O homem cai na decadência,
quando abandona os valores,
trocando-os pela indecência
de uns iníquos predadores.
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O homem deseja mudanças,
mas só muda na emergência,
sem fé, perde as esperanças
e inerte ganha a impotência.
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O homem que não se lapida
um pouquinho a cada dia,
dura, a aresta o dilapida,
transformando-o sem valia.
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O jejum, nalgum momento,
pode a alguém ser exigente,
mas, a quem falta alimento,
o jejum é permanente.
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Pelas quebradas da tarde
vejo o sol se despedir,
oxalá, nunca retarde,
seu brilho, amanhã luzir.
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Povo que vive recluso,
ou com outros, sem contato,
pode acabar sendo incluso
nas grades do anonimato.
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Pra que a veste fulgurante,
num Natal, só de presente?
Se o próprio aniversariante
da festa estiver ausente?
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Quando a luta for constante
a conquista é consequência,
brilha o sonho a todo instante
nos caminhos da existência.
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Quando à noite ando na rua,
na avenida ou nas ruelas,
vejo as estrelas e a lua
refletidas nas janelas.
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Quando os hábitos se alteram
no âmago da sociedade,
seus habitantes encerram
um salto à modernidade.
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Sê alerta à navegação:
há turbulências no mar.
Zelar com a embarcação
é melhor que naufragar.
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Se à liberdade procuras
a grande felicidade,
busca-a longe de aventuras
porém com austeridade.
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Se à vida, o momento doce
jamais cai no esquecimento,
viva-o bem, como se fosse
toda a vida num momento.
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Se o sonho que buscas, vês
transformar-se num fracasso,
olha se à estrada, talvez,
faltou-lhe o primeiro passo.
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Sobre tudo esteja atento,
metas, sonhos e esperanças,
nada afane o movimento
no reto rol das andanças.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Enviado pelo autor.

Euclides da Cunha (A vida das estátuas)

O artista de hoje é um vulgarizador das conquistas da inteligência e do sentimento. Extinguiu-se-lhe com a decadência das crenças religiosas a maior de suas fontes inspiradoras. Aparece num tempo em que as realidades demonstráveis dia a dia se avolumam, à medida que se desfazem todas as aparências enganadoras, todas as quimeras e miragens das velhas e novas teogonias, de onde a inspiração lhe rompia, libérrima, a se desafogar num majestoso simbolismo. Resta-lhe, para não desaparecer, uma missão difícil: descobrir, sobre as relações positivas cada vez mais numerosas, outras relações mais altas em que as verdades desvendadas pela análise objetiva se concentrem, subjetivamente, numa impressão dominante. Aos fatos capazes das definições científicas ele tem de sobrepor a imagem e as sensações, e este impressionismo que não se define, ou que palidamente se define "como uma nova relação, passiva de bem-estar moral, levando-nos a identificar a nossa sinergia própria com a harmonia natural".

É a "verdade extensa", de Diderot, ou o véu diáfano da fantasia, de Eça de Queiroz, distendido sobre todas as verdades sem as encobrir e sem as deformar, mas aformoseando-as e retificando-as, como a melodia musical se expande sobre as secas progressões harmônicas da acústica, e o arremessado maravilhoso das ogivas irrompe das linhas geométricas e das forças friamente calculadas da mecânica.

Daí as dificuldades crescentes para o artista moderno em ampliar e transmitir, ou reproduzir, a sua emoção pessoal. Entre ele e o espectador, ou o leitor, estão os elos intangíveis de uma série cada vez maior de noções comuns — o perpetuum mobile dessa vasta legislação que resume tudo o que se agita e vive e brilha e canta na existência universal. Diminui-se-lhe a primitiva originalidade. Vinculado cada vez mais ao meio, este lhe impõe a passividade de um prisma: refrata os brilhos de um aspecto da natureza, ou da sociedade, ampliando-os apenas e mal emprestando-lhe os cambiantes de um temperamento. Já lhe não é indiferente, nestes dias, a ideia ou o assunto que tenha de concretizar no mármore ou no livro.

O seu trabalho é a homogenia da sua afetividade e da consciência coletiva. E a sua personalidade pode imprimir-se fundamente num assunto, mas lá permanecerá inútil se destoar das ideias gerais e dos sentimentos da sua época...
***

Tomemos um exemplo.

Há uma estátua do marechal Ney, em que se têm partido todos os dentes da crítica acadêmica e reportada.

Dos múltiplos aspectos da vida dramática e tormentosa do valente, o escultor escolheu o mais fugitivo e revolto: o final de uma carga vitoriosa.

O general, cujo tronco se apruma num desgarre atrevido, mal equilibrado numa das pernas, enquanto a outra se alevanta em salto impetuoso, aparece no mais completo desmancho: a farda desabotoada, e a atitude arremetente num arranco terrível, que se denuncia menos na espada rijamente brandida que na face contorcida, onde os olhos se dilatam exageradamente e exageradissimamente a boca se abre num grito de triunfo.

É um instantâneo prodigioso. Uma vida que se funde no relance de um delírio e num bloco de metal. Um arremesso que se paralisa na imobilidade da matéria, mas para a animar, para a transfigurar e para a idealizar na ilusão extraordinária de uma vida subjetiva e eterna, perpetuamente a renascer das emoções e do entusiasmo admirativo dos que a contemplam.

Mas para muitos são perfeitamente ridículos aquela boca aberta e muda, aquele braço e aquela perna no ar. Em um quadro, sim, conclamam, à frente de um regimento, aquela atitude seria admirável. Ali, não; não se compreende aquela nevrose, aquela violência, aquela epilepsia heroica no isolamento de um pedestal.

Entretanto, o que a miopia da crítica até hoje ainda não distinguiu, adivinhou-o sempre a alma francesa; e o legitimista, o orleanista, o bonapartista e o republicano divergentes, ali se irmanam, enleados pelos mesmos sentimentos, escutando a ressoar para sempre naquela boca metálica o brado triunfal que rolou dos Pirineus à Rússia, e vendo na imprimadura (
passar a primeira demão de tinta) transparente e clara daqueles ares não o regimento tão complacentemente requisitado, mas todo o grande exército...

É que a escultura, sobretudo a escultura heroica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música. Basta-lhe para isto que se não limite a destacar um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado.

Neste caso, malgrado o restrito de seus recursos e as exigências máximas de uma síntese artística, capaz de reproduzir toda a amplitude e toda a agitação de uma vida num bloco limitado e imóvel — este ideal é notavelmente favorecido pelo sentimento coletivo. A mais estática das artes, se permitem o dizer, vibra então na dinâmica poderosa das paixões e a estátua, um trabalho de colaboração em que entra mais o sentimento popular do que o gênio do artista, a estátua aparece-nos viva — positivamente viva, porque é toda a existência imortal de uma época, ou de um povo, numa fase qualquer de sua história que para perpetuar-se procura um organismo de bronze.

Porque há até uma gestação para estes entes privilegiados, que renascem maiores sobre os destroços da vida objetiva e transitória. Não bastam, às vezes, séculos. Durante séculos, gerações sucessivas os modelam e refazem e aprimoram, já exagerando-lhes os atributos superiores, já corrigindo-lhes os deslizes e vão transfigurando-os nas lendas que se transmitem de lar em lar e de época em época, até que se ultime a criação profundamente humana e vasta. De sorte que, não raro, a estátua virtual, a verdadeira estátua, está feita, restando apenas ao artista o trabalho material de um molde.

A de Anchieta, em São Paulo, é expressivo exemplo.

Tome-se o mais bisonho artista; e ele a modelará de um lance. Tão empolgante, tão sugestiva é a tradição popular em torno da memória do evangelizador, que o seu esforço se reduzirá ao trabalho reflexo de uma cópia. Não pode errar. As linhas ideais do predestinado corrigem-lhe os desvios do buril.

O elemento passivo, ali, não é a pedra ou o bronze, é o seu gênio. A alma poderosa do herói, nascente do culto de todas as almas, absorve-lhe toda a personalidade, e transfigura-o e imortaliza-o com o mais apagado reflexo da sua mesma imortalidade...

Mas há ocasiões (e aqui se nos antolha [
põe-se diante dos olhos] uma contraprova desta psicologia transcendental e ao parecer singularmente imaginosa) em que a estátua nasce prematura.

Falta-lhe a longa elaboração do elemento popular. Possui talvez admiráveis elementos capazes de a tornarem grande ao cabo de um longo tempo — um longo tempo em que se amorteçam as paixões e se apaguem, pelo só efeito de uma dilatada perspectiva histórica, todas as linhas secundárias de uma certa fase da existência nacional...

Mas não se aguarda esse tempo; não se respeita esse interregno, ou essa quarentena ideal, que livra as grandes vidas dos contágios perniciosos das nossas pequenas vidas; e decreta-se uma estátua, como se fosse possível decretar-se um grande homem.

Então, neste vir fora de tempo, ela é historicamente inviável. E não há golpes de gênio que a transfigurem.

É uma estátua morta.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. Publicado originalmente em 1907.

Ficção: História Alternativa (Ucronia)

História alternativa (também denominada ucronia), é um subgênero da ficção especulativa (ou da ficção científica) cuja trama transcorre num mundo no qual a história possui um ponto de divergência da história como nós a conhecemos. A literatura de história alternativa faz a seguinte pergunta: "o que aconteceria se a história tivesse transcorrido de maneira diferente?" A maioria das obras do gênero são baseadas em eventos históricos reais, ainda que aspectos sociais, geopolíticos e tecnológicos tenham se desenvolvido diferentemente. Embora em algum grau toda a ficção possa ser descrita como "história alternativa", um representante apropriado do subgênero contém ficção na qual um ponto de divergência ocorre no passado, fazendo com que a sociedade humana se desenvolva de maneira distinta da nossa.

Desde os anos 1950, este tipo de ficção fundiu-se em grande parte com os tropos da ficção científica envolvendo (a) entrecruzamento de períodos históricos, tempo paralelo, viagens entre histórias/universos alternativos (ou conhecimento psíquico da existência do "nosso" universo por pessoas em outro, como em obras de Philip K. Dick e Vladimir Nabokov), ou (b) viagens rotineiras "para cima" e "para baixo" no tempo resultando na partição da história em duas ou mais linhas temporais.

Cruzamento de épocas, partição do tempo e temas da história alternativa se tornaram tão entrelaçados que é impossível discuti-los separados uns dos outros. O livro de 1962 "O Homem do Castelo Alto" de Philip K. Dick, em que os nazistas venceram a Segunda Guerra Mundial é um dos exemplos mais famosos de história alternativa, tendo marcado profundamente este gênero.

Em francês, romances de história alternativa são denominados uchronie. Este neologismo é baseado na palavra utopia (um lugar que não existe) e na palavra grega para "tempo", chronos. Uma uchronie, então, é definida como um tempo que não existe. Outro termo ocasionalmente utilizado (principalmente em espanhol) é "alohistória" (lit. "outra história").

HISTÓRIA

O mais antigo exemplo conhecido de história alternativa aparece em História de Roma desde sua fundação de Tito Lívio, livro IX, seções 17-19. Nele, o autor reflete sobre a possibilidade de Alexandre, o Grande ter partido para a conquista à oeste, antes de lançar suas tropas para o leste, o que o teria feito atacar Roma no século IV a.C.

NA FRANÇA

A primeira obra efetivamente alo-histórica parece ter sido o romance de Louis Napoléon Geoffroy-Château, denominado Napoléon et la Conquête du Monde (1812-1813), no qual o autor imagina que Napoleão teria conquistado Moscou antes do desastroso inverno de 1812, o que lhe possibilitaria dominar boa parte do mundo.


NA INGLATERRA

Em língua inglesa, a primeira história alternativa conhecida parece ter sido o romance de Nathaniel Hawthorne, P.S. Correspondance, de 1845, livro cuja trama se volta para um homem aparentemente louco e que parece perceber uma realidade na qual figuras políticas e personalidades literárias já falecidas em 1845, tais como os poetas Burns, Byron, Shelley e Keats, o ator Edmund Kean, o político britânico George Canning e mesmo Napoleão Bonaparte ainda estão vivas. O primeiro romance inglês é Aristopia de Castello Holford (1895). Holford imagina o que teria sucedido se os primeiros colonizadores da Virgínia tivessem encontrado um recife de ouro puro, o que teria permitido estabelecer uma sociedade utópica na América do Norte.

EM PORTUGAL

O primeiro exemplo conhecido de literatura de história alternativa em português é o romance História Maravilhosa de D. Sebastião, Imperador do Atlântico (1940, embora a maioria das cópias estejam não datadas) do escritor regionalista beirão português Samuel Maia, obra curiosa que (numa lógica de louvor do Império Português e da ação deste por lógica luso-tropicalista) imagina uma realidade em que o rei D. Sebastião de Portugal venceu a batalha de Alcácer Quibir e Portugal se tornou império dominante no Atlântico.

NO BRASIL

O primeiro exemplo no Brasil é a novela do escritor brasileiro José J. Veiga (1915-1999), A Casca da Serpente (1989), que imagina que Antonio Conselheiro (1830-1897) sobreviveu ao Massacre de Canudos (1897) para fundar uma nova Canudos, que existiu ao longo do século XX até a sua destruição durante o regime militar na década de 1960.

O escritor brasileiro Gerson Lodi-Ribeiro tem feito muito para promover a história alternativa em língua portuguesa. Sua noveleta "A Ética da Traição" (1993) é considerada um clássico moderno da ficção científica brasileira. Imagina um presente alternativo em que o Brasil é um país muito menor, em razão da sua derrota na Guerra do Paraguai (1864-1870). Lodi-Ribeiro também escreveu história alternativa sob o pseudônimo de "Carla Cristina Pereira", explorando um cenário em que os portugueses chegaram à América antes de Colombo, e, aliados aos astecas, passam a construir um império global. Assumindo o pseudônimo em 2009, publicou com o seu próprio nome um romance dentro desse cenário, Xochiquetzal: Uma Princesa Asteca entre os Incas.

Publicada no Brasil em 2009, a antologia Steampunk: Histórias de um Passado Extraordinário, editada por Gianpaolo Celli, traz algumas histórias de história alternativa.

Em 2010, o escritor brasileiro Roberto de Sousa Causo teve publicada em livro a novela Selva Brasil, que imagina uma linha temporal alternativa em que o Brasil teria tentado invadir militarmente as Guianas, no início da década de 1960, ordenada pelo então presidente Jânio Quadros (1917-1992), a história é ambientada em 1993 e imagina um Brasil transformado por um conflito persistente em sua fronteira norte.

Em 2015, foram lançados os livros E de Extermínio e Segunda Pátria, ambos respectivamente das editoras Draco e Intrínseca. O primeiro, escrito por Cirilo Lemos, imagina um Brasil que permaneceu sob a monarquia até meados do século XX, até a eclosão de uma guerra civil entre republicanos, apoiados pelos americanos, e monarquistas, apoiados pelos soviéticos, após a saúde do imperador entrar em crise. O segundo, escrito por Miguel Sanches Neto, imagina a vida em um Brasil que às vésperas da Segunda Guerra Mundial, sob o governo de Getúlio Vargas, decide se aliar ao Eixo.

Em 2016, a editora paulista Linotipo Digital lançou o romance de estreia de Edson Miranda, O Agente do Imperador e o Dedo da Morte, que imagina a atuação do agente secreto brasileiro André Reis frente à uma ameaça nuclear. O livro tem como cenário um mundo no qual a monarquia brasileira sobreviveu até os dias atuais e se desenvolveu junto às potências do primeiro mundo.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_alternativa

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “07”

 

A. A. de Assis (Rosas e Raízes)

Passamos diante da roseira e louvamos a beleza e o perfume das rosas. Passamos diante da parreira e proclamamos o sabor das uvas. Pouquíssimas pessoas “se lembram de lembrar” que somente existem rosas e uvas porque existem raízes sustentando roseiras e parreiras.

Mães lembram raízes. Sem elas, não existiria a humanidade. No entanto, quando celebramos os méritos de alguém, raríssimas vezes mencionamos o nome da mãe desse alguém. Sequer sabemos o nome dela. Sequer nos passa pela cabeça que aquela pessoa ilustre só existe porque um dia uma valorosa mulher a gerou no ventre, amamentou sua infância, carregou-a no colo e a preparou para a vida.

Quem sabe o nome da mãe do papa Francisco? Quem sabe o nome da mãe do líder indiano Gandhi? E da mãe do pastor Luther King? E da mãe da Ângela Merkel? E da mãe do Kennedy? E da mãe do Pelé? E da mãe do Frank Sinatra? E da mãe da Madonna? E da mãe do Roberto Carlos? E da mãe da Martha, a melhor jogadora de futebol do mundo? E da mãe do Getúlio Vargas? E da mãe do John Lennon? E da mãe da Lady Diana? E da mãe do Brad Pitt?…

Badala-se a rosa; esquece-se da raiz. Festejam-se o filho famoso e a filha estrela; esquece-se de que um e outra são badalados e brilhantes porque nasceram do ventre de alguém que os introduziu na vida e por eles muitas lágrimas derramou. Por eles perdeu muitas noites de sono. Por eles renunciou a muitas alegrias. Por eles se escondeu no anonimato.

Houve alguém que trocou as fraldas do Barack Obama. Houve alguém que passou talco no bumbum do Bill Gates. Houve alguém que deu de mamar à Ivete Sangalo. Houve alguém que colocou mingauzinho na boca da Julia Roberts. Houve alguém que limpou o cocô do Plácido Domingos. Houve alguém que um dia fez a camisa branca para o batizado do padre Zezinho. Houve alguém que ensinou a “Ave Maria” à Santa Paulina.

Houve alguém que ensinou Cristiano Ronaldo a dizer “mamãe”, “papai”. Houve alguém que levou Mário Quintana ao postinho pra tomar vacina. Houve alguém que muitas vezes levantou de madrugada para cobrir no berço o Tony Ramos. Houve alguém que sofreu as dores do parto para que nascesse a Elis Regina. Quem foi? Você, por acaso, já ouviu dizer?

Mas as mães são assim. Sempre foram. Mesmo as mais modernas são geralmente assim. Sua alegria está na alegria dos filhos e filhas. Sua vitória está na vitória das filhas e filhos. Sua vida está na vida daqueles e daquelas a quem transmitiu o dom da existência.

Não importa que ninguém saiba os seus nomes ou note a presença delas. Importa é que sem elas a humanidade não existiria.

Lá no fundo do seu coração bonito, elas sabem que, apesar de tudo, continuam sendo alvo do nosso mais carinhoso amor. Que Nossa Senhora, Maria querida, Mãe de Jesus, as abençoe.

(Crônica publicada na edição de 11 de maio de 2023, do Jornal do Povo)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/05/11/rosas-e-raizes/

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXIII


A CAMINHADA


Recordo, com prazer, a caminhada
e amigos que ganhei estrada afora.
Quantas vezes fiquei na encruzilhada
tentando achar a luz da nova aurora.

Passei manhãs ao som da passarada,
cavando a terra e pondo sem demora
a semente na terra abençoada,
enquanto a enxada tine a voz sonora.

Depois, parti. Tornei-me um peregrino
e a saudade marcou o meu destino
deixando-me profunda cicatriz...

Hoje, não deixo mágoas nem gemidos,
apenas flores — versos coloridos,
e a sensação de ser muito feliz!
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CÂNTICO DA ESPERANÇA

Depois de palmilhar estrada afora,
a vida, sutilmente, me ensinou
que em cada dia nasce nova aurora
e me diz que a Esperança não findou.

Na vida, muitos sonhos vão embora,
outros chegam... Nem tudo terminou,
A Luz há de brilhar a qualquer hora,
que um futuro melhor já começou.

— Ó vós que andais sozinhos pelo mundo
achando que o passado é charco imundo,
praticai sempre o bem seja a quem for…

Porque no coração — templo sagrado,
o sonho há de voltar — iluminado -
trazendo sempre uma lição de Amor!
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MORTE DA ÁRVORE
(Lendo o soneto “Árvore Morta”do Padre Saturnino de Freitas)

Arvore triste, que ontem foi bonita,
não tens mais ramos, frutos e nem flores,
dos pássaros não és mais favorita
e não abrigas mais tantos amores.

Neste teu tronco já ninguém habita,
sequer amantes loucos, sonhadores,
que outrora segredavam na Mesquita
de suas folhas vivas, multicores...

Quantas vezes ouviste namorados
em carinhos e beijos, descuidados,
como se o tempo não fosse passar.

Hoje, teus galhos secos, ressequidos,
são lembranças de sonhos esquecidos,
que nunca mais, na vida, vão voltar!
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O AMOR

Como a planta que nasce no quintal,
se bem cuidada cresce e fica linda.
Também o amor que nasce natural
pode crescer, viver, florir, ainda.

É preciso, porém, que o amor normal
seja cuidado com ternura infinda.
O verdadeiro amor não tem rival,
a beleza do corpo é que se finda.

Quando o amor se revela por inteiro,
o carinho renasce e vem primeiro
ornando a vida e sobrepondo a dor.

E juntos seguem pela vida afora
vivendo intensamente a nova aurora,
iluminados pela luz do amor!
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RESSURREIÇÃO

Já não lamento o fim daquele sonho
que o tempo, impiedoso, me levou.
— Venturas e alegrias — pressuponho
tombaram pelo chão — nada sobrou.

Por que sofrer, chorar, viver tristonho?
Se o vendaval que assusta já passou?
Reconstruir é tudo o que me imponho
e gritar para o mundo; aqui estou.

Tal como a fênix, ressurgir da morte
e as cinzas sacudir buscando a sorte,
embora os olhos marejados d'água.

Meus versos jorrarão como uma fonte
fervilhando de amor vencendo a ponte,
mesmo cobertos de saudade e mágoa!
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Fonte:
Enviado pelo autor.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Marques de Carvalho (Que bom marido!)

A Juvenal Tavares

Não desejarás a mulher do teu próximo.
Mandamento de Deus.


Havia já três anos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranquilos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente numas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao passeante que para ela dirigisse perscrutador olhar.

Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaria, obeso, rubicundo (rubro), de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera, — tempestuosa e puída nas orgias, — encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quais desciam para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pele cor de ginja (cereja).

Ela tinha dezoito primaveras, — para me servir de uma velha expressão do romantismo; — ostentava uma carinha faceira, risonha, de olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia dúzia de gamenhos (janotas) vadios, — desses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.

O seu regime de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifácio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu alto, dava um xoxo (beijos e abraços) à mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico: — impassível e cadenciado.

Elvira acompanhava o esposo até à porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava à varanda, afim de dar algumas ordens acerca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ia sentar-se à máquina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despesas diárias. O ganho desses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifácio formavam uma soma bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a tempos o luxo de um camarote no teatro da Paz e um passeio de bonde em noites de luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e bexiguinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam à encantadora esposa dele ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.

Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifácio tinha seus adoradores, — rapazes toleirões (palermas, tolos), aos quais ela, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requisitava era um tal Jacinto, — um leão conquistador que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do namoro atrevido. Este Jacinto apaixonara-se por Elvira poucos dias depois do casamento dela, por ocasião de um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifácio, quando Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo (jogo de cartas semelhante ao voltarete) com o taberneiro da esquina e o vizinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este último e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder àquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacinto era pontual à entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifácio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasista, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifácio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se àquilo a que chamava "uma distração", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para cometer um crime.


Jacinto não era um homem que perdesse a paciência. Assistia tranquilo a esse desperdício de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem, — aquele interessante problema de amor.

Uma tarde, — era em meados de junho, passou o Jacinto, deveras admirado por ver que a sua querida não estava à janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguém. A estrada de S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só vivente se via.

Constrangido, dispôs-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifácio. Correu a ela e perguntou:

— Onde está a d. Elvira, minha filha?

A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o indicador da mão direita, conservando-se calada.

— Vamos, fala, toma um tostão... Onde está a d. Elvira? — insistia o leão fazendo escorregar um níquel para o seio da pequena.

Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse, ainda meio acanhada:

— Está lá dentro....

— E o sr. Bonifácio?

— Saiu.

— Dou-te outro níquel se fores levar uma carta à tua senhora, queres?

— Eu quero...

Jacinto tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datara nem assinara. Entregou-a à mulatinha e conjuntamente outro tostão.

Depois seguiu pela estrada adiante.

Elvira não deu resposta àquela carta, que lhe revelara o grande amor que por ela sentia o Lovelace (namorador galante) paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quais voltou, seguindo pelo passeio, rente à janela. Sacudiu-lhe ao colo nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receosa, na qual confessava que o Jacinto não era-lhe indiferente, mas que devia abrir mãos àquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia tão gratas liberdades."

Desde então em diante, apesar desses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacinto para o seio de Elvira e do seio desta para os bolsos daquele. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o físico do sr. Bonifácio com o de Jacinto. Esse confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa à correspondência criminosa.

Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além daquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacinto era mais exigente.

Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifácio descia do bonde em frente de casa, de volta de uma visita que fora fazer a seu chefe de seção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que atraiu-lhe a atenção de velho curioso.

— Que levas aí? — perguntou.

— Não é nada... — respondeu a rapariga nessa voz cantada peculiar aos paraenses.

— Não mintas! Eu vi não sei quê! — bradou o sr. Bonifácio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.

Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os óculos e leu:

"Meu amigo, depois de amanhã, à meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant’-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de conversar consigo e saber dessa novidade que prometeu contar-me. Venha à 1 hora. Acautele-se bem; que ninguém o veja.
ELVIRA.»

O Bonifácio subiu ao arame; ficou da cor da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se de um alvitre que lhe apareceu de súbito no espírito com rubros lampejos de sanguinária vingança.

— Toma, leva! — disse entregando a carta à rapariga.

E entrou.


Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgazões de moços de ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direção ás diferentes igrejas onde se deve rezar a missa do galo.

O sr. Bonifácio, que levantou-se à ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada "com muita dor de cabeça..."

À 1 hora, um vulto apareceu na esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifácio. Era o Jacinto, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janelas. Respondeu-lhe do interior um leve ruído. Jacinto estremeceu de contentamento, pregozando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.

Era o respeitável sr. Bonifácio, que saindo de trás da mangueira onde ocultara-se, desancava a bom desancar o peralvilho (janota, almofadinha) que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.

Quando Jacinto saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifácio à pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sova-lo fortemente, numa agitação febril...

O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguém acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do galo.

Quando cansou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para todos os lados, disse ao Jacinto, que achava-se por terra, com os ossos quase moídos:

— Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!

E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, transida (enregelada) de medo.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

terça-feira, 6 de junho de 2023

Isabel Furini (Poema 45): Inquieto

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.

Leandro Bertoldo Silva (Maternidade)

Maternidade era uma das palavras esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensarem nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu ventre crescido estava na contramão de todos e recordava sua rejeição. Daquele invólucro perfeito, ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente físico e atingiriam sonhos interrompidos.

Dejanira era mulher do mundo. Esse era o resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de si. E, agora, mesmo sendo duas, teimava em sua solidão. O tempo passava, mas não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu estado apontava. Já dividia seu alimento, mesmo sem sua permissão, como seria dividir o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que, ao rebentar da bolsa, jorrou junto com uma sensação indefinível que a urgência do momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.

Seus olhos recém-maternos se iluminaram, e o coração, que antes rejeitava, agora acalentava e se punha a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.

A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia naquele instante era amor ou remorso, talvez fossem os dois. Aquele momento eternizado na música que embalava sua criança fazia pensar: afinal, é a mãe quem dá à luz um filho ou é o filho que faz nascer a mãe?

Fonte:
Árvore das Letras. Site do autor.
https://arvoredasletras.com.br/2023/05/14/maternidade-3/

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXX


Soneto para Maria Helena


Tu que por crenças vãs a Vida arrasas
e ante o espelho não queres ver que és,
que imagina viver abrindo as asas
e te esqueces de andar com os próprios pés...

Que transforma o Sonho num revés
mesmo a acender o fogo em que abrasas,
e te algema as mãos, - as mãos escravas
como as do prisioneiro das galés.

Tu que te enganas a falar de alturas
com as palavras mais belas e mais puras
e te imolas num gesto superior,

não percebes nessa ânsia de suicida
que nada há enfim mais alto do que a Vida
quando a erguemos num brinde - ébrios de amor!
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Sorrio...

Ah! vieste me falar de antigamente
desse tempo em que fui sentimental,
quando o amor era um sonho puro e ardente
vestido em véu de espumas, nupcial...

Quando me dava, perdulariamente,
vivendo o mal sem conhecer o mal,
a levar a alma inquieta de quem sente
e de quem busca uma conquista ideal...

Era sestro da idade essa existência...
Sinal de pouca vida e muito sonho,
de muito sonho... e pouca experiência...

Hoje, no entanto, se a pensar me ponho:
- sorrio... Um vão sorriso de indulgência...
...Sinal de muita vida... e pouco sonho…
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Suprema  Ironia

Não digas que não sofro - o meu sofrer profundo
com um sorriso nos lábios muita vez apago...
A dor - é coo a pedra que cai - vai pro fundo
sob a face serena e tranquila do lago...

Um segundo de pura alegria - um segundo
muitas vezes me basta, e já me dou por pago...
Se invejo, invejo aquele que não tendo um mundo,
tem mundo para além do olhar ardente e vago...

Que eu não ando a dizer que sofro e me atormento!
É covardia a gente maldizer-se à toa
a viver esta vida entre um ai e um lamento...

Eu, não! Bem sei que sofro, mas sofrer - que importa ?
Digo aos homens que o mundo é belo, a vida é boa!
E... suprema ironia... a minha voz conforta!
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Supremo Orgulho

Nunca soube pedir...Nunca soube implorar...
Nasci, tendo este orgulho em minha lama irrequieta,
- há  um brilho que incendeia o meu altivo olhar
de crente superior... de indiferente asceta...

Minha fronte, jamais, eu soube curvar
na atitude servil de uma existência abjeta...
Ninguém é mais que eu!... Ninguém... e este meu ar
de orgulho, vem da glória imensa de ser poeta...

Sou pobre - mas riqueza alguma há igual à minha,
- a mulher que eu amar terá a glória suprema
de um dia se sentir maior que uma rainha....

Terá a glória de saber o seu nome
perpetuado por mim nas estrofes de um poema,
desses que a História guarda e o Tempo não consome !
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Surpresa

Começamos assim: - eu, tendo em mente
fingir gostar apenas: namorar,
como chamam na vida comumente
aos primeiros encontros de algum par...

Tu, disposta a prender-me ao teu olhar
por um mero capricho e, fatalmente,
depois que eu me curvasse a te adorar
trocar-me-ias por outro facilmente...

Começamos assim - logo, no entanto
- aquilo que pensei, não consegui,
nem conseguiste o que querias tanto...

E afinal - que belíssima surpresa !...
- Eu, de tanto fingir:  –  gostei de ti,
tu, querendo prender: - ficaste presa !...

Fonte:
JG de Araújo Jorge. Meus sonetos de amor. RJ: Ed. do Autor, 1961.