segunda-feira, 9 de junho de 2008

A Fala-Adornada-do-Espírito, as Aldeias da Serra do Mar & a Terra em que Vivemos

por Rubens Zarate

Experimente observar os traços físicos das pessoas à sua volta – conhecidos, desconhecidos – no trabalho, ponto de ônibus, na Praça da Moça ou casas de forró. Aquela loira oxigenada com uns olhinhos meio rasgados, uma dobra diferente no canto dos olhos; aquele senhor evangélico com a ossatura da face meio proeminente; aquele adolescente ouvindo pagode ou tecno, beiçudo & de pele castanho-avermelhada. Costuma-se dizer que o Brasil é um país negro & mulato. Isso é correto até certo ponto. Quando o tráfico negreiro começou a tornar-se significativo já se havia passado meio século de intensa mestiçagem entre ibéricos & indígenas (principalmente guaranis, no sudeste, & jês & tupis, mais ao norte). Darcy Ribeiro, por exemplo, defende a tese de uma protocélula Brasil mameluca ou cabocla, surgida nos primeiros 50 anos de colonização, base das nossas populações camponesas, com ou sem terras. Desse ponto de vista o mais correto seria dizer que o Brasil é um país cafuzo. Na verdade, esse tipo de abordagem fenotípicoracial parece estar um tanto ultrapassado. O século XIX criou, com base nos traços físicos dos indivíduos, uma série de estereótipos, caricaturas a respeito do que viria a ser um “índio”, “negro” ou mestiço. A antropologia contemporânea, inclusive Darcy Ribeiro, prefere entender que indígena é todo aquele que se reconhece & é reconhecido como indígena por uma comunidade indígena. Não vamos então cair naquele tipo de chavão segundo o qual “o brasileiro é musical” por ter um pé na senzala ou “amante da natureza” por ter o outro na taba. Sociedades & indivíduos não são resultado de determinismos genético-raciais, geográficos-ambientais ou sócio-econômicos, mas produções de um imaginário social, de significações simbólicas, de um devir histórico de incessante criação coletiva de imagens, aquilo que Castoriadis chama poiésis – & o homem é antes de tudo um animal poiético, isto é, imaginante & imaginário. Roger Bastide, antropólogo francês & professor da USP, ao pesquisar os terreiros de candomblé procurou enxergar os praticantes do culto com o olhar do Outro – o chamado “olhar antropológico” –, no caso, um olhar afrodescendente. Acabou descobrindo que era filho de Xangô & apresentado ao panteão nagô como membro da linhagem do orixá do trovão & do machado-de-duas-faces. Passou a ser nagô? De certo modo. Nem por isso deixou de ser europeu & lecionar na USP & na Sorbonne. Caso parecido é o de Leon Cadogan, etnólogo paraguaio rebatizado com o nome de Tupã Kuchuvy pelo pajé da aldeia mbyáguarani que pesquisava.

O inverso vale também. Sabe-se que, graças aos mitos & falas sagradas mbyá registrados por Cadogan, muitos indivíduos geneticamente indígenas puderam se tornar indígenas culturalmente, tomando contato com suas tradições através da leitura de textos etnográficos, publicados por editoras ou Universidades. Não existem, portanto, “culturas autênticas”, do tipo “folclore em conserva”. Noções como “autenticidade” ou legitimidade” são entulhos ideológicos, abandonados há décadas pelas ciências sociais. Todo processo cultural é híbrido, sincrético, uma combinação de elementos heterogêneos, endógenos & exógenos, nativos & estrangeiros, “legítimos” ou “espúrios” – como nos cultos da umbanda, do catimbó ou do Santo Daime

Há quatro aldeias mbyá na Grande São Paulo (duas delas à beira da Billings): Tenondé-Porã (Parelheiros), Krukutú (Parelheiros/São Bernardo do Campo), M’Boi Mirim & Jaraguá, que se interligam a pelo menos mais quatro no litoral paulista, em Itanhaém, Peruíbe, Ubatuba & São Sebastião. Seus habitantes vivem como estrangeiros quase invisíveis nas frestas & franjas da área mais capitalizada & cosmopolita da América Latina, estabelecendo relações entre o modo de vida tradicional do interior das aldeias & a periferia & o centro das cidades da Grande São Paulo. É curioso notar que a sociedade brasileira, que nas últimas décadas vem aprendendo a reconhecer seu legado afrodescendente, ainda se recusa a assumir sua face indígena & mameluca. O Brasil finge que o índio (real) não existe – a não ser como avis rara empalhada, museológica & exótica.

Os mbyá, originários do Paraguai oriental, são um dos grupos culturais que formam o povo guarani – os outros dois são os kaiowá & os ñandeva –, aquele que melhor preservou suas tradições originais diante da devastação provocada a partir de 1500 pela pirataria ibérica & pela catequese romana. Antes mesmo da invenção do Brasil pelos europeus, a cultura guarani se caracterizava pelas migrações à procura da terra-sem-mal (yvy marãey), situada do outro lado do mar. Esses êxodos, ocorrentes desde a época pré-cabralina até metade do século XX, eram induzidos por visionários em transe, os karay, uma categoria especial de pajé, que recitando falas sagradas incitavam as aldeias às migrações. O mar, na cosmologia guarani, representa o lugar onde o destino humano pode se cumprir: é ao mesmo tempo um ponto de chegada & um obstáculo a ser transposto para se atingir o éden. A Serra do Mar, nesse contexto, passa a ter um significado especial: é a barragem do mar (yvy paiãry jocoã). Nos antigos mitos ñandeva há menção explícita à Serra do Mar. Talvez por isso os guarani tenham ocupado as encostas da serra, ao invés do litoral como os antigos tupi. Nas tradições mbyá & ñandeva, as terras do leste teriam sido ocupadas por seus antepassados, & sua atual reocupação representa o tekoa, o lugar-onde-se-pode-ser-aquilo-que-se-é.
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Para Curt Nimuendaju, etnólogo alemão que pesquisou as migrações guarani ocorridas do final do século XIX à metade do XX, a busca da terra-sem-mal é um fenômeno fundamentalmente mágico-religioso, esteja ou não relacionada a injunções da vida material, como guerras ou procura de novas áreas de cultivo. É curioso notar que, enquanto os mbyá migraram para o leste (lugar de Karay, o espírito do fogo), indo do Paraguai para o Mato Grosso & Paraná, & dali para a Serra do Mar, os atuais avá-chiriguanos da Bolívia, do grupo ñandeva, migraram para o oeste (lugar de Tupã, espírito das águas & tempestades), chegando a invadir o Império Inca no século XVI.

Em seu clássico A Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres faz uma leitura bastante original sobre a questão, com grande repercussão nos campos da Etnologia & da Política. Sendo as sociedades tribais sociedades sem Estado, o fenômeno dos profetas karay & da busca da terra-sem-mal representariam uma reação contrária ao surgimento
dos cacicados, chefi as políticas centralizadas nas mãos dos líderes guerreiros. Signifi cariam, portanto, uma rebelião mística contra o aparecimento de um proto-Estado monopolizador do poder – & o poder, para os mbyá, é o poder da palavra. “Falar é, antes de tudo, deter o poder de falar”. Os karay, “profetas selvagens”, pregariam as migrações para a terra-sem-mal – isto é, sem Estado – visando a desestabilização das chefias. Essa guerra simbólica entre xamãs & caciques implicaria, para Clastres, na dissolução da própria sociedade mbyá, que, diante da ameaça de dominação social pelo Estado, teria optado (como ocorre hoje com os kaiowá do Mato Grosso) pela auto-extinção.
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A cultura mbyá se define pelo visionarismo xamânico, & este pelo caráter mágico-religioso da palavra mitopoética, recitada ou cantada. Para Mircea Eliade o sagrado é, na religiosidade arcaica, o centro & a origem da realidade, o núcleo a partir do qual se propaga o mundo profano. Assim todo rito & todo mito representam o retorno ao centro
& à origem do real, o regresso ao sagrado. Não há, nas culturas arcaicas, a separação judaico-cristã, platônica ou cartesiana entre essas duas esferas.

Nas cosmogonias indígenas não existe um deus criador apartado do mundo por ele engendrado. Sagrado & profano, deuses & criaturas são estágios ou pólos de um mesmo processo. O universo é visto como um incessante desdobrar-se e redobrar-se, uma continuidade entre a unidade original & a multiplicidade do mundo. Para os mbyá, a criação do mundo se dá quando Ñamandu, o Mistério das Origens, desdobra-se a partir de si mesmo – como um sol que se ilumina, uma semente que irrompe ou uma asa de pássaro que se abre. É o oguero-jerá, conceito fundamental da metafísica mbyá, que poderia ser traduzido como aquilo-quegermina-de-sua-própria-germinação, ou aquilo-quese-desdobra-em-seu-próprio-desdobramento, ou ainda aquilo-que-se-ilumina-da-iluminação-de-si-mesmo. A cosmogênese é uma ereção do avá, força sagrada da verticalidade. Manifesta-se como ayvu, espírito-sompalavra que vem à Terra; individualiza-se como ñe’e, alma-cântico-fala que encarna nos seres viventes. O mundo passa a existir através do ato da poetização, da nomeação, do canto-recitação.
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No idioma guarani não há plural ou conjugação dos tempos verbais. Um único termo pode ser substantivo, verbo ou adjetivo. Para Cadogan, “todo o domínio semântico guarani comprova sua extrema riqueza. Sua linguagem não tem declinações passadas ou futuras. Todo seu falar é no presente: a ação reflete a realidade eterna do ser”. Além da fala comum, cotidiana, há uma linguagem secreta, esotérica, que só os karay sabem proferir & que não se dirige aos homens, mas ao sagrado. As palavras ganham um nível semântico cujo sentido & uso é exclusivamente mágico-religioso. Porã, por exemplo, costuma ser utilizado no sentido de “belo”; mas em seu significado esotérico é, literalmente, aquilo-que-é-adornado-com-plumas.

Sendo as penas dos pássaros signos do sagrado, porã equivale a “adornado, embelezado pelos deuses”. Ayvu comumente signifi ca linguagem, palavra, fala, recitação ou canto; mas em seu sentido mitopoético corresponde ao sagrado, ao espírito, à vida divina ou à música dos deuses. Ñe’e tem os mesmos sentidos, mas refere-se à fala dos seres vivos, humanos ou não. Outro exemplo é o nome Karay, que designa o espírito do leste, o nascer do sol & as chamas. Secretamente a palavra denota também os próprios poetas-visionários, aqueles-que-falam-asfalas- sagradas. Há também palavras-montagens de imagens. Cachimbo é “o esqueleto da névoa”, sendo os ossos considerados a morada da alma imortal dos seres vivos, enquanto a neblina & a fumaça são o hálito de Jakairah, o norte, lugar dos ancestrais & do conhecimento dos anciãos.

Por isso a cerimônia de batismo, ñi-mongaray, talvez seja a mais importante entre os mbyá. Uma criança que nasce é considerada encarnação de uma palavra-alma, um “nome-que-se-assenta-&-ergue”. O pajé pode ler na névoa do tabaco qual é essa palavra, a linhagem espiritual da qual provém aquele a ser batizado – leste, oeste, sul, norte ou zênite –, qual é seu nome, isto é, sua essência & origem. Receber um nome é receber ñe’e, uma alma-vida-fala. Do mesmo modo, o ato de cura é a restituição do ñe’e perdido do enfermo. O pajécurandeiro utiliza o cachimbo & o fumo, lembrando o nevoeiro que Jakairah trouxe à terra junto à palavra & ao pensamento, & opera analogamente ao deus da neblina que infunde a vida como orvalho à vegetação na passagem do inverno à primavera. Voltar à vida, devolver a alma-palavra é também o ato de curar. Há uma relação direta entre o sagrado, a linguagem, a vida & a verticalidade. É verdadeiro aquilo que está ereto, erguido. Avá, que comumente designa a condição humana, esotericamente representa o estado da verticalidade. O milho, planta sagrada & solar, é
avaty, o vegetal-ereto.

Considerando a importância central que os guarani atribuem à palavra, sinônimo de vida, alma & espírito, é significativo que os atuais habitantes da Serra do Mar tenham sido denominados mbyá: Aqueles-que-Vieram-de-Longe, os Estrangeiros, os Outros.
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O mitopoema que traduzo nas páginas seguintes é a parte inicial, o primeiro ciclo da cosmogonia mbyá, Maino Reko Ypy Kue (Os Atos Primeiros de Colibri-o- Pássaro-Primeiro). Há mais quatro traduções deste texto, todas baseadas nas falas sagradas recolhidas em 1953 por Leon Cadogan entre os mbyá do Paraguai: para o espanhol, pelo próprio Cadogan (1959); para o francês, por Pierre Clastres (1974); para o português, por Yara Miowa (1999) & por Kaka Werá Jecupé (2001). Todas elas foram cotejadas em minha versão, que também parte do original, em idioma mbyá paraguaio. É preciso lembrar que toda etnotradução é uma utopia: impossível traduzir a melopéia da recitação guarani para uma língua européia como a nossa.

Maino narra a passagem do araymá, o tempo primeiro do inverno ou caos primordial, ao arapoty, tempo da primavera, ou arapyaú ñemokandyre, tempo da terra-em-que-vivemos & dos sóis-que-nascem-&- morrem-&-nascem-novamente. É possivelmente a essa idade do ouro ou éden terrestre (bem diversa do paraíso cristão) que se referem as migrações para o leste (lugar do sol, primavera simbólica) em busca da terra-sem-mal.

Ñamandu, a Origem-de-Tudo, desdobra-se a partir de si mesmo. As primeiras imagens sugerem ao mesmo tempo o vir-à-luz (invertido) de uma criança & o desabrochar de uma palmeira cujas folhas são um cocar de plumas. Lembram também o popyguá, o cetro adornado com plumas que é portado pelos que falam as falas sagradas. Essas imagens parecem se referir também ao uiraçú ou gavião-real (Harpia harpya), a águia-de-penacho que é a maior animal de rapina do planeta & pássaro sagrado em várias culturas indígenas. Antes de desdobrar-se em gavião-real, ave solar, Ñamandu aparece como coruja, urukure’a, pássaro da noite. O mundo em seu desabrochar é ao mesmo tempo um sol & uma fl or, sobre o qual esvoaça o colibri primordial, maino, o pássaro-primeiro.

A passagem do caos ao cosmos seria então, na tradição mbyá, o despertar de um pássaro cujos olhos, ao se abrirem, fazem o sol nascer pela primeira vez. Uma coruja se solariza ao sol de si mesma & Vê-que-Éum- Gavião. É o primeiro oguero-jerá. O inverno dos primeiros ventos, o araymá ou caos primordial, dá lugar à primavera das fl ores do ipê-amarelo, o arapoty. O tempo-sem-tempo em que tudo é idêntico a si mesmo dá lugar ao arapyaú ñemokandyre, era das madrugadas & primaveras que nascem-&-morrem- &-nascem-novamente. Tempo da temporalidade: dos cânticos da diversidade da Terra: Yvy Piaú, a terra-em-que-vivemos. Mas também a terra que, em nossa condição de estrangeiros em perpétuo fl uxo migratório, buscamos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bartolomé, M.A. - Chamanismo y Religión entre los Ava Katu Ede. Instituto Indigenista, México, s/d
Cadogan, L - Chonó Kybwyrá. Revista Del Ateneo Paraguayo, Assunción, 1968.
- Aywu Rapytá. Boletim 227 de Filosofi a, Ciências e Letras da USP, S. Paulo,1959.
Carneiro da Cunha, M (org) - História dos Índios no Brasil. Cia. Das Letras, S. Paulo, 1998.
Castoriadis, C. - A Instituição Imaginária da Sociedade. Paz & Terra, Rio, 1982.
Clastres, P. - A Sociedade contra o Estado. Francisco Alves, Rio, 1978.
- A Fala Sagrada. Papirus, Campinas, 1990.
Clastres, H. - A Terra Sem Mal. Brasiliense, S. Paulo, 1978.
Eliade, M. - O Sagrado & o Profano. Edições Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
Ladeira, M. I. - Os Índios da Serra do Mar. Nova Stella, S. Paulo, 1988.
Miowa, Y. - Kuarahycorá. Elevação, S. Paulo, 1999.
Nimuendaju, C. - Lenda da Criação do Mundo como Fundamento da Religião dos Apapokuva-Guarani. EDUSP, S. Paulo, 1978.
Ribeiro, D. - As Américas & a Civilização. Vozes, Petrópolis, 1978.
Vainfas, R. - A Heresia dos Índios. Cia. Das Letras, S. Paulo, 1995.
Werá Jecupé, K. - Tupã Tenondé. Peirópolis, 2001.

Fonte:
Laboratório de Poéticas Antenas & Raízes
n.1. Diadema: Ponto de Cultura do Imaginário & da Diversidade. 2007. p.36-39.

domingo, 8 de junho de 2008

Adalberto Nascimento (Okinawanos)

E na verdade havia, sim, cota para amarelos; mas uma cota conquistada por méritos através da educação, decorrente da determinação de seus pais

Eles praticavam várias cerimônias para reverenciar os espíritos dos antepassados. Uma delas, particularmente importante, era o 'Obon'. Um dia antes da data dessa cerimônia, as pessoas acendiam uma fogueira em frente a suas casas para orientar a chegada dos espíritos ancestrais. Era o fogo da recepção ('Mukaebi'). Num altar ('butsudan'), colocavam bebidas e alimentos como oferendas. No dia seguinte ao 'Obon', acendiam novamente o fogo para orientar o retorno dos espíritos. Era o fogo da despedida ('Okuribi'). Não sei se esse marcante ritual okinawano ainda persiste em nosso país. Para quem quiser saber mais dessa história, sugiro a leitura de 'O Súdito', de Jorge J. Okubaro.

No dia 18 de junho deste ano, teremos as comemorações dos 100 anos da chegada ao nosso país da primeira leva oficial de imigrantes japoneses. Nesse dia de junho, em 1908, o navio 'Kasatu Maru' aportou em Santos, trazendo 781 trabalhadores contratados e doze livres. Do total de 793 japoneses, 324 eram procedentes de Okinawa (cerca de 40%). Atarracados, de pele escura, homens de barba cerrada e todos falando uma língua indecifrável. Estranhos para os brasileiros e para os demais japoneses.

O Japão é um arquipélago, sendo que suas maiores ilhas são Kokkaido, Honshu (a mais populosa), Shikoku e Kyushu. Okinawa, 'o Caribe do Japão', é um subconjunto de ilhas (arquipélago Ryukyu), a sudoeste das ilhas principais e a meio caminho entre o restante do território japonês e a China. Daí o fato de a cultura e a língua dos seus habitantes terem sido fortemente influenciadas pelo continente asiático. Okinawa, antes um reino independente (e também terra do karatê, que quer dizer 'mãos vazias'), foi incorporada ao Japão como província em 1879. E depois da Segunda Guerra ficou sob jurisdição norte-americana, retornando ao Japão somente em 1972. É por isso que nos meus tempos de faculdade alguns estudantes de origem japonesa se referiam a um okinawano, em tom de brincadeira, como 'American Japanese'. Eu, na ocasião, achava que isso acontecia somente por existir uma base americana naquela ilha.

Os americanos penaram para conquistar Okinawa. Foi a batalha mais sangrenta de toda a guerra do Pacífico. Em menos de três meses morreram cerca de 107 mil soldados japoneses e Okinawa teve sua população reduzida em mais de um terço. Passou de 300 mil a 196 mil habitantes. Gente bravia que resistiu até o fim. Bravia e de comportamento diferenciado, tal como aqui se pode constatar quando, maltratados e desiludidos, muitos colonos japoneses fugiam das fazendas para as quais foram designados. A maioria era de okinawanos. Pessoas honradas, generosas, portadoras de caráter inquebrantável e, em geral, teimosas. Quem conhece o vereador Yabiku sabe do que estou falando.

Muita gente pode imaginar que estou desprezando o Japão propriamente dito. Nada disso. Tenho amigos japoneses de todas as etnias. A quantidade desses amigos ficou bem mais numerosa no tempo da Poli. Parecia até que no meu tempo de faculdade havia uma cota racial pra essa gente. E na verdade havia, sim, cota para amarelos; mas uma cota conquistada por méritos através da educação, decorrente da determinação de seus pais. Devemos, por isso, ser gratos àqueles imigrantes, em sua maioria composta de pessoas simples. Simples, mas portadoras de um significativo lastro de educação que possibilitou, além de colherem café, semearem cérebros em nosso país.

O sucesso japonês... é simples: educação. Poucos anos depois de Okinawa virar província japonesa, o Império Meiji promoveu uma revolução educacional para todo o Japão. Uma revolução pra valer, anunciada em 1872, e que também tornava o ensino obrigatório. Em 1880, a freqüência escolar em Okinawa era menor que 2%. Em 1908, era de 93%. A escola primária durava 8 anos, sendo os quatro primeiros obrigatórios. As aulas duravam cinco horas, seis dias por semana. Não tinha moleza. O objetivo era, com ensino público de qualidade, produzir bons e educados cidadãos. A disciplina era militar, sem esse lero-lero hipócrita do 'politicamente correto'. E só para ilustrar a importância que os imigrantes japoneses deram à educação no Brasil, em 1938 havia em São Paulo 294 escolas japonesas, 20 escolas alemãs e 8 italianas.

Além das escolas, muitas associações nipônicas foram fundadas. No início eram separadas - japonesas e okinawanas. Mas é aí que entram os brasileiros, com algo que é só nosso: esse caldeirão do mundo para brancos, negros e amarelos. E se existirem azuis, que venham; faremos uma mistura invejável ao resto do mundo. Em nossa cidade, temos a Ucens, União Cultural e Esportiva Nippo-Brasileira de Sorocaba, cuja história, contada na Internet, tem como intróito uma prece escrita por Keiko Yabiku - que, se não é, casou-se com um okinawano.

Fonte:
Notícia publicada na edição de 08/06/2008 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A
http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=44&id=92994
Colaboração de Sorocaba News.
http://www.globalsecurity.org (imagem)

A. A. de Assis (Trovas Brincantes)



01.
Teu beijo, pela Internet,
vem sempre com tal calor,
que qualquer dia derrete
meu pobre computador!
02.
Trova é bom para a saúde,
faz amigos, dá prazer.
Talvez até nos ajude
a esquecer de envelhecer...
03.
A velhice não perdoa
quem da alegria se furta...
– Curta a vida numa boa,
porque a vida, amigo, é curta!
04.
Na minha idade se diz
que a prudência sai de cena.
Se há chance de ser feliz,
todo risco vale a pena.
05.
Veja a mata: é lindo o verde;
veja o céu: o azul é belo.
Por que é que então eu vou ter de
manter o humor amarelo?...
06.
Moderna e esperta, a formiga
à cigarra se juntou:
– uma canta, enquanto a amiga
monta o circo e vende o show...
07.
Fim do filme... Na saída,
pergunta à pulga o pulgão:
– Voltamos a pé, querida,
ou vamos tomar um cão?
08.
Finalmente um cão bilíngüe,
que, além do nativo au-au,
se expressa e até se distingue
fluentemente em miau...
09.
No carrão recém-comprado
da motorista barbeira:
"Atenção, muito cuidado...
amaciando carteira!"
10.
Da formiga ao boi colosso,
dando um chega no bacana:
– Por sorte sua, seu moço,
eu sou vegetariana!
11.
Como foi, como não foi,
conte dois que eu conto um...
Num belo inglês, diz o boi,
olhando a Lua: moon... moooon...
12.
Porco sofre: além do nome,
que o deixa triste e avexado,
quem o frita e à mesa o come
chama o pobre de "capado"!
13.
Esse tal de capital
deixa todo mundo louco.
– Dinheiro faz muito mal...
sobretudo quando é pouco!
14.
O nobre faz e acontece,
porém me responda, ó meu:
se o trabalho é que enobrece,
como é que ele enobreceu?...
15.
Diz o sábio, e quase chora,
por modéstia ou caçoada:
– Sou doutor "honóvis fora";
quer dizer: doutor em nada!
16.
Não te cases por dinheiro...
sai dessa... tô te falando...
Afinal, qualquer banqueiro
empresta a juro mais brando!
17.
A mulher, que é toda encanto,
lembra a abelha, meiga e boa:
dá mel gostoso; no entanto,
se for preciso, ferroa!
18.
Num momento de euforia,
cedemos-lhe uma costela.
Fomos cedendo... e hoje em dia
quem manda no mundo é ela!
19.
Muito cara que se julga
ladino, culto, elegante,
no fim não passa de pulga
com mania de elefante!
20.
Uma andorinha, voando,
sozinha, não faz verão...
Passando, no entanto, em bando,
chove "adubo" em profusão!
21.
Corre a bola, deita e rola,
salta de pé para pé...
Quica, requica, rebola,
no grito do povo: – olééé!
22.
No reino dos passarinhos,
joão-de-barro é o burguesão:
– de todos os seus vizinhos,
só ele mora em mansão...
23.
Pernilongo em meu ouvido
faz zunzum... zunzum... zunzum...
Julga-se, ao certo, o exibido
chofer de fórmula um...
24.
Procura-se ortopedista,
de preferência letrado,
pra vaga de especialista
em versos de pé quebrado...
25.
Criança que muito apronta
exige rigor dos pais:
– Água mole não dá conta,
se a pedra é dura demais!
26.
O povo sempre descobre
metaforinhas incríveis:
couve-flor: "repolho nobre";
as hortas: "jardins comíveis..."
27.
Perdoe-me se ofensa for,
mas couve-flor, certamente,
não é nem couve nem flor:
é só um repolho emergente...
28.
Pediste, na "vez passada",
que eu melhorasse a comida...
Pois hoje está caprichada:
vou servir "vespa cozida"!
29.
Menininho, numa prova,
sabiamente assim se exprime:
– Lua nova?... Lua nova
é a cheia que fez regime!
30.
De um caboclo perspicaz
ensinando a geografia:
– O "çul" fica sempre atrás...
com "cedia" ou sem "cedia"...
31.
É natural que aconteça,
ao cometa e a certa gente,
por ter pequena a cabeça,
mostrar a cauda somente...
32.
Pastel, pudim, rabanada,
e o mais que te apetecer...
Nada disso engorda nada:
basta apenas não comer!
33.
Pra casar moça bonita,
carece exibi-la não...
Que nem lá no Sul se dita:
"Bom vinho escusa pregão!"
34.
Já não suporta a trutinha
o que a todo instante escuta:
alguém chamando-a, tadinha,
de bela filha... da truta!
35.
O acento é muito importante,
e este exemplo o evidencia:
– Para um cágado é bastante
uma cágada por dia...
36.
O sapo coaracoacoacha
ante a sapa, sua estrela.
– Ela é um poema, ele acha,
e estufa-se todo ao vê-la!
37.
Dor no velho e na velhinha,
cada dia é num lugar:
nas cadeiras ou na espinha,
na nuca ou no calcanhar...
38.
Até os sessenta se assunta:
– Como vai, meu grande herói?
Depois é outra a pergunta:
– Olá, meu velho, onde dói?
39.
Misto de sábio e de herói,
ensina o pobre de leve:
– Quem de seu nada pissói
é o que mais tranquilo veve!
40.
Vaga-lume é um belo bicho;
tem no entanto algo incomum:
por esquisito capricho,
traz o farol no bumbum...
41.
Entre o passado e o futuro,
mudou o amor um bocado:
– o que o vovô fez no escuro,
faz o neto escancarado!
42.
Lingüiça das boas, uai,
faz-se assim, vovó dizia:
do porco a tripa se extrai;
na tripa o porco se enfia.
43.
Ah, como é útil a avó,
com seus cuidados e afetos!
Já o avô, serve tão-só
pra ensinar besteira aos netos...
44.
Avó é a mãe que imagina
que a sua parte já fez...
mas, quando a missão termina,
começa tudo outra vez!
45.
Mas ora-ora, dirás,
é fácil ouvir estrelas...
– Quem leva um chute por trás,
além de as ouvir... vai vê-las!
46.
– Na briga lobo-cordeiro,
qual deles terá razão?
– Depende, meu companheiro,
de qual dos dois é o patrão...
47.
Os gaúchos, mui serenos,
dizem rindo: – Calma, irmão...
Se o mundo tá mais ou menos,
então tá louco de bão!
48.
Eis um problema intrigante,
ainda sem solução:
– O touro é um bode gigante,
ou o bode é que é um touro anão?...
49.
Até na fauna há esse horror
da diferença aqui exposta:
– Há o esperto: o beija-flor,
e há o coitado: o vira-bosta!
50.
Dizem que em boca fechada
não entra mosca... sabia?
Também não entra mais nada:
deixa a barriga vazia...
51.
Se de jeca lhe dão nome,
ele responde: – "Tá bão...
Mas, se ocê não passa fome,
é graças ao meu feijão!..."
52.
Esta é uma antiga lorota,
que jamais se esclareceu:
– Se Judas nem tinha bota,
como foi que ele a perdeu?...
53.
Quando se casa a enteada,
mais a madrasta se ouriça:
Além de "mãe emprestada",
agora é "sogra postiça"...
54.
De longe se escuta o eco
da turma de cara cheia,
no alvoroço do boteco
pondo em dia a vida alheia...
55.
Só dos homens e dos grilos
a mulher tem medo ainda:
– dos grilos, porque são grilos;
dos homens... porque ela é linda!
56.
De grão em grão a galinha
enche o papo, e não tão-só:
também enche "o" da vizinha
com o seu cocorocó...
57.
Quem com vida dá banquete,
mas não convida o povão,
finda a vida, um alfinete
pode furar-lhe o balão!
58.
O bom discurso amoroso
dispensa texto comprido.
Basta um "te gosto" gostoso,
murmurado ao pé do ouvido...
59.
A ciência hoje é um colosso,
com tudo fora de centro:
faz laranja sem caroço,
gravidez sem filho dentro...
60.
Passo à frente este estribilho
que escutei de um pai grisalho:
– Dá trabalho pro teu filho,
que ele não te dá trabalho...
61.
Era um guri tão terror,
que a escola inteira o temia.
Cresceu... virou professor...
paga com juro hoje em dia!
62.
Se tens filho, escuta aqui,
que um lembrete eu vou deixar-te:
– Guri que já faz guri,
se fica solto, faz arte!...
63.
É uma atitude marota,
ambígua e um tanto arriscada
perguntar a uma garota
se ela quer jogar "pelada"...
64.
Não há diferença alguma
se a festa é pobre ou de gala.
– Tanto noutra quanto numa,
quem bebe demais se rala!
65.
Cuidado, amigo, atenção...
não beba o primeiro trago.
– Quando se escuta o trovão,
o raio já fez o estrago!
66.
Atrás das "outras" não perca
o seu juízo... cuidado!
Boi que muito pula cerca
volta um dia "desfalcado"...
67.
Nem o amor nem a amizade
resistem se entre os parceiros
não existe afinidade
nem de roncos... nem de cheiros...
68.
Me desculpe se isto aflige-a,
mas o progresso endoidou:
mais premia a calipígia
do que a moça que estudou!...
69.
Segura, peão, segura,
que a vida é um grande rodeio...
É bela, no entanto é dura,
com muitos trancos no meio!
70.
O candidato se inflama,
promete mundos e fundos.
Cai do coreto... na lama:
sai com seus fundos imundos!
71.
O bom cabrito não berra;
gato sabido não mia...
Menos sofre e menos erra
quem menos fala hoje em dia.
72.
"Tem o amor certas razões
que nem a razão conhece."
– Por exemplo: as emoções
que um gordo cheque oferece...
73.
Morre o peixe quando aboca
seu jantar com muito anseio...
Sobretudo se a minhoca
traz anzol como recheio!
74.
Água parada, ao moinho
não move... nem moveria.
Somente serve de ninho
para mosquito dar cria...
75.
Canarinho, quando canta,
que será que o faz cantar?
– Sei lá... mas a mim me espanta
que ele cante sem cobrar...
76.
Disse-me um dia um vovô,
todo prosa e convencido:
– Me sinto que nem ioiô
nas mãos do neto querido!
77.
Se tal força o avô tivesse,
o neto não cresceria:
– crescendo, desaparece,
e leva junto a alegria...
78.
Pica-pau, sossega o taco...
faz uma pausa, ó carinha!
Teu toque-toque enche o saco
da passarada inteirinha...
79.
De biquíni ou minissaia,
a verdade se revela...
– Não há mentira na praia:
feia é feia, bela é bela!
80.
Mosquito para a mosquita,
nadando na sopa quente:
– Eta piscina bonita...
a pena é que engorda a gente!
81.
O cravo, ao que se comenta,
coisou a flor do vizinho...
A rosa, toda ciumenta,
fincou-lhe na coisa o espinho!
82.
De todos ela atraía
mil sorrisos, mas... que dó:
casada, sofre hoje em dia
os maus homores de um só...
83.
A laranja era tão doce,
que o limão ficou com medo:
– por inveja, ou lá o que fosse,
acabou ficando azedo...
84.
Muito teimosa, a franguinha
com um ganso se casou.
Ao ter um ovo, tadinha...
de cesárea precisou!
85.
O que faz a boca torta
é o cachimbo – assim se diz.
Quem bate a cara na porta
entorta a boca e o nariz!
86.
O gavião sobe e some,
que nem certos liderinhos.
Só desce quando tem fome...
pra comer os passarinhos.
87.
Eis um dito dos mais sábios
para tempo de eleição:
– Discurso fácil nos lábios,
mentira no coração!
88.
Quando a eleição se avizinha,
dando início à falação,
de ovo em ovo a galinha
municia a oposição...
89.
Assim como faz o gato
para o cocô não feder,
muito ilustre candidato
tenta o passado esconder...
90.
Ao fim de qualquer mandato,
somando-se o dito e feito,
no saldo exibe o relato
muito mais dito que feito...
91.
O ex-chefe ao novo espicaça,
e insulta, e provoca, e xinga...
– É o outro agora a vidraça;
ele o estilingue... e se vinga!
92.
Muito sepulcro caiado,
que bota pose de puro,
no claro é distinto e honrado...
mas como apronta no escuro!
93.
Li num muro, em sábio piche,
que "a virtude está no meio".
De fato: "do sanduíche,
o mais gostoso é o recheio"...
94.
Papai Noel é, de fato,
um puxa-saco... ah se é:
para alguns dá até o sapato;
para os demais, só o chulé...
95.
Sempre que ensaia um passeio,
assim se apresta o janota:
reparte o cabelo ao meio,
bota a calça, calça a bota.
96.
Rodo, rodo, rodo, rodo,
devagar a divagar...
divagando sobre o modo
menos vago de vagar...
97.
Tão boa é aquela senhora,
tão generosa e tão pura,
que nem passando a ter nora
perdeu jamais a ternura...
98.
Pergunto: – Serás a lenda
que eu vi no mar e na areia?
Se rindo, linda, ela emenda:
– Não sou ainda... sereia!
99.
No quintal da casa em frente,
mora um meigo sabiá...
Mando um beijo e ele, contente,
manda um gorjeio de lá!
100.
Poeta, à porta do Pai,
entra fácil, certamente.
Se São Pedro se distrai,
São Francisco empurra a gente!

Fonte:
ASSIS, Antonio Augusto de. Trovas Brincantes. Setembro de 2004.
Portal CEN
http://www.caestamosnos.org

Nilto Maciel (Jornal de domingo)

Escondido atrás do jornal, o professor Luiz Vaz passava o domingo. E catava pedras preciosas, por puro deleite. Ou para exibi-las a seus alunos.

Fora-se o tempo de Virgílio, Camões, Bilac. Agora só queria os novos poetas. Nada de vertitur interea coelum (Entretanto o céu gira. Virgílio, Eneida, Livro II; 250).

Olhos enfiados no chão da folha, Vaz sonhava. Nunca o chamariam velho. Antes, o eterno jovem. O mestre da língua viva. Polêmico, moderno, brasileiríssimo.

Súbita emoção. Arregalou os olhos. Um poema de Noto de Sissa! Leu o título. Uma beleza! O primeiro verso. Um primor!

Com sofreguidão, percorreu todo o poema. Voltou ao título, ao primeiro verso. Releu tudo, cheio de entusiasmo.

***
Na sala de aula, Luiz Vaz freou sua emoção. E amarrou a rubra língua no céu da boca. Queria um comentário escrito de cada aluno ao poema que copiava no quadro-de-giz.

***
Riu na cara dos alunos. Não aprendiam nada. Pareciam idiotas. Especialmente a "crítica" feita por Oton.

– Uma barbaridade!

E se pôs a falar os versos de Noto de Sissa. Pequena obra-prima da poesia épica.

A maioria dos jovens abriu a boca e queda ficou. Um, porém, não concordou com a análise do mestre. E defendeu com língua e dentes sua opinião.

Irritado com a presunção de Oton, o professor tratou de humilhá-lo. Não passava de um aluno, um fedelho. Longe ainda se achava de atingir os primeiros degraus do saber. Enquanto ele, Luiz Vaz, já alcançara o ápice da cultura literária. Ora, exercia a crítica e a cátedra há trinta anos. Escrevia para revistas estrangeiras. Correspondia-se com pessoas do tamanho de Barthes, Foucault, Jakobson.

Oton de Assis nada mais falou. Na verdade, não podia se comparar àquele homem.

E continuou anônimo entre os colegas. Seu lirismo, porém, ainda germinaria páginas tão belas como as publicadas no jornal daquele domingo.

Fonte:
Jornal de Poesia
http://www.secrel.com.br/jpoesia/

Artur Eduardo Benevides (Dois contistas cearenses)

Entre os cearenses que triunfaram lá fora, em decorrência do seu merecimento literário, dois, por coincidência residindo em Brasília, mereceram sempre minha maior atenção e acompanhei, por isso mesmo, com grande interesse o seu êxito, na Poesia e no Conto. Refiro-me a José Hélder de Sousa, cujos poemas estão atingindo um alto clima de despojamento formal, em favor da essencialidade, e a Nilto Maciel, que lançou, não faz muito, nova coleção de contos – As Insolentes Patas do Cão – deixando-me a impressão de que se acha no melhor momento de uma criação, no gênero.

José Hélder, que hoje integra a Academia Brasiliense de Letras, tendo como patrono o admirável Raul de Leoni, uma de minhas devoções literárias mais intensas, é autor de belos poemas interpretativos do ser e do mundo, com alguns versos isolados da maior grandeza, dignos de um Jorge de Lima, de um Augusto Frederico Schmidt, de um Vinícius de Moraes. Isso, a contar de sua estréia, com A Musa e o Homem, aos poemas que se acham em As relvas do Planalto, com uma visão madura das cousas reais e irreais.

Agora, surpreende-me com a beleza desse Rio dos Ventos, volume de contos e novelas, numa demonstração de que nasceu vocacionado também para a ficção. E o livro é excelente, deixando no leitor a impressão de haver sido escrito por quem tem o segredo do fazer literário e se aprimora cada vez mais em seu ofício, graças ao talento que trouxe do berço, como uma predestinação.

Destaco a sugestiva peça inaugural que dá título ao livro. Um título, diga-se de passagem, muito poético. E a narrativa surge, maiúscula, pungente, sofrida e humana. O autor conta uma saga do Brasil antigo, nas ribeiras do Acaraú, em que aparecem Profiqua Mendes Carneiro, do casamento à morte; Chico Pachola, o senhor de terras e seu marido; o vigário apaixonado; as “noivas do rei”; a casa cheia de roseiras, jasmins e manacás; as tricas e futricas de campanário; a vila humilde e nascente. Uma história densa, romântica em alguns lances e trágica no desfecho. Realíssima e de certa forma lírica. Ou pastoral.

Considerei muito bom o casamento da ficção e da História. José Hélder, que usa também o recurso em “Senhorão”, tem ótimo desempenho como narrador, cousa que aprendeu, sem dúvida, nos longes da infância, em Massapê e Sobral, ouvindo os Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, do português Gonçalo Fernandes Trancoso.

Rio dos Ventos, no meu entender e julgar, merece leitura e releitura. O autor atinge, nesse livro, um dos momentos mais significativos de sua arte, com a mesma força que já nos acostumáramos a ver no poeta que ele é.

O outro escritor a que me referi de início é Nilto Maciel, que se iniciou na década de 70 com os promissores contos de Itinerário, publicando depois, no mesmo gênero, Tempos de Mula Preta, A Guerra da Donzela e Punhalzinho Cravado de Ódio, este considerado por Sânzio de Azevedo um excelente livro.

Dele, leio agora, com certo encanto pelo poder das imagens e de síntese, As Insolentes Patas do Cão, em que trabalha com elementos oníricos e mágicos, poéticos e míticos, combinando universalismo e regionalismo, lembranças, vivências fundas, lendas e realidade. E se sai muito bem dessa tarefa, com alguns contos admiráveis, em conteúdo e estrutura, ou fundo e forma.

A partir de “Ícaro”, com que abre o livro, trabalha os seus contos de forma moderna, evitando o descritivismo exagerado da era Maupassant, e se atendo ao essencial, em breves (mas profundas, às vezes) registros de um momento, que caracterizam a short-story. Mesmo o erotismo, como em “Incubação”, é comedido. E há traços machadianos na “Teoria do Amor Socrático”, em “Os Belos Olhos de Sônia” e “O Inseto”. Já o inesperado surge em “A Voz Indecorosa”, em “Mon Amour” e “O Confessor Lascivo”. E o fantástico lá está, muito bem lançado, em “O Vencedor” e “A Última Festa de um Homem Só”.

Nilto Maciel, com muito talento, combina, para meu agrado, como seu leitor, o real e o fantástico, cousa rara na Literatura Cearense, se bem que tenhamos exemplos em Emília Freitas, no século passado, em Moacir Lopes (“O Passageiro da Nau Catarineta”) e José Alcides Pinto. Ele não teme trabalhar com elementos assim, desafiadores, chegando a resultados excelentes.

Outro aspecto a destacar, na ficção de Nilto Maciel: a fascinante presença da fábula, como em “A Fala dos Cães” e outros momentos do livro. Esse é um legítimo conto medieval. Ou uma quase parábola, em que, desmentindo um pouco o Professor Massaud Moisés, de vasto saber, para quem “animais não podem ser personagens” (in Dicionário de Termos Literários) ele prova o contrário. E traz, como figurantes de outras histórias, serpentes, gatos e ratos, da mesma forma que o velho Calderón de la Barca transformara a fé, a esperança, a água e o fogo em personagens. Mas, esse é outro problema, muito interessante, por sinal.

Em resumo: As Insolentes Patas do Cão (que título expressivo!) são contos que se acham na categoria de muito bons e de excelentes. Contos com a marca registrada de Nilto Maciel, expressa através do binômio – talento e autenticidade. E já é muito, hoje em dia, com tantos naufrágios por aí, nesse importante gênero.

Fonte:
Jornal de Poesia
http://www.secrel.com.br/jpoesia/artur5.html

sábado, 7 de junho de 2008

Augusto dos Anjos (A máscara)

Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.

Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.

E entre a mágoa que masc’ra eterna apouca
A humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.

José Lins do Rego (O rio)

O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.

O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.

Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:

- Vou dizer ao velho!

Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de vida.

biografia do autor postada em 8 de maio.

Fonte:
O Melhor da Crônica Brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997. Disponivel em http://www.releituras.com/

José Lins do Rego (Onde estão as borboletas azuis?)

O dia hoje está uma maravilha e, aqui de minha casa, eu olho para a lagoa que tem as águas luminosas pelo sol de maio que há pouco nascera. É uma manhã de glória como dizem os poetas, e para gozá-la, saio a passear.

Nada nesta cidade se parece mais com um recanto de romance que esta lagoa mansa, sem rumores de ondas, quieta, sem arrogâncias de águas raivosas. Tudo por aqui é como se fosse domado pela mão do homem, lagoa doméstica que, pela sabedoria sanitária do Saturnino de Brito, se transformara, de foco de mosquitos e de febres, em esplendor de beleza, capaz de em planos de bom urbanista ser o orgulho de uma cidade. Mas, mal o cronista apaixonado pelos recantos idílicos da natureza inicia a sua viagem lírica, começa a sentir que os homens são criaturas sem entranhas, terríveis criaturas sem amor ao que deviam amar, sem cuidado pelo que deviam cuidar.

Porque, mal me pus a andar pelas terras que circundam a lagoa, o que vi não é para que se conte.

Há quem diga e afirme que o brasileiro não gosta da natureza. Que todos somos inimigos das árvores, dos rios, da terra. E há a teoria de que o pavor da floresta nos transformara em citadinos, em derrubadores de matas, queimadores de terras. Mas esta teoria não corresponde à realidade, se nos voltarmos para os bosques e jardins de outrora que por toda a parte alegravam as nossas cidades.

Aqui no Rio de tempos para cá, deu nos homens de Governo uma verdadeira doença que é este desprezo e quase ódio pelos nossos recantos da natureza.

Há o caso das matas da Tijuca para uma exceção honrosa. Mas, por outro lado, há este caso da Lagoa Rodrigo de Freitas, como um crime monstruoso. Porque tudo que é erros e mais erros foram cometidos em relação à paisagem deste maravilhoso pedaço de nossa cidade.

Isto de se conduzir o lixo do Rio para aterrar trechos e trechos de uma massa líquida que é um regalo para os olhos, não merece nem um comentário, pela estupidez, pela lamentável grosseria de homens que não respeitam nada.

E feito isto não há quem possa se aproximar da lagoa Rodrigo de Freitas. Lá estão os bichos podres, uma fedentina horrível a atrair urubus como numa "sapucaia". E o que podia ser uma atração para os que pretendessem repousar, é aquilo que nos envergonha e nos dói.

O Sr. Hildebrando de Góis, que saneou a "Baixada Fluminense", se quiser encontrar o que sanear, que faça este passeio a que o modesto cronista se arriscou, por entre lixos, com urubus quase a roçarem-lhe o rosto.

Onde estão as borboletas azuis do poeta Casimiro?

Fonte:
O Melhor da Crônica Brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997. Disponivel em http://www.releituras.com/

Academia Paraibana de Letras

Na Paraíba, em fins do século XIX, o movimento intelectual teve um surto renovador da maior importância. Os jornais que circulavam em nosso Estado, dirigidos por grandes jornalistas da época, com a cooperação de corpo redacional da melhor categoria, se tornaram centros culturais em que os vocacionados para as letras, manifestavam as suas tendências literárias.

Muitas entidades destinadas ao cultivo do espírito foram se formando,como bem assinalou o acadêmico Eduardo Martins em esboço histórico intitulado "Instituições Paraibanas de Cultura – 1801-1941", publicado na Revista da Academia Paraibana de Letras, n.º 8, ano 26, setembro de 1978, pp. 175/180. Enumerou as associações surgidas e que "foram, sem dúvida, as precursoras dessa vida laboriosa das letras", no Estado. Relacionou em seu artigo as seguintes entidades: Clube Literário e Recreativo, Clube Cardoso Vieira, Centro Literário Paraibano, Clube Literário Benjamim Constant, Clube Sete de Setembro, Instituto Histórico Geográfico Paraibano, Associação dos Homens de Letras, que deu origem a Academia dos Novos, Gabinete de Estudinhos de Geografia e História da Paraíba.

Apenas o IHGP mantém-se em atividade, os demais tiveram vida efêmera. Certamente as idéias, as aspirações e os sonhos desses homens de letras motivaram Coriolano de Medeiros a reunir um grupo formado por Mathias Freire, Horácio de Almeida, Luiz Pinto, Rocha Barreto, Álvaro de Carvalho, Durwal Albuquerque, Veiga Júnior, Celso Mariz e Hortêncio Ribeiro (este representado por procuração) constituindo-se em autênticos fundadores da Academia.

Na tarde do dia 14 de setembro de 1941, o professor Coriolano de Medeiros concretizou o seu ideal de criar a "Casa do Pensamento da Paraíba". Este era o único Estado da Federação que ainda não contava com uma entidade desse tipo. A reunião inaugural realizou-se no gabinete do diretor da Biblioteca Pública do Estado.

Em poucas palavras, Coriolano de Medeiros assumiu a direção dos trabalhos, disse da finalidade daquele encontro, declarou que estava fundada a Academia Paraibana de Letras, destinada a "perpetuar as tradições literárias da Paraíba". Por sugestão do Côn. Mathias Freire, Coriolano passou a presidir a novel instituição, dessa data até 14 de setembro de 1946, quando renunciou, por motivo de saúde.

Foi eleito, naquele mesmo dia, o Dr. Oscar de Oliveira Castro que, em seu breve discurso de agradecimento, disse: "Coriolano de Medeiros continua sendo o Presidente de Honra desta Casa, que lhe deve tão assinalados trabalhos."

Para caracterizar a instituição, criou-se um emblema, idealizado pelo Côn. Mathias Freire e desenhado pelo Prof. Eduardo Stuckert; a insígnia traz, além do nome e da data de criação da APL, o desenho de um sol, simbolizando a inteligência e o talento dos que integram o sodalício. A expressão latina, também sugerida pelo Côn. Mathias Freire, "DECUS ET OPUS", que se traduz Estética e Trabalho, tornou-se o lema da associação.

Inicialmente, a APL contou com 11 cadeiras, número, depois, aumentado para 30. Em 1959, com a reforma dos estatutos criaram-se mais 10, fixando-se, oficialmente, em 40.

Todos com patronos, escolhidos, entre os nomes mais representativos das nossa intelectualidade. São eles: Augusto dos Anjos, Arruda Câmara, Albino Meira, Adolpho Cirne, Alcides Bezerra, Aristides Lobo, Arthur Achiles, Afonso Campos, Antonio Gomes, Cardoso Vieira, Cordeiro Sênior, Coelho Lisboa, Diogo Velho, Eliseu Cézar, Eugênio Toscano, Francisco Antônio Carneiro da Cunha, Gama e Melo, Irineu Joffily, Irineu Pinto, Joaquim da Silva, Maximiano Machado, Maciel Pinheiro, Neves Júnior, Pedro Américo, Perillo Doliveira, Pe. Inácio Rolim, Pe. Azevedo, Pe. Lindolfo Correia, Rodrigues de Carvalho, Santos Estanislau, Epitácio Pessoa, Carlos Dias Fernandes, Castro Pinto, Pereira da Silva, Raul Machado, Tavares Cavalcanti, Allyrio Wanderley, Américo Falcão, José Lins do Rego, Mello Leitão.

A Sede - Nos primeiros tempos, tiveram os acadêmicos de enfrentar grandes problemas financeiros. Por causa disso, reuniam-se, inicialmente, na Biblioteca Pública, onde se instalaram por mais de dois meses. Posteriormente, na residência do confrade Côn. Mathias Freire, Vice-Presidente da Instituição. Depois, abrigou-se na casa do acadêmico Álvaro de Carvalho.

Oscar de Castro, após assumir, a Presidência, procurou o Prefeito Municipal da época, Dr. Abelardo Jurema, obtendo a doação, em 1947 do prédio n.º 179, situado à Rua Visconde de Pelotas, para que, ali, se instalasse a Academia.

A pequena dimensão do terreno não permitiu, porém, a construção do nosso silogeu. Finalmente, por compra do velho casarão de número 25, situado à Rua Duque de Caxias, desta Capital, conseguiu-se a sede própria. Nela se encontra até hoje.

O Estado da Paraíba, na administração do então Governador Tarcísio de Miranda Burity, forneceu recursos para aquisição do prédio contíguo, de n.º 37 que se deu por escritura pública, lavrada em 26 de novembro de 1981. Os dois imóveis, passaram a formar uma só unidade imobiliária. Neles situa-se a Casa de Coriolano de Medeiros.

Os edifícios conjugados passaram por diversas reformas, principalmente a realizada na gestão do acadêmico, Dr. Manuel Batista de Medeiros, hoje, é o mais importante ‘centro de cultura’ do Estado, não só pela ação daquele excelente administrador, mas de outros que o sucederam.

O ex-presidente, acadêmico Luiz Augusto Crispim, entre outras benfeitorias, criou o Memorial Augusto dos Anjos (1984), que foi totalmente revitalizado, sendo reinaugurado na passagem do sexagésimo aniversário de fundação da instituição, ocorrido em 14 de setembro de 2001, na administração do escritor Joacil de Britto Pereira

A APL é filiada à Federação das Academias de Letras do Brasil, e reconhecida de utilidade pública, entidade de direito privado, sem fins lucrativos. Esse reconhecimento se deu pela Lei Municipal n.º 39, de 23.08.1948.

Tem a sua biblioteca registrada no Instituto Nacional do Livro (INL), com o nome de Biblioteca Álvaro de Carvalho.

Desde a sua fundação, a entidade já foi dirigida por 10 presidentes: Coriolano de Medeiros (1941-1946), Oscar de Castro (1946-1970), Clovis Lima (1970-1973), Higino Brito (1973-1976), Aurélio de Albuquerque (1976-1978), Afonso Pereira (1978-1984), Luís Augusto Crispim (1984-1991), Manuel Batista de Medeiros (1991 -1994), Joacil de Britto Pereira (1994-1996), Wellington Hermes Vasconcelos de Aguiar (1996-1998). Atualmente é presidida pelo escritor Joacil de Britto Pereira, estando este no seu terceiro mandato.

O Conselho Diretor editou 17 revistas, além de outras publicações e criou um periódico, que já está na 27 ª tiragem.

Aberta ao público, realiza na última sexta-feira de cada mês, o ‘Chá Acadêmico’. Tem lançado, em seu Auditório Celso Furtado e em seu Jardim de Academos, livros de sócios, e de escritores alheios aos seus quadros.

Acresceu ao número de sócios beneméritos e correspondentes algumas ilustres personalidades. Da mesma forma ampliou, embora com parcimônia, o número dos sócios honorários.

A Academia é um centro ativo, vivo e dinâmico, estuante de entusiasmo.
Acadêmicos
Acadêmicos - Respectivas Cadeiras - Naturalidade
ALTIMAR de Alencar PIMENTEL - 1 - Maceió - AL
ADYLLA Rocha RABELLO - 2 - J. Pessoa
LUIZ AUGUSTO da Franca CRISPIM - 3 - J. Pessoa
JOSÉ LOUREIRO Lopes - 4 - Piancó
OSWALDO TRIGUEIRO DO VALLE - 5 -Cruz do Espírito Santo
HILDEBERTO BARBOSA Filho - 6 - Aroeiras
DORGIVAL TERCEIRO NETO - 7 - Taperoá
ASCENDINO LEITE - 8 - Conceição
MANUEL BATISTA de Medeiros - 9 - Pedra Lavrada
JOSÉ OCTÁVIO de Arruda Mello - 10 - J. Pessoa
José JACKSON de Carneiro CARVALHO - 11 - Caiçara
WELLINGTON Hermes Vasconcelos de AGUIAR - 12 - J. Pessoa
José GLÁUCIO VEIGA - 13 - C. Grande
RONALDO José da CUNHA LIMA - 14 - Guarabira
PAULO Gustavo GALVÃO - 15 - C. Grande
DEUSDEDIT Vasconcelos LEITÃO - 16 - Cajazeiras
JOACIL DE BRITTO PEREIRA - 17 - Caicó RN
LUIZ HUGO Guimarães - 18 - J.Pessoa
GUILHERME Gomes da Silveira D´AVILA LINS - 19 - J.Pessoa
ELIZABETH Figueiredo Agra MARINHEIRO - 20 - C. Grande
FLÁVIO SÁTIRO Fernandes - 21 - Patos
JOMAR MORAIS Souto - 22 - Santa Luzia
MARIANA Cantalice SOARES - 23 - J. Pessoa
EVALDO GONÇALVES de Queiroz - 24 - São João do Cariri
JOSÉ RAFAEL Menezes - 25 - Monteiro
Antônio JUAREZ FARIAS - 26 - Cabaceiras
CARLOS Augusto ROMERO - 27 - Alagoa Nova
MARCOS Augusto TRINDADE - 28 - J. Pessoa
AFONSO PEREIRA da Silva - 29 - Bonito de Santa Fé
OTÁVIO Augusto SITÔNIO Pinto - 30 -Princesa Izabel
ÂNGELA BEZERRA DE CASTRO - 31 -Bananeiras
WILLS LEAL - 32 - Alagoa Nova
DAMIÃO Ramos CAVALCANTI - 33 -Pilar
HUMBERTO Cavalcanti MELLO - 34 -J. Pessoa
ARIANO Villar SUASSUNA - 35 -J. Pessoa
EURIVALDO Caldas TAVARES - 36 - J. Pessoa
Luiz GONZAGA RODRIGUES - 37 - Alagoa Nova
LUIZ NUNES Alves - 38 - Água Branca
SÉRGIO Martinho Aquino DE CASTRO PINTO - 39 - J. Pessoa
ANTÔNIO de Souza SOBRINHO - 40 - Cajazeiras

Brasão e Bandeira
Academia mantém como distintivos um símbolo em círculos concêntricos com o dístico: ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS, na parte superior, e, na inferior, a data 14 de setembro de 1941, e, no centro, um sol estilizado com a legenda Decus et Opus - Estética e Trabalho.

A Academia tem a sua bandeira, em cor azul-marinho e amarelo, na qual se repetem o dístico definido no artigo anterior, de acordo com o desenho de autoria de Eduardo Stuckert e aprovado quando se fez o primeiro estatuto. E, ainda um círculo formado por palmas verdes, rodeadas por tochas com flamantes.

Fonte:
Academia Paraibana de Letras
http://www2.aplpb.com.br/

Eno Teodoro Wanke (1929-2001)

por Filemon F. Martins

"Um livro pode ser nosso sem nos pertencer. Só um livro lido nos pertence realmente". (Eno Teodoro Wanke)

Nasceu em Ponta Grossa, Paraná, a 23 de junho de 1929. Filho de Ernesto Francisco Wanke e de Lucilla Klüppel Wanke. Aprendeu as primeiras letras na Escola Evangélica Alemã, de sua cidade natal. Quando a escola foi fechada em razão do advento do Estado Novo, o futuro escritor foi transferido para o Liceu dos Campos, cuja proprietária era a educadora Judith Silveira, hoje nome de rua na cidade.

Estudou também no Colégio Regente Feijó, de Ponta Grossa, no Colégio Santa Cruz, da cidade de Castro, PR, onde completou o ginásio. Em 1948, transferiu-se para Curitiba, PR, onde terminou o científico no Colégio Iguaçu e em 1949, após vestibular, entrou para a Escola de Engenharia Civil da Universidade do Paraná, formando-se em 1953. Trabalhou na Prefeitura de Ponta Grossa (1954-1955). Atuou como fiscal de construção de uma linha de alta tensão elétrica em Curitiba, da Companhia Força e Luz do Paraná.

Em 1957 ingressou, por concurso, no curso de Refinação de Petróleo, da Petrobrás, no Rio, passando a trabalhar em 1958 na Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão, SP, residindo em Santos, onde viveu onze anos. A partir de 1969 passou a residir no Rio de Janeiro, onde fez carreira dentro da Empresa.

Começou a escrever desde os doze anos. Poeta, Trovador, Contista, Cronista, Biógrafo, Ensaísta, Historiador, Fabulista e Prefaciador, entre outros. Como sonetista de primeira, obteve com o soneto APELO, 160 versões para 95 idiomas e dialetos. É o soneto em português mais traduzido para idiomas estrangeiros:
“Eu venho da lição dos tempos idos
e vejo a guerra no horizonte armada.
Será que os homens bons não fazem nada?
Será que não me prestarão ouvidos?

Eu vejo a Humanidade manejada
em prol dos interesses corrompidos.
É mister acabar com esta espada
suspensa sobre os lares oprimidos!

É preciso ganhar maturidade
no fomento da paz e da verdade,
na supressão do mal e da loucura...

Que a estrutura econômica da guerra
se faça em pó! E que reinem sobre a terra
os frutos do trabalho e da fartura!”.

Como trovador, escreveu trovas magníficas e inesquecíveis, como estas, entre outras:
“Senhor! Que eu pratique o bem
separe o joio do trigo,
e tenha força também
de amar o irmão inimigo.”

“Na praia deserta, eu penso
que a imagem da solidão
começa no mar imenso
e finda em meu coração.”

“Quem vai ao mar deitar rede
que tome cuidado, tome!
o mar nunca teve sede,
mas nunca vi tanta fome!”

“Seguindo a trilha infinita
do meu destino estrelado,
eu sou aquele que habita
a ilusão de ser amado.”

“O meu destino se encerra
num grave e eterno conflito:
- meu corpo é feito de terra,
- meu coração, de infinito.”

A obra de Eno Theodoro Wanke é extensa e variada. Eis as principais: “NAS MINHAS HORAS” (poesia, 1953), “MICROTROVAS” (1961), “OS HOMENS DO PLANETA AZUL” (sonetos, 1965), “OS CAMPOS DO NUNCA MAIS” (poesia, 1967), “VIA DOLOROSA” (sonetos religiosos, 1972), “A TROVA” (estudo, 1973), “A TROVA POPULAR” (estudo, 1974), “A TROVA LITERÁRIA” (estudo, 1976), “REFLEXÕES MAROTINHAS” (pensamentos humorísticos, 1981), “VIDA E LUTA DO TROVADO RODOLFO CAVALCANTE” (biografia, 1982), “A CARPINTARIA DO VERSO” (didática da metrificação, 1982, 1989, 1990 e 1994), “DE ROSAS & DE LÍRIOS” (minicontos, 1987), “O ACENDEDOR DE SONETOS” (líricos, 1991), “ALMA DO SÉCULO” (sonetos, 1991), “FÁBULAS” (1993), “ADELMAR TAVARES, UM TROVADOR AO LUAR” (biografia, 1997), “ANTOLOGIA DE SONETOS SOBRE A TROVA” (1998), “CONTOS BEM-HUMORADOS” (1998), “FARIS MICHAELE, O TAPEJARA” (biografia, 1999), “ELUCIDÁRIO MÉTRICO” (metrificação, 2000) e “APARÍCIO FERNANDES, TROVADOR E ANTOLOGISTA” (biografia, 2000).

O escritor transitou do CLÁSSICO ao MODERNISMO com elegância e competência, passando pelo lirismo, romantismo, parnasianismo, às vezes até irreverente como no caso de “NESTE LUGAR SOLITÁRIO” (a trova em grafitos de banheiro, 1988) e “ANTOLOGIA DA TROVA ESCABROSA” (1989), aderindo, de forma brilhante ao TROVISMO, desde o seu primeiro momento, em 1950, tornando-se um dos maiores propagadores e historiadores do Movimento da Trova Brasileira.

Eno foi um escritor exuberante, multiforme e polivalente. Alguns CLECS (pensamentos humorísticos) de Eno, selecionados por Elmar Joenck, publicados em 1998: “Quando um adjetivo mente, ele, por castigo, vira advérbio. Folha que se desprende da árvore não volta nunca mais. Melhor perder o trem do que perder a linha. O sol nasce para todos. Mas a maioria prefere dormir um pouco mais. Um tolo inteligente não fala, que é para não revelar sua condição”. Organizou e participou ao lado do Trovador Clério José Borges de Sant’Anna, dos Seminários Nacionais da Trova, no Estado do Espírito Santo, organizados pelo Clube dos Trovadores Capixabas, de 1981 a 1999. Recebeu o título de Cidadão Espírito-santense, conferido pela Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo. Faleceu a 28 de maio de 2001, deixando livros e livrotes que ultrapassam 1000 títulos.

Está presente em várias obras de Aparício Fernandes, entre outras: “NOSSAS TROVAS”, 1973; “NOSSOS POETAS”, 1974; “POETAS DO BRASIL”, 1975; “ANUÁRIO DE POETAS DO BRASIL”, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980 e 1981; “NOSSA MENSAGEM”, 1977; “ESCRITORES DO BRASIL”, 1979, 1980. Participou também das “COLETÂNEAS DE TROVAS BRASILEIRAS”, organizadas pelo Trovador Fernandes Vianna, Recife, PE. Verbete de inúmeras obras literárias, entre outras: ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, edição do MEC, 1990, edição revista e atualizada por Graça Coutinho e Rita Moutinho Botelho, em 2001.

Fontes:
http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=7644&cat=Ensaios&vinda=S
http://www.consciencia.net/citacoes/wx/wanke.html

Eno Teodoro Wanke (Trovas)

1
Ó rosa, nobre e bonita,
que encantamento trazeis!
Em vossa beleza habita
a majestade dos reis.

2
É bom repartir o vinho
da alegria em nosso andar.
São os risos do caminho
que ajudam a bem chegar.

3
Meu caro poeta: o Universo
espera atendas meu rogo:
- Ou pões mais fogo no verso,
ou pões o verso no fogo!

4
O meu destino se encerra
num grave e eterno conflito:
- Meu corpo é feito de terra,
meu coração, de infinito.

5
Não há nada mais profundo,
mais belo e comovedor,
nem maior poder no mundo
que um simples gesto de amor!

6
Felicidade, vantagem
que todos querem ganhar,
não é bem um fim de viagem,
é um modo de viajar.

7
Pinheiro, dais a guarida,
o fogo, o fruto, o conforto.
- No berço, trazeis a vida.
- No caixão, levais o morto.

8
Quem vai ao mar deitar rede,
que tome cuidado, tome!
O mar nunca teve sede,
mas nunca vi tanta fome.
-----
Fonte:
TABORDA, Vasco José e WOCZIKOSKY, Orlando (organizadores). Antologia de Trovadores do Paraná. Curitiba: Edição de O Formigueiro - Instituto Assistencial de Autores do Paraná.

Eno Teodoro Wanke (Sonetos)

APELO

Eu venho da lição dos tempos idos
e vejo a guerra no horizonte armada.
Será que os homens bons não fazem nada?
Será que não me prestarão ouvidos?

Eu vejo a Humanidade manejada
em prol dos interesses corrompidos.
É mister acabar com esta espada
suspensa sobre os lares oprimidos!

É preciso ganhar maturidade
no fomento da paz e da verdade,
na supressão do mal e da loucura...

Que a estrutura econômica da guerra
se faça em pó! E que reinem sobre a terra
os frutos do trabalho e da fartura!


O NASCIMENTO DO SONETO

Há pouco tive um pensamento estranho:
"Que tal se hoje eu fizesse algum soneto?"
Estou até de veia... Eis que o tamanho
da inspiração já deu para um quarteto!

Bobagem continuar, porém. Que ganho?
Caiu-me o lápis. Já apontei. É preto.
E como faz calor! — Me espera um banho
gelado assim termine este soneto.

Estou também com sono. Que preguiça!
Mas, amanhã é domingo. Irei à missa?!
Não sei. Depois, decidirei se vou.

Ai, ai... Vou terminar logo em seguida
com isto. Estou com sede. Puxa vida!
— E o parto do soneto terminou!


SONETO VAZIO

Se este é o primeiro verso de um soneto,
eis o segundo do soneto acima.
Terceiro verso: Santo Deus, que meto
agora aqui no quarto? Desanima!

E, lido o quinto verso, lhes prometo
um sexto! E atenção, que já termina!
No sétimo, reparo que o quarteto
acaba neste oitavo. E tome a rima!

E aqui, meu nono verso, meus senhores,
no décimo, sugiro-lhes paciência,
do undécimo habilmente me descarto!

Duodécimo: E que tal falar de amores?
Mas... Décimo-terceiro! A penitência
tem chave de ouro, enfim: décimo-quarto!

GAMA

Eu quero ser poesia. Eu quero ser
a simples voz das coisas, o acalanto
da luz tremeluzindo ao claro encanto
dos namorados ébrios de prazer...

Eu quero aquele mágico poder
da música em surdina, ser quebranto
de lágrimas nos olhos que amo tanto,
ser quase um objetivo de viver...

Eu quero ser o sonho cristalino
do absorto pensamento do menino
olhando para as nuvens do sol-pôr...

Eu quero ser a voz azul dos passos
que os pássaros escrevem nos espaços,
eu quero ser poesia. Eu quero amor.

PSI

Nem sabes, filho meu, quanto prazer
me causas, quando observo que desponta
em ti uma juventude alegre e pronta
à nítida conquista de viver!

Já fui exuberante assim, um ser
risonho, todo envolto em faz-de-conta
— e às vezes minha mãe surgia, tonta
das traquinagens feitas sem querer...

Revivo os tempos do meu tempo, e sei
definitivamente o que é ser rei
singrando os mares do sentir risonho...

És meu caminho de ontem, eu-menino,
e quero apenas, filho, que o destino
te faça tudo aquilo que eu te sonho!

ÔMEGA

Se podes namorar? Querida filha,
quem sou, para dizer? — Quando o botão
de rosa espia o mundo, ansioso, não
o impedirei de abrir-se em maravilha!

És juventude, e seguirás a trilha
do teu destino. E desabrocharão
teus dias, tua vida, do clarão
da aurora que hoje inicialmente brilha...

O ciclo do lirismo se completa
e em ti revivo anseios de um poeta
que muito ardeu de amor e muito quis...

Adivinhando as nuvens do teu sonho,
querida filha, em tuas mãos deponho
o meu consentimento. Sê feliz!

EPÍLOGO

As flores, esmagadas pelo duro
caminho em nossos passos, tão floridos,
deixaram seus perfumes coloridos
em tudo o que procuras e procuro.

Felicidade é um fruto já maduro,
e a vida nos encontra já sofridos...
Os filhos, tão sonhados e vividos,
já podem caminhar pelo futuro!

Agora, ao som do tilintar das taças
felizes, neste festival de graças
que nosso lar recebe do Senhor,

só peço a Deus que afaste a nuvem triste,
conserve em nós a luz que em nós existe,
e seja amor, completamente amor!

SAUDADE

Mas que saudade, que saudade a minha,
saudade imensa de sentir poesia,
poesia em tudo, assim como eu sentia
enquanto eu tinha o coração que eu tinha...

Porque já tive um coração um dia,
que disparava, ou quase se detinha
se ela aos meus braços palpitante vinha,
e que ternuras doidas consumia...

Vivia então constantemente imerso
na mágica do sonho, no universo
do amor ao ser que eu pressupunha meu...

Não vivo mais. Vegeto, na esperança
de achá-la ainda — à ladra que, tão mansa,
levou meu coração... Não devolveu...

DESEJOS DE RETORNO

Eu quero pôr de novo as calças rotas,
sair na chuva, andar pela calçada,
juntar-me à garrulice alvoroçada
dos bandos de garotos e garotas!

Sentir de novo as arrepiantes gotas
no rosto, os pés metidos na enxurrada,
o espírito zanzando, sem mais nada,
sem mais me preocuparem coisas doutas...

Não posso trabalhar... Nesta vidraça
que o meu suspiro de saudade embaça,
escorrem cristalizações de sonho...

Ah, Fausto, eu te compreendo! Se o demônio
surgisse agora, eu tinha a alma danada
em troca de zanzar pela enxurrada!
.
Fonte:
http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/sonetario/wanke.htm

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Miguel Sanches Neto (Do perigo das idéias fixas)

Como escrever é carência, estratégia para preencher vazios, o autor sempre quer a aprovação amorosa de seu trabalho. Por isso acaba invariavelmente se frustrando, por melhor que seu livro seja. Haverá sim aprovação, algumas meramente diplomáticas, escritas com palavras gastas em cartões ligeiros, outras de uma verdade comovente, mas é impossível controlar a rejeição, que veste os mais variados trajes.

Um autor, cujo livro teve cobertura completa nos canais de comunicação, sofre porque certo jornalista não o citou em sua coluna. De repente, por essa omissão talvez involuntária, sua alegria se perde e ele se sente vencido, sem a mínima vontade de escrever.

Um ser com os nervos à flor da pele, assim é o escritor. E uma pele fina, tão fina que qualquer palavra mais áspera a rompe. Muitas vezes, não precisa haver nem a palavra. Basta um silêncio. E ei-lo todo esfolado diante de sua imperdoável consciência.

Com o lançamento de Chove sobre minha infância, recebi, de vários leitores que adoraram o romance, restrições quanto a este ou àquele capítulo. No começo, pensei em cortar os capítulos na segunda edição, pois queria agradar o interlocutor tão sincero que tinha corrido risco ao me alertar para as fraquezas do livro. Mas como as opiniões continuaram — e, felizmente, continuam — chegando, fui percebendo que o que parecia, para certa pessoa, um trecho menor era o melhor para outra. Não havia consenso entre elas, cada uma projetando seus conceitos e preconceitos na escolha dos melhores e dos piores momentos do romance.

Esta diversidade de opinião aumentou com Hóspede secreto, minha primeira coletânea de contos. Não prevalece a menor coerência nas escolhas — feitas em jornais, revistas, cartas e verbalmente — dos bons contos do livro. Cada um escolhe o seu, pois se trata de uma antologia, elegendo-o por motivos os mais diversos. A multiplicidade de razões de meus leitores me fez perceber que todos os 13 contos eram o melhor conto do livro — sob pontos de vista antagônicos. E isso me pacificou, definitivamente, com o volume, que não sofrerá maiores mudanças.

Digamos que tal fato me tornou invulnerável às restrições, permitindo-me um amor mais pleno pelo livro. Posso, portanto, continuar produzindo minha literatura, que ao mesmo tempo contentará e descontentará quem, amorosa ou rancorosamente, se dedicar a ela.

Com os anos, depois de muito sofrimento, o escritor vai desenvolvendo esta autodefesa. Como o mundo o nega, e o negará sempre, uma vez que inexiste a desejada unanimidade, ele passa a se valorizar mais e mais, criando uma atitude autista, de exílio em seu mundo, a ponto de nada mais atingi-lo. Só assim, isolado em sua vocação, consegue força para escrever.

É aí, então, que ele se torna um ser desagradável, pois a soberba anula o outro, visto como um irritante desmancha-prazeres, sem direito a exercer um gosto literário, necessariamente seletivo.

Como escrever é carência, estratégia para preencher vazios, o autor sempre quer a aprovação amorosa de seu trabalho, mas é preciso que seu amor-próprio, inflado ao máximo, passe pela calibragem destes leitores mais críticos, que na maioria das vezes — e falo com a experiência de quem atua nas duas frentes — não está disposto a usar palavras acolchoadas, preferindo as que ferem fundo.

Como escrever é carência, estratégia para preencher vazios, o autor sempre quer a aprovação amorosa de seu trabalho.

O autor sempre quer.

Fonte:
http://www.miguelsanches.com.br/

Lima Barreto (Quase ela deu o "sim", mas...)

João Cazu era um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho.

Vivia em casa dos tios, numa estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros.

Ele, porém, não os comprava; "filava-os" dos outros. "Refundia" os níqueis que lhe dava a tia, para flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários "mafuás", mais ou menos eclesiásticos, que há por aquelas redondezas.

O conhecimento do seu hábito de "filar" cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia:

—Toma lá o cigarro, Cazu.

Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos pontapés, numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.

Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc., etc.

Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado.

Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritória profissão de "maridos da professora"; ele, porém, não aspirava a tanto.
Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servis convenientemente.

Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de segurança e abundância com os seus tios e padrinhos.

Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:

— "Seu" Cazu, o senhor vai até à estação?

— Vou, Dona Ermelinda.

— Podia me fazer um favor?

— Pois não.

— É ver se o "Seu" Gustavo da padaria "Rosa de Ouro", me pode ceder duas estampilhas de seiscentos réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava muito.

— Não há dúvida, minha senhora.

Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: ,'É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!" Dona Ermelinda, à vista da resposta dele, disse:

— Está aqui o dinheiro.

Conquanto dissesse várias vezes que não precisava daquilo — o dinheiro — o impenitente jogador de football e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.

Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.

De fato, Dona Ermelinda era viúva de um contínuo ou cousa parecida de uma repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua reputação.

Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifício.

Era proprietária do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras árvores frutíferas.

Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma "sorte" na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados "mambembes", devia-o à precaução do marido que comprara a casa, em nome dela.

Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do seu compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos " águias" começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalézito humilde.

De volta, Cazu bateu à porta da viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas mensais com ela e os filhos.

Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:

— Entre, "Seu" Cazu.

Estava só, os filhos ainda não tinham vindo do colégio. Cazu entrou.

Após entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:

— Espere um pouco, "Seu" Cazu. Vamos tomar café.

Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão da "preciosa rubiácea" , como se diz no estilo "valorização".

A viúva, tomando café, acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botões: "Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia..."

Essa vaga tenção ganhou mais corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou:

— "Seu " Cazu, se eu lhe disser uma cousa, o senhor fica zangado?

— Ora, qual, Dona Ermelinda?

— Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor traz " ela" amanhã, que eu conserto "ela".

Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O player dos pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma " entrada" , para obter uma lavadeira em condições favoráveis.

Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em conta.

Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os biscates e não dava um passo, para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo...

Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados.

Havia entre ambos, unicamente um "namoro de caboclo", com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.

Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: "Porque também eu não me caso? Porque eu não peço Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu..."

Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em casamento.

— É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois filhos!

— Tratava "eles" bem; eu juro!

— Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para almoçar comigo e eu dou a resposta.

Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dous estiveram a conversar. Ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e, apreensivo.

Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel.

— Cazu — disse ela, tendo o papel na mão — você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta "nota". É para o almoço.

Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler o seguinte:

1 quilo de feijão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .600 rs.
1/2 de farinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
1/2 de bacalhau. . . . . . . . . . . .. . . . . . . .1.200 rs.
1/2 de batatas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360 rs.
Cebolas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
Alhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100 rs.
Azeite. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 rs.
Sal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.
Vinagre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.260 rs.

Quitanda:

Carvão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...280 rs.
Couve. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....200 rs.
Salsa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...100 rs.
Cebolinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ......100 rs.

tudo: . . . . . . . . . . . ..............................3.860 rs.

Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado.

— Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o almoço fica tarde...

— É que...

— Que há?

— Não tenho dinheiro.

— Mas você não quer casar comigo? É mostrar atividade meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe de família não se atrapalha... É agir !

João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...

(mantida a grafia da época)

Fonte:
O texto acima foi extraído da revista "Careta" - Rio de Janeiro, edição de 29/01/1921. Consta, também, do livro "O homem que sabia javanês e outros contos", Pólo Editorial do Paraná - Curitiba (PR), 1997. Disponível em http://www.releituras.com

Manuel da Fonseca (Os Olhos do Poeta)

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos,brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pro mar amaldiçoando a tempestade:
todas as cores, todas as formas do mundo se agitam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas,
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Fonte:
http://campodetrigocomcorvos.zip.net/index.html

Millôr Fernandes (Barata à Vista)

A barata é a mais lídima das aquisições democráticas do mundo. Quase toda a casa a possui. Aos pobres lhes cabe melhor quinhão desses insetos, muito embora o Sr. Guinle não possa se queixar pois o Copacabana também as tem apesar de todo o DDT. Pertencendo à família das BLATÍDEAS, muito conhecida nos buracos de rodapés, cantos de estantes, fundos de arquivos e de gavetas, as baratas têm hábitos próprios interessantíssimos com os quais me familiarizei nos meus longos anos de pertinaz contato com arcanos e alfarrábios.

Para se lidar com baratas há quem acredite em inseticidas e baraticidas. Como em tudo mais, acredito em psicologia. Para se aplicar a psicologia é preciso um certo método e uma vasta disciplina. Vejamos.

Encontra-se a barata. Para se encontrar uma barata não é preciso muito gasto de energia. Em geral ela nos procura. E mais em geral ainda ela vem ao meio de nossos dedos quando pegamos aquela pilha de livros que estava embaixo da escada. No momento em que sentimos a barata presa em nossos dedos um sentimento de horror inaudito corre nossa espinha. Largamos livros, agitamo-nos furiosamente, batemos no chão, nos móveis e nos livros com o primeiro pano ou jornal que se nos depara, mas, a essa altura, a barata já estará longe, escondida numa das 365 mil páginas dos 870 livros que espalhamos no chão. Como encontrá-la? eis o problema. Esse problema, depois de acalmados nossos nervos e esfregadas nossas mãos com sabão e bastante álcool, é que procuramos resolver.

Existe, para se pegar uma barata, dois processos distintos. Um é chamar a empregada e dizer: "Tem uma barata aí! Quero isso bem limpo!" e virar covardemente as costas. Dessa atitude pode resultar que a barata atinja um extraordinário grau de longevidade pois a empregada passará um pano nos livros e jogará por cima deles um pouco de DDT, dando-se por satisfeita. A barata também. E daqui há seis meses, quando você for pegar aquele velho exemplar de Balzac, terá a desagradável surpresa de ver, à página 276, olhando-o com aqueles olhos brejeiros e aquelas antenas irônicas que lhe são próprios, a mesma barata que você tinha condenado à morte. Vocês fitar-se-ão demoradamente. Ela continuará baloiçando as antenas. E você, depois de um segundo de inércia, saltará para o ar, jogará o livro para o outro lado e berrará femininamente. Pois eis que as baratas têm o extraordinário poder de nos afeminar a todos, afirmativa essa que se aceitará sem contestação se se atentar para o grande número de baratas que há em nossos teatros.

Portanto não se deve virar as costas a uma barata, como fazem os elementos da ribalta, mas sim enfrentá-la masculamente. Para isso precisamos, antes de mais nada, saber se a barata é uma BLATÍDEA comum ou se é uma PERIPLANETA AMERICANA, ou, em linguagem menos científica, uma dessas baratas que voam. Se é dessas aconselho o leitor a desistir de qualquer pretensão máscula, arrumar as malas, fechar as portas de sua casa e entrar para o Teatro.

Agora, se é das outras, sempre há recursos:

1 — Pegue um Correio da Manhã bem dobrado, deixando à mostra o artigo de fundo. Sacuda os livros e espere, trepado numa cadeira. Atente sobretudo para o estilo de bater quando a barata surgir. Lembre-se: o estilo é o homem.

2 — Quando a barata surgir bata de uma vez. Não durma na pontaria. Ela normalmente pára um pouquinho, para sondar o ambiente cá de fora e confrontá-lo com a literatura em que vive metida. esse o momento de atacar.

3 — Trate de verificar se o inseto em que você está batendo é uma barata ou um barato. Nunca se esqueça: o barato sai caro.

4 — Nunca aproxime e afaste o jornal para fazer pontaria. As baratas sabem muito bem o que as espera quando sentem esse ventinho, quando você bater de verdade ela já terá embarcado para a Europa.

5 — Não tenha pena de bater. Bata firme, forte, decididamente. É a vida dela ou a sua. Se você não a matar terá que passar a existência inteira alimentando-a a inseticida.

6 — Não se importe com as coisas que o cercam. Afinal de contas que são meia dúzia de copos partidos, um tapete manchado, dois livros com as páginas rasgadas e uma perna de cadeira quebrada se você conseguiu eliminar uma barata?

7 — Se falhar, só a paciência lhe dará outra oportunidade. A barata não lhe dará outra tão cedo, enquanto permanecer em sua memória o trauma da pancada que quase lhe tirava a vida. Não adianta você sacudir livro após livro porque se recusará a aparecer. Agarrar-se-á às páginas e, se cair ao chão, correrá rapidamente, escondendo-se por trás do guarda-roupa.

8 — Não se deixe levar pela vaidade. Às vezes você atinge uma barata de leve e ela vira-se de barriga para o ar agitando as perninhas ininterruptamente, com a expressão de quem está dando uma gargalhada, achando você engraçadíssimo. Isso poderá lisonjeá-lo mas não a poupe por esse motivo.

9 — Às vezes elas tentam outro truque sentimental. Atingidas de leve elas vão se arrastando tristemente, de vez em quando olhando para você com um olhar que 1he dilacera o coração, como quem diz: "Seu malvado, viu o que você fez?" Antes de começar a chorar bata até matar. Depois chore.

10 — De seis em seis meses faça um teste consigo próprio para ver se você está mais desbaratador do que no semestre anterior. Se a resposta for negativa não esmoreça. Continue lutando até que possa, como nós, cobrar caro pelas lições administradas. E essa é nossa última recomendação: cobre sempre caro pelos seus conselhos nesse setor. Não se barateie!

Millôr Fernandes, ao que parece, padece do mesmo horror a baratas que muitos de nós têmos.

Fonte:
FERNANDES, Millôr. Lições de Um Ignorante. RJ: José Álvaro Editor, 1967, pág. 113. Disponível em http://www.releituras.com

Lairton Trovão de Andrade (1943)


Fonte:
Portal CEN

Lairton Trovão de Andrade (Trovas)



Fonte:
Portal CEN