segunda-feira, 28 de maio de 2012

Carlos Drummond de Andrade (A Menininha e o Gerente)


        - Não, paizinho, não! Quero ir com você!

        - Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não  é  próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me  esperando aqui.

        - Não, não!- a garotinha soluçava. Agarrou-se a  calça  do  pai como quem se agarra a uma prancha no mar. Ele insistia:

        - Que bobagem, uma  menina  de  sua  idade  fazendo  um  papelão desses.

        - Você não volta!

        - Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

        Prometendo, ele passeava  o  olhar  pela  rua,  impaciente.  Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante  da  papelaria.  O  gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:

        - Faz-me o obséquio de tomar conta de  minha  filha  por  alguns instantes? Vou a um lugar desagradável, não posso levá-la comigo.

        - Mas...

        - Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, bem?

        E sumiu. A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.

        - Vem cá.

        Ela não se mexeu.

        - Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene?

        Como  não  respondesse,  o  gerente  foi  desfiando  nomes,  sem esperança de acertar. Mas ao dizer "Estela",  a  cabecinha  moveu-se, confirmando.

        - Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?

        Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada.

        Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o  gerente  mostrava-lhe  a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200 cruzeiros.

        - Olha um gatinho. Ele mora aqui?

        - Mora.

        - E que é que ele come?

        - Papel.

        - Mentiroso!

        - Então pergunte a ele.

        O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a  dormir,  desta  vez nos braços de Estela.

        O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze  minutos,  o homem não aparecia. "Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?"

        Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível.  Já  pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:

        - Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada  para  me mostrar?

        Ele abarcou com a vista a loja  toda  e  sentiu-a  mal  sortida, pobre. "Eu devia ter aberto uma loja de  brinquedos,  pelo  menos  um bazar." Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E  o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava de um lado  para  outro, dona do negócio. Ele, inquieto.

        - Não mexa nas gavetas, filhinha.

        - Não sou sua filhinha.

        - Desculpe.

        - Desculpo se você deixar eu abrir.

        - Então deixo.

        Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal.  E  ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e  o  homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as  filas  de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.

        Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo  tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu.

        "Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás a cara dele  era de calhorda. Ainda bem que me escolheu." Levaria  Estela  para  casa,  a mulher  não  ia  estranhar,  fariam  dela  uma  filha -  a  filha   que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru. E  se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega sua filha a um estranho,  diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta,  merece  ter filha?

        O empregado arniava a cortina de aço quando  apareceram  duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.

        - Dá licença? Demorei mais do que  pensava,  desculpe.  Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha.

        O gerente virou o rosto, para não ver,  mas  chegou  até  ele  a despedida de Estela:

        - Até-logo, homem do balão!

        E a filha ficou mais longe ainda, no Peru.

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 3. SP: Ed. Ática, 1978.

Casa do Poeta de Canoas (Lançamento da V Coletânea)



CASA DO POETA DE CANOAS
Fones: (51) 3465.5837 - 9677.0157 - 8566.2463
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domingo, 27 de maio de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 561)


Uma Trova de Ademar 

O inverno transforma vidas 
e põe um verde lençol 
para cobrir as feridas 
das queimaduras do sol... 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional 

Desculpe, Amor, se me atraso 
na volta ao lar... Acontece 
que eu me perco, olhando o ocaso, 
enquanto o sol adormece!!! 
–MARIA MADALENA FERREIRA/RJ– 

Uma Trova Potiguar 

No instante em que o sol enfada 
de tanto aquecer a terra, 
deita a cabeça dourada 
no travesseiro da terra. 
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN– 

Uma Trova Premiada 

2006 > Balneário Camboriú/SC 
Tema > LUA > M/H 

Num arroubo apaixonado,
antes que a lua desponte,
o sol pinta de dourado
as paredes do horizonte...
–IZO GOLDMAN/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram 

Entre o homem e a natureza, 
há contrastes sem medida: 
o pôr-do-sol – que beleza! 
Que tristeza o pôr-da-vida... 
–COLBERT RANGEL COELHO/MG– 

Uma Poesia 

Quando é noite, a lua cheia
vem surgindo no horizonte,
e logo depois que o sol 
se deita por trás do monte,
envolto nessa penumbra,
a minha alma se deslumbra
bebendo versos na fonte. 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Soneto do Dia 

Nós 
–GUILHERME DE ALMEIDA/SP– 

Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...

E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
–" Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"

E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...

E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos... 

sábado, 26 de maio de 2012

Carlos Drummond de Andrade (Edifício Esplendor)


I

Na areia da praia
Oscar risca o projeto.
Salta o edifício
da areia da praia

No cimento, nem traço
da pena dos homens.
As famílias se fecham
em células estanques.

O elevador sem ternura
expele, absorve
num ranger monótono
substância humana.

Entretanto há muito
se acabaram os homens
ficaram apenas 
tristes moradores.

II

A vida secreta da chave.
Os corpos se unem e
bruscamente se separam.

O copo de uísque  e o blue
destilam ópios de emergência.
Há um retrato na parede,
um espinho no coração
uma fruta sobre  o piano
e um vento marítimo com cheiro 
de peixe, tristeza, viagens...
Era bom amar, desamar,
morder, uivar, desesperar
era bom mentir e sofrer
Que importa a chuva no mar?
a chuva no mundo? o fogo?
Os pés andando, que importa?
Os móveis riam, vinha a noite,
o mundo murchava e brotava
a cada espiral de abraço.

E vinha mesmo, sub-reptício,
em momentos de carne lassa,
certo remorso de Goiás.
Goiás, a extinta pureza...

O retrato cofiava o bigode.

III

Oh que saudades não tenho
de minha casa paterna.
Era lenta, calma, branca,
tinha vastos corredores
e nas suas trintas portas
trinta crioulas sorrindo,
talvez nuas, não me lembro.

E tinha também fantasmas,
mortos sem extrema-unção,
anjos da guarda, bodoques
e grandes tachos de doce
e grandes cismas de amor,
como depois descobrimos.

Chora, retrato, chora.
Vai crescer a tua barba
neste medonho edifício
de onde surge tua infância
como um copo de veneno.

IV

As complicadas instalações do gás,
úteis para suicídio,
o terraço onde as camisas tremem,
também convite à morte,
o pavor do caixão
em pé  no elevador,
O estupendo banheiro
de mil cores árabes,
onde o corpo esmorece
na lascívia frouxa
da dissolução prévia.
Ah, o corpo, meu corpo,
que será do corpo?
Meu único corpo,
aquele que eu fiz
de leite, de ar,
de água, de carne,
que eu vesti de negro,
de branco, de bege,
cobri com chapéu,
calcei com borracha,
cerquei de defesas,
embalei, tratei?
Meu coitado corpo
tão desamparado
entre nuvens, ventos,
neste aéreo living!

V

Os tapetes envelheciam
pisados por outros pés.

Do cassino subiam músicas
e até o rumor de fichas.

Nas cortinas, de madrugada,
a brisa pousava. Doce.

A vida jogada fora
voltava pelas janelas.

Meu pai, meu avô, Alberto...
Todos os mortos presentes.

Já não acendem a luz
com suas mãos entrevadas.

Fumar ou beber: proibido
Os mortos olham e calam-se.

O retrato descoloria-se,
era superfície neutra.

As dívidas amontoavam-se.
A chuva caiu vinte anos.

Surgiram costumes loucos
e mesmo outros sentimentos.

Que século, meu Deus! Diziam os ratos.
E começavam a roer o edifício.

Hermoclydes S. Franco (Trovas Premiadas em São Paulo)

Selo Pavilhão do Trovador Hermoclydes S. Franco
PAZ/1987             

O meu sonho é folha morta
                                     Que a ventania desfaz,
                                     No inverno, que desconforta,
                                     Das minhas noites sem paz!...

PORTO/1990        

Sou como um velho veleiro,
                                     Velas rotas, mastro torto,
                                     Que um destino aventureiro
                                     Não deixa parar no porto!...

MAR/1995            

Galera envolta em espumas,
                                      Navega a lua, no céu,
                                      Num mar de nuvens e brumas,
                                      Pescando estrelas ao léu!...

IDADE/1996         

O grau de felicidade
                                      Que tenho e me faz risonho,
                                      Resulta da minha idade
                                      Ter a idade do meu sonho!

SANTO/1996        

Não há na História senão
                                       Um poder discricionário
                                       Que prende quem rouba um pão
                                       E leva um santo ao Calvário!...

DÚVIDA/1998      

Vacila o meu coração,
                                       Na dúvida mais intensa,
                                       Entre seguir a razão
                                       Ou fazer o que êle pensa...

UM RÍTMO MUSICAL NA TROVA/1999

Um samba juntou-se, um dia,
A uma valsa de emoção...
Dessa união nasceria
O som do samba-canção!...         

CICATRIZ/2003      

O que dói em meu desgosto,
                                       Que me rouba a paz e a calma,
                                       Não são as marcas no rosto,
                                       São as cicatrizes na alma!...


PRATA/2003             

Das emoções a mais grata,
                                     Que vale por um tesouro,
                                     É ver coroada em prata
                                     Trajetória escrita em ouro!...

TRABALHO/2004     

Com talhadeira e martelo,
                                      Finas madeiras entalho...
                                      E esse trabalho é tão belo
                                      Que já nem sei se é trabalho!...

VIDA/2006          

Na vida, eterna procura,
                                     Buscando a felicidade.
                                     Faltou-me, sempre, em ventura
                                     O que sobrou em saudade! ...

FESTA/2008       

Dupla festa preconizo
                                     Para as noites de luar:
                                     A festa do teu sorriso.
                                     Na festa do meu olhar!...

FEITIÇO/2010    

Noel, em tarde tranqüila,
                                      Compondo um samba sutil,
                                      Fez o “Feitiço da Vila”
                                      Enfeitiçar o Brasil!...

SAL / 2011         

Numa paixão imortal,
                                      Minhas tristezas eu venço,
                                      Beijando o sabor de sal
                                      Que deixaste no meu lenço!...

ROMANCE/2011 

Do antigo romance, instável,
                                      A minha lembrança traz
                                      Um número inumerável
                                      De calmas noites sem paz!...

PRANTO/2011   

No pranto em forma de riso,
                                      Disfarcei a minha dor...
                                      Mesmo à sombra de um sorriso,
                                      Cabe o ocaso de um amor!...


Fonte:
O autor

A. A. de Assis (Os Divulgadores da Trova)


Eles se lembram de todos, embora nem todos se lembram deles. 

Este espaço tem sido tradicionalmente utilizado para homenagear trovadores e trovadoras que se destacam não somente pela qualidade de sua produção literária, mas também pelo entusiasmo com que colaboram para o brilho e a expansão do movimento trovadoresco. 

Hoje, porém, queremos prestar uma homenagem diferente: não apenas a um determinado trovador, mas coletivamente a todos aqueles que, de muitas formas, ajudam a divulgar a trova por este mundo afora. Sem eles, de pouco adiantaria a gente criar belos versos. 

A trova só se realiza de fato a partir do momento em que ela chega ao leitor ou ouvinte e neles produz o efeito pretendido pelo autor. 

Através dos tradicionais boletins da UBT ou de outras publicações individuais promovidas por meio de sites, blogs, colunas de jornais e revistas, programas de rádio e televisão etc, dezenas de irmãos nossos aplicam boa parte do seu tempo pesquisando fontes várias a fim de colher o material a ser divulgado. A esses incansáveis apóstolos da trova todos nós devemos muito. 

Deveríamos, portanto, no mínimo, enviar de vez em quando para eles uma palavrinha de incentivo, um “oi” agradecendo a divulgação de nossas trovas, enfim um sinal de apreciação pelo generoso trabalho que realizam. (aaa)"

Fonte:
Mifori 

Lino Mendes (Praça da Poesia) Moda de "saias"


Muitos saberão que a moda de “saias”, que são cantadas e bailadas ou só cantadas, com ou sem acompanhamento musical, são essencialmente cantadas a despique, entre homem e mulher ou entre mulheres, podendo eventualmente entrar na liça outro homem se em jogo está a conquista dessa mulher.

Ora, em 2004,solicitamos a um grupo de amigos que para o efeito  fizessem algumas “quadras”. E aqui deixamos algumas das que nos foram enviadas:

FERNANDO MÁXIMO (Avis)

Ela: 
Quando chegas sobe o sol ,
           quando te vais desce  a lua;
           se tu foras um lençol 
           eu dormia toda nua

Ele:     
Mas se eu fosse um lençol 
           branquinho como a geada, 
           tu,  sem teres um cachecol
           morrias   toda gelada

JOSÉ DA SILVA MÁXIMO (Santo Antº Areias)

             Ele:     
Menina que tens o curso
           responde ao fim e ao cabo:
           quantos pelos tem o urso
           sem contar com os do rabo

Ela:        
Os pelos que um urso tem
             estou certa e não me iludo:
             os mesmos que tu, também,
incluindo o rabo e tudo!

M. ROSA VICENTE BARRABÉ (Tramagal)

Ele:       
Contigo hei-de casar,
             preciso de cozinheira;
             ainda hei-de ser teu par,
             ser teu dono a vida a inteira

Ela:      
Lamento dizer que não ,
            faço-o de forma singela,
            sou bicho de estimação
            mas não sou de andar à trela

 GABRIEL RAMINHOS   (Reguengo da Monsaraz)

Ele:      
Minha linda alentejana,
            moreninha de encantar,
            meu coração não se engana…
          -eu só vivo pra te amar!

Ela:       
Deixa-te de brincadeiras; 
           de falar com fingimento. 
            Dizes gostar de trigueiras…
            Palavras leva-as o vento!

HIPÓLITA M.CHARNECA CARRIÇO (Évora)

Ele:      
Ó que menina tão linda 
            que me despertou paixão,
            posso ter esperança ainda 
            de me dares teu coração?

Ela:      
Meu coração já o dei ,
            já chegaste atrasado,
            infiel não serei,
            vai cantar pra outro lado

  MARIA ALBERTINA DORDIO  (Portalegre)

 Ele      
Uns vivem na abastança
             e outros pobres de mais; 
            para quê tanta riqueza, 
            se os homens são iguais?

  Ela      
Se os homens são iguais,
            têm igual merecer. 
            O que têm uns a mais, 
            falta a outros pra viver

FRANCISCO MATOS SERRA (Cabeço de Vide)

 Ele          
Sempre aqui encontrarás,
                se vieres a Montargil,
                muito amor justiça e paz
                num sonho feito de Abril.

Ela   
             Muito sincero e subtil…
Montargil sempre me apraz…
                 Aqui…o povo é gentil,
                 e, Abril não volta atrás.

 CELESTE M. DA SILVA AVÓ CHARNECA  (S. Miguel de Machede)

 Ele         
Vestidinho de chita verde, 
               nesta função se estreou,
               está bonito e bem talhado,
               minha bolsa é que o pagou.

Ela          
    Tua bolsa é que o pagou,
e já remédio não tem;
              tu deste-mo e eu aceitei,
               Deus pague a quem faz bem. 

Fonte:
Lino Mendes

Folclore Brasileiro (O Papagaio Real)


Duas moças moravam juntas e eram irmãs, uma muito boa e outra maldizente e preguiçosa. Cada uma tinha seu quarto. A mais velha começou a notar um barulho de asa e depois fala de homem no quarto da irmã. Ficou desconfiada e foi olhar pelo buraco da fechadura. Viu uma bacia cheia d'água no meio do quarto. Quando deu meia-noite chegou na janela um papagaio enorme, muito bonito e voou para dentro, metendo-se na bacia, sacudindo-se todo, espalhando água para todos os lados. Cada gota d'água virava ouro, e o papagaio, quando saiu do banho, foi um príncipe mais formoso do mundo. Sentou-se ao lado da irmã e pegaram a conversar animados como noivos.

A irmã ficou roxa de inveja. No outro dia, de tarde, encheu o peitoril da janela de cacos de vidro, assim como a bacia. Nas horas da noite o papagaio chegou e, batendo no peitoril, cortou-se todo. Voou para a bacia e cortou-se ainda mais. Arrastando-se, o papagaio não virou príncipe, mas chegou até a janela e disse para a moça, que estava assombrada com o que sucedera:

— Ai, ingrata! Dobraste-me os encantos! Se me quiseres ver, só no reino de Acelóis.

E, batendo asas, desapareceu. A moça quase se acaba de chorar e de se lastimar. Brigou muito com a irmã e deixou a casa, procurando o noivo pelo mundo. Ia andando, empregando-se como criada nas casas só para perguntar onde ficava o reino de Acelóis. Ninguém sabia ensinar e a moça ia ficando desanimada.

Uma noite, depois de muito viajar, já cansada, ficou com medo dos animais ferozes e subiu em uma árvore, escondendo-se bem nas folhas. Estava amoquecada quando diversos bichos esquisitos chegaram para baixo do pé de pau e pegaram a conversar.

— De onde chegou você?

— Do reino da Lua!

— E você?

— O reino do Sol!

— E você?

— Do reino dos Ventos!

A moça prestou atenção. No primeiro cantar dos galos sumiram-se todos, e ela desceu e continuou a marcha. Andou, andou, até que chegou noutra mata e, para não ser devorada, trepou numa árvore. Lá em cima, quando a noite ficou bem fechada, chegaram umas vozes no pé do pau.

— De onde veio?

— Do reino da Estrela!

— De onde veio?

Do reino de Acelóis!

— Que novidades me traz?

— O príncipe está doente e ninguém sabe como tratar dele...

A moça botou reparo e na madrugada seguiu no mesmo rumo pois as vozes já tratavam do reino de Acelóis. Andou, andou, andou. Finalmente, quando anoiteceu, estava dentro de uma floresta. Subiu em um pau e ficou quieta, lá em cima. Mais tarde as vozes começaram na falaria:

— De onde vem você?

— Do reino de Acelóis!

— Como vai o príncipe?

— Vai mal, coitado, não tem remédio!

— Ora não tem! Tem! O remédio é ele beber três gotas de sangue do dedo mindinho de uma moça donzela que queria morrer por ele!

Quando amanheceu o dia, a moça tocou-se na estrada. Ia o sol se sumindo quando ela avistou o reinado de Acelóis. Entrou no reinado e pediu agasalho numa casa. Na hora da ceia perguntou o que havia e disseram que o assunto da terra era a doença do príncipe. A moça, no outro dia, mudou os trajes, foi ao palácio e pediu para falar com o rei.

— Rei Senhor! Atrevo-me a dizer que ponho o príncipe bonzinho se Rei Senhor me der, de tinta e papel, a metade do reinado e de tudo quanto lhe pertencer.

O rei deu, de tinta e papel, a metade de tudo que possuía. A moça foi para o quarto, meiou um copo d'água, furou o dedo mindinho, botou três gotas de sangue dentro, misturou e mandou ele beber. Assim que o príncipe engoliu, foi abrindo os olhos, levantando-se da cama e abraçando a moça, numa alegria por demais.

O rei ficou muito satisfeito e quando o príncipe disse que aquela era a sua verdadeira noiva desde o tempo em que ele estava encantado em um papagaio real, o rei não quis dar consentimento porque a moça não era princesa. A moça então falou:

— Rei Senhor! Tenho por tinta e papel a metade de tudo quanto é do rei senhor neste reinado. O príncipe é do rei senhor e eu tenho por minha a metade dele. Se rei senhor não quiser que eu case com ele inteiro, levarei para casa uma banda.

Ao ouvir falar em cortar o príncipe pelo meio, como a um porco, o rei chegou-se às boas e deu o consentimento. Foram três dias de festas e danças e até eu me meti no meio, trazendo uma latinha de doce, mas na ladeira do Encontrão, dei uma queda e ela, pafo! —no chão!...

Nota

É o Mt. 432 de Aarne-Thompson, The Prince as Bird. Os elementos, constantes da versão, são idênticos aos do resumo de Antti Aarne: — O príncipe com forma de pássaro voa para sua linda noiva, D 641.1; transformando-se, em sua presença, em homem, D 621, D 150; uma irmã cruel, S 31, coloca vidros, espinhos, facas e navalhas, na janela por onde o pássaro entrará, S 181; a moça segue seu noivo, H 1385.5, ouve casualmente vozes misteriosas (animais e feiticeiras), N 452; aprendendo o segredo do tratamento do noivo, tomando o caminho certo, tratando-o e curando-o. Aarne diz esse conto popular na Finlândia, Lapônia, Dinamarca, Noruega, Suécia, Sicília, Rússia, Grécia. Teófilo Braga registra uma versão do Algarve. A paraboinha de ouro, nº 31, idêntica em toda primeira parte; Adolfo Coelho traz uma variante de Ourilhe, Celorico de Basto, O príncipe das palmas verdes. uma versão do Chile, chamo-o El Príncipe Jalma. A versão brasileira de Sílvio Romero é O papagaio de limo verde. Versão no Pentamerone, II, 2. (1634)

(Cascudo, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986 (Reconquista do Brasil, 2ª série, 96)

Fonte:

Sarah de Oliveira Passarella (Maria Onete)


Sarah é de Campinas/SP
4o Lugar no Concurso de Poesias Carlos Cezar
Ilustração por Kathy Hare

Hoje eu quero mudar.
 Quero cortar os fios sutis
 que prendem-me os braços e as pernas.
 Não quero mais dançar
 no palco da vida, movendo-me
 conduzida por alheias mãos,
 levada por coloridos cordões.
 Não quero mais seguir a marcação dos gestos
 que levam-me em direção ambígua.
 Não quero mais ser fantoche,
 boneca vestida para encenar,
 marionete suspensa no palco da existência.

 Quero liberdade, andar com minhas próprias pernas.
 Limpar gavetas, queimar cartas antigas.
 Tirar o véu que cobre-me o rosto,
 olhar de frente o horizonte.
 Lançar fora, mandar embora
 o supérfluo, as mentiras, as metáforas.
 Com mãos frementes busco metas,
 desvio-me do vazio.
 Liberto-me dos conceitos, dos pré-conceitos
 do passado, arremessando-os aos léu.
 Rompo as gavinhas presas e expostas
 desarraigando as nódoas, as marcas n'alma,
 aquietando as emoções, as angústias,
 grito o grito bravio da liberdade.
 Quero andar só por caminhos que me competem.
 Não quero mais ser "Maria Onete"!

Fonte:
http://caeseubt.blogspot.com.br/