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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (O Castelo do Lago)

Na terra do Tibete havia um belo lago rodeado de colinas e montanhas. Era tão belo e de águas tão claras, que os que passavam perto dele ficavam boquiabertos de admiração. Alguns diziam que, quando o sol estava alto e projetava sobre a tranquila massa de água as sombras dos picos das montanhas, parecia como se houvesse um castelo no lago, um castelo de proporções tão enormes que tomava toda a água. Assim, pois, o lago passou a ser conhecido como "o lago do castelo".

Criaram-se muitas histórias sobre o lago e seu castelo. Às vezes se dizia que, quando a lua tremeluzia e as estrelas refulgiam como diamantes na água, se podia ver uma estranha gente sair do lago, gente com olhos de fogo e cabelos soltos que caíam como folhas molhadas ao redor de seus rostos. Ou, então, dizia-se, também, apareciam ferozes cães, que estraçalhavam as carnes dos viajantes solitários que caminhavam incautamente por suas praias.

Mas, como costuma ocorrer com as lendas, o pai conta à filha e a mãe ao filho, e, assim, durante gerações e gerações, até que as histórias se ampliam cada vez mais e mais, e acabam por dizer muito mais do que pretendeu quem as contou pela primeira vez. E aconteceu que, logo, foi aceito por todos que havia, mesmo, um castelo no lago, e que o castelo tinha um rei. Este rei, dizia-se, possuía muitos servidores, homens que, por alguma desgraça, haviam caído no lago, ou que haviam sido capturados enquanto caminhavam sozinhos por suas margens, e que depois, foram obrigados a permanecer a serviço do rei.

Certo dia, um jovem pastor estava guardando seus iaques no lado oriental do lago, quando sentiu vontade de comer algo; por isso, deixou o seu rebanho e desceu até a margem do lago. Depois de ter molhado o rosto com água fresca, sentou-se apoiado contra uma grande rocha; tirou um queijo e um pão de cevada do surrão, acendeu um pequeno fogo para esquentar seu chá com manteiga, e se pôs a comer.

Enquanto comia, Rinchen — que assim se chamava, o pastor começou a pensar em sua vida. Sua mãe era uma mulher cruel, que sempre o havia forçado a trabalhar muito, a fim de que ela pudesse comprar vestidos novos e comer bem. E, quanto a ele, tinha de contentar-se com uns poucos farrapos e com as sobras de comida que a mãe não queria mais. Considerando a vida que levava, Rinchen se pôs a chorar. As lágrimas lhe escorriam pela face e os soluços agitavam todo o seu corpo. Não conseguiria trabalhar mais do que já vinha fazendo, e, entretanto, sua mãe continuaria a querer mais e mais.

O jovem pastor já começava a guardar as suas coisas, quando, ao levantar os olhos, viu um homem de pé junto à margem do lago. Era um homem alto e vestia uma chuba1 negra da qual jorrava água — o que dava a impressão de que havia acabado de sair do lago. Recordando as histórias que tinha ouvido sobre o lago do castelo e os servidores do rei, Rinchen se sentiu tomado de pânico, e já se ia embora correndo, quando o homem falou:

— Por que você estava chorando daquele modo?

Rinchen se voltou para o homem e percebeu que ele possuía uma expressão bondosa e afável. A sua voz era doce e melodiosa. Todo o medo que o pastor sentira antes pareceu abandoná-lo, e ele se aproximou do homem alto, de chuba negra, que estava na margem do lago. Este repetiu a pergunta. Rinchen contou-lhe, então, sobre sua mãe e sobre como esta o obrigava a trabalhar cada vez mais para mantê-la e seus gostos exigentes.

— Entre comigo no lago — disse o homem —, pois o rei é um homem bom e talvez possa ajudá-lo a resolver o seu problema.

O jovem pastor sentiu que o medo lhe voltava, pois estava certo de que se entrasse no lago jamais poderia sair dele. O homem alto percebeu o medo do rapaz e, num tom suave, que era como música para os ouvidos, convenceu-o de que não havia nada a temer.

— Sou um dos servidores do rei — disse o homem. Eu vou levá-lo diante do rei e cuidarei para que aqui volte são e salvo.

O jovem pastor pensou por um momento: "Que posso eu perder? Minha mãe é tão cruel, que até a morte me seria melhor do que passar o resto da minha vida como o seu escravo". E, assim, afastando o medo, Rinchen seguiu o servidor do rei e entrou no lago.

A água era morna e acolhedora, e o rapaz se surpreendeu de que pudesse respirar com a mais completa liberdade. O servidor do rei pediu-lhe que fechasse os olhos enquanto o conduzia pela água até o castelo. Quando pararam e Rinchen abriu os olhos, viu que se encontrava numa grande sala, primorosamente enfeitada com ouro, prata reluzente e madrepérola. No fundo da sala havia um trono, e, neste, estava um homem: o rei.

O rei fez sinal ao jovem pastor para que se aproximasse. Ao fazê-lo, Rinchen percebeu que não estava sozinho, na sala, com o servidor e o rei, mas que a cada lado do trono havia mais servidores, todos eles vestidos com chubas negras como a do homem alto que lhe havia falado à beira do lago. Quando chegou aos pés do trono do rei, um dos servidores se aproximou e colocou um tamborete baixo diante do trono, para que o rapaz se sentasse nele. Timidamente, Rinchen se sentou e ficou observando os lacrimejantes olhos azuis do rei.

— Por que você está aqui? perguntou o rei com uma voz profunda que mais parecia o distante reboar de um trovão. O pastor contou, então, a sua história, tal como a relatara ao servidor, à beira do lago.

O rei foi escutando o que o jovem lhe contava e, quando Rinchen terminou o seu relato, voltou-se para o seu corpo de servidores e fez sinal a um deles para que se aproximasse. O servidor se aproximou do rei e se inclinou diante dele, enquanto este lhe sussurrava algumas instruções. O jovem pastor aguçou o ouvido, mas não pôde ouvir o que o rei dizia. O servidor abandonou a sala e voltou depois de alguns minutos trazendo um cão.

— Tome este cão — disse o rei ao pastor —, mas cuide para sempre dar-lhe de comer antes que você mesmo o faça. Isto é muito importante.

Rinchen pegou o cão e, com os olhos fechados, deixou-se conduzir até a beira do lago. Quando abriu os olhos, estava sozinho com o animal.

O jovem pastor foi embora para casa e com ele seguiu o cão. A partir daquele dia, tudo o que Rinchen desejava sempre aparecia diante dele. Ao despertar pela manhã, descobria que havia posto cevada na caixa da cevada, manteiga na caixa da manteiga, e dinheiro na caixa do dinheiro. Inclusive, apareciam roupas novas em seu guarda-roupa. Era muito feliz e sempre cuidava muito bem do cão, seguindo as instruções do rei de dar de comer ao animal antes que ele mesmo comesse.

A mãe de Rinchen, que andava muito intrigada com a súbita e inexplicável riqueza do filho resolveu, um dia, sair ela mesma com o rebanho de iaques, para ver se podia descobrir a fonte de tanta fartura. E enquanto a mãe se achava fora, o jovem pastor decidiu observar o cão, pois também estava curioso por saber como o animal conseguia obter o dinheiro e a comida. Escondendo-se na casa, observou o cão: este entrou, aproximou-se da lareira e, depois, se pôs a sacudir-se violentamente.

Imediatamente, a pele do cão caiu ao chão, deixando a descoberto uma formosa mulher a quem Rinchen jamais havia visto. Ela andou até a caixa da cevada, levantou a tampa e pôs dentro a cevada, que não se via de onde saía. Depois, fez o mesmo com a gaveta da manteiga, a do chá e a do dinheiro, tirando do nada tudo o que o rapaz e a mãe necessitavam.

Rinchen não se pôde conter. Agarrou a pele do cão e a lançou ao fogo. A formosa mulher tentou impedir que o fizesse, mas já era tarde, pois a pele ardeu rapidamente e logo não foi mais do que um grande monte de cinzas.

Temeroso de que o filho do chefe visse a mulher e a quisesse por esposa, para ocultar a sua beleza, Rinchen cobriu o rosto dela com fuligem e a reteve em casa, longe dos olhares do povo.

Em pouco tempo, o jovem pastor tornou-se muito rico, e a sua riqueza foi-o deixando excessivamente ousado. "Por que me preocupo? — perguntou-se. Tenho muito dinheiro, e o filho do chefe não se atreverá a roubar-me esta mulher, pois posso pagar-me armas e homens". Pensando desse modo, Rinchen limpou a fuligem do rosto da bela mulher e a levou à cidade para mostrá-la ao povo, pois se orgulhava da sua beleza.

O filho do chefe estava na cidade e viu a mulher. Cativado por ela, tomou a firme determinação de fazê-la sua esposa e enviou homens para buscá-la. Muito aflito, o jovem pastor pediu ajuda aos homens da cidade, mas nem um só quis atendê-lo.

Muito triste, Rinchen foi à margem do lago, sentou-se junto à grande rocha e se pôs a chorar. Como na vez anterior, apareceu o servidor do rei.

— Por que está chorando desta vez? — perguntou.

— Porque perdi a minha mulher —, respondeu o rapaz. E contou ao servidor toda a história de como havia lançado ao fogo a pele do cão e mantido escondida dos olhares do povo a formosura da mulher.

Contou, também, que, por se ter tornado imprudente e demasiado seguro, havia lavado o rosto da jovem, descobrindo-lhe, assim, a beleza para o filho do chefe; e, com isso, a havia perdido para sempre.

O servidor pediu a Rinchen que o seguisse de novo ao lago, pois o rei tinha de conhecer essa história.

— Talvez o rei possa ajudá-lo outra vez, disse ao jovem pastor, e este logo se encontrou ante o trono e aos pés do rei do lago.

Depois de escutar a história de como Rinchen havia perdido a bela mulher, o rei estendeu-lhe uma caixinha e disse:

— Leve esta caixa — e o pastor a pegou. Agora, vá ao alto de uma colina e chame à guerra o filho do chefe. Quando este tiver congregado as suas tropas na base da colina, abra a caixa e grite: A luta!

Assim fez o pastor. E quando abriu a caixa e gritou:

— À luta! —, milhares de homens saíram dela e avançaram sobre os soldados do filho do chefe e os derrotaram.

Rinchen recuperou sua bela mulher e a tomou por esposa. Enriqueceu ainda mais com a metade das terras do chefe e se converteu num chefe rico e benévolo. O jovem pastor devolveu a caixa ao rei do lago, agradecendo-lhe, e viveu em proveitoso contato com ele pelo resto de sua vida.
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Nota
1. A chuba, palavra da mesma origem que as espanholas "juba", "jubón" ou "chupa" (e o francês "jupe" recebidas do árabe, é a roupa típica dos povos tibetanos. É um roupão de lã, como uma espécie de túnica ou toda cruzada, de cor ver-melho-escura, que se amarra na cintura, formando uma bolsa (ambac) sobre o peito, na qual se transportam os objetos mínimos necessários aos deslocamentos de lugares. As mangas da chuba, quando não são levadas recolhidas, ultrapassam as mãos pelo menos um palmo.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

sábado, 19 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (De como Asanga chegou a ver o Buda Futuro)

Asanga, o douto filósofo, de todo o coração decidido a realizar a sabedoria interior, meditou em solidão durante muitos anos. O objeto de sua meditação era Champa (Maitreya), o Buda do futuro, que reside no céu Tushita aguardando a sua descida à terra. Asanga sempre fora perseverante em seus esforços, mas, depois de tantos anos de fervorosa meditação, ele mesmo já começava a sentir-se frustrado em seu empenho por alcançar a sabedoria a que aspirava.

Certo dia, quando passeava pelo exterior de sua caverna, Asanga se fixou nuns quantos pássaros que pousavam numa rocha proeminente que ficava próxima. Justamente onde as asas dos pássaros, ao pousarem, roçavam a rocha, Asanga notou uma profunda fenda. Isto o levou a refletir sobre os incontáveis anos que deveriam ter sido necessários para que, pelo único efeito do roçar suave das asas dos pássaros, se produzisse uma cavidade como aquela.

Ao voltar à sua cova, Asanga, com os sentidos aguçados pela meditação profunda, ouviu o brando gotejar da água sobre a pedra. Examinando-o mais de perto, percebeu um pequenino regato que seguia rocha adentro: com os anos, o delicado gotejar da água havia aberto uma profunda passagem na rocha. "Se as asas dos pássaros e o gotejar da água podem perfurar a rocha — pensou Asanga —, então também eu, com a meditação, posso perfurar as distintas camadas da consciência, e alcançar, dessa maneira, a sabedoria."

E assim, Asanga continuou meditando, mas meditando sem resultado algum. Parecia-lhe que, quanto mais ardentemente buscava obter a sabedoria, e quanto mais apaixonadamente tratava de invocar a Champa, mais impossível isso se tornava.

Um dia, Asanga deixou sua caverna para ir à busca de comida. No caminho, encontrou um homem que esfregava uma barra de ferro maciço com um pedacinho de algodão. Asanga perguntou-lhe o que estava pretendendo obter com aquilo, e ele respondeu que ia fazer uma agulha. Asanga se surpreendeu muito por achar possível fazer uma agulha apenas esfregando uma grossa barra de ferro com um pouquinho de algodão macio; mas, quando expressou isso ao homem, este respondeu:

"Se alguém está realmente resolvido a fazer uma coisa, não fracassará em seu empenho, mesmo quando a tarefa possa parecer impossível."

Asanga recobrou novas forças, ao considerar que a sua tarefa não era mais difícil do que a daquele homem, e voltou à sua caverna animado a continuar a sua meditação.

Depois de haver estado meditando durante doze anos, Asanga decidiu-se, finalmente, a abandonar seu retiro e deixar de meditar sobre Champa, pois este não se lhe apresentara nunca, nem mesmo depois de tanto tempo de esforços.

Ao deixar seu retiro, Asanga encontrou um cachorro ganindo de dor por causa de uma ferida no dorso — um dorso infestado de vermes. Asanga sentiu uma grande compaixão pelo cachorro e desejou aliviar-lhe os sofrimentos. Sabia, porém, que se lhe tirasse os vermes, estes iriam morrer, pois não teriam de onde comer. Para salvar o cão, Asanga decidiu tirar-lhe os vermes, e, quanto a estes, iria colocá-los em sua própria carne, para que pudessem continuar vivendo. Asanga já se dispunha a retirar os vermes com a mão, mas deteve-se e pensou: "Se os tirar com os dedos, poderia esmagá-los". De modo que, fechando os olhos, inclinou-se para retirar os vermes lambendo a ferida. No mesmo instante em que a sua língua tocava o cachorro, este desapareceu, e, em seu lugar submerso numa bolsa de deslumbrante luz, apareceu Champa, o Buda futuro.

Tomado de emoção, Asanga assim falou a Champa:

— Durante tantos anos e de tantas formas, tentei vê-lo, sem que o senhor se mostrasse a mim, e agora, quando meu anseio desapareceu, por que se mostra diante de mim?

Champa respondeu:

— Porque somente agora é que, através do seu grande ato de compaixão, a sua mente está realmente pura e, portanto, apta para ver-me. Na verdade, eu sempre estive aqui.

Então, Champa ordenou a Asanga que o levasse sobre os ombros até a cidade para que outras pessoas pudessem vê-lo. Assim o fez Asanga, mas o povo, com a consciência obscurecida por pensamentos impuros, não pôde ver a Champa, e acreditou que Asanga estivesse louco quando proclamava que levava Champa sobre seus ombros. Mas uma anciã conseguiu ver um cachorrinho sobre as costas de Asanga, e foi imediatamente acumulada de riquezas. E um pobre carroceiro de mulas chegou a entrever os dedos do pé de Champa, e, desde aquele momento, teve poder e paz interior.

Champa levou, então, a Asanga ao céu Tushita, onde pôde receber o ensinamento e obter a sabedoria que, durante tantos anos, o havia evitado.

Nota
1. Asanga natural de Purusapura (a atual Peshawâr, no Paquistão), não tibetano, pois, mas hindu, é um dos maiores filósofos do budismo. É considerado o criador, junto com seu irmão Vasudandhu, do sistema Vijnânavâda ou Vijnâptimâtra, base doutrinai da escola Yogâcâra (Hossô, no Japão); e, também, junto com o sistema Mâdhyamika, de todo o budismo mahâyâna.
Tradicionalmente, o seu ensinamento é considerado como sendo "o samadhi (a meditação criativa) de Maitreya", e assim, seu suposto irmão, Maitreyanâtha ("nâtha" significa "senhor"), não seria senão o próprio Buda futuro, como fica claro em nosso relato.
Maitreya, em tibetano Champa (Byams-pa), é o nome que recebe o bodhisattva que aparecerá, um dia, como o novo Buda em nosso mundo, e que, da mesma forma que Sâkyamuni, "fará girar a roda do Dharma, quando esta se houver detido".
É considerado uma emanação do Dhyâni Budda Amoghasiddhi, e seu nome deriva de maitrí, que significa a simpatia universal para com todos, a infinita benevolência e o amor.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

domingo, 13 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (O Primeiro Rei do Tibete)

Na época em que os tibetanos eram governados por doze chefes sem importância, havia muito descontentamento e muitas contendas, pois eles não tinham um chefe único e eram uma nação dividida. Foi durante esse período que o rei de Vatsa, na índia, teve um filho. A criança, porém, não era um menino normal, pois havia nascido com sobrancelhas de cor turquesa, pálpebras salientes e mãos espalmadas.

O rei estava muito aflito e toda a corte se mostrava assustada com o estranho menino. Assim foi que, querendo livrar-se dele, o rei ordenou que o colocassem numa caixa de cobre e que o lançassem ao Rio Ganges. Quando isto se efetivou, o rei e a rainha, assim como todos os do palácio, suspiraram aliviados por se verem livres, finalmente, daquele embaraçoso engendro da natureza.

O menino, entretanto, não morreu, pois foi achado por um camponês. Este, ao abrir a caixa e encontrar dentro dela a estranha criancinha, encheu-se de amor por ela e a levou para a sua casa, a fim de que vivesse como alguém de sua família. Dessa maneira, o menino passou uma infância feliz, amado e cuidado pelo camponês e por sua mulher.

Quando o menino se tornou moço, o camponês achou que já era hora de que conhecesse as suas estranhas origens. Contou-lhe, então, a história de como ele havia sido encontrado numa caixa de chumbo às margens do Ganges. E, para que o rapaz não tivesse a impressão de que havia sido abandonado, o camponês tratou de convencê-lo de que ele era alguém muito especial: na verdade, um "poderoso", nascido de berço rico. O moço, entretanto, se entristeceu muito ao ouvir a história do camponês, pois sempre havia acreditado que fazia parte da família deste, a quem considerava como pai. Em sua aflição, o rapaz fugiu em direção aos Himalaias e cruzou a fronteira do Tibete, onde passou dias e dias sozinho, ao abrigo das montanhas.

Nesse lugar, o moço acabou encontrando alguns sacerdotes tibetanos da antiga religião. Estes, ao verem o estranho jovem, tomaram-no por um deus, pois, ao lhe perguntarem quem era, ele respondera, simplesmente: "Um poderoso".(1) E quando lhe pediram para dizer de onde havia vindo, o rapaz indicara a direção da índia, do outro lado das montanhas — e os sacerdotes acreditaram que estivesse indicando os céus. Devido ao obstáculo da língua, os sacerdotes abandonaram os esforços para comunicar-se com ele; apenas fizeram com que o moço fosse colocado numa cadeira de madeira, que quatro homens carregaram às costas. E os sacerdotes declararam: "Vamos constituí-lo em senhor nosso".

E assim foi como ficou sendo conhecido "o poderoso da cadeira de mãos" e como o Tibete teve constituído o seu primeiro rei.(2)
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Notas
1. Este epíteto (em tibetano btsan-po) passou a ser aplicado a todos os reis do Tibete.
2. Este personagem lendário é conhecido em tibetano como Nyakhri Tsampo (Nyag-khri btsan-po).
Toda "felicidade que existe no mundo nasceu inteiramente do desejo do bem aos outros. Toda a infelicidade que existe nasceu do egoísmo.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (Ngon Tok Gyen: Opame, Chenrezik y Dolma)

O Buda celeste Opame (Amithâba), olhando para baixo desde a sua Terra Pura, contemplou o mundo e viu o sofrimento de todos os seres. Opame sentiu uma grande compaixão por eles. Deste sentimento de compaixão nasceu Chenrezik (valakiteshvara), a encarnação da compaixão, o Senhor da Compaixão.1 As montanhas se abriram e a água saiu em torrentes, cobriu a terra e correu até o Oceano Índico. Chenrezik apareceu numa ilha no centro de Lhasa, e, vendo o sofrimento dos seres, fez o voto de ajudá-los a alcançarem o Nirvana, a realidade última, a paz. Chenrezik fez o voto de não abandonar este mundo sem que todos, até mesmo a última fibra de erva, alcançassem a paz.

Havia no lago muitos seres e todos eles clamavam por um corpo. Ouvindo suas vozes, Chenrezik deu-lhes os corpos que pediam. Mas os corpos eram todos iguais, e, por isso, os seres suplicaram por se diferenciarem uns dos outros. Chenrezik deu, então, a cada um dos seres um corpo distinto, cada um deles característico e diferente dos demais.

Chenrezik, o Senhor da compaixão, pregou o Dharma, o ensinamento de todos os Budas, a fim de que todos os seres do lago, em número incontável, pudessem alcançar o Nirvana. Muitos seres o alcançaram. Mas, cada vez que Chenrezik voltava ao lago, havia muitos mais seres, muitos e muitos mais que os que já havia podido ajudar. De novo, Chenrezik pregou o Dharma, e, de novo, muitos alcançaram o Nirvana.

Quando Chenrezik contemplou o lago pela terceira vez e tornou a ver tantos seres necessitando ajuda, encheu-se de desespero. E compreendendo a impossibilidade da tarefa que se havia imposto, clamou ao Buda celeste Opame para que revogasse o seu voto, pois agora considerava a tarefa demasiado grande para que ele, sozinho, pudesse realizá-la. Em seu desespero e compaixão, o corpo de Chenrezik se fragmentou em inumeráveis pedaços.

Vendo a sua situação, Opame reconstruiu o seu corpo, dando-lhe ainda mais poder para ajudar a todos os seres vivos. Chenrezik tinha agora onze cabeças, coroadas pela cabeça do próprio Opame, e mil braços, e ainda um olho onividente na palma de cada mão.2

Mas, mesmo assim, inclusive com os mil braços e com as onze cabeças, Chenrezik considerou impossível a realização da sua tarefa. Os seres eram incontáveis e suas mentes estavam completamente toldadas por pensamentos impuros. Chenrezik chorou. E, de uma lágrima cristalina de sua face, nasceu Dolma (Târâ), para ser-lhe sua ajuda.3

Assim, pois, não existe um só ser, por insignificante que seja, cujo sofrimento não chegue a ser visto por Chenrezik ou por Dolma, e que não possa ser atingido por sua compaixão.

Notas

1. Amithâba ("luz infinita"), em tibetano Opame (Od-d pag-med), é um dos chamados Chyâni Buddas no budismo tântrico. Estes são aspectos universais, arquetípicos da "bu-deidade", tal como se mostram o espírito em meditação (dhyâna).
A Terra Pura é o chamado Paraíso Sukhâvati ou. Ocidental, no qual reside Amithâba, e que tem dado nome a uma via espiritual centrada na invocação do nome deste, via particularmente florescente no Japão.
Avalokitesvara é como uma extensão de Amithâba, uma emanação sua. Seu nome significa "o senhor que olha para baixo com compaixão", e é, pois, a personificação deste ato de Amithâba.
É a figura mais popular do panteão budista tibetano, e seu mantra (fórmula de invocação) é a oração por excelência de todo tibetano; está presente por igual na devoção popular e nas práticas iniciáticas.
Avalokitesvara, em tibetano Chenrezig (Spv-an-ras gzigs), é igualmente uma figura de primeira ordem em todas as áreas do budismo mahâyâna, como a China e o Japão, onde, na iconografia, assume um aspecto semifeminino algumas vezes, e abertamente feminino em outras, em virtude da doçura misericordiosa que encarna. Na China, é conhecido como Kuan-Yin, e, no Japão, como Kannon.
É um bodhisattva ao qual se atribuem diversas encarnações, e não apenas no mundo dos homens, pois sua compaixão abarca todos os mundos. Em particular, considera-se o Dalai Lama como uma manifestação terrenal sua.
E uma das figuras mais representadas na iconografia budista, principalmente com esta forma (à qual nos aludiremos mais adiante, em nosso relato), de onze cabeças e mil braços, na qual recebe o nome Ekadasmukha.

2. Traduzimos dessa maneira "all-seeing eye". A propósito desta designação e de seu simbolismo, pode ser consultado R. Guénon, Símbolos fundamentais da ciência sagrada, cap. LXXXII, "O olho que a tudo vê", pp. 384-386, Buenos Aires, 1960.

3. Esta é uma das diferentes versões que existem sobre o nascimento de Dolma.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida)

sábado, 28 de novembro de 2015

Contos Populares do Tibete (A Criação)

No princípio era a Vacuidade¹, um imenso vazio sem causa e sem fim. Deste grande vazio, levantaram-se suaves redemoinhos de ar, que, depois de incontáveis eons, tornaram-se mais densos e pesados, e formaram o poderoso cetro duplo do raio — o Dorje Gyatram².

O Dorje Gyatram criou as nuvens; estas, por sua vez, criaram a chuva. A chuva caiu durante muitos anos, até formar o oceano primogênio, o Gyatso.3 Depois, tudo ficou calmo, tranqüilo e silencioso, e o oceano ficou límpido como um espelho.

Pouco a pouco, os ventos voltaram a soprar, agitando suavemente as águas do oceano, batendo-as continuamente, até que uma leve espuma apareceu na sua superfície. Assim como se bate a nata para fazer manteiga do mesmo modo as águas do Gyatso foram batidas pelo movimento rítmico dos ventos para transformá-las em terra.

A terra emergiu como uma montanha, e ao redor de seus picos o vento sussurrava incansável, formando uma nuvem atrás da outra. Das nuvens caiu mais chuva, mas, desta vez, mais forte ainda e carregada de sal; daí se originaram os grandes oceanos do universo.

O centro do universo é o Rirap Lhunpo (Sumeru),4 a grande montanha de quatro caras, feita de pedras preciosas e cheia de coisas maravilhosas. Existe rios e arroios no Rirap Lhunpo, e muitas espécies de árvores, frutos e plantas, pois o Rirap Lhunpo é especial: é a morada dos deuses e dos semi-deuses.

Rodeando o Rirap Lhunpo, há um grande lago, e, em volta deste, um círculo de montanhas de ouro. Depois do círculo de montanhas de ouro, existe outro lago, também cercado de montanhas de ouro, e, assim, sucessivamente, até se completarem lagos e sete círculos de montanhas de ouro.5 E, mais além do último círculo de montanhas, está o lago Chi Cyatso.

No Chi Cyatso se encontram os quatro mundos, cada um deles semelhante a uma ilha, com sua forma particular e seus diferentes habitantes.

O mundo do Este é o Lu Phak, que tem a forma de meia-lua. As pessoas do Lu Phak vivem quinhentos anos e são pacíficas; não há contendas no Lu Phak. Seus habitantes têm corpos gigantescos e caras em forma de meia-lua. Entretanto, não são tão felizes como nós, pois não têm nenhuma religião para poder seguir.

O mundo do Oeste se chama Balang Cho e sua forma é a do sol. As pessoas do Balang Cho são, como as do Lu Phak, de grande estatura e vivem quinhentos anos. Suas caras têm também a forma do sol. Dedicam-se à criação de diversas espécies de gado.

A terra do Norte tem a forma quadrada e se chama Dra Mi Nyen. As pessoas de Dra Mi Nyen são de caras quadradas e vivem mil anos ou mais. Em Dra Mi Nyen, a comida e a riqueza são abundantes. Tudo o que um homem necessita nos seus mil anos de vida é obtido sem esforço ou padecimento. Vivem com luxo, sem precisar de nada. Mas, durante os sete últimos dias de sua vida, a dor e o tormento anímicos acometem os seres de Dra Mi Nyen; e é, então, que recebeu um sinal de que estão para morrer. Visita-os uma voz — uma voz terrível — que lhes sussurra como vão morrer e que monstruosos sofrimentos terão de suportar nos infernos, depois da morte. Em seus últimos sete dias de vida, todas as suas riquezas e posses diminuem, e eles experimentam um sofrimento maior do que o nosso numa vida inteira. Dra Mi Nyen é conhecida como a "Terra da Voz Pavorosa".

O nosso próprio mundo fica ao sul e se chama Dzambu Ling.6 No começo, ele foi habitado por deuses de Rirap Lhunpo. Não havia dor nem enfermidades, e os deuses nunca necessitavam de comida. Viviam a contento, passando seus dias em profunda meditação. Não havia necessidade de luz em Dzambu Ling, pois os deuses emitiam uma luz pura de seus próprios corpos.

Certo dia, porém, um dos deuses reparou que na superfície da terra havia uma substância cremosa; provando-a, sentiu que era deliciosa ao paladar; por isso, animou os outros deuses a que a experimentassem também. Todos os deuses gostaram tanto da substância cremosa, que não quiseram mais saber de comer outra coisa. Sucedeu, porém, que quanto mais comiam, mais se reduziam os seus poderes. E já não foram mais capazes de permanecer sentados em profunda meditação. A luz, que antes brotava resplandecente de seus corpos, começou, a pouco, a se extinguir, até que, por fim, desapareceu por completo. O mundo ficou submerso em trevas e os grandes deuses do Rirap Lhunpo se converteram em seres humanos.

Foi, então, que, na escuridão da noite, apareceu, no céu, o sol. E, quando o sol se apagava, a lua e as estrelas iluminavam o céu e davam luz ao mundo. O sol, a lua e as estrelas surgiram devido às boas ações passadas dos deuses, e são, para nós, a lembrança permanente de que o nosso mundo foi, um dia, um lugar lindo e tranqüilo, sem cobiças, sofrimentos e dor.

Quando o povo de Dzambu Ling esgotou a provisão da substância cremosa, começou a comer os frutos da planta nyugu. Cada um tinha a sua própria planta, que produzia um fruto semelhante ao das messes. E todo dia, quando o fruto já havia sido comido, aparecia outro — um por dia — e isto bastava para satisfazer a fome dos seres de Dzambu Ling.

Certa manhã, um homem despertou e descobriu que a sua planta, em vez de produzir um único fruto, havia dado dois. Tomado de avidez, o homem comeu os dois frutos. No dia seguinte, porém, a sua planta estava vazia. Necessitando satisfazer a fome, o homem roubou o fruto da planta de outro homem; e assim foram fazendo todos, pois um teve que roubar o outro para poder comer. Com o roubo, chegou a cobiça, e todos, temendo não ter o que comer, começaram a cultivar mais e mais plantas nyugu. Com isso, tiveram de trabalhar cada vez mais, a fim de se assegurarem de que haveria o suficiente para comer.

Coisas estranhas começaram a ocorrer em Dzambu Ling. O que antes havia sido uma tranqüila morada de deuses do Rirap Lhunpo, estava agora cheio de homens que conheciam o roubo e a cobiça. Um dia houve em que um homem começou a sentir certo mal-estar nos órgãos genitais e, por isso, os cortou: converteu-se, assim, numa mulher. Essa mulher manteve contato com homens e logo teve filhos, os quais, por sua vez tiveram mais filhos. Em pouco tempo, Dzambu se encheu de gente, e essa gente teve que se procurar comida e um lugar para viver.

Juntas, as pessoas de Dzambu Ling não conseguiam viver em paz. Havia brigas e roubos, e os homens do nosso mundo começaram e experimentar um sofrimento autêntico profundo, que nascia do estado de insatisfação em que se encontravam. O povo percebeu que, para sobreviver, tinha que se organizar. Todos se reuniram e decidiram eleger um chefe, a quem chamaram de Mang Kur — que significa "muita gente o tornou rei". Mang Kur ensinou o povo a viver numa relativa harmonia, com uma terra própria onde construir uma casa e cultivar alimentos.

E assim foi como o nosso mundo veio a existir: como, de deuses, nos convertemos em seres humanos, sujeitos à enfermidade, à velhice e à morte.7 Quando contemplamos o céu, de noite, ou recebemos o cálido brilho do sol, deveríamos recordar que, se não fossem as boas ações dos deuses da preciosa montanha de Rirap Lhunpo, viveríamos numa total escuridão; e, se não fosse a cobiça de uma pessoa, nosso mundo não conheceria o sofrimento que hoje experimenta.
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Notas

1. Sünyatâ, em sânscrito, e stong-pa-nyd, em tibetano. Noção capita! da doutrina budista, que concebe o Princípio supremo, a Realidade última, não de modo objetivo, a partir de seus reflexos na manifestação (porque estes reflexos incluem também, embora por desvio, o nosso pensamento e o nosso ego, que são precisamente os escolhos a serem transpostos); mas, de modo subjetivo, a partir da experiência dessa Realidade no interior de nós mesmos. Assim, a Realidade última se identifica com esse mistério de infinitude que se descobre no íntimo das coisas, com esse mar de bem-aventurança onde a sede (trhnâ) de existir se aplaca definitivamente; e que, ao permitir a saída da falsa plenitude da existência, se mostra como um "vazio" (sânya). Partindo do ensinamento inicial da não-permanência das coisas, e de sua ausência de realidade própria (anâtman; páli, anattâ), chegou-se, na metafísica do Mahâyâna, a este postulado essencial da "Vacuidade", como fundamento de tudo o que existe, postulado que constitui um dos dois pólos desta forma de budismo, sendo o outro o da compaixão (karunâ) do bodhisattva em relação a todos os seres.
Esta doutrina foi formalizada por Nâgârjuna, no século II, e constitui o sistema chamado "Do caminho médio" (Mâdhyamika), ou, também, Sünyavâda, em virtude do seu princípio básico.

2. O vajra duplo (visva-vajra, também chamado karma-vajra) é, como a svastika, um símbolo da ação do Princípio com respeito ao mundo manifesto. Está formado pela união de dois vajra-s dispostos em cruz.

No budismo mahâyâna, que, de acordo com a sua perspectiva, "inverte", poderíamos dizer, a orientação, o vajra duplo é o emblema do Dhyâni Buddha Amoghasiddhi; este expressa a plenitude e a realização completa do caminho do bodhisativa, e é, igualmente, o Senhor do elemento "ar" ou "vento" (vâyu), o qual não é senão o "spiritus" que "adejava sobre a superfície das águas" no Gênesis.

3. Poderíamos assinalar, a título de informação, que esta palavra tibetana Gyatso (rGya-mtsho), que significa grande oceano, serve de apelativo para o que, no Ocidente, é conhecido como Dalai Lama, pois "Dalai" não é senão uma forma inglesada do mongol "tale", que significa a mesma coisa. Assim, pois, o nome do atual Dalai Lama é, em tibetano, Tenzin Gyatso (Bstan-dzin-rgymtsho).

4. É o monte Mêru da tradição hindu, a montanha "polar", o eixo do mundo, o ponto fixo ao redor do qual se efetua a rotação do mundo. Como centro do mundo, corresponde ao Paraíso terrestre do atual ciclo da humanidade (Manyantara).

Identifica-se com o monte Kailas (Kailâsa), em tibetano Gang Tisé, situado no Tibete ocidental e centro de peregrinações, tanto para os hindus como para os budistas.

5. São igualmente os sete dyípas da tradição hindu, que emergem sucessivamente no transcurso de determinados períodos cíclicos, tendo todos por centro o monte Mêru.

6. O Jambu dyípa da tradição hindu. Identificado popularmente com a índia, por estar esta, geograficamente, justo ao sul do monte Kailas, corresponde, na verdade, ao nosso mundo terreno, em seu conjunto e em seu estado atual.

7. É praticamente a mesma explicação das origens do homem e da sua queda que oferece um texto budista páli — o Agganna-Sutta —, cuja síntese, de Frithjof Schuon (lmages de VEsprit, Paris, 1982, pp. 102-103. n. 48), consideramos interessante citar: "A materializaçao progressiva do homem e do seu contorno se deve ao fato de que os homens primordiais e "pré-materiais" — que brilhavam como astros com luz própria, moviam-se nos ares e alimentavam-se de Beatitude — se puseram a comer a terra, quando a superfície terrestre emergiu das águas. Esta terra primordial era colorida, perfumada e doce, mas os homens, alimentando-se dela, perderam sua irradiação; foi, então, que apareceram o sol e a lua, o dia e a noite... Mais tarde, a terra deixou de ser comestível e se limitou apenas a produzir plantas comestíveis. E, mais tarde ainda, somente se pôde comer um número reduzido de vegetais. Daí ter tido o homem de se alimentar a preço de duras fadigas. As paixões e os vícios, e, com eles, as adversidades, haviam entrado, progressivamente, no mundo".

E o mesmo autor menciona, em outro lugar (Tour d'horizon d'anthropologie intégrale, "Connaissance des Religions", vol. l/n." 4, Mars 1.986, p. 159): "O homem original não foi um ser simiesco, quase incapaz de falar e de se manter em pé. Foi um ser quase imaterial, encerrado numa aura ainda celeste, mas colocada na terra, e que se parecia à 'carroça de fogo' de Elias e à nuvem que envolveu a Cristo em sua ascensão."

Enquanto respire um único ser vivo,
onde quer que ele esteja,
aí, compadecido,
o Buda aparecerá,
encarnado.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).