terça-feira, 22 de julho de 2008

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense - Parte VIII)

Por fim aqueles que publicaram suas primeiras peças ficcionais curtas em jornais, revistas e antologias ainda nos anos 1970 e somente depois de 1980 estrearam com livro: Nilze Costa e Silva, Fernando Câncio, Carlos Emílio Corrêa Lima, Rosemberg Cariry, Joyce Cavalcante, Audifax Rios, Barros Pinho e Batista de Lima.

Da antologia 10 Contistas Cearenses (1981) Nilze Costa e Silva participou com “O julgamento” e sobre ela escreveu F. S. Nascimento: “Numa proposta reveladora de intenções fictivas, Nilze Costa e Silva faz uso de projeções visionárias, reflexões, reminiscências, definições e indefinições teológicas. Mas seu “O Julgamento” não chega a transpor o deslinde, detendo-se numa esfera espacial reservada às formas contingentes, o que não invalida o seu esforço criador”.

Um dos fundadores da revista O Saco, Carlos Emílio Corrêa Lima publicou suas primeiras composições em jornais e revistas nos anos 1970, mas somente em 1984 teve editado Ofos. Carlos Emílio é daqueles criadores para quem a folha de papel em branco diante dele deve causar angústia, por ser tão pequena, limitada. Carlos Emílio foge aos padrões do conto tradicional quando empurra suas personagens para fora dos restritos espaços de uma sala, de uma casa. Ele prefere os quintais, as praias, os desertos, os campos, as montanhas, os pomares, as árvores, que buscam o firmamento, o mais longínquo, o infinito. Na verdade, o contista não tem a mínima vontade ou necessidade de geografar as suas narrativas, talvez para não se enquadrar neste ou naquele tipo de prosa de ficção, seja o regionalismo, seja outro qualquer.

A linguagem das peças curtas (e dos romances) de CE é esparramada, volumosa, como uma corredeira, uma cachoeira. Ele nem precisa de diálogos, quase sempre curtos. O narrador transmite uma ou outra fala de personagem e continua a narrar. Ele é o protagonista da narração, embora nem sempre seja da narrativa.

O diálogo interior, o fluxo da consciência, todas as modernas linguagens estão presentes nos contos e romances de CE.

O ponto de vista é o mais das vezes o do observador, mesmo quando a primeira pessoa fala, seja ela protagonista, testemunha ou personagem secundária. Às vezes o narrador fala por ele e por outros, na primeira pessoa do plural (nós) e, aqui e ali, muda para o singular (eu). Os outros, no entanto, são bem mais que secundários, são quase que apêndices, figurantes. Em algumas obras narrador não é narrador de verdade. Como se a história já estivesse escrita e fosse o leitor, ao ler, o narrador. O leitor seria, assim, co-autor. Pode-se supor também que a história (se é que há história) é narrada pelo escritor, que pode ser um personagem oculto. Carlos Emílio consegue enganar o leitor com facilidade. Às vezes o narrador parece ser o principal da trama, quando na verdade é apenas um observador, isento quase sempre, imune aos dramas que se apresentam aos seus olhos ou saltam de sua memória. Outras vezes parece ser o protagonista, de tão presente na narração e na narrativa. Mas isto não importa ao leitor.

Muito bem apontou Dimas Macedo, em “Os Enigmas de Carlos Emílio” (LC, pág. 77), ao se referir ao romance Além, Jericoacoara: (...) “não estamos obrigados a concluir pela existência de um enredo, ainda porque o mesmo não se manifesta de forma literal, embora pareça emergir em diversos momentos do seu entretexto”. E assim também se pode observar da leitura de muitos de seus contos: a ausência de enredo ou a sua manifestação de forma furtiva, como o colear de uma serpente. Em “O Barco”, por exemplo, não se vislumbra um enredo. Talvez não haja o enredo tradicional ou mais usual. Ocorre que se trata de um enredo esgarçado, sobretudo quando o narrador parece falar para si mesmo.

Também Rosemberg Cariry se iniciou na poesia e no conto desde os tempos da revista O Saco. Suas histórias curtas são fábulas ou narrativas de crueldade, como a do ratinho do campo que, em visita ao parente urbano, termina como iguaria, em banquete de natal. Ou a mulher que, possuída pelo macho, o expele pela boca, como se fosse ela uma gruta ou um animal grande, e ele, um simples mosquito. Sobre o livro A Lenda das Estrelinhas Magras, de 1984, Ciro Colares assim se manifestou: “Suas estórias, seus contos relâmpagos, seus poemas possuem luz própria, piscam no papel como pirilampos, dando sinais claros de mensagens convincentes e carregando aquela sensibilidade que só as pessoas escolhidas, privilegiadas possuem”.

Joyce Cavalcante deixou o Ceará no início de suas atividades de escritora. Estreou em 1978, com o livro De Dentro Para Fora. Jornalista, romancista, contista, cronista e conferencista, teve editados sete livros de prosa de ficção individualmente e se integrou em oito coletâneas de contos com outros autores. Tem obras traduzidas para o inglês, sueco, francês, italiano, espanhol e holandês. No gênero conto é autora de O Discurso da Mulher Absurda (1985).

Contemporâneo dos contistas surgidos em 1970, porém mais conhecido como artista plástico, Audifax Rios estreou em 1978, com Bar Peixe Frito. Tem elaborado histórias curtas de feição jocosa, sem esquecer o lado trágico da vida. Dimas Macedo, num prefácio intitulado “Gente de Santana” (CI, págs. 221/222), assim se manifestou a respeito da obra de Audifax: “Falar de gente, de pessoas que se encontram pelos bares da vida, principalmente numa tarde de segunda-feira ou numa madrugada de qualquer outro dia da semana, eis um ofício que Audifax Rios sabe fazer como ninguém. Os caminhos e descaminhos de Fortaleza, a Loura Desquitada, amada, possuída, sorvida em deliciosos tragos, ele sabe percorrer e pintar e sentir”.

Quando Barros Pinho publicou o livro A Viúva do Vestido Encarnado, em 2002, muita gente se sentiu surpresa. Todos o conheciam como poeta, desde Planisfério, de 1969. No entanto, em 1971 Barros Pinho participou da Antologia de Contistas Novos, organizada Moacir C. Lopes e publicada pelo Instituto Nacional do Livro. Publicou conto também em O Saco.

Barros faz questão de se apresentar como representante de um neo-regionalismo, de resgate do linguajar nordestino, dos costumes e das tradições.

Os dramas vividos pelos personagens de A Viúva do Vestido Encarnado são dramas universais, embora localizados no sertão do Nordeste brasileiro ou, mais precisamente, às margens do rio Parnaíba, no Piauí.

As narrativas de Barros Pinho têm uma estrutura definida: primeiro ele pinta o espaço em que se desenrolará o drama, em seguida desenha o protagonista e logo o leitor se percebe no meio do redemoinho do conflito. Como bem vislumbrou José Alcides Pinto, em “Barros Pinho: as teias da escritura” (DN, 27/10/2002), “A paisagem geográfica vai se delineando como na montagem de um filme” (...).

Em todo o livro observa-se o emprego de frases curtas e enxutas, até com a supressão de artigos e verbos. A par disso, a linguagem poética é uma constante. Metáforas e mais metáforas são encontradas no decorrer das narrações e nas falas dos personagens, tal como em José de Alencar.

Em “Recriação da linguagem” (DN, 27/10/2002), Dimas Macedo já se referia a este aspecto na obra de Barros Pinho: “Mas poesia, na sua ficção, como no poema, se infiltra, às vezes, quase absoluta, e reina, absoluta, de maneira quase provocante, desafiando jargões, anunciando formas, propondo universos lingüísticos, restabelecendo vernizes populares e códigos de unidade semântica”.

Com A Viúva do Vestido Encarnado Barros Pinho se afirma como uma das revelações da ficção curta não somente no Ceará mas no Nordeste brasileiro, empunhando a bandeira de um novo Regionalismo – poético nas frases e nas falas dos personagens, de elaborada feitura e sem os cacoetes do velho regionalismo.

A surpresa do leitor e do crítico em relação ao contista Barros Pinho também se deu quando Batista de Lima deu a lume o primeiro livro de contos. O autor de Miranças (1977) é outro que vem do início dos anos 1970, embora tivesse se dedicado mais à poesia. Passou a divulgar suas obras de ficção mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002.

Batista utiliza sempre a narração como forma básica de contar as suas histórias. Não há diálogos explícitos, diretos. Tabocal é o grande palco onde as personagens se movimentam, nascem, vivem e morrem. As personagens são a gente do sertão, até mesmo aqueles já desaparecidos, já tornados mitos, como Lampião. São padres, coronéis, doutores, fabricantes de cachaça, valentões, afinadores de violões, coveiros e até animais. Um universo habitado por criaturas às vezes picarescas, mas sempre muito reais. O narrador-escritor ou o narrador-onisciente atua como um memorialista muito cioso da verdade dos fatos ou um repórter astuto.

Em “O Pescador de Tabocal” (Da Pena ao Vento-III), Dias da Silva fala de “linguagem simples, conhecida, cotidiana, correta, mas pessoalmente trabalhada”. E explica: “Não espere, porém, o leitor tratar-se de contos puramente descritivos, lineares, bem arrumados e comportados. São histórias curtas que transmitem a sensação de personagens, de lugares e de objetos como são percebidos e não como são conhecidos”. Quanto aos aspectos formais da obra de Batista de Lima, o crítico destaca a correção gramatical e a concisão.

O segundo livro mereceu uma “Apresentação” de Graças Musy, que captou bem a gênese das narrativas: “A moldura do cenário batistiano é repleta de imagens que resgatam o universo telúrico do autor e explodem, sintagmaticamente, como se quisessem trazer à tona todos os paradigmas de que se valeu, estabelecendo assim uma cumplicidade de linguagem com o leitor, que se assenhora desse universo, seduzido impressionisticamente pelas próprias memórias, que lhe permitem ser um agregado da casa do narrador-autor (...)”

Também Fernando Câncio não tem sido pródigo na publicação de livros. Divulgou em 1979 Meu Nome é Saudade, de “crônicas, contos, casos e devaneios”. Recebeu elogios de Risette Cabral Fernandes: “O micro-conto e a crônica configuram, portanto, o mosaico de sua imaginação, onde está decalcado o seu talento”. Participou da antologia 10 Contistas Cearenses e sobre o seu “A Pagadora de Promessas” anotou F. S. Nascimento: “De início, a impressão que se tem é de um registro à maneira de crônica. Mas o contista não tarda a identificar-se como tal, conseguindo animar a sua personagem a ponto de seu halo se fazer sentir (...)”.

Como se pode observar, nos anos 1970 não foram poucos os escritores cearenses que se dedicaram à prática da ficção curta, uns de forma tradicional, outros mais voltados para as inovações estruturais; uns obedientes à economia verbal, outros atraídos pelos horizontes mais amplos da narração; uns cautelosos na elaboração das histórias, outros dispostos a inventar mais e mais. Seja como for, naqueles anos surgiram importantes narradores no Ceará, alguns colhidos cedo pela foice do tempo, outros ainda em plena atividade intelectual, sejam aqueles que publicaram livros a partir de 1970, sejam os que, embora já escrevessem contos e poemas, somente nos anos 1980 em diante divulgaram em livro as suas obras.
***
Segue-se relação de breves biobibliografias dos contistas que despontaram a partir de 1970. Como na parte anterior, os contistas serão apresentados na ordem cronológica de edição do primeiro livro de contos. Cada um será focalizado em separado, para facilitar a leitura. A seguir virão, em ordem alfabética, os contistas que não ousaram reunir em livro as suas obras.

Francisco Sobreira nasceu em Canindé, Ceará (1942), passou a residir em Fortaleza e, em 1965, em Natal, Rio Grande do Norte. Por esta razão, seu nome é hoje muito mais conhecido neste Estado do que naquele onde nasceu. Assim o vêem os críticos potiguares, como Nelson Patriota, que, nas abas do livro Crônica do Amor e do Ódio, ao se referir à vasta produção de Sobreira no gênero conto, destaca tratar-se “de uma produção sem paralelo na história literária norte-rio-grandense”. E ainda o chama de “modelo para futuros ficcionistas potiguares”.

Deu a lume o primeiro livro usando o sobrenome Bezerra após Sobreira. Estreou, no gênero conto, em 1972, com A Morte Trágica de Alain Delon. Seguiram-se A Noite Mágica (1979), Não Enterrarei os Meus Mortos (1980), Um Dia ... os Mesmos Dias (1983), O Tempo Está Dentro de Nós (1989), Clarita (1993), Grandes Amizades (1995) e Crônica do Amor e do Ódio (1997). É autor dos romances Palavras Manchadas de Sangue (1991), A Venda Retirada (1998) e Infância do Coração (2002). Tem participado de antologias no Rio Grande do Norte e no Ceará. Ganhador de prêmios literários. Exerceu a crítica cinematográfica na imprensa de Natal e se dedicou ao cineclubismo nas décadas de 1960 e 1970.

***
Socorro Trindad, nascida em Nísia Floresta, Rio Grande do Norte (1950), fez uma espécie de permuta geográfica com Francisco Sobreira, pois passou a morar em Fortaleza, onde estudou e escreveu algumas de suas narrativas. Depois se radicou no Rio de Janeiro.

Estreou em 1972, com o volume Os Olhos do Lixo, com prefácio de Câmara Cascudo. Seguiu-se Cada Cabeça uma Sentença, em 1978, com prefácio de Aguinaldo Silva, intitulado “A Árdua Batalha Contra os Papangoos”.
***

Holdemar Menezes nasceu em Aracati, (segundo Raimundo Girão, em Jaguaruana) em 1921, e faleceu em 1996. Moço ainda saiu de Fortaleza, tendo morado no Rio de Janeiro e em Santa Catarina, razão pela qual geralmente não é mencionado pelos estudiosos da Literatura Cearense e aparece em antologias de escritores catarinenses. Hélio Pólvora o chama de “escritor cearense-catarinense”. Deixou os seguintes livros: A Coleira de Peggy (1972), O Barco Naufragado (1977), A Sonda Uretral (1978) e Os eleitos para o sacrifício (1984).
***

Cláudio Aguiar nasceu em Poranga (1944). Apesar de radicado por muitos anos em Pernambuco, não deixa de ser escritor cearense. Teve impressos Exercício Para o Salto (1972) e Depoimento de um Sábio (1977). Sua obra literária está exaustivamente analisada por diversos críticos, brasileiros e estrangeiros, em artigos e ensaios reunidos no livro Viento del Nordeste, com o subtítulo Homenaje Internacional al Escritor Brasileño Cláudio Aguiar, em espanhol, da Universidad Pontificia de Salamanca, 1995.
***

Gilmar de Carvalho nasceu em Sobral (1949) e editou os livros Pluralia Tantum (1973), Resto de Munição (1982), Queima de Arquivo, Buick Frenesi e Pequenas Histórias de Crueldade. Escreveu também para teatro, crônicas e um romance fundamental da literatura cearense ou brasileira, Parabelum. Tomou parte da antologia O Talento Cearense em Contos, com “Coração Materno II”.
***

Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral (Fortaleza). Uma das fundadoras do Grupo Siriará. Morou em Brasília de 1980 a 1994, onde foi redatora dos Cursos da Universidade Aberta, da UNB. Tem um livro de histórias, O Menino D’água (1976) e romances. Com o “Casamento” fez parte da antologia O Talento Cearense em Contos.
***

Mario Pontes nasceu em Novas Russas (1932). Reside no Rio de Janeiro desde 1958. Além de contista, é romancista e ensaísta. É outro que, vivendo há muitos anos longe do Ceará, tem seu nome poucas vezes citado nos artigos e ensaios de literatura cearense. Tornou-se jornalista aos 16 anos de idade. Durante meio século trabalhou em revistas culturais e suplementos literários, como o do Jornal do Brasil, que editou por muitos anos. Estreou em 1977, com o volume Milagre na Salina, embora catalogado como romance. No entanto, o próprio Mario Pontes explica, em nota prévia, o que é seu livro: “histórias da Salina”. Em 1999 editou pela Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro, o volume Andante Com Morte – Quatro Ficções, composto das novelas “A Morte Infinita”, “Sentinelas da Noite”, “A Engrenagem Universal” e “A Nova Rota da Seda”, catalogadas como contos. Tem traduzido importantes obras filosóficas e literárias, entre as quais do Prêmio Nobel espanhol Camilo José Cela e textos teatrais de Julio Cortázar.
***

Yehudi Bezerra nasceu em 1946 e faleceu jovem, tendo deixado impresso apenas um livro de histórias, Tocaia (1977). Deixou inéditos Momentos (poemas de 1964 a 1970), Barriga de Bombo ou As Desventuras de Pedroca Mundo, 1º. lugar no Concurso Universitário de Peças Teatrais, promovido pelo Serviço Nacional de Teatro e, inacabados, A Revolução das Bonecas e o romance Tonante.
***

José Hélder de Souza nasceu em Massapê (1931) e cedo se mudou para o Rio de Janeiro e depois Brasília. Contista, poeta, romancista e crítico literário, é autor de Coisas & Bichos (1977), Rio dos Ventos (1992) e Pequenas Histórias Matutas (2000), no gênero conto. Em outros gêneros publicou A Musa e o Homem (1959), A Grandeza das Coisas (1978), Os Homens do Pedregal (1979), Sonetos de São Luiz (1981), De Mim e das Musas (1982), Cabo Plutarco, O Berro D’água (1982), Raul de Leoni, Poeta de Transição (1984), Relvas do Planalto (1990), Brilhos e Rebrilhos de Goiás (1990).
***

Glória Martins estreou em 1978 (2ª edição de 1999) com o volume Reencontro, prefaciado por Pedro Paulo Montenegro, para quem “a nota dominante (no livro) é a espontaneidade, espontaneidade tão grande que pode mesmo a alguns parecer, em determinados momentos, descuidos formais.”
***

Joyce Cavalcante (Fortaleza, 1949) mora em São Paulo. Iniciou-se na revista O Saco e integrou o Grupo Siriará. Estreou em 1978, com o livro De Dentro Para Fora. Jornalista, romancista, contista, cronista e conferencista, teve editados sete livros de prosa de ficção individualmente e se integrou em oito coletâneas de contos com outros autores. Tem obras traduzidas para o inglês, sueco, francês, italiano, espanhol e holandês. No gênero conto é autora de O Discurso da Mulher Absurda (1985). Idealizadora e atual presidente da REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras. Incorporou-se nas seguintes antologias: Contos Pirandelianos (Editora Brasiliense, SP, 1985); O Outro Lado do Olhar (Verano Editora, Brasília, 1988), com quatro peças, ao lado de outras quatro contistas; Contos Paulistas (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1988); Antologia do Conto Cearense (Edições Tukano, Fortaleza, 1990); Contra Lamúria, Ano 20, 1974/1994 (Casa Pindaíba, São Paulo, 1994); O Talento Cearense em Contos (Editora Maltese/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, São Paulo, 1996), da qual foi a organizadora; Letras ao Sol (Edições Fundação Demócrito Rocha, Fortaleza, 1996). Tem também peças ficcionais em jornais e revistas, como Seara: “Um Desejo de Verão, uma Brincadeira no Ar” (n.º 6) e “Movimento Sem Fim” (n.º 7) e Espiral: “Um peixe entre as pernas” (n.º 1).
***

Gerardo Mello Mourão nasceu em Ipueiras (1917). Reside há vários anos no Rio de Janeiro. Romancista, poeta, contista, ensaísta, tradutor e jornalista. No gênero conto publicou, em 1979, Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas, constituído de 19 narrativas. Estreou em livro com Poesia do homem só, 1938. Seu primeiro romance foi O Valete de Espadas, 1960. Recebeu o Prêmio Mário de Andrade, da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1972.
***

Geraldo Markan nasceu em Fortaleza (1929), onde morreu, e é autor dos livros O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro, Edições Siriará, 1979, e Canoa Quebrada – Oniricrônicas, de 1980, além de peças de teatro. Reuniu-se a outros contistas em antologias, como O Talento Cearense em Contos, com “Primeira Rosa para Norma Jean”, e Antologia Literária (1.º Prêmio Domingos Olímpio de Literatura, 1998, Sobral), com “Quem Resiste ao Tango?” (2º.).
***

Airton Monte nasceu em Fortaleza (1949) e nunca dela se mudou. Filho de Airton Teixeira Monte e Valdeci Machado Monte. Médico psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará, cronista do jornal O Povo, comentarista de rádio, redator de televisão, letrista, teatrólogo, é essencialmente poeta e contista. Iniciou-se na revista O Saco, onde publicou histórias. Um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura. Estreou, no gênero conto, com o volume O Grande Pânico (1979), seguido de Homem Não Chora (1981) e Alba Sangüínea (1983). Tem no prelo Os Bailarinos. Participou de algumas antologias: Os Novos Poetas do Ceará III, Antologia da Nova Poesia Cearense, Verdeversos e 10 Contistas Cearenses. Tem também um livro de poemas.
***

Paulo Véras nasceu no Piauí (1953), tendo se radicado em Fortaleza, onde faleceu precocemente. Estreou em 1979, com O Cabeça-de-Cuia. Embora tenha editado apenas uma coleção de prosa de ficção, é nome obrigatório em todo inventário do conto cearense.
***

Fernando Câncio Araújo (Fortaleza, 1922), cronista, poeta e contista, divulgou em 1979 o livro Meu Nome é Saudade, de “crônicas, contos, casos e devaneios”, e Pelos Caminhos do Norte, de contos. Integrou-se em antologias, como 10 Contistas Cearenses. 6º. com “Chão Violento”, no 1º. Prêmio Cidade de Fortaleza.
***

Nilze Costa e Silva (Natal, RN, 1950) passou a morar em Fortaleza com um ano de idade. Romancista e contista. Autora de Viagem (1981) e Dilúvio (1988), no gênero conto. Tem se incorporado a coletâneas, como 10 Contistas Cearenses (1981), Multicontos (1984), Antologia de Contos Eróticos (1988), com “O Exibicionista e a Espectadora Solitária”; Antologia do Conto Cearense (1990), com “Procura-se”; Antologia do Conto Erótico (1992); O Talento Cearense em Conto (1996); Iracemar (1996) e Talento Feminino em Prosa e Verso (2002). Tem também narrativas em jornais e revistas, como Seara e Espiral.
***

Rosemberg Cariry nasceu em 1953 em Farias Brito. Fundou a revista Nação Cariry e ajudou a criar o Grupo Siriará. Poeta, letrista, pesquisador de folclore, cineasta e contista, vem publicando desde o início dos anos 1970. Seu primeiro livro, de poemas, Semeadouro, saiu em 1981. Incluído em Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal, de 1977, com os minicontos “A Visita” e “Um Mosquito na Boca da Amante”. No gênero ficção menor tem o livro A Lenda das Estrelinhas Magras, de 1984.
***

Carlos Emílio Corrêa Lima nasceu em Fortaleza (1956). Morou no Rio de Janeiro. Um dos fundadores de O Saco. Editou seus primeiros contos em jornais e revistas. Somente em 1984 teria editado o volume Ofos. Tem mais três inéditos. Publicou, ainda, os romances A Cachoeira das Eras (1979), Além, Jericoacoara (1982) e Pedaços da história mais longe (1997). Correspondente da revista espanhola de literatura e artes El Paseante durante vários anos, também tem sido editor de diversas publicações em Fortaleza e no Rio de Janeiro, como o jornal Letras & Artes (prêmio APCA para melhor divulgação cultural cultural do país em 1990) e a revista Arraia Pajéurbe, lançada em 2001. Tem exercido a crítica literária. Participou da fundação e da consolidação de inúmeros movimentos literários no Ceará, em São Paulo e no Rio de Janeiro, tais como o Siriará, o CEP 2000 e o Rodas de Poesia. Em 2002 teve editado Virgílio Varzea: os olhos de paisagem do cineasta do Parnaso (Editora UFC e Fundação Catarinense de Cultura). Mestre em Literatura Brasileira pela UFC.
***

Audifax Rios, natural de Santana do Acaraú (1946), é mais conhecido como artista plástico. Versátil, tem divulgado alguns livros, onde mistura realidade à ficção, sempre se valendo da memória e da observação. Estreou em 1978, com Bar Peixe Frito, classificado como novela. Já Fez a sua Fezinha Hoje?, de 1987, seria seu primeiro livro de contos. Seguiram-se Gentes da Licânia (1989), Porto do Bingo (1990), Os Descaminhos da Loura Desquitada (1992), Viventes de Aroeiras (1993) e Iracemar (1996).
***

Moacir C. Lopes nasceu em Quixadá (1927). Cedo passou a habitar em Baturité, depois Fortaleza, fez-se marinheiro e conheceu o mundo, até se radicar no Rio de Janeiro. Estreou em 1959, com o romance Maria de Cada Porto. Seguiram-se diversos romances, traduzidos para idiomas como russo, checo, inglês. Em 1969 fundou a Editora Cátedra. Em 1971 organizou e editou a Antologia de Contistas Novos. Seu primeiro livro é O Navio Morto e Outras Tentações do Mar, de 1995.
***

Eugênio Leandro teve uma história publicada na revista Siriará, intitulada “O Vale das Pedras”. Editou um volume de contos, Nas Terras do Rei Piau e tem outro inédito. É cantor e compositor dos mais destacados no Ceará.
***

Batista de Lima (José), nascido em Lavras da Mangabeira (1949), embora pertença ao “grupo” da revista O Saco, pois seu primeiro livro, de poemas, é de 1977, passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002. Seminarista no Crato, formou-se em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especializou-se em Teoria da Linguagem na Universidade de Fortaleza, onde exerceu a chefia do Departamento de Letras e a diretoria do Centro de Ciências Humanas. Cursou o mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará. Iniciou-se como professor de Português em colégios de Fortaleza. Na vida literária deu os primeiros passos no Clube dos Poetas Cearenses. Mais tarde participou ativamente dos grupos Siriará, Arsenal, Catolé e Plural. De poesia publicou os livros Miranças (1977), Os Viventes da Serra Negra (1981), Engenho (1984) e Janeiro da Encarnação (1995). Na área do ensaio literário deu a lume, em 1993, Os Vazios Repletos e Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e, em 2000, O Fio e a Meada – Ensaios de Literatura Cearense. Membro da Academia Cearense de Letras.
***

Barros Pinho, nascido em Teresina, Piauí (1939), tornou-se cearense no decorrer do tempo. Filho de Antônio Bezerra de Pinho e Ana Barros de Pinho, é bacharel em Administração Pública, formado pela Escola de Administração do Ceará. Participou do Grupo SIN e se iniciou em livro com Planisfério, poemas, em 1969. Seguiram-se Natal de Barro Lunar & Quatro Figuras no Céu (1970), Circo Encantado (1975), Natal do Castelo Azul (1985), As Pedras do Arco-Íris ou Invenção do Azul no Edital do Rio (1988), todos de poesia. Participou de algumas antologias de prosa e verso, como Mini-Sinantologia (1968), Sinantologia (1968), Antologia dos Novíssimos Contistas do Brasil (1963), organizada por Moacir C. Lopes, Antologia Poética Projeto Mão Dupla (s.d), Antologia da Academia Cearense de Letras (1994) e A Poesia Cearense no Século XX. Editou A Viúva do Vestido Encarnado, em 2002, pela Editora Record. Barros faz questão de se apresentar como representante de um neo-regionalismo, de resgate do linguajar nordestino, dos costumes e das tradições.
======
continua... "Outros que não chegaram a publicar livros de contos".

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Folclore Japonês (O paraíso dos gatos)

Era uma vez uma bela menina órfã que se chamava Youkiko.

Ela trabalhava na casa de uma velha terrível. Sua vida era pura tristeza, pois a menina só tinha como amiga uma gatinha. Mas um dia a gatinha desapareceu. Youkiko chorou muito. E a dona da casa, em vez de consolar a pobre menina, lhe dizia assim:

- Viu no que dá se apegar aos animais? A gata a abandonou!

A menina, porém, não acreditava nisso. Sua confiança no bichinho continuava a mesma. Foi então que um adivinho passou pela cidade.

Falava-se que ele era capaz de revelar todos os segredos do mundo. Youkiko foi correndo lhe perguntar sobre o paradeiro de sua gatinha.

- Sua gata está na montanha dos felinos, que fica a leste daqui. Se você for corajosa e tomar cuidado, será fácil reencontra-la - ele lhe disse.

Youkiko não hesitou. Pediu licença à patroa e partiu em busca da gata.

Andou muito até chegar a uma cidade lindíssima, onde foi acolhida por outra menina, que a convidou para jantar. De início ela se sentiu feliz, mas á noite ouviu vozes estranhas que diziam:

- Essa menina adora gatos. Vamos protegê-la. É melhor impedir que algum de nós tente devorá-la.

A menina despertou muito assustada. Que lugar era aquele? Porém, antes que ela pudesse partir, alguém bateu à porta de seu quarto. Youkiko a abriu e deu com sua gatinha, que havia se transformado em gente.

- Minha querida amiga - disse-lhe a gata - você está no paraíso dos gatos. É um lugar perigoso para os humanos que nos tratam mal. Mas, como você sempre nos ajudou, os felinos pediram que eu lhe desse um presente.

E então entregou à amiga uma caixinha repleta de jóias e pedras preciosas. Na manhã seguinte Youkiko voltou à sua cidade. Deixou o antigo emprego e comprou uma casa. Aliás, a caixinha era mágica: as jóias nunca se acabavam.

Furiosa de inveja, a antiga patroa viajou até a montanha dos felinos.

Quando lá chegou, bateu à porta da mesma casa onde a menina ficara hospedada e foi logo dizendo:

- Quero as jóias também! Pois vocês, gatos, não vivem rondando a minha cozinha?

Mas quando a porta se abriu ela foi jogada num salão. Um imenso tigre surgiu e lhe perguntou:

- Você prefere trabalhar ou morrer?

A patroa preferiu viver. Porém, como no paraíso dos gatos o tempo é eterno, lá ela continua e continuará a trabalhar até o final do mundo.

Fonte:
http://www.esnips.com

Artur de Azevedo (Sabina)

I

Havia três anos que o Bacharel Figueiredo era o amante da viúva Fontes. E marido seria se ela quisesse; mas Sabina - Sabina era o seu nome - dera-se mal com o casamento, e não queria experimentá-lo de novo.

Um mês depois do seu primeiro encontro com o Bacharel Figueiredo, este dizia-lhe:

- Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre és: case-mo-nos!
- Não! respondia ela, não! não! não!...
- Por quê, meu amor?
- Porque esse fogo, esse ímpeto, esse entusiasmo que te lançou nos meus braços, tudo isso desapareceria desde que eu fosse tua mulher!
- Mas a sociedade...
- Ora a sociedade! Sou bastante independente para me não importar com ela.
- Tua filhinha...
- Tem apenas quatro anos! está na idade em que se olha sem ver. Demais, não quero dar-lhe um padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o pretor.

II

Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante da lei, mas nem por isso o bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos, agradecendo aos céus o haver a viúva recusado o casamento que ele lhe propusera num momento de verdadeira alucinação.

Havia muitos meses já que o moço ruminava um plano de separação definitiva, mas não sabia de que pretexto lançar mão para chegar a esse resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos, parecia guardar-lhe absoluta fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa.

Nestas condições lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos, que o honrava com a sua amizade.

III

O velho Matos era um solteirão rico e viajado, que na sua tempestuosa mocidade tivera um número considerável de aventuras galantes, e era ainda considerado um oráculo em questões de amor. Muitos mancebos inexperientes recorriam aos seus conselhos, e tais e tão discretos eram estes, que eles alcançavam quanto pretendiam.

O Bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chácara da Gávea, onde o avisado conselheiro vivia das suas recordações e de alguns prédios e apólices milagrosamente salvos do naufrágio dos seus haveres.

O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preâmbulos expôs a situação:

- Há três anos sou o amante de uma senhora viúva, distinta e bem educada; quero acabar com essa ligação; que devo fazer?
- Antes de mais nada, é preciso que eu saiba o motivo que o desgostou. Tem ciúmes dela?
- Ciúme... - Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice, fidelidade e constância!
- Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?... quero dizer: uma enfermidade... - um defeito físico... o mau hálito, por exemplo?
- Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa.
- Então, é feia?
- Feia?! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro!
- Tem mau gênio?
- Uma pombinha sem fel!
- Então é tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada, asneirona...?
- Nada disso! é uma mulher de espírito, instruída e perfeitamente educada.
- É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a rezar diante de uni oratório?...
- Apenas vai ouvir missa aos domingos.
- Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar...
- Não canta; toca piano, mas não abusa. Digo-lhe mais: interpreta admiravelmente Chopin.
- Você gosta de outra mulher?
- Juro-lhe que não.
- Bom; sei o que isso é; você aborreceu-se dela porque nunca lhe descobriu defeitos. É boa demais.
- Talvez. O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que devia, e urge acabar com ela. A Sabina tem uma filha que está crescendo a olhos vistos, e não é conveniente fazer com que essa criança algum dia a obrigue a corar.. . Depois, eu sou moço.. . tenho um grande horizonte diante de mim... enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligação pode prejudicar seriamente o meu futuro - não acha?

O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou:

- Quer então você separar-se dessa mulher ideal?
- Quero.
- A sua resolução é inabalável?
- Inabalável.
- Só há um meio de o conseguir.
- Qual?
- Desapareça.
- Ela irá procurar-me onde quer que eu esteja.
- Boa dúvida, mas faça-se invisível, vá para a roça, e volte ao cabo de oito dias. Naturalmente ela aparece, e pergunta em termos ásperos, ou sentidos, o motivo do seu procedimento. Muna-se então de um pouco de coragem, e responda-lhe o seguinte: "Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós. Nã0 me peça explicações: meta a mão na consciência, e meça a extensão do meu ressentimento!"
- Mas que fato? Pois eu já não lhe disse que a Sabina e um modelo de...
- Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, não há mulher, por mais amante, por mais dedicada, por mais virtuosa que seja, que não tenha alguma coisa de que a acuse a consciência. A sua Sabina, em que pese às aparências, não deve, não pode escapar à lei comum; desde que você se refira positivamente a um fato, embora não declare que fato é, ela ficará persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se passou, e que a pobrezinha supunha coberta pelo véu de impenetrável mistério.
- Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciência (eu juro-lhe que o não tem!) com certeza há de protestar energicamente e exigir que eu ponha os pontos nos ii; há de querer que eu diga francamente a que fato aludo, e... - e vamos lá! como acusá-la sem consentir que ela se defenda?
- Ah! meu amigo! se você pretende aplicar razões jurídicas ao caso, não arranja nada. A jurisprudência do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se, e não entre em explicações. Afianço-lhe que o êxito é seguro.

IV
Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o Bacharel Figueiredo. Retirou-se durante alguns dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar satisfações a viuva.

Imagine-se o desespero dela. Quando soube que o seu amante voltara dessa misteriosa viagem, foi - e era a primeira vez que lá ia - foi à casa de pensão em que ele morava e entrou como uma doida no seu quarto.

- Então? que quer isto dizer?... exclamou a mísera caind0 numa cadeira, a soluçar desesperadamente.

Ele até então nunca a tinha visto chorar. A viúva apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho; parecia-lhe agora mais apetitosa.

Entretanto, fazendo um esforço violento sobre si mesmo, o bacharel franziu os sobrolhos e repetiu as palavras d0 velho Matos:

- Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós!...

Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou:

- Não me peça explicações; eu não lhas daria! Meta a mão na consciência, e compreenda o meu eterno ressentimento...

Dizendo isto, saiu do quarto batendo com estrondo a porta, e deixando a pobre Sabina aparvalhada.

V

No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:

"Figueiredo - Tens razão: nada mais pode haver de comum entre nós; aprecio e respeito a delicadeza dos teus sentimentos.
"Eu vivia na ilusão de que tudo ignorarias, de que jamais virias ao conhecimento de uma fraqueza que tão desgraçada me faz neste instante. Vejo que o miserável não guardou segredo, e fez chegar aos teus ouvidos a história de uma vergonhosa aventura a que fui arrastada num momento de desvario e de que logo me arrependi amargamente.
"Não me perdoes, porque o teu perdão seria um atestado de péssimo caráter, mas ao menos sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento, o pouco caso com que então começavas a tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei e que tantas lágrimas me tem custado.
"Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda como sempre te amou, mas não procures tornar a vê-la, porque ela é a primeira a confessar que não é digna de ti. Console-te a certeza de que a minha vida vai ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades. Adeus para sempre... - Sabina."

VI

Essa carta produziu terrível efeito no espírito do Bacharel Figueiredo.Era então certo?... ela pertencera a outro homem?...

E o seu amor extinto despertou mais violento, mais impetuoso que nunca.

Passavam-lhe rapidamente pela memória, num turbilhão demoníaco, todos os deliciosos momentos que lhe proporcionara a meiga viúva, e o ciúme, um ciúme implacável, que o aniquilava e embrutecia, excitava-o tiranicamente.

Ele correu à casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas e janelas. Informou-o um vizinho de que a viúva se retirara na véspera, com a menina e as criadas, levando malas e embrulhos.

Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado pela insônia, pelos ciúmes, pelas saudades, correu á casa dela: tudo fechado!...Ninguém lhe dava notícias de Sabina! Aonde iria ela?.. - onde estava?...

Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido, tal qual Sabina entrara na casa de pensão. Encontrou-a no seu quarto, e, sem dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe sofregamente a boca, os olhos, o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido, atirou-a brutalmente sobre o leito, sequioso por entrar de novo na posse daquele corpo e daquele sangue.

Mas a viúva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e pôs-se de pé, gritando:

- Não! não! não, Figueiredo!... Tudo acabou entre nós! Eu não sou digna de ti!...
- Não digas isso pelo amor de Deus! Eu perdôo-te! Eu amo-te! Eu adoro-te!...
- Se realmente me amas, se me adoras, então és tu que não és digno de mim!

Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se julgou a coberto das perseguições do bacharel. Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando convulsivamente.

VII

Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal restabeleceram-se as pazes.

Sabina cedeu sob duas condições: primeira, - o bacharel só entraria no quarto dela com escala pela pretoria e pela igreja: segunda, - jamais lhe pediria explicações sobre o fato que determinara a crise.

VIII

Três meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara íntimo da casa, achando-se a sós com Sabina, contou-lhe a história do conselho dado ao bacharel, conselho que foi a causa imediata de tão extraordinários acontecimentos, e que tão negativo efeito produzira.

- Mas o que o senhor não sabe, disse ela, é que eu nunca tive outro amante senão o Figueiredo.
- Que me diz, minha senhora?
- Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade.
- Mas valha-me Deus! o pobre rapaz está convencido de...
- Deixá-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os outros homens.

Confessei-lhe uma culpa que não tinha, porque adivinhei que só assim poderia reconquistá-lo.

- Mas agora estão casados e muito bem casados; é preciso dissuadi-lo.
- Não; ainda é cedo; mais tarde.. . Esse homem que ele não sabe quem é... essa aventura misteriosa.... essa ignóbil mentira é a garantia da minha felicidade.

Enquanto ele supuser que não fui dele só, será só meu.

- Parabéns, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho Matos.
- Ora, o velho Matos! Quem é o velho Matos? Quem é o senhor? Algum psicólogo? Saiba que uma mulher inteligente é capaz de embrulhar Paul Bourget...
- Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o próprio Balzac! Repito: parabéns, minha senhora!

Fonte:
Artur Azevedo. Contos Fora da Moda. Disponível em
http://www.esnips.com

25 de julho - Dia Nacional do Escritor


No dia 25 de julho os grandes reponsáveis pela riqueza literária brasileira são oficialmente homenageados no país. A data foi instituída por decreto governamental em 1960, após o sucesso do I Festival do Escritor Brasileiro, organizado naquele ano pela União Brasileira de Escritores, por iniciativa de seu presidente, João Peregrino Júnior, e de seu vice-presidente, Jorge Amado.

Em 1988, ao ser questionado sobre como se sentia sendo o escritor mais lido no país, o literato baiano respondeu: "Eu me sinto mal. Porque eu acho que deviam ter 50 escritores mais lidos no Brasil" (Jornal da Tarde, 03/09/1988).

Daquela época pra cá, certamente muita coisa mudou, embora o índice de leitura no país ainda tenha muitos quilômetros a percorrer. A pesquisa 'Retratos da Leitura no Brasil', realizada em 2001 pela Câmara Brasileira da Indústria do Livro (CBL), Sindicato Nacional das Editores de Livros (Snel) e Associação Brasileira dos Editores de Livros (Abrelivros) apontou que 61% dos brasileiros adultos alfabetizados têm muito pouco ou nenhum contato com os livros: 6,5 milhões de pessoas das camadas mais pobres da população dizem não ter nenhuma condição de adquirir um livro e 73% dos livros estão concentrados em apenas 16% da população brasileira.

Pensando nisso, os ministérios da Cultura e da Educação, em parceria, lançaram, em 2006, o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL): um conjunto de políticas, programas, projetos, ações continuadas e eventos empreendidos pelo Estado e pela sociedade, para promover o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas no Brasil.

Uma das linhas de ação do PNLL consiste no apoio à cadeia criativa do livro feita por meio das seguintes ações:

- Instituição e estímulo para a concessão de prêmios nas diferentes áreas e bolsas de criação literária para apoiar os escritores;
- Apoio à circulação de escritores por escolas, bibliotecas, feiras etc;
- Defesa dos direitos do escritor;
- Apoio à publicação de novos autores;
- Programas de apoio à tradução;
- Fóruns de direitos autorais e copyright restritivo e não-restritivo.

Atualmente há cerca de 30 projetos de incentivo à criação literária distribuídos em âmbito federal, estadual e municipal. Prêmiações, bolsas para pesquisa e manutenção de sites temáticos são alguns exemplos de como as linhas de ação propostas pelo PNLL são aplicadas na prática. Os projetos da esfera federal são, em sua maior parte, ligados à Fundação Biblioteca Nacional.

Ademais, a formação de um público leitor – onde as prioridades governamentais não nos permitem a identificação de rumos no tocante à opção pela cultura e pela educação do povo que guiam – torna-se mais e mais dificultosa, com estorvos de toda natureza.

Óbvio que tem concorrido com obstáculos de naturezas distintas: a falta de visão dos pais que não incentivam os filhos a se debruçarem sobre os livros; a disputa desleal com a TV e a internet; dentre outras e outras razões.

Problemas e dificuldades irão sempre existir. Mas nesta data especial é preciso, antes de tudo, destacar, respeitar e celebrar todo o mérito pertecente a nossos escritores. Mais do que uma arte e do que um ofício, a literatura é uma forma de expressão que apresenta o universo particular do escritor a um mundo muitas vezes aquém do esperado. "Ler é transcender, é possibilitar, é ir além do nosso, por vezes, cruel mundo imediato", afirmou o ministro da Cultura, Gilberto Gil, na introdução do PNLL.

Comemora-se com esta data aqueles que têm dedicado o seu labor literário, buscando a palavra a mais exata e com teor estético que busca alcançar a perfeição, têm encontrado, nestas plagas, dificuldades das mais diversas para publicação e difusão de suas obras.

Fontes:
Lívio Oliveira. In www.natalpress.com
Câmara Brasileira do Livro. In http://www.cbl.org.br/

domingo, 20 de julho de 2008

Folclore Alemão (Tyll, o mestre das artes)

Tyll era um malandro que viajava pela antiga Alemanha inventando golpes para ganhar dinheiro e divertir-se às custas dos nobres. Foi assim que um dia Tyll se apresentou na entrada do castelo de um rei vaidoso e declarou:

- Eu sou um mestre nas artes, um pintor multo famoso, e ouvi dizer que Sua Majestade entende multo de pintura. Será que não gostaria de conhecer o meu trabalho?

Quando lhe contaram do estranho artista que batia à sua porta, o soberano ficou curioso e resolveu testá-lo. Tyll foi levado à presença do rei. Multo esperto, estava vestido igualzinho a um pintor e trazia uma maleta cheia de pincéis e tintas. Convencido de que se achava diante de um grande artista, o rei disse:

- Quero que meu castelo seja o mais belo da Europa. Ninguém entende tanto de arte quanto eu. Vou contratá-lo para pintar dois murais.

- Ah, mas meu talento custa caro, Majestade. E, além do mais, minha arte só pode ser apreciada por pessoas cultas e eruditas! - disse Tyll.

- Multo bem - disse o rei. - Do que você‚ precisa? Quer pincéis e tintas?

- Quero, primeiro, um baú cheinho de moedas de ouro - respondeu Tyll - , e depois o melhor material de pintura que Sua Majestade puder encontrar. .

Muitos dias se passaram e o rei reparou que Tyll ainda não começara a trabalhar. Até que, afinal, ele mandou trancar a porta que dava para o local ande deveria pintar os murais e desapareceu da corte por dois dias dizendo que precisava terminar seu trabalho. Quando voltou, reuniu os membros da corte e, antes de retirar os panos que cobriam os murais, anunciou:

- Fiz uma verdadeira obra de arte. Mas ela só pode ser vista por pessoas inteligentes. Os ignorantes jamais poderão apreciá-la. Em seguida, ordenou que descobrissem os murais. Ninguém conseguiu ver nada, mas, temendo ser chamados de burros, os nobres elogiaram o trabalho. Uma jovem, que desejava impressionar o rei, disse:

- Que lindos castelos o senhor pintou aqui, mestre Tyll.

- Castelos? Creio que minha dama se engana - disse ele. - Será que é realmente capaz de ver minha arte? Pois esta é uma paisagem, e de incrível beleza!

A nobre saiu correndo, envergonhada, e Tyll continuou a falar, humilhando todos os que queriam parecer inteligentes.

Poucos dias depois, a velha cozinheira do rei entrou no sal e viu as paredes nuas e gritou:
- O que é isso, meu rei? Ficou todo mundo louco? Ninguém está vendo que não tem nada pintado nessas paredes?

Quando o rei e seus nobres finalmente perceberam que tinham sido enganados, Tyll, com seu baú de moedas de curo, já estava longe e dando multas risadas.

Fonte:
http://www.snips.com

Folclore Alemão (O rei que queria alcançar a Lua)

Era uma vez um rei muito mimado e teimoso. Todo mundo tinha que fazer exatamente o que ele desejava.

Certa noite ele olhou pela janela e cismou que queria tocar a Lua. Simplesmente não se conformava com o fato de que a Lua fica tão longe de todos nós, até mesmo dos reis.

Mandou construir uma torre altíssima, que chegasse até o céu. Pensava que subindo no topo da torre alcançaria a Lua. Mandou chamar vários construtores e todos lhe diziam a mesma coisa:
- Majestade! É impossível fazer uma torre dessa altura.

E o rei gritava:

- Impossível ‚ uma palavra proibida neste reino. Eu quero a torre e ponto final!

Até que um carpinteiro lhe falou:

- Majestade, se empilharmos mil móveis, acho que alcançaremos o céu!

O rei gostou tanto da idéia que obrigou todos os súditos a amontoar seus móveis. E pobre de quem se recusasse: era levado direto para a prisão!

Naturalmente, quando todos os móveis do reino foram empilhados, o rei descobriu que eles não conseguiam atingir o céu. Então, mandou cortar todas as árvores do reino para fabricar mais móveis e colocá-los na pilha. Quando os carpinteiros que ele contratara acabaram seu trabalho, o rei teimoso sorriu, satisfeito. Sua torre de móveis alcançava as nuvens. Rindo, gritando, ele correu e começou a escalar a pilha até chegar ao topo. E, quando percebeu que nem assim era capaz de tocar a Lua, gritou furioso:

- Quero mais móveis!

E um carpinteiro lhe respondeu:

- Impossível, não há mais madeira!

E o rei ordenou:

- Tire o móvel que está na base da pilha e traga-o para o topo, porque a palavra impossível é proibida no meu reino.

O carpinteiro obedeceu e o que aconteceu já se sabe: a pilha desmoronou e o rei despencou lá de cima. E foi assim que terminou a história do rei teimoso.

Fonte:
http://www.snips.com

LUIS VAZ DE CAMÕES (c.1517 – 1580)

Sua Vida
Luís Vaz de Camões, um dos maiores poetas da língua portuguesa e uma das maiores expressões da literatura épica universal.

Sua bibliografia é obscura. Filho de nobres empobrecidos não se sabe se nasceu em Lisboa ou em Coimbra, embora tenha feito seus estudos em Coimbra. Também não sabem o ano em que nasceu, se foi em 1517, 1524 ou 1525. Por volta e 1542, encontrava-se em Lisboa, onde freqüentava círculos palacianos e, provavelmente, o próprio paço. Talvez tenha sido preceptor do filho do Conde de Linhares. Exilado no Ribatejo devido ao seu romance com Catarina de Ataíde, viajou até Ceuta, para participar da guerra. De regresso a Lisboa em 1549 ou 1550, feriu com espada um certo Gonçalo Borges, sendo preso por essa razão nos calabouços do Tronco. Libertado em 1553, embarcou para a Índia a bordo da nau São Bento. Participou de varias expedições à costa de Calabar, mar Vermelho e golfo Pérsico. Em 1557, ou 1558, foi para Macau, onde talvez tenha exercido o cargo de provedor de defuntos e ausentes. Por motivos ignorados, foi obrigado a retornar a Goa, sob prisão. A nau em que viajava naufragou em frente ao golfo de Tonquim, e Camões alcançou a nado o rio Mekong, savando o manuscrito de Os Lusíadas, já em fase avançada de produção. Chegou a Goa em fins de 1559 ali ficando até 1567, quando embarcou para Portugal. O capitão da nau, porem, deixou o poeta nas costas de Moçambique onde Diogo do Couto foi encontra-lo paupérrimo e vivendo da caridade dos amigos. Conduzido a Portugal em fins de 1569 ou inicio de 1570, fixou-se em Lisboa. Em 1571, obteve licença da Inquisição para publicar seu livro, Os Lusíadas, que só saíram em 1572. Nesse ano, um alvará de D.Sebastião concedeu-lhe uma tença anual de 15.000 réis, durante um período de três anos. Em 10 de junho de 1580, morreu num hospital na mais completa miséria.

Suas Obras

Alem de Os Lusíadas, apenas pequena parte de sua obra foi publicada em vida; três pequenas peças líricas em livros alheios: a ode "Aquele único exemplo", nos Colóquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, de Garcia da Orta (de 1563); a alegria "Depois que Magalhães teve tecida"; e o soneto "Vós, ninfas de gantética espessura", nas páginas preliminares do livro História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamam de Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo (1576). A totalidade da obra dramática (Anfitriões, Filodemo e Alto d`el rei Seleuco), quase toda a lírica e as cartas são de publicação póstuma. Profundo Conhecedor tanto do estilo poético latino quanto das trovas e cantigas populares, praticou todos os gêneros poéticos. Fez versos tradicionais, em redondilha, com cinco ou sete silabas, e cultivou todos os gêneros clássicos: a écloga de Virgílio, a ode de Horácio, a canção e o soneto de Petrarca, a alegria, etc. e foi primeiro poeta português a escrever uma epopéia clássica. A obra lírica de Camões – típico representante na Renascença portuguesa – oscila entre dois pólos: a atitude espontânea, em que o poeta da vazão a sua experiência intima, e a postura puramente artística, com que pretende desligar-se do clima emocional, atingindo pleno domínio da forma. Na segunda, Camões revela-se um artesão sutil e delicado; ordenando imagens em antítese e paradoxos, antecipou-se à explosão barroca.

Poesia épica de Camões:

Os Lusíadas

Forma: A mais importante epopéia em língua portuguesa teve como modelo literário a Ilíada e a Odisséia, do poeta grego Homero. Camões compôs "Os Lusíadas" em 10 cantos, divididos em 1.102 estrofes regulares de 8 versos cada uma, totalizando em 8.816 versos.

Todas as estrofes tem o mesmo esquema rítmico: abababcc, ou seja, rimas cruzadas em 6 versos e emparelhada em dois. São versos decassílabos heróico e o poema se organiza em:
Proposição do assunto (canto 1, estrofe 1 - 3)
Invocação às Tágides, musas do rio Tegio (canto 1, estrofes 4 - 5)
Dedicatórias a D. Sebastião (canto 1, estrofes 6-18)
Narração da viagem de Vasco da Gama (estrofes 19 - 1.045)
Epílogo, contendo um fecho dramático a respeito da cobiça e o episodio da ilha dos Amores (estrofe 1.046 - 1.102)

Enredo:

Canto I – Inicia-se a narração com a armada de Vasco da Gama já a caminho de Moçambique. Ocorre, no Olimpo, o Concílio dos deuses: Baco é contra a viagem; Vênus e Marte são a favor. Marte propõe que Mercúrio guie os portugueses. Baco instrui o rei de Moçambique contra os portugueses, mas Vasco da Gama prossegue até Mombaça (o Quênia).

Canto II – Baco continua as suas manobras, instigando os mouros contra os lusitanos. Vênus intercede Juno a Júpiter, que prever glória aos portugueses. Mercúrio aparece num sonho de Vasco da Gama e o aconselha a ir para Melinde. Lá, o navegante começa a contar ao rei história de Portugal.

Canto III – Fazem parte do relato ao monarca de Melinde os episódios de Egas Moniz, o da batalha do Salado e o do Inês de Castro.

Canto IV – Procegue a historia de Portugal, estando em foco a ascensão do Mestre de Avis e o episodio do velho do Restelo: um ancião que aparece na praia do Restelo, advertindo os portugueses sobre os perigos provocados pela vaidade e desejo de fama.

Canto V – Vasco Da gama continua narrando ao rei de Melinde sobre como navegou perigosamente pela costa africana. Em foco, o Fogo de Santelmo, a tromba marítima e o episódio do Gigante Adamastor, figura mítica que personifica o Cabo das Tormentas, mais tarde chamado de Cabo da Boa Esperança.

Canto VI – A frota deixa Melinde rumo as Índias. Baco pede ajuda a Netuno, Deus do mar contra os portugueses. Éolo - Deus dos ventos – desencadeia uma tempestade, mas Vênus intervem e manda as ninfas seduzirem os ventos. A esquadra chega a Calicut (na Índia).

Canto VII – Descrição da Índia. Desembarque e entrevista com o Samorim (rei Hindu). O catual (regedor) visita a frota e pede a Paulo da Gama que Explique os significados das Bandeiras.

Canto VIII - Explicação detalhada de Paulo da Gama sobre os grandes vultos de Portugal. Baco, em sonho, instruiu um sacerdote mulçumano contra os portugueses. Vasco da Gama é preso e trocado por mercadorias.

Canto IX – Os catuais tentam retardar a volta da frota, mas a armada parte. Vênus resolve compensar os lusitanos e ordena a Cupido e à Fama que preparem a Ilha dos Amores. As ninfas lá se instalam e Tétis, deusa dos oceanos, recepciona os portugueses.

Canto X – Banquete no palácio de Tétis, que apresenta a Vasco da Gama a "máquina do mundo", que é a descrição do universo e da Terra.

Poesia Lírica de Camões

A obra lírica de Camões é constituída de poemas feitos na medida velha e na medida nova. A medida velha obedece a poesia de tradição popular, as redondilhas, de 5 ou 7 sílabas (menor ou maior, respectivamente). São composições com um mote (um tema) que se desenvolve em glosas.

Os poemas em medida nova são formas poéticas ligadas a tradição clássica. São eles:
Sonetos (composições poéticas de 14 versos, distribuídas em dois quartetos e dois tercetos);
Éclogas (poesia em forma de diálogo, com tema pastoril);
Elegias (composições que expressam tristeza);
Canções (composições curtas);
Oitavas (poemas com as estrofes de 8 versos);
Sextinas (poemas com as estrofes de 6 versos).

O amor, na poesia lírica de Camões, aparece como um sentimento que leva o homem, tornando-o capaz de atingir o Bem, a Beleza e a Verdade. Também aparece como um sentimento contraditório pela própria natureza. De um lado, ele é manifestação do espírito; de outro, é manifestação carnal. Para Camões, o amor deve ser experimentado, e não apenas intelectualizado. Em sua poesia lírica, o poeta passa a idéia de que o amor só vale a pena quando é complexo, e contraditório. Nos poemas de medida velha, Camões está mais próximo da poesia popular medieval, já nos de média nova aproxima-se de grandes vultos clássicos como o italiano Petrarca, por exemplo.

Exemplos de Poesias Líricas de Camões:
Medida Velha:
Descalça vai para a fonte
Mote
Descalça vai para a fonte
Lianor, pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
Voltas
Leva na cabeça o pote,
Os textos nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote;
Trás a vasquinha de cote,
Mais Branco que a neve pura;
Vai fermosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro o entrançado,
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura:
Vai fermosa, e não segura.

Medida Nova

A parte mais representativa das poesias líricas camonianas são os seus sonetos – todo em versos decassílabos – e que apresenta um verdadeiro ideário do amor.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferente em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto
E, afora esta mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de amor espanto,
Que não se muda já como soía.

Abordagem sobre o Trabalho de Camões

Da obra de Camões foram publicados, em vida do poeta, três poemas líricos, uma ode ao Conde de Redondo, um soneto a D. Leonis Pereira, capitão de Malaca, e o poema épico Os Lusíadas. Foram ainda representadas as peças teatrais Comédia dos Anfitriões, Comédia de Filodemo e Comédia de El-Rei Seleuco. As duas primeiras peças foram publicadas em 1587 e a terceira, apenas em 1645, integrando o volume das Rimas de Luís de Camões, compilação de poesias líricas antes dispersas por cancioneiros, e cuja atribuição a Camões foi feita, em alguns casos, sem critérios rigorosos. Um volume que o poeta preparou, intitulado Parnaso, foi-lhe roubado.

Na poesia lírica, constituída por redondilhas, sonetos, canções, odes, oitavas, tercetos, sextinas, elegias e éclogas, Camões conciliou a tradição renascentista (sob forte influência de Petrarca, no soneto) com alguns aspectos maneiristas. Noutras composições, aproveitou elementos da tradição lírica nacional, numa linha que vinha já dos trovadores e da poesia palaciana, como por exemplo nas redondilhas «Descalça vai para a fonte» (dedicadas a Lianor), «Perdigão perdeu a pena», ou «Aquela cativa» (que dedicou a uma sua escrava negra).

É no tom pessoal que conferiu às tendências de inspiração italiana e na renovação da lírica mais tradicional que reside parte do seu gênio.

Na poesia lírica avultam os poemas de temática amorosa, em que se tem procurado solução para as muitas lacunas em relação à vida e personalidade do poeta. É o caso da sua relação amorosa com Dinamene, uma amada chinesa que surge em alguns dos seus poemas, nomeadamente no conhecido soneto «Alma minha gentil que te partiste», ou de outras composições, que ilustram a sua experiência de guerra e do Oriente, como a canção «Junto dum seco, duro, estéril monte».

No tratamento dado ao tema do amor é possível encontrar, não apenas a adoção do conceito platônico do amor (herdado da tradição cristã e da tradição e influência petrarquista) com os seus princípios básicos de identificação do sujeito com o objeto de amor («Transforma-se o amador na cousa amada»), de anulação do desejo físico («Pede-me o desejo, Dama, que vos veja / Não entende o que pede; está enganado.») e da ausência como forma de apurar o amor, mas também o conflito com a vivência sensual desse mesmo amor. Assim, o amor surge, à maneira petrarquista, como fonte de contradições, tão bem expressas no justamente célebre soneto «Amor é fogo que arde sem se ver», entre a vida e a morte, a água e o fogo, a esperança e o desengano, inefável, mas, assim mesmo, fundamental à vida humana.

A concepção da mulher, outro tema essencial da lírica camoniana, em íntima ligação com a temática amorosa e com o tratamento dado à natureza (que, classicamente vista como harmoniosa e amena, a ela se associa, como fonte de imagens e metáforas, como termo comparativo de superlativação da beleza da mulher, e, à maneira das cantigas de amigo, como cenário e/ou confidente do drama amoroso), oscila igualmente entre o pólo platônico (ideal de beleza física, espelho da beleza interior, manifestação no mundo sensível da Beleza do mundo inteligível), representado pelo modelo de Laura, que é predominante (vejam-se a propósito os sonetos «Ondados fios de ouro reluzente» e «Um mover d'olhos, brando e piedoso»), e o modelo renascentista de Vénus.

Temas mais abstratos, como o do desconcerto do mundo (expresso no soneto “Verdade, Amor, Razão, Merecimento” ou na esparsa “Os bons vi sempre passar/no mundo graves tormentos”), a passagem inexorável do tempo com todas as mudanças implicadas, sempre negativas do ponto de vista pessoal (como observa Camões no soneto «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»), as considerações de ordem autobiográfica (como nos sonetos «Erros meus, má fortuna, amor ardente» ou «O dia em que eu nasci, moura e pereça», que transmitem a concepção desesperançada, pessimista, da vida própria), são outros temas dominantes da poesia lírica de Camões.

No entanto, foi com Os Lusíadas que Camões, embora postumamente, alcançou a glória. Poema épico, seguindo os modelos clássicos e renascentistas, pretende fixar para a posteridade os grandes feitos dos portugueses no Oriente. Aproveitando a mitologia greco-romana, fundindo-a com elementos cristãos, o que, na época, e mesmo mais tarde, gerou alguma controvérsia, Camões relata a viagem de Vasco da Gama, tomando-a como pretexto para a narração da história de Portugal, intercalando episódios narrativos com outros de cariz mais lírico, como é o caso do da «Linda Inês». Os Lusíadas veio a ser considerado o grande poema épico nacional. Toda a obra de Camões, de resto, influenciou a posterior literatura portuguesa, de forma particular durante o Romantismo, criando muitos mitos ligados à sua vida, mas também noutras épocas, inclusivamente a atual. No século XIX, alguns escritores e pensadores realistas colaboraram na preparação das comemorações do terceiro centenário da sua morte, pretendendo que a figura de Camões permitisse uma renovação política e espiritual de Portugal.

Amplamente traduzido e admirado, é considerado por muitos a figura cimeira da língua e da literatura portuguesas. São suas a coletânea das Rimas (1595, obra lírica), o Auto dos Anfitriões, o Auto de Filodemo (1587), o Auto de El-Rei Seleuco (1645) e Os Lusíadas (1572)

Fontes:
- Salomão de Oliveira Júnior. Camões. Trabalho de Literatura. Escola Técnica Virgínia Patrick.
-
http://www.astormentas.com/

Luis Vaz de Camões (Sonetos)

SONETO 005

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

SONETO 042

Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
vivas faíscas me mostrou um dia,
donde um puro cristal se derretia
por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
por se certificar do que ali via,
foi convertida em fonte, que fazia
a dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
causa o primeiro efeito; o pensamento
endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera num momento,
de lágrimas de honesta piedade
lágrimas de imortal contentamento.

SONETO 113

Lembranças que lembrais meu bem passado
para que sinta mais o mal presente,
deixai-me (se quereis) viver contente,
não me deixeis morrer em tal estado.
Mas se também de tudo está ordenado
viver (como se vê) tão descontente,
venha (se vier) o bem por acidente,
e dê a morte fim a meu cuidado.
Que muito milhor é perder a vida,
perdendo-se as lembranças da memória,
pois fazem tanto dano ao pensamento.
Assi que nada perde, quem perdida
a esperança traz de sua glória,
se esta vida há-de ser sempre em tormento.

SONETO 007

O fogo que na branda cera ardia,
vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo,
por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se encendia,
da grande impaciência fez despejo,
e remetendo com furor sobejo
vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve
[a] apagar seus ardores e tormentos
na vista de que o mundo tremer deve.
Namoram se, Senhora, os Elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.

Fonte:
http://www.bibvirt.futuro.usp.br/

Folclore Indigena (Anhangá, a Mâe do Mato)

Do tupi-guarani, "anhang", significando: ang - ALMA nhã - CORRER; ou seja, "uma alma que corre".

O Anhangá é, portanto, um espírito, e como tal, "invisível" que vive e corre nas matas, protegendo os animais e seus filhotes.

O Padre Tastevin não discrepa da opinião clássica quanto à etimologia do vocábulo:

- Anhangá - etim. - Anhu, só alma; espírito maligno. Designava também as almas dos finados como consta da expressão - Anhangá y yora, viúva. i.e. o marido dela é Anhangá.

O Anhangá pode apresentar-se sob a forma de um pássaro (galinha do mato), rato (soiá), morcego, macaco (jurupá). É também identificado como um veado branco com olhos de fogo com uma cruz no meio da testa, dotado de espírito andarilho, com a missão de proteger os animaizinhos nos prados, mas principalmente as fêmeas prenhas. Se bem que seja essa sua aparição mais comum, encontram-se no fabulário da região norte diferentes formas de sua presença: Mira-anhangá, Tatu-anhangá, Suasu-anhangá, Tapiira-anhangá, ou seja, visagem de gente, de tatu, de veado e de boi.

Em qualquer caso e qualquer que seja visto, ouvido ou pressentido, o Anhangá traz para aquele que o vê, ouve ou pressente certo prenúncio de desgraça, e os lugares que se conhecem como freqüentados por ele são mal-assombrados.

Nas cartas dos padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim fala-se de Anhanga como de um espírito malfazejo, temido pelos indígenas. O alemão Hans Staden chamou-o Ingange. O franciscano André Thevet registrou-o também. São todos do século XVI. Thevet (1558) notou que o Anhangá não tinha forma positiva. O certo era atormentar os viventes. Jean de Léry, o huguenote macio e doce, anotou o seu complicado Aygnhan, irmão de Agnan de Thevet, atormentador das gentes tupinambás. Até a lembrança do Aygnhan os fazia sofrer.

Onde a mesma assobia, a caça desaparece como por encanto.

Existem caçadores espertos que com ela estabelecem um trato, tão logo reconhecem seu assobio:

-"Minha comadre, me dê uma boa caça, que eu lhe dou como presente um pouco de tabaco." Se a pessoa é atendida, deve cortar uma vara, rachar a ponta da mesma, nela introduzir o tabaco, folhas de abade e fósforo. Espetar então a vara nas proximidades em que a caça foi abatida, dizendo:
-"Comadre, aí está o tabaco prometido".

Todos dizem que quando alguém se dispõe a procurar o ofertório, não o encontra mais. Age por intermédio de "tratos", sendo um para cada pedido. Seu assobio se assemelha a de uma anta e o "remorso" somente se apresenta com esse assobio. Se alguém fizer pouco caso da Anhangá, apanha na hora, sem saber de quem, como se fosse atacado por alguma pessoa armada de um pedaço de pau.

Para evitá-la, deve-se acender foguetes com duas ou três cargas, antes de entrar na mata. Outra maneira é a defumação com a castanha de cajú ou ainda, a maneira mais fácil, é fazer uma cruz de madeira encontrada na própria mata.

O caçador desprevenido que aproximar-se do anhangá achando que é um veado e tentar abatê-lo, terá uma desagradável surpresa, pois expelindo fogo pelos olhos, o atacará com incontrolável fúria, despertando um pavor de morte.

A LENDA (colhida por Antônio Brandão de Amorim)

Antigamente, contam aqui mesmo, o veado começou comendo a roça de toda a gente.

Ninguém via nada no caminho, só havia maniva quedrada.

Aqui, ali, além, era assim mesmo, ninguém sabia o que estragava as roças.

A roça já queria acabar, contam, quando um homem foi espiar a roça dele: levou zarabatana para flechar com ela.

Ele, contam, trepou em cima, já de tarde, quando o sol sumiu, viu aparecer um veado na beira da roça.

Mesmo diante de seus olhos, viu esse veado virar numa velha, pegar imediatamente num uaturá, começar a tirar a folha de maniva!

O homem estava quieto, não fez mais do que ouvir essa velha dizer:
-Enredo é mesmo feio, contra mim. Todos me querem matar, por causa da minha maniva. Eu os deixei bolir comigo, então esconderei no mesmo instante minha planta para eles não comerem mais sua raiz.

O homem, ouviu bem o que esse veado disse e, no mesmo instante, desapareceu pelo meio do mato.

O homem desceu logo, foi para casa. Ele não disse nada a ninguém.

Outros donos da roça espiaram também; e eles contam também que depois virou num velho, um veado. Todos os que viram o veado virar gente, não contaram em casa.

Assim, a roça deles foi acabando.

Um dia chegaram debaixo dois moços, a eles contaram logo a respeito das roças.

Os moços disseram:
- Amanhã havemos de ir espiar as roças.
- Eu ficarei aqui, esse meu companheiro irá para acolá.

Assim eles fizeram. Quando já de tarde, cada um deles foi para as roças. Só já de noite, contam, apareceu a veada, o moço a flechou logo de curabi, matou-a imediatamente.

A esse outro moço também apareceu aquele veado, ele a matou imediatamente.

Nessa noite, eles espiaram ainda para ver se havia outra coisa que comesse a roça.

Amanheceu e nada apareceu; eles levaram logo sua embira para casa, quando ali chegaram disseram:

-Aqui está quem estragava a roça de vocês.
- Agora é bom vocês comerem com maniçoba.

Assim mesmo o outro moço disse ao outro dono da roça.

Como a carne fresca é sem gosto, os donos das roças moquearam os veados para comer com maniçoba.

Mesmo dentro de casa eles moquearam.

Quando já de manhã foram biscar do moquém para por com maniçoba, os quartos já estavam todos de gente sobre o moquém! Cabeça de gente sobre eles estava, mostrava todos os dentes como quem se ri! Na outra casa aconteceu o mesmo.

Num instante eles jogaram no rio toda a moqueada. Queriam esquecer-se desse agouro; não podiam fazê-lo, porque cheiravam em casa pixé de carne de gente.

Já então eles fizeram outra casa para se mudar. Então já não cheiravam pixé de gente.

Duas luas depois, contam, apareceram do Papuri pessoas que procuravam seu avô e a mulher dele que tinham dali sumido. Então essa gente soube que aqueles dois veados foram quem estragaram a roça deles.

Assim lhes sucedeu, por isso hoje em dia a gente não moqueia mais veado dentro de casa.

O Padre Tastevin recolheu uma outra lenda, mais ou menos semelhante. Os negros Ba Kamba contam que um caçador encontrou dois antílopes que estragavam sua roça, e matou a fêmea e levou-a para a aldeia.

Apesar de morta, esfolada, preparada, levada para o fogo, a antílope conservava a voz humana e perguntou para onde a levam. Assando, ainda fala. Quem comeu da antílope morreu. Sacudiram o resto no mato. Imediatamente o corpo se recompôs e a antílope, sã e completa, reganhou, numa carreira veloz, a floresta.

Karl Von del Stein lembra que os Bororos não matavam nem comiam o veado-campeiro, o Suçuapara (Cervus campestris). A crença geral é que um veado, saindo do mato, anuncia um acontecimento grave...se não for abatido com um tiro certeiro.

Hans Staden, por sua vez, também descreve o mesmo tipo de fenômeno: "(...) Dormem em redes penduradas, a que dão o nome de ini (...) Durante a noite, uma fogueira permanece acesa ao lado da rede. E, mesmo para fazer suas necessidades, os selvagens não gostam de sair das cabanas sem levar uma tocha, tamanho o medo que sentem do demônio chamado por eles de Anhangá, que acreditam ver com freqüência. (...)"

Já André Thevet, conta: "(...) estes pobres americanos deparam muitas vezes com um determinado espírito que ora assume uma forma, ora outra. Chama-se Anhã (nota: no original Agnan). Este demônio persegue-os frequentemente, de dia e de noite, atormentando não só as almas, mas também - e especialmente - os corpos. Anhã castiga e machuca excessivamente os índios, fazendo com que por vezes se posa ouvi-los gritando medonhamente e suplicando a algum cristão que porventura se encontre por perto: "Não estás vendo que Anhã me bate? Defende-me, se quer que te sirva e corte muitas árvores para ti" (isto porque algumas vezes trabalhavam para nós, cortando pau-brasil, pelo que lhes damos alguma ninharia). Por esta razão, temem sair de suas ocas à noite, a não ser que levem consigo uma tocha, pois acham que o fogo é um soberano remédio e defesa segura contra tal inimigo. "

SIMBOLISMO

Muitos animais foram associados à Cristo, já outros ao Demônio e aos seus sectários. Anhangá, adquiriu uma conotação diabólica, em virtude do diabo muitas vezes tomar forma de animal, segundo alguns demonólogos. A imaginação popular se encarregou te tecer lendas a respeito do assunto. Mas, na verdade, Anhangá é um espírito do "bem", que tenta proteger a floresta e os animais do predador "homem".

A caça para o homem, possui dois simbolismos. De um lado, a morte do animal, o que representa a destruição da ignorância, das tendências nefastas; do outro, a procura da caça, o que significa e procura espiritual. A caça é legítima, uma vez que produz refeições comunitárias, mas também desperta o sentido selvagem no homem.

Nos animais projetamos todos os nossos ódios, nossos desejos, nossas paixões, nossos amores e nossos temores.

Para evoluir, o ser humano deve exercer sobre si mesmo uma caçada ritual, na qual é, a um só tempo, a caça e o caçador. O anhangá, portanto, propicia a todo caçador que não seguir as regras da natureza, a tornar-se a caça.

Com certeza temos muito que aprender com os animais.

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Folclore Indigena (Agaíba)

Filha de Sarapó, a velha rendeira, com o semi-deus Guajupiá, Agaiba era também sobrinha da grande feiticeira Taguaiba, irmã de Acatú, o belo deus. Ainda era, neta da divina Jururá-Açu, deusa que juntamente com as sacras Parajás, comanda as chuvas e o orvalho.

Um dia, estava Agaiba junto da bela praia de Timbáu. Segundo uma lenda, nesta praia vivia o famoso guerreiro Canindo da tribo dos Cariris. Colhia a virgem as belas itãs bivalves que o lendário rio Guajú, atira naquela linda praia, pelos direcionados Polo, deus das ventanias, das rajadas e dos ventos brandos e tempestuosos.

Neste momento, Xandoré, o demônio do mal e do ódio, sussurrou nos ouvidos da doce guerreira que, tendo ela, toda sua procedência divina, poderia perfeitamente chegar ao sacro Ibiapaba, bastava-lhe que reunisse na montanha Cuité, todos os bravos guerreiros de todas as tribos e lá então construíssem uma alta torre. Então imediatamente, mandou convidar através de emissários especiais, todas as nações deste do extremo norte do litoral brasileiro, até as barras do lendário Chuí, localizado do extremos sul.

Responderam ao seu chamado, famosos guerreiros, lindas e valentes guerreiras, poderosos pajés e muitos morubixabas destemidos. Na famosa Cairú, junto as terras das verdes jutas, Agaiba os recebeu com festas, que duraram três dias e Três noites com o acompanhamento de suaves músicas, danças e cânticos sagrados. Depois de tanto festejo, Agaiba conduziu a todos para a montanha do Cuité, onde dá início a sua soberba obra de engenharia, que se constituiria em uma torre de pedras, barro, troncos do férreo ubiratã, para poderem assim, alcançar os céus de Tupã. Porém, o sacro deus e Senhor dos Deuses, ficou muito aborrecido com semelhante audçia e descendo do divino Ibiapaba em companhia de Caramurú, deus dos raios, destruiu totalmente a construção dos mortais, matou com uma labareda divina, a soberba Agaiba e confundiu a língua dos guerreiros, de tal modo, que ninguém mais se entendia. Assim, se espalharam os guerreiros por toda a terra, dando origem as várias nações de língua travada.

Então, de um só tronco, nasceram os dois maiores grupos de guerreiros, os Tupis e os Guaranis, além de outros grupos menores que foram os Tapuias, os Caraibas e outros. E assim, Tupã castigou o orgulho dos mortais e o nome Agaiba, ficou sendo o sinônimo de maldade por muitos e muitos anos, entre as tribos e entre guerreiros e guerreiras.

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Folclore Indigena (A Filha da Chuva)

O indígena vive em paz e integrado com a Natureza (hoje já não são todos que dispõe deste privilégio!). Acreditam também que todas as plantas possuem alma e são símbolos da vida humana. Isso se explica, pelo seu modo de observação do universo, acentuadamente antropomorfo. Há inclusive tendências totêmicas, no sentido de existência de parentesco com determinadas plantas.

A Natureza para o índio, não é passiva, objetiva, neutra e muda, mas é um ente integrante de sua sociedade. Observem que a categoria que comanda as relações entre o homem e a Natureza é, para a modernidade ocidental, a da produção concebida como ato de subordinação da matéria ao desígnio humano.

Já para as sociedades indígenas da Amazônia, a categoria paradigmática deste contexto é a da reciprocidade, a da comunicação simbólica entre sujeitos que se interconstituem pelo mesmo ato de troca. Estes povos, portanto, vivem sob o signo de uma troca de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais habitantes do Cosmo e não de uma produção de bens sociais a partir de uma matéria informe.

É importante entendermos esta concepção indígena, para podermos desvendar seus mitos e compreendermos a dimensão do que lhe é sagrado, bem diversa dos povos civilizados em que o sagrado se apartou da universalidade da Natureza.

Ilustrando o que lhes digo:

Na fase final da festa Bemb (Caiapós), em marcha triunfal, os homens arrastam uma enorme árvore pela aldeia e erguem-na no meio de uma grande praça redonda. Os índios chamam tal árvore de “wari”.

Indagados pelo sentido de tal cerimonial, um deles respondeu:

-“Aquilo que para vocês significa bandeira, para nós Caiapós, é a árvore, wari”.

Mas vamos então a nossa lenda:

Nos tempos muito antigos, um grupo de índios Caiapós estava em uma jornada pelas matas e campos.. Os jovens corriam na frente, para encontrar o caminho.

Um desses jovens afastou-se de seus companheiros para fazer uma pequena necessidade. Encontrou então uma moça, sentada na raiz de uma imensa árvore. Era a filha da chuva, Nyobog-ti, ou seja, “a grande luz”.

O índio apressou-se em voltar para seus irmãos e chamou-os para mostrar-lhes o seu achado. Eles haviam trazido uma grande cabaça e dentro dela colocaram a moça. Em seguida, fecharam-na cuidadosamente e amarraram a tampa com cordas de algodão. Foi deste modo, que conseguiram transportar a filha da chuva sem que alguém percebesse.

Ao chegarem em casa, os irmãos esconderam a cabaça, pois nem à mãe queriam dizer que haviam encontrado a moça.

Passaram-se muitas luas sem que a mãe desconfiasse de coisa alguma. Mas certo dia, os jovens saíram para caçar e a senhora ficou sozinha em casa. Foi aí então, que ela descobriu a grande cabaça debaixo do teto da choça, coberta com folhas de palmeiras.

Cheia de curiosidade, a mãe dos jovens índios, desatou as cordas e levantou a tampa. Qual não foi a sua surpresa quando, no interior da cabaça, viu a moça.

-“Levanta-te”, falou a senhora, “de modo que eu possa vê-la melhor”.
-“Não quero”, respondeu a filha da chuva, “tenho vergonha”.
-“Mas vergonha de que?” indaga a mãe.
-“Por nada”, replicou a moça.
-“Gostaria tanto de te ver!”, insistiu a senhora.
-“Não quero, não quero que me olhes” retrucou a filha da chuva.

Daí a mãe enfiou a mão na cabaça, pegou a moça pelo braço e puxou-a para fora.

-“Venha, não tenhas medo”, falou “pois vou cortar teu cabelo e pintar-se, para ficares bonita”.

A filha da chuva sentou na beirada do jirau e a mulher começou a cortar o seu cabelo, raspando-o das entradas até a risca. Em seguida pintou-a: primeiro com a cor de urucu, aplicando-lhe uma faixa larga de vermelho, bem vivo, atrás do rosto e em volta dos olhos. Também pintou de vermelho o corpo, os braços e as pernas. Com traços finos fez um motivo artístico, usando a cor preta, brilhante, do jenipapo. Pintou a moça do mesmo modo que as mulheres Caiapós se pintam até hoje.

Tão logo acabou o trabalho, seu marido voltou para casa e ao ver a moça sentada na beirada do jirau, perguntou:

-“Mulher, por que libertaste a filha da chuva?”
-“Ora, eu queria vê-la, mas ela estava do jeito que caiu do céu, nada bonita, por isso, raspei seu cabelo e pintei-a. Agora ele ficou bonita, igual a qualquer uma de nossas moças. Agora ela é nossa parente e ninguém pode bater nela ou mal”, respondeu a esposa.

E a filha da chuva ficou com eles por muitas e muitas luas, viveu na aldeia com as outras moças Caiapós. Mais tarde casou-se com um indígena e teve filhos.

Aconteceu, então, que, por bastante tempo, os homens não tiveram sorte nas caçadas e as mulheres encontraram poucos frutos silvestres. Nypbog-ti, seu marido e filhos, começaram a passar fome. Aí, a filha da chuva falou ao esposo:

-“Lá em cima, no Céu, onde estão meu pai e minhas irmãs, há muitas coisas gostosas. Lá crescem batata-doce, mandioca, macaxeira. Nas florestas há muita caça e também muitas tartarugas terrestres. Aliás, para comer, há de tudo que se possa imaginar”.
-“Então vá lá buscar algumas dessas coisas gostosas para termos o que comer”, propôs o marido.

No dia seguinte, bem cedo, ele partiu com Nyobog-ti. Deixaram a aldeia e foram para os campos. Lá, o marido, de braço forte, dobrou uma palmeira buriti, para que sua mulher sentasse na ponta da árvore. Aí, então, o índio soltou a palmeira, que voltou à sua posição normal com tanta velocidade e força que a mulher foi atirada ao ar. E a filha da chuva voou alto e sempre mais alto, até o Céu.

O marido foi deitar-se à sombra de uma palmeira para espera-la. Assim ficou até o meio-dia, quando o sol estava em posição vertical no Céu.

Daí, um pouco triste, falou para si mesmo:

-“Minha mulher me abandonou”. Quando estava se levantando para ir embora, ouviu atrás de si, uma voz:
-“Aqui estou de volta!”

O indígena olhou para trás e viu Nyobog-ti. Muito feliz, exclamou:

-“Olhe, aqui está minha bem-amada mulher, de volta! E quanta coisa trouxe: batata-doce, macaxeira, bolo de mandioca e banana.

No entanto, a mulher falou:

“Lá no Céu, de onde eu venho, onde moram meu pai, minha mãe e minhas irmãs, há mandioca e ainda muitas outras coisas boas para comer. Espere um pouco, eles virão nos visitar e trazer dessas coisas”.

Logo apareceram seu pai, a chuva, chamado Bebgorórotí, sua mãe e suas irmãs. Trazendo, como prometido, muitas coisas gostosas do Céu.

Bebgorórotí, dirigiu-se ao índio advertindo-o:

-“Jamais deve bater em minha filha. Agora vou voltar para o Céu. De lá sempre vejo minha filha e protejo-a”

A filha da chuva e seu esposo voltaram juntos dos campos para casa. Levaram para a aldeia dos Caiapós batata-doce, macaxeira, banana, bola de mandioca e ainda muitas outras coisas.

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Constance Mozart (Missa Fúnebre)

— Com licença, mas esse caso eu preciso contar...
— Pois não?
— Sabe como é, né? Fila de banco é fogo. Minha língua arde. Preciso falar alguma coisa.
— Entendo, entendo.
— Obrigado. A vida é estranha, o senhor deve saber como é, certo? É esquisito. Numa hora estamos aqui, na fila de um banco, esperando o pagamento, no outro, estamos dentro de um caixão, sendo pranteados. Olhe como é estranho: meu pai morreu faz uns doze anos e nunca fomos visitar seu túmulo.
— Que coisa.
— Pois é. E não pense, por favor, que somos filhos desnaturados. Não é isso. É que o cemitério fica tão longe...duas quadras, na verdade. Mas a preguiça mata. Tanto que meu pai morreu e nós herdamos esse mal. Somos em oito. Oito homens preguiçosos e só um se casou.
— Sei, sei.
— E esse que casou é o primogênito. Teve um filho que tinha sete anos quando meu pai morreu. É engraçado, sabe? Hoje o menino tem dezenove anos e, no ano passado, quis de aniversário uma coisa esquisita.
— O quê?
— Lavar, limpar e pintar o túmulo de meu pai. É a vida. Achamos que papai tivesse tomado posse do meu sobrinho exigindo a limpeza de seu túmulo.
— Nossa.
— Pois é. E fomos, eu e meu sobrinho, lavar, limpar e pintar o túmulo do falecido. Nunca tinha entrado no cemitério, nem meu sobrinho. Localizamos o túmulo e, enquanto eu lavava, limpava e pintava, André soprava as velas que estavam em cima do outro túmulo. Até que a boca dele entortou. Deu derrame.
— Puxa.
— Puxa? Isso não é nada. Mesmo com a boca torta, ele ajudou a limpar o túmulo. Sabe o que é limpar um túmulo que há doze anos não era limpo? Quase morri e me enterrei ali mesmo. Tá vendo a minha boca torta? Também entortou no cemitério.
— Você também assoprou as velinhas?
— Não. Pintei o túmulo errado.
==========
Sobre a Autora
Constanze Mozart (1983), também conhecida por Srta. Stanzi, é natural de Campinas (SP) e jura que nunca teve uma publicação em jornal, revista ou qualquer veículo que valha, pois nunca tentou algo desse tipo. É, segundo afirma, uma escritora frustrada. Cursa publicidade e propaganda na ESPM / ESAMC e realiza paralelamente seus estudos de piano com afinco, para, talvez, chutar a futilidade da propaganda e cair de dedos no incrível e maravilhoso mundo musical. Diz ser "dona de boletins subversivos e redatora oficial de minha turma de faculdade, conhecida por ser irônica e hilária quando me convém, porque quando não me convém sou uma verdadeira mala e acabo escrevendo coisas que só eu entendo.". Apaixonada pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, é tricampeã na leitura de Cem Anos de Solidão tem verdadeiras crises de histeria quando ouve seu nome. Por ser muito tímida, prefere não revelar o nome verdadeiro e usar um pseudônimo.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_constanze_missa.asp
http://sal.zip.net (imagem)

Adriana Costalunga (O Açougueiro)

Era dia de faxina na casa de Zulmira quando o toque insistente do telefone a fez descer do alto da escada onde limpava uma prateleira.

— Desculpe-me a ousadia... — foi o que logo ouviu de uma voz galante. — Há tempos venho ensaiando para te ligar...

O coração começa a bater descompassado. Quem diria? Alguém a notara por aí! E pensar que o marido nem chegou a perceber que pintara o cabelo de vermelho...

— Eu quero marcar um encontro com você...

Ao ouvir a proposta, Zulmira enrubesceu. O coração parecia querer pular fora de seu peito. E agora? O que dizer?

— E então? — insistiu a voz.
— Eu... eu... não posso... — gaguejou.

Quem seria este homem? Aquele vizinho novo que vivia às voltas com um poodle? Não! Ele parecia ter um jeito meio afetado. Deus meu!, seria o Odorico? O açougueiro? Bem que percebera que ultimamente ele sempre lhe escolhia a melhor peça...

— Eu sei que você é uma mulher casada... eu entendo... mas é apenas um encontro...
— Não, eu não posso! — repetiu com firmeza. Afinal de contas tinha lá os seus princípios, e ainda por cima dois filhos adolescentes. E se fosse mesmo o Odorico? Ah! O Odorico sim valia a pena. Um homem que mexia com a carne daquele jeito, o que é que não faria com uma mulher?
— Ninguém ficará sabendo... eu prometo! — continuou ele, persuasivo. – E tenho certeza que será uma noite inesquecível... Começaremos com um jantar à beira-mar... Depois iremos navegar durante a madrugada...

Zulmira deixava-se levar pela imaginação quando foi surpreendida por uma pergunta:

— Você gosta de ostras?
— Ostras? — repetiu, sem saber o que responder. Nunca comera ostras em toda sua vida, mas lera numa revista da cabeleireira que ostras eram afrodisíacas.
— Se você não gosta eu...
— Não! Imagine... gosto sim! — exclamou.
— Eu posso esperá-la amanhã à noite? — perguntou–lhe o homem. — Estou bastante ansioso para encontrá-la.

E agora? Deixaria a vida passar sem lutar por algumas boas lembranças? Este pensamento fora suficiente para convencê-la.

— Sim! — respondeu decidida. — Onde podemos nos encontrar?
— Faz o seguinte Telma: às 8:30 você me liga...
— Ei! Peraí! Meu nome não é Telma!
— Não?!! — exclamou o homem, aturdido.
— Não! — confirmou Zulmira, com a voz zangada.
— Mil perdões! — disse ele e desligou envergonhado num baque rápido.

E sem mais nada por esperar daquela tarde, Zulmira continuou a espanar a prateleira, pensando, de quando em quando, num longo suspiro, que a vida é assim mesmo.
=========

SOBRE A AUTORA
Adriana Costalunga (1968) é de Campinas (SP). Graduada em Comunicação Social, com Pós-Graduação em Administração, cursa a Faculdade de Direito. É redatora e revisora de textos de publicidade. Colaborou com crônicas para os jornais Diário do Povo, de Campinas, e Diário de Sorocaba. Atualmente estagia em um escritório de advocacia. Em 2006, lançou o livro "A arte de conquistar clientes", sobre empreendedorismo, pela R G Editores.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_acostalunga_acougueiro.asp

http://oglobo.oglobo.com (imagem)

Rachel de Queiroz(A Imagem Feminina)

Vocês já repararam que o Rio e as outras grandes cidades do Brasil não têm mudado muito em matéria de crimes? Na maioria eles sucedem dentro do binômio homem x mulher e se baseiam todos no amor. É fácil concluir, portanto, que o amor é a mais matadeira de todas as paixões.

O amor tem como condição primária ser exclusivo. E, como o ser humano tem como aspiração máxima a variedade, o amor acaba batendo de frente com tudo a que o homem aspira. Durante séculos admitiu-se que o privilégio da exclusividade pertencia ao homem. Antigamente, toda heroína de romance se ousava variar de amor, trair o prometido, era castigada imediatamente pelo autor, que não lhe consentia liberdade para tais assomos sem a devida punição. Foi o nosso grande Machado que liquidou com o binômio “crime e castigo” em matéria de amor.

Mas nem ele nem nenhum outro permitiu a uma heroína pecadora o direito de espezinhar, sem castigo, a lei e os bons costumes. Isso se deu não apenas no Brasil, mas no geral da literatura universal.

Os escritores chamados malditos, não recordo nenhum deles que fizesse a mulher triunfar dentro do crime e da maldição. Só é castigada com uma eventual condição de pobreza ou com a morte do amante. Quem quiser verificar essa afirmação é só correr a lista das amantes de romance: Mme. Bovary, a Dama das Camélias, etc.

Verdade que todos esses tipos são criações masculinas, e o homem, por melhor escritor que seja, tem a tendência de estereotipar a mulher: a má e a boa, a fiel e a infiel, e assim por diante. O mais sutil dos nossos romancistas, que foi Machado, só cria mulheres naturalmente tendentes para o engano, a mentira, a duplicidade. É, aliás, o que a crítica costuma chamar de sutileza esse esmero com que eles se empenham em interpretar o coração da mulher. Segundo eles, só as muito ingênuas, as quase imbecis, são capazes de um amor fiel e leal. As outras estão sempre a oscilar entre uma mentira e um passo em falso, entre um pouquinho de traição e uma dose necessária de fidelidade. Pensando bem, a literatura masculina só traduz as informações que eles acham ter do eterno feminino; afinal, eles só conhecem a mulher pelo que vêem e ouvem dela: como é que iriam saber realmente o que se passa dentro de um coração de mulher? Flaubert, um emérito conhecedor da alma feminina, traduz bem essa impotência masculina, diante do feminino, com a sua célebre frase: “Mme. Bovary c'est moi.” Quer dizer que ele, homem, pretende interpretar a sua criação feminina com sua própria alma de homem. Em que entra o feminino nisso? Se Mme. Bovary é ele, com quais elementos a formou? Se ele, grande autor, só consegue tirar informações sobre o feminino da sua experiência masculina, que crédito merecem essas informações? A carência é, pois, total. Os mestres da alma feminina, quando pensam em mulher, pensam em si próprios. Chega quase a ser ridículo. E a mulher continua, em todas as literaturas, um monstro indecifrável e, talvez por isso mesmo, irresistível.

Refiro-se apenas à literatura masculina. As mulheres escritoras não se desfazem em confissões, ou as que o fazem, em geral, se permitem mais confissões chocantes ou comoventes em vez de honestos estudos psicológicos. Como não ousam desnudar-se o texto da prosa, o que é mais chocante, tomam mais liberdade com a poesia, que lhes permite metáforas e confissões mais abertas.

Abrindo exceções quanto à pouca confessionabilidade da literatura feminina no geral, temos por exemplo Emily Brontë, que rasga todos os véus e não se esconde sob o seu eu feminino para se confessar.

Mas foi ela, e poucas mais.

Hoje em dia, com a permissibilidade geral sobre assuntos de sexo, as mulheres descerraram as cortinas com maior ou menor modéstia; sendo que a menor é a mais comum. Damas que normalmente estariam na condição de uma Colette se abrem em confissões que no tempo de um Zola escandalizariam. Essa intemperança atual tem o seu mérito. Acabaram-se os territórios fechados onde a mulher não poderia entrar. E se há excessos, por que os há, quanta coisa boa que hoje temos não seria escrita por mão de mulher, temerosa de pisar no terreno vedado dos autores masculinos. É o caso de se dizer: liberdade ainda que tarde.

Fonte:
O Estado de Minas - Belo Horizonte - MG, 11/06/2000 Rachel de Queiroz
http://www.academia.org.br/

Bernard Shaw (A Serenata)

Festejei o meu quadragésimo aniversário natalício, com uma daquelas representações teatrais pelas quais a minha casa em Backenham é famosa. A peça escrita por mim, como é costume, era uma história de fadas, em três actos e todo o seu enredo girava em torno de uma trompa mágica que o herói, um jovem príncipe persa, possuía. As minhas obras já são muito conhecidas para que valha a pena descrever o argumento em todos os seus pormenores. Devo, apenas, elucidar o leitor, que uma das importantes cenas do segundo acto é a interrupção de um festival pelo toque lúgubre da trompa do tal príncipe persa, enterrado no coração de uma montanha magnética, por uma feiticeira maligna. Eu contratara o cornetim da banda do meu regimento para se desempenhar do dito pormenor, e ficara combinado que ele iria colocar-se, não nos bastidores, mas lá em baixo, no «hall», para que o efeito fosse o de uma trompa ressoando ao longe.

A recepção começou muito bem. Houve um desapontamento natural ao saber-se que eu não representaria, mas os meus convidados desculparam-me de boa vontade, quando invoquei o meu duplo dever de dono da casa e director de cena. O melhor lugar do auditório fora reservado para a lindíssima Linda Fitznightingale. A cadeira ao lado, que eu destinara para mim, fora ocupada (com certo atrevimento) por Porcharlester do 12.º Regimento, um jovem muito amável, dotado de relativo talento musical e de uma voz de barítono afeminado que ele, sagazmente, muda para o tom de tenor. Como a paixão de Linda pela música se aproximava do fanatismo, aquela única faculdade vocal de Porcharlester dava-lhe aos olhos dela, uma vantagem sensível sobre todos os homens de físico mais sólido e de mais idade. Resolvi interromper aquele «flirt», assim que ficasse livre, o que não foi tão depressa como eu julgava, pois reconheço ser um tipo exigente, cuidando que tudo quanto possa vir a ser utilizado nas representações dadas em minha casa, esteja à mão e no seu devido lugar. Por fim, «Miss» Waterloo, que desempenhava o papel de heroína, queixou-se da minha ansiedade dizendo-me que eu a punha nervosa, e pediu-me que fosse para a sala. Obedeci da melhor vontade e apressei-me a encaminhar-me para onde Linda se encontrava. Quando me acerquei da sua cadeira, Porcharlester ergueu-se, dizendo:

- Vou dar uma olhadela pelos bastidores se é que é permitida a entrada, ali, a pessoas estranhas ao serviço...
- Pode ir - disse eu, encantado por me ver livre dele. - Mas não interfira em coisa alguma. O mais pequeno contratempo...
- Está bem - interrompeu-me ele. - Eu sei como o senhor é «miudinho». Garanto-lhe que não tirarei as mãos dos bolsos, todo o tempo.
- O senhor não deveria consentir na falta de respeito de Porcharlester para consigo, coronel Green - disse-me Linda, quando o outro se retirou. - Além disso, estou certa de que o rapaz não mexerá em nada, nos bastidores.
- Rapazes serão sempre rapazes. Aliás, as maneiras de Porcharlester não são diferentes das do general Johnston que já é um homem de idade avançada. Diga-me, como vão os seus estudos musicais?
- Oh, Schubert enfeitiçou-me, sabe? Ah, coronel Green, conhece a Serenata de Schubert?
- Conheço. Lindíssima. Não é assim? Tirara-ra, tirarara-ra, tira, tarirara-rô.
- Sim, é mais ou menos isso. Mr. Porcharlester saberá cantá-la?
- Tenta. Mas na minha opinião, ele só tem voz para a música ligeira. Em peças que exijam um sério sentimento, ideias profundas, simpatia amadurecida, não me parece que...
- Sim, sim, sei que o senhor não leva Mr. Porcharlester, a sério. Mas gosta da serenata?
- Hum! Bem, o facto é... e a senhora gosta?
- Adoro-a. Sonho com ela. Tenho vivido dessa música, nestes últimos dias!
- Confesso que a Serenata de Schubert sempre me pareceu uma peça de música de excepcional beleza. Espero ter o prazer de a ouvir, cantada por si, quando acabar a representação.
- Eu! Cantá-la? Oh, não me atrevo. Ah! Aí vem Mr. Porcharlester. Obrigá-lo-ei a prometer-me que a cantará, daqui a pouco.
- Green - disse Porcharlester, com mal disfarçado sarcasmo. - Não quero trazer-lhe preocupações desnecessárias, mas o tipo encarregado de tocar a trompa mágica, ainda não chegou.
- Santo Deus! - exclamei. - Disse-lhe para estar aqui, às sete e meia em ponto. Sem ele, a peça vai ser um fiasco.

Pedi perdão a Linda, pela minha brusca retirada e apressei-me a correr ao «hall». A trompa estava sobre a mesa. Porcharlester recorrera a um infame truque para se ver livre de mim. Eu estava já disposto a voltar, afim de lhe pedir uma explicação, quando me ocorreu que, de facto, o cornetim poderia ter deixado o instrumento ali, após o ensaio da manhã, e ainda não ter aparecido. Contudo, um criado que eu chamei, informou-me de que o homem chegara com uma pontualidade militar, às sete e meia e fora, de acordo com as minhas ordens, introduzido na copa, para tomar um copo de vinho e uma «sandwich».Porcharlester, ludibriara-me, pois. Quando o criado se retirou, deixando-me só e zangado, a minha curiosidade foi atraída para o brilho metálico da trompa, que jazia sobre a mesa. Entre os objectos inanimados que me rodeavam, aquele instrumento parecia silencioso e imóvel, num mundo à parte, como se, albergando em si um som aterrorizador, aguardasse o momento propício para o libertar.

Aproximei-me da mesa e, cautelosamente, tacteei com o dedo, um dos pistões. Após uma leve hesitação, ousei premi-lo. Soltou um estalido. Nesse momento, um ruído na copa, fez-me recuar, assustado. A campainha do contra-regra retiniu. Era o sinal para o cornetim se preparar para entrar em atenção.

Aguardei o aparecimento do homem, receoso de que ele notasse eu ter estado a mexer no instrumento. Mas ele não apareceu. A minha ansiedade aumentou; corri à copa. Ao entrar, deparei com o soldado de cabeça repousada sobre os braços cruzados à laia de travesseiro. Dormia regaladamente, e à sua frente estavam cinco canecas vazias. Agarrei-o pelo ombro e sacudi-o com violência. Ele resmungou, abriu os olhos, empurrou-me e recaiu na insensibilidade.

Enraivecido, jurando aos meus botões que o faria fuzilar no dia seguinte por insubordinação, voltei ao vestíbulo. A campainha retiniu, de novo. Este segundo sinal era para o soldado tocar a trompa. O palco esperava. Só havia uma maneira de salvar a situação. Agarrei o instrumento levei-o à boca, e soprei com força. Baldado esforço! O maldito não soltou um único som. Fiquei roxo de tanto soprar. De novo, a campainha rompeu, exigente, o silêncio da sala. Então, tomado de súbito furor, empunhei a trompa como se esta fosse um torno, enchi os pulmões, ferrei os dentes no bocal, como se o fosse trincar de lado a lado, e cuspi com toda a força. O resultado foi uma rajada ensurdecedora. Senti uma pancada tremenda nos tímpanos, os globos do candeeiro tremeram, os chapéus dos convidados saltaram das escápulas onde estavam pendurados, o soldado surgiu, à porta da copa, pálido, como se a trombeta do Dia de Juízo o tivesse arrancado do sono da morte, e eu, premindo com as palmas das mãos, as fontes latejantes, voltei-me para defrontar os convidados que me olhavam, boquiabertos, do alto da escadaria.

Durante os três meses seguintes, estudei a arte de tocar trompa, sob a direcção de um profissional. É certo que o homem me aborrecia com as suas maneiras de classe baixa e o seu enfadonho costume de repetir que a «trumpa», como ele lhe chamava, era o «enstromento» que mais se assemelhava à voz humana; mas sou forçado a reconhecer a sua competência e boa vontade. E eu perseverava, apesar dos múltiplos protestos dos meus vizinhos. Por fim, aventurei-me a perguntar ao meu professor, se me achava bastante avançado para tocar um solo privado a um amigo íntimo.

- Bem, coronel - disse o digno homem - para lhe dizer a verdade, acho ainda cedo. O senhor toca com muita força. Acredite, senhor, essa força é escusada e além disso, estraga o som. Qual era o solo?
- Qualquer coisa. A serenata de Schubert, por exemplo.

Olhou-me fixamente e fez um aceno negativo com a cabeça.

- Não foi escrita para este «enstromento», coronel. Nunca será capaz de tocá-la.
- A primeira vez que a tocar, sem um erro, dar-lhe-ei cinco guinéus além dos seus honorários.

Esta promessa dissipou-lhe todas as dúvidas. Apesar de toda a minha perseverança, levei tempo a aprender a Serenata, pois não só era extremamente difícil, como bastante incerta. Mas por fim, triunfei.

- No seu caso, coronel - aconselhou-me o meu professor ao mesmo tempo que metia os cinco guinéus, na carteira - guardaria essa música para mim, e tocaria coisas mais simples para distracção dos amigos. É verdade que o senhor é capaz de a tocar menos mal, mas só quando estou presente. Verá que não estando eu a seu lado, a execução desta música ser-lhe-á muito mais difícil.

Não fiz caso daquele conselho cujo bom senso reconheço agora. Naquele tempo, porém, eu alimentava o insensato projecto de fazer uma serenata a Linda. A sua casa, situada na extremidade norte de Park Lane, prestava-se admiravelmente para tal, e eu já subornara um criado para ele me introduzir no pequeno jardim, que ficava entre a casa e a rua.

Uma noite, cerca das nove horas, meti a trompa no estojo e enfiei num «coupé», de onde só desci em Marble Arch, na intenção de fazer a pé o resto do caminho. Nesse momento, uma voz chamou pelo meu nome; era Porcharlester. Como de forma alguma me convinha ser interrogado sobre o meu destino, achei preferível ser eu a perguntar-lhe aonde ia ele, monopolizando assim a conversa.

- Vou a casa de Linda - respondeu o meu rival. - Ela ontem deu-me a perceber que hoje não teria visitas. Não me importo de lhe dizer essas coisas, coronel. O senhor é um homem de honra, e sabe que eu adoro essa mulher. Se eu tivesse a certeza de que ela está apaixonada por mim, e não pela minha voz, seria o homem mais feliz da Inglaterra.
- Oh, não! Pela sua voz não pode ser, tenho a certeza.
- Oh, muito obrigado - exclamou ele, apertando-me a mão. - O senhor faz-me criar alma nova. Contudo, confesso-lhe que me sinto quase desmaiar, quando olho para ela. Sabe que eu nunca mais tive coragem para cantar a Serenata de Schubert, desde o dia em que Linda me disse ser a sua peça favorita?
- Porquê? Ela não gosta que o senhor a cante?
- Se lhe digo que nunca tive coragem para a cantar diante dela, embora Linda esteja sempre a pedir-me.

Até já tenho ciúmes da maldita música. No entanto, como seria capaz de dar a própria vida só para lhe ser agradável, reservei-lhe essa surpresa para amanhã, em casa de Mrs. Locksly. Tenho estado a tomar lições de canto, e a trabalhar como um burro, para poder cantar a Serenata, sem cometer uma falta. Se o senhor encontrar Linda, não divulgue o meu segredo. Quero que seja surpresa.

- Não duvido que vai ser uma grande surpresa - disse eu, exultando com a ideia de que ele chegaria um dia atrasado. Tinha a certeza de que seria preciso uma voz muito mais bela que a dele para poder rivalizar com a suavidade, melancolia, ameaça soturna e expansão da minha trompa. Separámo-nos; e eu vi-o entrar em casa de Linda. Alguns minutos depois, encontrava-me no jardim. Do sítio onde eu estava, podia vê-los muito bem, sentados junto à janela, conquanto não conseguisse ouvir o que diziam.

Porcharlester parecia resolvido a ficar ali eternamente. A noite estava um pouco fria, e a erva, húmida. Bateram as dez horas, dez e um quarto, dez e meia. Quase me resolvera a abandonar o campo.

Felizmente, Linda tocou ao piano algumas peças do seu repertório, que vieram aliviar a solidão em que eu me encontrava. Por fim, os dois levantaram-se e agora, eu podia ouvir, perfeitamente, o que diziam.

- Sim - admitiu Linda - já vão sendo horas. (Concordei plenamente com as suas palavras). Mas o senhor podia ter cantado a Serenata. Olhe que a toquei três vezes para o incitar...
- Apanhei uma constipação tremenda - disse Porcharlester. - Garanto-lhe que me é impossível. Boa noite!
- Lérias! O senhor não mostra o mais pequeno sintoma de estar constipado. Não importa: não tornarei a pedir-lhe que a cante. Boa noite, Mr. Porcharlester.
- Não seja cruel - rogou ele. Ouvi-la-á mais cedo do que supõe.
- Ah! Diz isso com um tom misterioso! Mais cedo do que suponho... Se me prepara alguma surpresa, perdoo-lhe desde já. Espero vê-lo amanhã em casa de Mrs. Locksly.

Ele fez um gesto afirmativo e apressou-se a sair, sem dúvida receoso de atraiçoar-se de um momento para o outro. Quando desapareceu, Linda veio para a varanda e, apoiando-se ao peitoril, contemplou as estrelas que brilhavam no céu. Ao vê-la esqueci toda a minha impaciência; e os meus dentes cessaram de bater castanholas. Tirei a trompa do estojo. Linda soltou um suspiro, fechou a janela e correu a cortina. A visão da sua mãozinha, enquanto corria a cortina, inspirou-me. Vi-a sentar-se e agarrar um livro. Chegara a minha vez. Park Lane estava quase deserto, e o tráfego em Oxford Street demasiado distante para perturbar o silêncio.

Comecei. À primeira nota, vi-a ter um sobressalto e ficar imóvel, a escutar. Quando a frase completa lhe revelou o nome da música, deixou cair o livro. O bocal do instrumento parecia uma pedra de gelo, e os meus lábios estavam tão duros e gretados que, apesar do meu cuidado, mais de uma vez, a música foi interrompida por umas tossidelas estranhas e desafinadas, que os melhores cornetins não podem evitar.

No entanto, levando em conta o frio e o estado de nervos em que eu me encontrava, devo dizer que me desempenhei brilhantemente do meu papel de executante. À medida que tocava, ia ganhando confiança e, de certo modo, remediei mesmo a imperfeição do início, terminando os últimos compassos com uma sonoridade impressionante, e alcançando até, um «tremolo» bastante enternecedor, na penúltima nota.

Aplausos entusiastas vindos da rua, quando acabei, mostraram-me uma multidão ali reunida que me impedia de executar uma retirada imediata. Tornei a guardar a trompa no estojo, e preparei-me para sair logo que a populaça dispersasse. Entretanto, olhava para a cortina onde o vulto de Linda fazia sombra. Ela escrevia agora. Seria a mim? Levantou-se e a sombra cresceu de tal forma na cortina da janela que tornou impossível adivinhar-lhe os movimentos. Ouvi o retinir de uma campainha. Um minuto depois, a porta da rua abriu-se. Escondi-me atrás de um vaso de aloés, mas, reconhecendo o criado que eu subornara, assobiei baixinho. O homem aproximou-se de mim com um papel na mão. Senti o coração pulsar com mais força.

- Vai tudo bem, senhor, - disse-me o criado. - «Miss» Linda mandou-me entregar-lhe esta carta. Mas pede o favor de não a abrir, antes de chegar a casa.
- Então, ela sabia que era eu!
- Assim o creio. Quando ouvi a campainha, tratei de acorrer imediatamente. Então, «Miss» Linda, disse-me: «Encontrarás um senhor no jardim. Entrega-lhe esta carta mas pede-lhe que não a abra antes de chegar a casa».
- Vês alguém na rua?
- Já se foram todos embora, senhor coronel. Muito obrigado, meu senhor. Muito boa noite.

Corri até Hamilton Place, onde consegui arranjar uma tipóia. Dez minutos depois, encontrava-me no meu gabinete e abria com mãos trémulas, a carta de Linda. Não estava metida em envelope, mas, apenas, dobrada em três partes, com um dos cantos voltados para baixo. Desdobrei-a e li.

714, Park Lane, Sexta-feira.

Meu Caro Porcharlester

Parei. Teria ela suposto que fora ele quem tocara a «Serenata»? Mas o mais importante era decidir se eu tinha ou não o direito de ler uma missiva que não me era dirigida. A curiosidade e o amor prevaleceram sobre os escrúpulos. A carta continuava como segue:

«Lamento o facto de o senhor não ter visto na minha paixão pela Serenata de Schubert, algo mais do que um motivo de chacota. Talvez, com efeito, fosse uma paixão exagerada, mas jamais eu lha teria dado a entender, se não acreditasse que o senhor seria capaz de compreendê-la. Ficará talvez mais satisfeito se lhe disser que conseguiu curar-me dessa paixão e posso assegurar-lhe que não voltarei a ouvi-la, sem um estranho sentimento, mescla de dor e vergonha. Eu ignorava ser possível a uma garganta humana poder soltar tais notas, como tão pouco julgava, pela promessa feita pelo senhor de cantar a Serenata mais cedo do que supunha, que o senhor engendraria tão mesquinha partida. Só tenho mais uma palavra a dizer-lhe: Adieu. Não terei o prazer de o ver em casa de Mrs. Locksly, pois os meus compromissos não me permitem lá ir. Pela mesma razão, receio negar-me ao prazer de o receber outra vez em minha casa.

Sem mais, subscrevo-me,
Linda Fitznightingale»

Pensei que remeter esta carta ao pobre Porcharlester, seria magoá-lo sem necessidade. Achei, também, que o meu professor tinha razão ao afirmar que eu não nascera para a música. E desde então, desisti. Linda é hoje minha mulher. Muitas vezes, pergunto-lhe qual o motivo porque ela persiste em não receber Porcharlester, que me assegurou, dando-me a sua palavra de cavalheiro e militar, não saber em que a ofendeu. E Linda recusou-se sempre a dizer-mo.

Fonte:
Biblioteca Eletrônica. vol. III. Magister (CD-ROM).
http://wwww.weno.com.br (desenho)