por Rubens Zarate
Experimente observar os traços físicos das pessoas à sua volta – conhecidos, desconhecidos – no trabalho, ponto de ônibus, na Praça da Moça ou casas de forró. Aquela loira oxigenada com uns olhinhos meio rasgados, uma dobra diferente no canto dos olhos; aquele senhor evangélico com a ossatura da face meio proeminente; aquele adolescente ouvindo pagode ou tecno, beiçudo & de pele castanho-avermelhada. Costuma-se dizer que o Brasil é um país negro & mulato. Isso é correto até certo ponto. Quando o tráfico negreiro começou a tornar-se significativo já se havia passado meio século de intensa mestiçagem entre ibéricos & indígenas (principalmente guaranis, no sudeste, & jês & tupis, mais ao norte). Darcy Ribeiro, por exemplo, defende a tese de uma protocélula Brasil mameluca ou cabocla, surgida nos primeiros 50 anos de colonização, base das nossas populações camponesas, com ou sem terras. Desse ponto de vista o mais correto seria dizer que o Brasil é um país cafuzo. Na verdade, esse tipo de abordagem fenotípicoracial parece estar um tanto ultrapassado. O século XIX criou, com base nos traços físicos dos indivíduos, uma série de estereótipos, caricaturas a respeito do que viria a ser um “índio”, “negro” ou mestiço. A antropologia contemporânea, inclusive Darcy Ribeiro, prefere entender que indígena é todo aquele que se reconhece & é reconhecido como indígena por uma comunidade indígena. Não vamos então cair naquele tipo de chavão segundo o qual “o brasileiro é musical” por ter um pé na senzala ou “amante da natureza” por ter o outro na taba. Sociedades & indivíduos não são resultado de determinismos genético-raciais, geográficos-ambientais ou sócio-econômicos, mas produções de um imaginário social, de significações simbólicas, de um devir histórico de incessante criação coletiva de imagens, aquilo que Castoriadis chama poiésis – & o homem é antes de tudo um animal poiético, isto é, imaginante & imaginário. Roger Bastide, antropólogo francês & professor da USP, ao pesquisar os terreiros de candomblé procurou enxergar os praticantes do culto com o olhar do Outro – o chamado “olhar antropológico” –, no caso, um olhar afrodescendente. Acabou descobrindo que era filho de Xangô & apresentado ao panteão nagô como membro da linhagem do orixá do trovão & do machado-de-duas-faces. Passou a ser nagô? De certo modo. Nem por isso deixou de ser europeu & lecionar na USP & na Sorbonne. Caso parecido é o de Leon Cadogan, etnólogo paraguaio rebatizado com o nome de Tupã Kuchuvy pelo pajé da aldeia mbyáguarani que pesquisava.
O inverso vale também. Sabe-se que, graças aos mitos & falas sagradas mbyá registrados por Cadogan, muitos indivíduos geneticamente indígenas puderam se tornar indígenas culturalmente, tomando contato com suas tradições através da leitura de textos etnográficos, publicados por editoras ou Universidades. Não existem, portanto, “culturas autênticas”, do tipo “folclore em conserva”. Noções como “autenticidade” ou legitimidade” são entulhos ideológicos, abandonados há décadas pelas ciências sociais. Todo processo cultural é híbrido, sincrético, uma combinação de elementos heterogêneos, endógenos & exógenos, nativos & estrangeiros, “legítimos” ou “espúrios” – como nos cultos da umbanda, do catimbó ou do Santo Daime
Há quatro aldeias mbyá na Grande São Paulo (duas delas à beira da Billings): Tenondé-Porã (Parelheiros), Krukutú (Parelheiros/São Bernardo do Campo), M’Boi Mirim & Jaraguá, que se interligam a pelo menos mais quatro no litoral paulista, em Itanhaém, Peruíbe, Ubatuba & São Sebastião. Seus habitantes vivem como estrangeiros quase invisíveis nas frestas & franjas da área mais capitalizada & cosmopolita da América Latina, estabelecendo relações entre o modo de vida tradicional do interior das aldeias & a periferia & o centro das cidades da Grande São Paulo. É curioso notar que a sociedade brasileira, que nas últimas décadas vem aprendendo a reconhecer seu legado afrodescendente, ainda se recusa a assumir sua face indígena & mameluca. O Brasil finge que o índio (real) não existe – a não ser como avis rara empalhada, museológica & exótica.
Os mbyá, originários do Paraguai oriental, são um dos grupos culturais que formam o povo guarani – os outros dois são os kaiowá & os ñandeva –, aquele que melhor preservou suas tradições originais diante da devastação provocada a partir de 1500 pela pirataria ibérica & pela catequese romana. Antes mesmo da invenção do Brasil pelos europeus, a cultura guarani se caracterizava pelas migrações à procura da terra-sem-mal (yvy marãey), situada do outro lado do mar. Esses êxodos, ocorrentes desde a época pré-cabralina até metade do século XX, eram induzidos por visionários em transe, os karay, uma categoria especial de pajé, que recitando falas sagradas incitavam as aldeias às migrações. O mar, na cosmologia guarani, representa o lugar onde o destino humano pode se cumprir: é ao mesmo tempo um ponto de chegada & um obstáculo a ser transposto para se atingir o éden. A Serra do Mar, nesse contexto, passa a ter um significado especial: é a barragem do mar (yvy paiãry jocoã). Nos antigos mitos ñandeva há menção explícita à Serra do Mar. Talvez por isso os guarani tenham ocupado as encostas da serra, ao invés do litoral como os antigos tupi. Nas tradições mbyá & ñandeva, as terras do leste teriam sido ocupadas por seus antepassados, & sua atual reocupação representa o tekoa, o lugar-onde-se-pode-ser-aquilo-que-se-é.
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Para Curt Nimuendaju, etnólogo alemão que pesquisou as migrações guarani ocorridas do final do século XIX à metade do XX, a busca da terra-sem-mal é um fenômeno fundamentalmente mágico-religioso, esteja ou não relacionada a injunções da vida material, como guerras ou procura de novas áreas de cultivo. É curioso notar que, enquanto os mbyá migraram para o leste (lugar de Karay, o espírito do fogo), indo do Paraguai para o Mato Grosso & Paraná, & dali para a Serra do Mar, os atuais avá-chiriguanos da Bolívia, do grupo ñandeva, migraram para o oeste (lugar de Tupã, espírito das águas & tempestades), chegando a invadir o Império Inca no século XVI.
Em seu clássico A Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres faz uma leitura bastante original sobre a questão, com grande repercussão nos campos da Etnologia & da Política. Sendo as sociedades tribais sociedades sem Estado, o fenômeno dos profetas karay & da busca da terra-sem-mal representariam uma reação contrária ao surgimento
dos cacicados, chefi as políticas centralizadas nas mãos dos líderes guerreiros. Signifi cariam, portanto, uma rebelião mística contra o aparecimento de um proto-Estado monopolizador do poder – & o poder, para os mbyá, é o poder da palavra. “Falar é, antes de tudo, deter o poder de falar”. Os karay, “profetas selvagens”, pregariam as migrações para a terra-sem-mal – isto é, sem Estado – visando a desestabilização das chefias. Essa guerra simbólica entre xamãs & caciques implicaria, para Clastres, na dissolução da própria sociedade mbyá, que, diante da ameaça de dominação social pelo Estado, teria optado (como ocorre hoje com os kaiowá do Mato Grosso) pela auto-extinção.
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A cultura mbyá se define pelo visionarismo xamânico, & este pelo caráter mágico-religioso da palavra mitopoética, recitada ou cantada. Para Mircea Eliade o sagrado é, na religiosidade arcaica, o centro & a origem da realidade, o núcleo a partir do qual se propaga o mundo profano. Assim todo rito & todo mito representam o retorno ao centro
& à origem do real, o regresso ao sagrado. Não há, nas culturas arcaicas, a separação judaico-cristã, platônica ou cartesiana entre essas duas esferas.
Nas cosmogonias indígenas não existe um deus criador apartado do mundo por ele engendrado. Sagrado & profano, deuses & criaturas são estágios ou pólos de um mesmo processo. O universo é visto como um incessante desdobrar-se e redobrar-se, uma continuidade entre a unidade original & a multiplicidade do mundo. Para os mbyá, a criação do mundo se dá quando Ñamandu, o Mistério das Origens, desdobra-se a partir de si mesmo – como um sol que se ilumina, uma semente que irrompe ou uma asa de pássaro que se abre. É o oguero-jerá, conceito fundamental da metafísica mbyá, que poderia ser traduzido como aquilo-quegermina-de-sua-própria-germinação, ou aquilo-quese-desdobra-em-seu-próprio-desdobramento, ou ainda aquilo-que-se-ilumina-da-iluminação-de-si-mesmo. A cosmogênese é uma ereção do avá, força sagrada da verticalidade. Manifesta-se como ayvu, espírito-sompalavra que vem à Terra; individualiza-se como ñe’e, alma-cântico-fala que encarna nos seres viventes. O mundo passa a existir através do ato da poetização, da nomeação, do canto-recitação.
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No idioma guarani não há plural ou conjugação dos tempos verbais. Um único termo pode ser substantivo, verbo ou adjetivo. Para Cadogan, “todo o domínio semântico guarani comprova sua extrema riqueza. Sua linguagem não tem declinações passadas ou futuras. Todo seu falar é no presente: a ação reflete a realidade eterna do ser”. Além da fala comum, cotidiana, há uma linguagem secreta, esotérica, que só os karay sabem proferir & que não se dirige aos homens, mas ao sagrado. As palavras ganham um nível semântico cujo sentido & uso é exclusivamente mágico-religioso. Porã, por exemplo, costuma ser utilizado no sentido de “belo”; mas em seu significado esotérico é, literalmente, aquilo-que-é-adornado-com-plumas.
Sendo as penas dos pássaros signos do sagrado, porã equivale a “adornado, embelezado pelos deuses”. Ayvu comumente signifi ca linguagem, palavra, fala, recitação ou canto; mas em seu sentido mitopoético corresponde ao sagrado, ao espírito, à vida divina ou à música dos deuses. Ñe’e tem os mesmos sentidos, mas refere-se à fala dos seres vivos, humanos ou não. Outro exemplo é o nome Karay, que designa o espírito do leste, o nascer do sol & as chamas. Secretamente a palavra denota também os próprios poetas-visionários, aqueles-que-falam-asfalas- sagradas. Há também palavras-montagens de imagens. Cachimbo é “o esqueleto da névoa”, sendo os ossos considerados a morada da alma imortal dos seres vivos, enquanto a neblina & a fumaça são o hálito de Jakairah, o norte, lugar dos ancestrais & do conhecimento dos anciãos.
Por isso a cerimônia de batismo, ñi-mongaray, talvez seja a mais importante entre os mbyá. Uma criança que nasce é considerada encarnação de uma palavra-alma, um “nome-que-se-assenta-&-ergue”. O pajé pode ler na névoa do tabaco qual é essa palavra, a linhagem espiritual da qual provém aquele a ser batizado – leste, oeste, sul, norte ou zênite –, qual é seu nome, isto é, sua essência & origem. Receber um nome é receber ñe’e, uma alma-vida-fala. Do mesmo modo, o ato de cura é a restituição do ñe’e perdido do enfermo. O pajécurandeiro utiliza o cachimbo & o fumo, lembrando o nevoeiro que Jakairah trouxe à terra junto à palavra & ao pensamento, & opera analogamente ao deus da neblina que infunde a vida como orvalho à vegetação na passagem do inverno à primavera. Voltar à vida, devolver a alma-palavra é também o ato de curar. Há uma relação direta entre o sagrado, a linguagem, a vida & a verticalidade. É verdadeiro aquilo que está ereto, erguido. Avá, que comumente designa a condição humana, esotericamente representa o estado da verticalidade. O milho, planta sagrada & solar, é
avaty, o vegetal-ereto.
Considerando a importância central que os guarani atribuem à palavra, sinônimo de vida, alma & espírito, é significativo que os atuais habitantes da Serra do Mar tenham sido denominados mbyá: Aqueles-que-Vieram-de-Longe, os Estrangeiros, os Outros.
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O mitopoema que traduzo nas páginas seguintes é a parte inicial, o primeiro ciclo da cosmogonia mbyá, Maino Reko Ypy Kue (Os Atos Primeiros de Colibri-o- Pássaro-Primeiro). Há mais quatro traduções deste texto, todas baseadas nas falas sagradas recolhidas em 1953 por Leon Cadogan entre os mbyá do Paraguai: para o espanhol, pelo próprio Cadogan (1959); para o francês, por Pierre Clastres (1974); para o português, por Yara Miowa (1999) & por Kaka Werá Jecupé (2001). Todas elas foram cotejadas em minha versão, que também parte do original, em idioma mbyá paraguaio. É preciso lembrar que toda etnotradução é uma utopia: impossível traduzir a melopéia da recitação guarani para uma língua européia como a nossa.
Maino narra a passagem do araymá, o tempo primeiro do inverno ou caos primordial, ao arapoty, tempo da primavera, ou arapyaú ñemokandyre, tempo da terra-em-que-vivemos & dos sóis-que-nascem-&- morrem-&-nascem-novamente. É possivelmente a essa idade do ouro ou éden terrestre (bem diversa do paraíso cristão) que se referem as migrações para o leste (lugar do sol, primavera simbólica) em busca da terra-sem-mal.
Ñamandu, a Origem-de-Tudo, desdobra-se a partir de si mesmo. As primeiras imagens sugerem ao mesmo tempo o vir-à-luz (invertido) de uma criança & o desabrochar de uma palmeira cujas folhas são um cocar de plumas. Lembram também o popyguá, o cetro adornado com plumas que é portado pelos que falam as falas sagradas. Essas imagens parecem se referir também ao uiraçú ou gavião-real (Harpia harpya), a águia-de-penacho que é a maior animal de rapina do planeta & pássaro sagrado em várias culturas indígenas. Antes de desdobrar-se em gavião-real, ave solar, Ñamandu aparece como coruja, urukure’a, pássaro da noite. O mundo em seu desabrochar é ao mesmo tempo um sol & uma fl or, sobre o qual esvoaça o colibri primordial, maino, o pássaro-primeiro.
A passagem do caos ao cosmos seria então, na tradição mbyá, o despertar de um pássaro cujos olhos, ao se abrirem, fazem o sol nascer pela primeira vez. Uma coruja se solariza ao sol de si mesma & Vê-que-Éum- Gavião. É o primeiro oguero-jerá. O inverno dos primeiros ventos, o araymá ou caos primordial, dá lugar à primavera das fl ores do ipê-amarelo, o arapoty. O tempo-sem-tempo em que tudo é idêntico a si mesmo dá lugar ao arapyaú ñemokandyre, era das madrugadas & primaveras que nascem-&-morrem- &-nascem-novamente. Tempo da temporalidade: dos cânticos da diversidade da Terra: Yvy Piaú, a terra-em-que-vivemos. Mas também a terra que, em nossa condição de estrangeiros em perpétuo fl uxo migratório, buscamos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bartolomé, M.A. - Chamanismo y Religión entre los Ava Katu Ede. Instituto Indigenista, México, s/d
Cadogan, L - Chonó Kybwyrá. Revista Del Ateneo Paraguayo, Assunción, 1968.
- Aywu Rapytá. Boletim 227 de Filosofi a, Ciências e Letras da USP, S. Paulo,1959.
Carneiro da Cunha, M (org) - História dos Índios no Brasil. Cia. Das Letras, S. Paulo, 1998.
Castoriadis, C. - A Instituição Imaginária da Sociedade. Paz & Terra, Rio, 1982.
Clastres, P. - A Sociedade contra o Estado. Francisco Alves, Rio, 1978.
- A Fala Sagrada. Papirus, Campinas, 1990.
Clastres, H. - A Terra Sem Mal. Brasiliense, S. Paulo, 1978.
Eliade, M. - O Sagrado & o Profano. Edições Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
Ladeira, M. I. - Os Índios da Serra do Mar. Nova Stella, S. Paulo, 1988.
Miowa, Y. - Kuarahycorá. Elevação, S. Paulo, 1999.
Nimuendaju, C. - Lenda da Criação do Mundo como Fundamento da Religião dos Apapokuva-Guarani. EDUSP, S. Paulo, 1978.
Ribeiro, D. - As Américas & a Civilização. Vozes, Petrópolis, 1978.
Vainfas, R. - A Heresia dos Índios. Cia. Das Letras, S. Paulo, 1995.
Werá Jecupé, K. - Tupã Tenondé. Peirópolis, 2001.
Fonte:
Laboratório de Poéticas Antenas & Raízes
n.1. Diadema: Ponto de Cultura do Imaginário & da Diversidade. 2007. p.36-39.
Experimente observar os traços físicos das pessoas à sua volta – conhecidos, desconhecidos – no trabalho, ponto de ônibus, na Praça da Moça ou casas de forró. Aquela loira oxigenada com uns olhinhos meio rasgados, uma dobra diferente no canto dos olhos; aquele senhor evangélico com a ossatura da face meio proeminente; aquele adolescente ouvindo pagode ou tecno, beiçudo & de pele castanho-avermelhada. Costuma-se dizer que o Brasil é um país negro & mulato. Isso é correto até certo ponto. Quando o tráfico negreiro começou a tornar-se significativo já se havia passado meio século de intensa mestiçagem entre ibéricos & indígenas (principalmente guaranis, no sudeste, & jês & tupis, mais ao norte). Darcy Ribeiro, por exemplo, defende a tese de uma protocélula Brasil mameluca ou cabocla, surgida nos primeiros 50 anos de colonização, base das nossas populações camponesas, com ou sem terras. Desse ponto de vista o mais correto seria dizer que o Brasil é um país cafuzo. Na verdade, esse tipo de abordagem fenotípicoracial parece estar um tanto ultrapassado. O século XIX criou, com base nos traços físicos dos indivíduos, uma série de estereótipos, caricaturas a respeito do que viria a ser um “índio”, “negro” ou mestiço. A antropologia contemporânea, inclusive Darcy Ribeiro, prefere entender que indígena é todo aquele que se reconhece & é reconhecido como indígena por uma comunidade indígena. Não vamos então cair naquele tipo de chavão segundo o qual “o brasileiro é musical” por ter um pé na senzala ou “amante da natureza” por ter o outro na taba. Sociedades & indivíduos não são resultado de determinismos genético-raciais, geográficos-ambientais ou sócio-econômicos, mas produções de um imaginário social, de significações simbólicas, de um devir histórico de incessante criação coletiva de imagens, aquilo que Castoriadis chama poiésis – & o homem é antes de tudo um animal poiético, isto é, imaginante & imaginário. Roger Bastide, antropólogo francês & professor da USP, ao pesquisar os terreiros de candomblé procurou enxergar os praticantes do culto com o olhar do Outro – o chamado “olhar antropológico” –, no caso, um olhar afrodescendente. Acabou descobrindo que era filho de Xangô & apresentado ao panteão nagô como membro da linhagem do orixá do trovão & do machado-de-duas-faces. Passou a ser nagô? De certo modo. Nem por isso deixou de ser europeu & lecionar na USP & na Sorbonne. Caso parecido é o de Leon Cadogan, etnólogo paraguaio rebatizado com o nome de Tupã Kuchuvy pelo pajé da aldeia mbyáguarani que pesquisava.
O inverso vale também. Sabe-se que, graças aos mitos & falas sagradas mbyá registrados por Cadogan, muitos indivíduos geneticamente indígenas puderam se tornar indígenas culturalmente, tomando contato com suas tradições através da leitura de textos etnográficos, publicados por editoras ou Universidades. Não existem, portanto, “culturas autênticas”, do tipo “folclore em conserva”. Noções como “autenticidade” ou legitimidade” são entulhos ideológicos, abandonados há décadas pelas ciências sociais. Todo processo cultural é híbrido, sincrético, uma combinação de elementos heterogêneos, endógenos & exógenos, nativos & estrangeiros, “legítimos” ou “espúrios” – como nos cultos da umbanda, do catimbó ou do Santo Daime
Há quatro aldeias mbyá na Grande São Paulo (duas delas à beira da Billings): Tenondé-Porã (Parelheiros), Krukutú (Parelheiros/São Bernardo do Campo), M’Boi Mirim & Jaraguá, que se interligam a pelo menos mais quatro no litoral paulista, em Itanhaém, Peruíbe, Ubatuba & São Sebastião. Seus habitantes vivem como estrangeiros quase invisíveis nas frestas & franjas da área mais capitalizada & cosmopolita da América Latina, estabelecendo relações entre o modo de vida tradicional do interior das aldeias & a periferia & o centro das cidades da Grande São Paulo. É curioso notar que a sociedade brasileira, que nas últimas décadas vem aprendendo a reconhecer seu legado afrodescendente, ainda se recusa a assumir sua face indígena & mameluca. O Brasil finge que o índio (real) não existe – a não ser como avis rara empalhada, museológica & exótica.
Os mbyá, originários do Paraguai oriental, são um dos grupos culturais que formam o povo guarani – os outros dois são os kaiowá & os ñandeva –, aquele que melhor preservou suas tradições originais diante da devastação provocada a partir de 1500 pela pirataria ibérica & pela catequese romana. Antes mesmo da invenção do Brasil pelos europeus, a cultura guarani se caracterizava pelas migrações à procura da terra-sem-mal (yvy marãey), situada do outro lado do mar. Esses êxodos, ocorrentes desde a época pré-cabralina até metade do século XX, eram induzidos por visionários em transe, os karay, uma categoria especial de pajé, que recitando falas sagradas incitavam as aldeias às migrações. O mar, na cosmologia guarani, representa o lugar onde o destino humano pode se cumprir: é ao mesmo tempo um ponto de chegada & um obstáculo a ser transposto para se atingir o éden. A Serra do Mar, nesse contexto, passa a ter um significado especial: é a barragem do mar (yvy paiãry jocoã). Nos antigos mitos ñandeva há menção explícita à Serra do Mar. Talvez por isso os guarani tenham ocupado as encostas da serra, ao invés do litoral como os antigos tupi. Nas tradições mbyá & ñandeva, as terras do leste teriam sido ocupadas por seus antepassados, & sua atual reocupação representa o tekoa, o lugar-onde-se-pode-ser-aquilo-que-se-é.
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Para Curt Nimuendaju, etnólogo alemão que pesquisou as migrações guarani ocorridas do final do século XIX à metade do XX, a busca da terra-sem-mal é um fenômeno fundamentalmente mágico-religioso, esteja ou não relacionada a injunções da vida material, como guerras ou procura de novas áreas de cultivo. É curioso notar que, enquanto os mbyá migraram para o leste (lugar de Karay, o espírito do fogo), indo do Paraguai para o Mato Grosso & Paraná, & dali para a Serra do Mar, os atuais avá-chiriguanos da Bolívia, do grupo ñandeva, migraram para o oeste (lugar de Tupã, espírito das águas & tempestades), chegando a invadir o Império Inca no século XVI.
Em seu clássico A Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres faz uma leitura bastante original sobre a questão, com grande repercussão nos campos da Etnologia & da Política. Sendo as sociedades tribais sociedades sem Estado, o fenômeno dos profetas karay & da busca da terra-sem-mal representariam uma reação contrária ao surgimento
dos cacicados, chefi as políticas centralizadas nas mãos dos líderes guerreiros. Signifi cariam, portanto, uma rebelião mística contra o aparecimento de um proto-Estado monopolizador do poder – & o poder, para os mbyá, é o poder da palavra. “Falar é, antes de tudo, deter o poder de falar”. Os karay, “profetas selvagens”, pregariam as migrações para a terra-sem-mal – isto é, sem Estado – visando a desestabilização das chefias. Essa guerra simbólica entre xamãs & caciques implicaria, para Clastres, na dissolução da própria sociedade mbyá, que, diante da ameaça de dominação social pelo Estado, teria optado (como ocorre hoje com os kaiowá do Mato Grosso) pela auto-extinção.
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A cultura mbyá se define pelo visionarismo xamânico, & este pelo caráter mágico-religioso da palavra mitopoética, recitada ou cantada. Para Mircea Eliade o sagrado é, na religiosidade arcaica, o centro & a origem da realidade, o núcleo a partir do qual se propaga o mundo profano. Assim todo rito & todo mito representam o retorno ao centro
& à origem do real, o regresso ao sagrado. Não há, nas culturas arcaicas, a separação judaico-cristã, platônica ou cartesiana entre essas duas esferas.
Nas cosmogonias indígenas não existe um deus criador apartado do mundo por ele engendrado. Sagrado & profano, deuses & criaturas são estágios ou pólos de um mesmo processo. O universo é visto como um incessante desdobrar-se e redobrar-se, uma continuidade entre a unidade original & a multiplicidade do mundo. Para os mbyá, a criação do mundo se dá quando Ñamandu, o Mistério das Origens, desdobra-se a partir de si mesmo – como um sol que se ilumina, uma semente que irrompe ou uma asa de pássaro que se abre. É o oguero-jerá, conceito fundamental da metafísica mbyá, que poderia ser traduzido como aquilo-quegermina-de-sua-própria-germinação, ou aquilo-quese-desdobra-em-seu-próprio-desdobramento, ou ainda aquilo-que-se-ilumina-da-iluminação-de-si-mesmo. A cosmogênese é uma ereção do avá, força sagrada da verticalidade. Manifesta-se como ayvu, espírito-sompalavra que vem à Terra; individualiza-se como ñe’e, alma-cântico-fala que encarna nos seres viventes. O mundo passa a existir através do ato da poetização, da nomeação, do canto-recitação.
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No idioma guarani não há plural ou conjugação dos tempos verbais. Um único termo pode ser substantivo, verbo ou adjetivo. Para Cadogan, “todo o domínio semântico guarani comprova sua extrema riqueza. Sua linguagem não tem declinações passadas ou futuras. Todo seu falar é no presente: a ação reflete a realidade eterna do ser”. Além da fala comum, cotidiana, há uma linguagem secreta, esotérica, que só os karay sabem proferir & que não se dirige aos homens, mas ao sagrado. As palavras ganham um nível semântico cujo sentido & uso é exclusivamente mágico-religioso. Porã, por exemplo, costuma ser utilizado no sentido de “belo”; mas em seu significado esotérico é, literalmente, aquilo-que-é-adornado-com-plumas.
Sendo as penas dos pássaros signos do sagrado, porã equivale a “adornado, embelezado pelos deuses”. Ayvu comumente signifi ca linguagem, palavra, fala, recitação ou canto; mas em seu sentido mitopoético corresponde ao sagrado, ao espírito, à vida divina ou à música dos deuses. Ñe’e tem os mesmos sentidos, mas refere-se à fala dos seres vivos, humanos ou não. Outro exemplo é o nome Karay, que designa o espírito do leste, o nascer do sol & as chamas. Secretamente a palavra denota também os próprios poetas-visionários, aqueles-que-falam-asfalas- sagradas. Há também palavras-montagens de imagens. Cachimbo é “o esqueleto da névoa”, sendo os ossos considerados a morada da alma imortal dos seres vivos, enquanto a neblina & a fumaça são o hálito de Jakairah, o norte, lugar dos ancestrais & do conhecimento dos anciãos.
Por isso a cerimônia de batismo, ñi-mongaray, talvez seja a mais importante entre os mbyá. Uma criança que nasce é considerada encarnação de uma palavra-alma, um “nome-que-se-assenta-&-ergue”. O pajé pode ler na névoa do tabaco qual é essa palavra, a linhagem espiritual da qual provém aquele a ser batizado – leste, oeste, sul, norte ou zênite –, qual é seu nome, isto é, sua essência & origem. Receber um nome é receber ñe’e, uma alma-vida-fala. Do mesmo modo, o ato de cura é a restituição do ñe’e perdido do enfermo. O pajécurandeiro utiliza o cachimbo & o fumo, lembrando o nevoeiro que Jakairah trouxe à terra junto à palavra & ao pensamento, & opera analogamente ao deus da neblina que infunde a vida como orvalho à vegetação na passagem do inverno à primavera. Voltar à vida, devolver a alma-palavra é também o ato de curar. Há uma relação direta entre o sagrado, a linguagem, a vida & a verticalidade. É verdadeiro aquilo que está ereto, erguido. Avá, que comumente designa a condição humana, esotericamente representa o estado da verticalidade. O milho, planta sagrada & solar, é
avaty, o vegetal-ereto.
Considerando a importância central que os guarani atribuem à palavra, sinônimo de vida, alma & espírito, é significativo que os atuais habitantes da Serra do Mar tenham sido denominados mbyá: Aqueles-que-Vieram-de-Longe, os Estrangeiros, os Outros.
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O mitopoema que traduzo nas páginas seguintes é a parte inicial, o primeiro ciclo da cosmogonia mbyá, Maino Reko Ypy Kue (Os Atos Primeiros de Colibri-o- Pássaro-Primeiro). Há mais quatro traduções deste texto, todas baseadas nas falas sagradas recolhidas em 1953 por Leon Cadogan entre os mbyá do Paraguai: para o espanhol, pelo próprio Cadogan (1959); para o francês, por Pierre Clastres (1974); para o português, por Yara Miowa (1999) & por Kaka Werá Jecupé (2001). Todas elas foram cotejadas em minha versão, que também parte do original, em idioma mbyá paraguaio. É preciso lembrar que toda etnotradução é uma utopia: impossível traduzir a melopéia da recitação guarani para uma língua européia como a nossa.
Maino narra a passagem do araymá, o tempo primeiro do inverno ou caos primordial, ao arapoty, tempo da primavera, ou arapyaú ñemokandyre, tempo da terra-em-que-vivemos & dos sóis-que-nascem-&- morrem-&-nascem-novamente. É possivelmente a essa idade do ouro ou éden terrestre (bem diversa do paraíso cristão) que se referem as migrações para o leste (lugar do sol, primavera simbólica) em busca da terra-sem-mal.
Ñamandu, a Origem-de-Tudo, desdobra-se a partir de si mesmo. As primeiras imagens sugerem ao mesmo tempo o vir-à-luz (invertido) de uma criança & o desabrochar de uma palmeira cujas folhas são um cocar de plumas. Lembram também o popyguá, o cetro adornado com plumas que é portado pelos que falam as falas sagradas. Essas imagens parecem se referir também ao uiraçú ou gavião-real (Harpia harpya), a águia-de-penacho que é a maior animal de rapina do planeta & pássaro sagrado em várias culturas indígenas. Antes de desdobrar-se em gavião-real, ave solar, Ñamandu aparece como coruja, urukure’a, pássaro da noite. O mundo em seu desabrochar é ao mesmo tempo um sol & uma fl or, sobre o qual esvoaça o colibri primordial, maino, o pássaro-primeiro.
A passagem do caos ao cosmos seria então, na tradição mbyá, o despertar de um pássaro cujos olhos, ao se abrirem, fazem o sol nascer pela primeira vez. Uma coruja se solariza ao sol de si mesma & Vê-que-Éum- Gavião. É o primeiro oguero-jerá. O inverno dos primeiros ventos, o araymá ou caos primordial, dá lugar à primavera das fl ores do ipê-amarelo, o arapoty. O tempo-sem-tempo em que tudo é idêntico a si mesmo dá lugar ao arapyaú ñemokandyre, era das madrugadas & primaveras que nascem-&-morrem- &-nascem-novamente. Tempo da temporalidade: dos cânticos da diversidade da Terra: Yvy Piaú, a terra-em-que-vivemos. Mas também a terra que, em nossa condição de estrangeiros em perpétuo fl uxo migratório, buscamos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Fonte:
Laboratório de Poéticas Antenas & Raízes
n.1. Diadema: Ponto de Cultura do Imaginário & da Diversidade. 2007. p.36-39.
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