quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Isabel Fontoura (Penhascos)


 Sou um ancião e sempre vivi na Chapada Diamantina, alojado entre grutas milenares que tremeram com a passagem da Coluna Prestes e com os tiros de Lampião. Sei das riquezas que estas cavernas escondem e das lendas que criam vida no ouvido das crianças.

 Garimpeiro de muitas lavras, sonhava encontrar diamantes e uma gema tão sólida que eternizasse a minha história. Lendas de um homem que encontrou a prisão e a alforria junto às pedras preciosas.

 Trabalhava dia após dia no garimpo para um coronel da região. Era parte do ofício envenenar os rios e matar os peixes em uma guerra de peneiras e dragas no ventre da terra, contudo, entre mercúrio, marte e a morte encontrava apenas cascalhos. O patrão ficava furioso e me castigava por achar que estava sendo roubado, não queria acreditar que naquela fazenda nada havia de valioso.

 Uma noite, enquanto dormia, a Santa veio me visitar, desde que me tornei órfão, ainda pequeno, escolhi Nossa Senhora como minha madrinha, e ela me mostrava uma gruta iluminada à beira de um precipício, uma trajetória para os diamantes.

 Lavrei com vigor, o sonho não me deixava, larguei minha peneira e subi córrego acima, andei umas duas léguas beirando o rio, nenhum capataz reparou e deparei-me com um penhasco, desci escorregando entre pedras e lamas até chegar ao começo da lapa. A entrada era sombria, o cheiro entorpecia-me, um bando de aves das cavernas esvoaçou sem me tocar, o medo assolou-me, nunca ouvira falar naquela gruta, todavia eu precisava desvendar aquele recanto de sombra e rochedo.

 Um veio de água corria pelo lajedo; e, em meio à frieza do córrego, insetos cegos, embranquecidos pela noite incessante da caverna, fugiam dos meus passos. Nas paredes, desenhos de homens que viveram sob o manto de pedra e deixaram o registro no seio da gruta. A passagem era muito estreita, o ar parecia escapulir do meu corpo, apertava as mãos, os dentes travavam de frio, enquanto minhas pernas cambaleantes alcançaram uma senda que cintilava no subsolo, e; em meio à escuridão, uma claridade nunca vista ardeu-me os olhos.

 O sonho materializou-se, havia opalas, águas-marinhas, ametistas. Muitas pepitas de ouro. Apanhei o máximo que pude e, ao sair, ouvi tiros: Cães, cavalos e capangas do coronel estavam a minha caça. Voltei à gruta e permaneci lá por muitas luas, alimentando-me de traíra crua e preás, devorei uma serpente que guizou em meus pés. Bebi água do rio que envenenara e sonhei com muitas lapas iguais a esta. Não queria mais sair: recluso no meu castelo de pedras, marajá com temor dos homens e das suas armas, cercado dos tesouros da mina de Nossa Senhora. Só e sozinho no calabouço, estava feliz.

 A lapa, no entanto, enojou-se de mim, e a terra tremeu, fugi tropeçando nas estalagmites milenares construídas no gota a gota do suor do tempo. A gruta ficava cada vez mais escura e as pedras desabavam nas minhas costas, devo ter corrido muito, era zanga de Nossa Senhora, decepcionada com seu afilhado, e receio muito a fúria das mulheres. Na fuga, perdi as pedras que abraçava ao peito e, por mais medo da pobreza que da morte, engoli os diamantes que tinha no bolso. Avistei uma luz intensa ao final de um túnel comprido. Era a luminosidade do dia, o sol, a saída da cratera.

 Embrutecido pelas pedras, desvalido pelo homem. Despertei no corredor de um hospital: tísico, demitido, homem sem saúde não serve para lida. Disseram que eu estava ali há alguns dias, falando frases soltas delirando de febre e clamando por Maria.

 Convalescente, lavrei entre meus dejetos pedras brilhosas: eram diamantes, que se dissiparam aos ventos de aguardentes e bordéis, consegui apenas após duas décadas arrematar a fazenda do coronel, terras estas onde conheci a escassez e a fartura, o retiro e o encantamento. Subterrâneos. Alqueires onde selei minha sina de garimpeiro de lavras do desconhecido.

 Hoje solto ecos nos penhascos, procuro a gruta de tesouro e de água envenenada que entre a rocha, a escuridão e a vida conduzirá meu caminho por trilhas sinuosas para escavar, naquela mina, um diamante de muitos quilates, lapidado pela engenhosidade do tempo. Pedra cintilante que contará a história de um velho garimpeiro, cego e sedento pelo brilho dos minerais, então descansarei naquele jazigo de jazidas, refúgio final de um peregrino.
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Sobre a autora
Isabel Fontoura tem 37 anos, é médica e escritora, membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, regional Bahia. Participou de antologia com outros médicos baianos e publicou sozinha um livro de contos, "Penhascos", que foi premiado no VII Concurso Literário do Banco Capital e do qual extraímos o texto ao lado, que foi publicado pela EPP Publicidade em 2008.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_ifontoura_penhascos.asp

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Manuel Bandeira (O Último Poema)

Fonte:
Imagem com poema obtida no blog de Sylvia Moreti http://sylviamoreti.blogspot.com

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas n. 157 - janeiro de 2013)





Quanto mais por ti eu peno,
mais gosto eu tenho em penar.
– O mundo inteiro é pequeno
para a glória te amar!
Colombina

Entender não há quem possa
a mulher, sempre ladina:
menina – já quer ser moça;
já velha – quer ser menina,
Félix Aires

Com que ironia o destino
pode este quadro pintar:
de um lado, um lar sem menino;
de outro, um menino sem lar.
Hegel Pontes

A vida é dura batalha
que não aceita um “talvez”
e nem outorga medalha
aos filhos da timidez!
Hermoclydes Franco

Chora o vento lá por fora...
Chora a chuva e vão-se as águas.
O coração também chora,
mas nunca se vão as mágoas.
José Fernandes

Vivo tanto a tua vida
na vida do sonho meu,
que até me sinto esquecida
da vida que Deus me deu.
Lilinha Fernandes


Tão ciumenta é a mulherzinha
que ele só passa, coitado,
pela casa da vizinha,
correndo e de olho fechado!
Carolina Ramos – SP

Não zombe de minoria
ao fazer trovas de humor;
como sogra é maioria,
use e abuse, sem pudor!
Eliana Jimenez – SC

Na briga que o meu cabelo
e a careca estão travando,
lamento ter que dizê-lo:
a careca está ganhando...
Izo Goldman – SP

Chega da farra na boa,
como quem acha que pode.
No escuro, beija a “patroa”...
sente na boca um bigode...
Jaime Pina da Silveira – SP

Conduzindo arma sem porte,
foi detido o valentão,
que da praia, por esporte,
vinha abraçando um “canhão”...
Nilton Manoel – SP

Caloteiro e bem sacana,
não tem vergonha na cara,
e, até quando paga em grana,
cola um papel de "BOM PARA..."
Sérgio Ferreira da Silva – SP

“Pescar, pra mim, é mania
e é estranho que a esposa deixe!...”
Ele vai pra pescaria
e ela vai “vender seu peixe”.
Therezinha Brisolla – SP

− Suspende a cachaça ou morre!
– Com humor, Zé, no boteco,
agora só toma porre
suspendendo seu caneco!
Wanda Mourthé – MG


Vereis nos próximos anos
a decisiva corrida:
– Cuidam do mundo os humanos,
ou cessa no mundo a vida!
A. A. de Assis – PR

Eu sinto a brisa do vento
como se fosse magia,
soprando em meu pensamento
os versos que Deus me envia...
Ademar Macedo – RN

Cultiva o amor tal qual fosse
plantinha bem delicada,
e terás lembrança doce
do teu amado ou da amada.
Benedita Azevedo – RJ

Julguei-o frio, entretanto
um soluço o denunciou;
abracei aquele pranto
que o homem forte chorou.
Cida Vilhena – PB

Quem leva a vida no amor,
dos sonhos nunca se cansa,
que o mundo só perde a cor
quando se perde a esperança.
Dáguima Verônica – MG

Beijo nas faces, carícias,
como tantas, inocentes,
mas abraços são primícias
dos desejos mais ardentes
Diamantino Ferreira – RJ

Mais uma noite se passa
numa caçada de amor...
Nem foi o dia da caça,
nem do pobre caçador.
Djalma da Mota – RN

Perco todos os cansaços
e minha angústia tem fim,
ao doce som dos teus passos
no cascalho do jardim...
Domitilla B. Beltrame – SP

Deste contraste da vida
à evidência eu não me furto:
– é uma história tão comprida...
– é um epílogo tão curto...
Dorothy Jansson Moretti – SP

A paixão se descontrola
e a saudade em mim se inflama
quando encontro a camisola
sem ela... na minha cama!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Arruaça sempre grande:
jogo, bebidas, e orgia...
Quanto mais o vício expande,
mais a alma se esvazia!
Eliana Palma – PR

Este amor, mal necessário,
que a insensatez fez surgir,
é o erro mais arbitrário
que eu não quero corrigir!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Este orgulho que carregas,
insano, dentro do peito,
foge, tão logo te entregas
de corpo e alma em meu leito.
Ester Figueiredo – RJ

Eu passo a vida embalando
lembranças da mocidade,
e tristonho vou cantando
pra não morrer de saudade.
Francisco Garcia – RN

A trova faz tanto bem,
dá-nos prazer tão profundo,
que quem a cultiva tem
amigos em todo o mundo!
Gisela Sinfónio – Portugal

Nunca mais fiquei sozinha, 
pois na Internet eu namoro, 
e hoje a solidão que eu tinha 
não mora mais onde eu moro! 
Gislaine Canales – SC

Eu não contei tuas idas
nem minhas voltas confesso...
O que marcou nossas vidas
foi nosso eterno regresso!
Héron Patrício – SP

Lembra a lágrima um gemido
de ternura e redenção,
que não chega ao nosso ouvido,
mas comove o coração.
Humberto Del Maestro – ES

O bilro, velho instrumento,
que entrelaçou tantas rendas,
tece, agora, num momento,
as rimas de minhas lendas.
Ieda Lima – RN

Velhos sonhos, na lembrança,
vou mantendo em meu viver,
e nunca perco a esperança
de que vão acontecer!
Istela Marina – PR

Acordei (tinhas partido)
e me deixaste na estrada:
um pobre arbusto perdido
sem luz, sem pranto, sem nada...
Janske Schlenker – PR

Povo sofre, fica inerte
– ah que triste decepção! –
quando um líder se perverte,
envergonhando a nação.
Jeanette de Cnop – PR

Galgo nuvens montanhosas,
sou na vida um alpinista;
mesmo em trilhas perigosas,
busco os sonhos da conquista.
Jessé Nascimento – RJ

Música na madrugada, 
chovia em meu coração, 
ao saber que minha amada 
perdeu-se numa canção…
José Feldman – PR

Nada de dor nem de tédio,
sinto quase a juventude:
Ontem, comprando remédio;
hoje, vendendo saúde!
José Lucas de Barros - RN

Quem nesta vida não ama
na outra não pode amar,
pois do amor não leva a chama
que aqui deixou apagar.
José Maria Mangia – RJ

A trova, quando termina
em perfeita construção,
é uma casa pequenina,
com requintes de mansão!
José Messias Braz – MG

A cada novo empecilho,
seja audaz, perseverante.
A cruz mais pesada, filho,
alguém já levou adiante.
José Ouverney - SP

Partiu, deixando o seu traço
no meu caminho dos sós…
– A saudade é esse espaço
que existe sempre entre nós.
José Valdez – SP

E no princípio era o verso...
mas Deus, que tudo renova,
iluminou o universo,
formando a estrofe da trova!
Luiz Antônio Cardoso – SP

Se navegar é preciso
e viver nem tanto assim,
vou partir com teu sorriso, 
em busca do mar sem fim!
Luiz Carlos Abritta – MG

Falhei nesta vida minha,
ao querer ser o teu rei
pois tu já eras rainha,
e escravo teu me tornei.
Luiz Hélio Friedrich – PR

Vem na natureza, em cota
o dom de ser escritor...
Muitas vezes ninguém nota,
e o texto está numa flor!
Maria da Graça Stinglin – PR 

Não encontro, amor, o jeito
de lhe dizer que me encanta...
porque a frase sai do peito,
mas não passa na garganta!
Maria Nascimento – RJ

As marcas do teu batom
deixadas no meu cristal,
têm sabor e tem o tom
de um grande amor, no final...
Maurício Friedrich – PR

É de candeia em candeia
que clareio meus caminhos;
tanta luz só me norteia
para encontrar teus carinhos.
Messody Benoliel – RJ

Apesar de tantas portas
se fecharem para ti,
Deus até por vias tortas,
te contempla e te sorri.
Mifori – SP

Como parte desta vida,
ante a angústia do momento,
nosso pranto é a dolorida
expressão do sofrimento
Nei Garcez – PR

Se o nosso amor é pecado,
escondo-o lá nos refolhos...
e só me mande recado
pelas meninas dos olhos!
Newton Vieira – MG

Na roça em trabalho duro
aos filhos sonhou bem mais…
- Pra colher melhor futuro
plantou livros e jornais!
Olga Agulhon – PR

Com olhares tu fizeste
do coração uma cela,
e com teus beijos puseste
meu coração dentro dela.
Olympio Coutinho – MG

Em meus refúgios tristonhos,
passo o tempo a prantear
pelos segredos e sonhos
que não tive a quem contar!...
Paulo Roberto da Silva – RN

Passo as noites sempre em claro
contra esta insônia a lutar,
mas meu maior desamparo
é não ter com quem sonhar.
Renato Alves – RJ

Sempre tenho um ar risonho,
é de alegria o meu manto!
só nas trovas que eu componho
tento traduzir meu pranto!
Roza de Oliveira – PR


Quem dera se a vida fosse
mais simples de ser vivida:
nem todo regresso é doce,
nem sempre é amarga a partida...
Selma Patti Spinelli – SP

Amigos são todos eles
como aves de arribação:
se faz bom tempo, eles vêm...
Se faz mau tempo, eles vão...
Soares da Cunha – MG

Um alguém na multidão
anda com ar de desgosto
ao perceber a ilusão
que reside em cada rosto!...
Sônia Ditzel Martelo – PR

A árvore cai vencida,
cai vencida sem um gesto,
sem um gesto perde a vida,
perde a vida sem protesto.
Sônia Sobreira – RJ

Faça da vida uma troça
enquanto os males espreitam.
É nos trancos da carroça
que as abóboras se ajeitam.
Thalma Tavares – SP

Mulher, em sua contenda,
sempre tem o desafio
de tecer a linda renda,
desatando os nós do fio...
Vanda Alves – PR

Ao voltar do burburinho
da rua – a humana agressão,
a meiguice de um cãozinho
vem receber-me ao portão.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Amor, um santo remédio,
que revitaliza e cura.
Nos livra de qualquer tédio,
também nos leva à loucura.
Vânia Ennes – PR

Manoel Fernandes Menendes (Sete Notas Tem a Trova)


Ouço, freqüentemente, as pessoas que assistem aos nossos Jogos Florais, e que gostariam de participar, uma pergunta: 

– Como se aprende a fazer trova? 

Queixam-se, essas pessoas, de que os manuais de versificação ou, mesmo, os decálogos divulgados pela UBT, apesar de considerados excelentes, não lhes fornecem uma informação clara e precisa sobre o tema, isto é, não indicam, desde logo, um meio prático e rápido de compor, com segurança e acerto, a quadra setessilábica consagrada entre nós com o nome de “trova”, objeto de nossos concursos. 

Procurarei, neste breve espaço, resumir, a pedido do Presidente Milton Nunes Loureiro, a palestra que, sobre essa questão e com o título “A Música e a Poesia”, tenho feito, em diversas oportunidades e lugares, para facilitar a tarefa dos trovadores aprendizes. 

Dizem alguns antropólogos que o ser humano, antes de falar, cantou. Que a palavra primitiva – imitação das vozes e dos sons da natureza – era cantada. Verdade ou não, certo é que, desde remotas eras, em cerimônias religiosas ou manifestações políticas ou festas propiciatórias, a música andou de mãos dadas com a poesia, não raro também acompanhada da dança. Recordem-se, aqui, as odes líricas gregas, os salmos de Davi, os cantos heróicos de Homero, para citar apenas esses. Com o tempo, a poesia passou a ser simplesmente recitada – lida ou falada. Mas guardou indeléveis sinais de sua origem, sendo exato que a medida do verso ritmado nasceu do compasso melódico (música e dança.). Por isso, para atender ao meu propósito, sugiro um reencontro da poesia com sua velha companheira das épocas primordiais. 

Recorro, para ensejar essa reaproximação, à música popular, dela retirando exemplos que tornam acessíveis aos leigos as normas próprias do gênero literário. 

Os tratados de versificação ensinam que o verso tradicional é composto de pés ou sílabas, e que a métrica portuguesa admite os versos de uma (1) até doze (12) sílabas, alguns deles (os de 8, 9, 10, 11 e 12) com pausas obrigatórias peculiares, remanescência das velhas pausas musicais, base do ritmo. A contagem dessas sílabas é algo complicado e obedece a regras específicas. Mas, se utilizarmos o processo (que adotei) de acomodar a letra (as palavras do verso) a um molde musical preestabelecido, escolhendo uma forma para enchê-la com palavras, todas as dificuldades ficam superadas. 

Vamos à prova. 

Para modelo do verso de 12 sílabas, (o alexandrino), escolhi uma belíssima valsa de Paulo Medeyros, cantada por Sílvio Caldas: 

“Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda, 
sentindo-me feliz, sonhando-te mais linda...” 

Com essa melodia, pode-se cantar o célebre soneto de Alceu Wamosy, “Duas almas”, escrito em versos alexandrinos: 

“Ó tu, que vens de longe! ó tu, que vens cansada...” 

Ou o famoso soneto de Bilac, “Virgens Mortas”: 
“Quando uma virgem morre, uma estrela aparece...” 

Para os versos de 10 sílabas, encontramos vários moldes, que podem ser aproveitados de diversas maneiras. 

Temos o Hino Nacional Brasileiro (“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”), “A voz do violão” de Francisco Alves (“Não queiras, meu amor, saber da mágoa...”), “Chão de estrelas” de Orestes Barbosa (“Minha vida era um palco iluminado...”), o bolero “La barca” (“Dicen que la distancia es el olvido...”), por exemplo. Com qualquer desses conhecidos moldes, poderemos cantar estes conhecidos decassílabos: 

1 – “As armas e os barões assinalados...” 
(Camões) 

2 – “Sete anos de pastor, Jacó servia...” 
(Camões) 

3 – “Só a leve esperança, em toda a vida, 
disfarça a pena de viver, mais nada...” 
(Vicente de Carvalho) 

4 – “Vai-se a primeira pomba despertada...” 
(Raimundo Corrêa) 

5 – “Se a cólera que espuma, a dor que mora...” 
(Raimundo Corrêa) 

No caso do verso de sete (7) sílabas, metro obrigatório da trova, a coisa ainda fica mais simples, porque esse é o verso mais comum da Música Popular Brasileira. Os cantores de seresta sabem-no por experiência própria. Se não, vejamos: 

1 – “Fugindo da nostalgia, 
fui procurar alegria 
na ilusão de um cabaré...” 
(A mulher que ficou na taça) 

2 – “Olho a rosa na janela, 
sonho um sonho pequenino...” 
(Modinha) 

3 – “Vestida de azul e branco, 
trazendo um sorriso franco...” 
(Normalista) 

4 – “Nosso amor que eu não esqueço, 
e que teve o seu começo 
numa festa de São João...” 
(Último desejo) 

5 – “Estava à toa na vida, 
o meu amor me chamou 
pra ver a banda passar 
cantando coisas de amor...” 
(A banda) 

Para aplicar essas noções ao exercício da trova, costumo indicar três moldes, tomados à MPB, ao folclore e, até, à música popular italiana: “Peguei um Ita no Norte”, de Dorival Caymmi; “Meu limão, meu limoeiro”, canto folclórico; e “Torna a Surriento”, do cancioneiro napolitano. Uma trova corretamente feita, sem a necessidade de contarmos as sílabas pelos dedos, mas apenas com apoio num bom ouvido, ligando-se as palavras naturalmente, como na linguagem falada, encaixa-se, como numa luva, em qualquer desses moldes musicais. Querem experimentar? Comecemos pela toada de Caymmi: 

“Peguei um Ita no Norte, 
pra vir no Rio morá, 
adeus, meu pai, minha mãe, 
adeus, Belém do Pará...” 

Com a melodia dessa toada, é possível cantar estas trovas: 

1 – “Eu quis, na cara ou coroa 
saber se és minha ou do Zé 
fiquei na mesma. Esta é boa! 
O níquel caiu de pé!” 
Colbert Rangel Coelho 

2 – “Maria da Graça é uma 
cachopa de olhos em brasa 
vive sozinha, não fuma, 
e tem cinzeiros em casa!” 
Augusto Gil 

Com a melodia de “Meu limão, meu limoeiro” e de “Torna a Surriento” obtém-se o mesmo efeito: 

1 – “Meu limão, meu limoeiro, 
meu pé de jacarandá: 
Uma vez, tindô-lelê, 
outra vez, tindô-lalá...” 

2 – “Vide ‘o mare quant’è bello, 
spira tantu sentimento, 
comme tu a chi tiene mente, 
ca scetato ‘o faie sunná...” 

Penso que bastam essas explicações para demonstrar que o processo é prático e rápido. 

No início, o aprendiz pode exercitar-se com frases e palavras sem sentido, ligadas arbitrariamente, desconexas, procurando adaptá-las ao molde musical. Depois, adquirindo o hábito, os versos irão formar-se naturalmente, até pelo cotejo com as trovas de autores mais experimentados. E no meio, como diria o poeta espanhol, no meio “hay que poner talento”. Quanto a isto, não tenho dúvida: existe, por aí, de sobra.

Fonte:
Seleções em Folha. Ano 4. N.1 – janeiro 2000. São Paulo/SP

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão I)


Na semana em que se celebraram os 393 anos de fundação da  cidade, o Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante iniciou esta série especial sobre o trabalho de grandes autores que, no mundo das letras e da canção popular, homenageiam São Luís, sobretudo retratando seus espaços urbanos, que hoje tanto encantam aos turistas e visitantes. São ruas, praças, becos, escadarias, largos e ladeiras que – pelo seu caráter singular e expressivamente poético – têm sido fonte de inspiração para inúmeras obras literárias. Uma das fontes fundamentais desta pesquisa foi o livro Breve História das Ruas de São Luís, publicado em 1962 pelo escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981), por ocasião das comemorações dos 350 anos de fundação da cidade. 

O autor reconhece, nesta obra, que não é tarefa fácil recompor a fisionomia e a história das ruas de São Luís no passado. “Outrora nossas ruas tiveram nomes tão pitorescos quanto líricos, mudados depois à força para o de ilustres desconhecidos que, em sua maioria, não se sabe o que fizeram para merecer a honra de batizar um logradouro público”, afirma Domingos Vieira Filho. Como ele, a professora Magnólia Sousa Bandeira de Melo teve igual propósito e publicou, em 1990, o Índice Toponímico do Centro Histórico de São Luís, enfocando as ladeiras, os becos, as ruas estreitas e as escadarias de pedras da cidade. 

O escritor Pedro Braga, no livro A ilha afortunada, analisa a arquitetura de São Luís, com a imponência dos sobrados de pedra e cal, com sacadas de ferro batido, com portada em pedras de Lioz e com fachadas revestidas de azulejos. 

Outro estudioso importante nessa matéria é o professor Clóvis Ramos, autor de São Luís do Maranhão é Poesia, publicado pelo Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado (Sioge), em 1992, para marcar a passagem dos 380 anos de fundação da capital maranhense. Ele publicou antes Minha terra tem palmeiras – trovadores maranhenses; Onde canta o sabiá – com os 101 mais belos sonetos de poetas do Estado; Nosso céu tem mais estrelas – 140 anos de literatura maranhense; Nossas várzeas têm mais flores – poetas modernos do Maranhão; e As aves que aqui gorjeiam – dedicado às poetisas maranhenses. Aliás, são muitas e, por isso, nem todas puderam figurar no estudo e antologia organizados pelo autor. 

Como tantos outros compatriotas históricos – Gonçalves Dias (1823-1864), Humberto de Campos (1886-1934), Bandeira Tribuzi (1927-1977), Odylo Costa, filho (1914-1979), Lago Burnett (1929-1995), Bernardo Coelho de Almeida (1927-1996) e Lopes Bogéa (1926-2004) –, autores contemporâneos como José Chagas, Josué Montello, Ferreira Gullar, Nauro Machado, Jomar Moraes, Ubiratan Teixeira, Chagas Val, João Alexandre Júnior, Paulo Oliveira, Eloy Coelho Neto, Luís Augusto Cassas, Luís Alfredo Neto Guterres, Cunha Santos, José Maria Nascimento, Manoel Lopes, Herbert de Jesus Santos e outros também se aventuraram a explorar, poeticamente, a geografia sentimental de São Luís. Não é à toa que a cidade é louvada na melodia dos versos de vários de seus poetas e compositores. 

Além destes, cronistas e cantadores, com suas crônicas e seus cantos, louvam e engrandecem São Luís. Tanto na prosa quanto no poema e na música popular – incluindo-se aí toadas de grupos de bumba-meu-boi – a cidade é tema recorrente. Não é por outro motivo que, com freqüência, São Luís é enaltecida na veia inventiva de artistas de alma e cores maranhenses, como o lendário João do Vale, Antônio Vieira, Lopes Bogéa, César Nascimento, Beto Pereira, Alcione, Rosa Reis, Cláudio Fontana, Josias Sobrinho, Roberto Ricci, César Teixeira, Joãozinho Ribeiro, Escrete e de “amos” como Coxinho, João Chiador, Mané Onça, Mestre Leonardo Martins Santos, Apolônio Melônio, Francisco Naiva e Ivaldo, do Bumba-boi de Axixá; Chagas, da Maioba e Humberto, de Maracanã.

Insuperável no retrato da vida, tanto nos seus aspectos domésticos (como no enredo de Um beiral para os bentevis) quanto nos heróicos (no painel histórico de Os tambores de São Luís), Josué Montello teve o cuidado de construir a maioria de seus romances, com as pedras da cidade, com o azulejo dos casarões, com os mirantes dos sobrados e com o nome das ruas, praças e igrejas. Contido na prosa, no verso e na vida, ele eventualmente se derrama se o assunto é São Luís, tema obsessivo de uma boa parte de seus livros. Paixão comparável, talvez, só a que revela também por Alcântara. Num de seus volumosos Diários, Montello confirma que, no conjunto de sua obra romanesca, preocupou-se em reunir quase todos os espaços urbanos da cidade, resgatados da mesma forma em livros de diversos pesquisadores, entre os quais o escritor Jomar Moraes, autor do Guia de São Luís do Maranhão, publicado em 1989. 

Nesta obra, o presidente da Academia Maranhense de Letras mostra a cidade sob dois planos: o que ela foi e o que ela é, da poesia aos movimentos religiosos, passando pelas questões políticas, comércio e indústria, ruas, becos e sobrados, além das lendas, festas e culinária, em um passeio que se eterniza a cada página. O próprio Jomar revela que a idéia de escrever um guia de São Luís surgiu em 1980, quando ele passou um ano no Rio de Janeiro. A saudade da cidade que adotou como sua (o escritor nasceu em Guimarães) deu forma a este passeio. Ainda no Rio, montou o esquema de todos os capítulos. O projeto ficou pronto quase 10 anos depois, graças ao grande amor pela cidade e à cobrança e incentivo dos amigos. 

Viés telúrico - Uma das frases mais conhecidas do escritor russo Leon Tolstoi (1828-1910) sugere, a quem quiser falar ao mundo, que fale da própria aldeia. E, justamente por falar de sua aldeia, Josué Montello imortaliza-se em sua obra romanesca. Ele se diz um homem de província, que soube se conservar fiel a essa condição, não obstante a universalidade de 

sua cultura e de sua curiosidade. Em diversos capítulos de Os Tambores de São Luís, Montello revela o viés telúrico de seu trabalho, como na passagem em que assinala que “umas cidades têm as suas andorinhas; outras, os seus pardais; São Luís tem os seus bem-te-vis, que nascem com a luz do sol e parecem cantar com ela pelo resto do dia. De relance, dir-se-ia que voam em bando. Na verdade, ao contrário das andorinhas, voam solitários, sem prejuízo das reuniões eventuais no mesmo fio telegráfico, no beiral do mesmo telhado, nos ramos da mesma árvore”.

Como Montello, José Chagas tem verdadeira adoração pela Cidade dos Azulejos, tema constante de inúmeros de seus poemas. Aliás, o grande lance da obra de Chagas é o primoroso retrato que, ao longo de sua carreira literária, ele construiu de São Luís. O fascínio que a cidade passou a exercer sobre o poeta levou-o a compor um sem-número de crônicas e poemas, celebrando as ruas, os telhados, as pontes, moças, ondas, marés, silêncios, sobradões e bem-te-vis da velha capital maranhense. Radicado no Maranhão desde janeiro de 1948, ele lembra numa de suas obras, saudosista e com um carinho incomum, da noite em que chegou a São Luís a bordo de uma barulhenta “Maria Fumaça”, que soltava brasa contra o vento, enchendo os vagões de fuligem e sujando a roupa dos passageiros. Essa viagem de trem foi iniciada em Teresina, no Piauí, até a velha estação central da antiga Rede Ferroviária (Rffsa) no Maranhão. Ao desembarcar na Avenida Beira-Mar (onde hoje funciona o Plantão Central da Polícia Civil), o recém-chegado pediu a um chofer que o deixasse numa pensão, no centro da cidade. 

Impressionado com os mistérios do casario do Centro Histórico, José Chagas escolheu os telhados de São Luís como temática de um de seus livros. “Sempre fiquei a me perguntar sobre quantas coisas aqueles telhados acobertaram, quantas gerações passaram por baixo deles, quantas chuvas suportaram ...”. Na maior parte da sua obra, destacando-se os livros Azulejos do tempo e Apanhados do chão, Chagas faz uma homenagem a São Luís, a cidade bem-afortunada que nele encontrou um de seus mais devotados cantores. O tradicional bairro do Desterro chamou-lhe a atenção por se tratar de uma área da parte velha da cidade que mistura o sagrado e o profano: o Convento das Mercês, a Igreja do Desterro e a antiga zona do baixo meretrício. “A vida noturna de São Luís e toda a zona do meretrício eram concentradas lá. E lá era um mundo bonito, grão-fino, tanto que havia pensão lá que para entrar era preciso paletó e gravata. A zona era chique, mas acabou tudo, porque agora o meretrício é em toda parte”.

O autor de Os Canhões do Silêncio observa ainda que em São Luís há a cidade-palácio e a cidade-palafita. “As palafitas me impressionaram muito. Tanto que para escrever Maré Memória andei dias e dias conversando com aqueles palafitados, passando sobre aquelas pontes de madeira, batendo papo com aquele pessoal”. Em geral, as construções se iniciam pelos alicerces. Chagas, ao contrário, começou a construir São Luís, na sua obra literária, a partir dos telhados. Depois, descreveu o Desterro, retratou as palafitas e partiu para um de seus maiores desafios: escrever a história que caiu no lixo, baseado no fato de que cada chão de São Luís tem uma característica própria. São Luís, com sua paisagem e sua história, entra em cena, panoramicamente, no livro Os Azulejos do Tempo. Este livro não conta a história, mas se baseia em fatos históricos. 

Com seu excepcional talento literário, Bandeira Tribuzi é outro autor que enfoca em sua poesia as ruas, as praças e demais logradouros desta cidade, de tantas vias estreitas e artérias sinuosas. Sinuosas como o antigo Beco do Monteiro, que conduzia à quinta do mesmo nome, na Rua do Passeio, e o Beco da Prensa, aberto por João Gualberto da Costa para serventia da primeira prensa de algodão que se instalou no Maranhão. Compositor, jornalista, crítico literário, Tribuzi era também economista, sendo responsável, em grande parte, pelos planos econômicos que foram postos em execução por vários governos maranhenses. Hoje, muitos estudiosos reconhecem, Bandeira Tribuzi foi o líder de sua geração. Estudou em Coimbra, de onde trouxe algumas das grandes lições da moderna poesia portuguesa, notadamente a de Fernando Pessoa (1888-1935), e permanece como uma influência viva para a literatura atual. Entre outras obras, é autor do poema-símbolo de São Luís.

LOUVAÇÃO A SÃO LUÍS

Autor: Bandeira Tribuzi

Ó minha cidade,
deixa-me viver
que eu quero aprender
tua poesia
sol e maresia
lendas e mistérios
luar das serestas
e o azul de teus dias

Quero ouvir à noite
tambores do Congo
gemendo e cantando
dores e saudades
a evocar martírios,
lágrimas, açoites
que floriram claros
sóis da liberdade

Quero ler nas ruas,
fontes, cantarias,
torres e mirantes,
igrejas, sobrados
nas lentas ladeiras
que sobem angústias
sonhos do futuro
glórias do passado

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Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
http://www.guesaerrante.com.br/2006/1/20/Pagina650.htm. Edição 114. 20 de janeiro de 2006