quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Dicionário de Folclore (Letra A)


Este DICIONÁRIO DE FOLCLORE PARA ESTUDANTES foi uma idéia da professora Rúbia Lóssio, estagiária na Coordenadoria de Estudos Folclóricos, do Instituto de Pesquisas Sociais, da Fundação Joaquim Nabuco.

A professora Rúbia Lóssio, no exercício de sua profissão, sempre constatou a existência de dificuldades, da parte de seus alunos, que não dispunham de um dicionário de folclore, que usasse uma linguagem mais acessível, e no qual as manifestações folclóricas fossem verbeteadas com simplicidade e clareza.

Achei a idéia interessante e, de parceria, começamos a elaborar este dicionário, procurando não confundir o aluno com teorias, divergências de pontos de vista entre os autores, procurando sempre descomplicar os assuntos, omitindo a paternidade autoral, sem confundir, procurando eliminar dúvidas.

Trabalho feito a quatro mãos, este dicionário, gerado na Fundação Joaquim Nabuco, como não poderia deixar de acontecer, terá seus possíveis desacertos, que serão corrigidos nas próximas edições, quando apontados pelos estudiosos no assunto.

Como todo mundo sabe, não existe nada completo, nada perfeito e, assim sendo, este dicionário não poderia ser a exceção de uma regra universal.

Assim, esperamos nós, seus autores, que este DICIONÁRIO DE FOLCLORE PARA ESTUDANTES tenha o mérito de ser pioneiro na sua especialidade e que seja compreendido o nosso esforço, esforço este que consumiu bastante tempo, com a finalidade de ser preenchida uma lacuna e de havermos feito um trabalho à altura da necessidade existente.
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ABC. São quadras ou sextilhas que começam com cada uma das letras do alfabeto. Os ABCs são muito antigos no mundo todo. Usados na literatura popular em versos, também conhecida como literatura de cordel (veja LITERATURA DE CORDEL), os ABCs contam a vida de heróis populares, estórias de cangaceiros valentes, de santos, de estadistas famosos.
ABACAXI. É uma fruta muito saborosa e seu nome também é dado às pessoas que não sabem dançar e pisam os pés do parceiro. É como também se nomeiam os problemas de difícil solução.
ABAFA-BANANA. Quando as bananas estão ficando amarelas são colhidas, amontoadas e cobertas com as folhas secas da bananeira, para que fiquem bem madurinhas. Essa é a razão pela qual abafa-banana é o nome que se dá às roupas masculinas (os ternos) feitas de tecidos grossos, quentes, pesados como a casemira, impróprios para nosso clima tropical, mas que eram usados nas décadas de 30 a 50, aqui, no Nordeste.
ABAFO. É o frevo-de-rua, conhecido por frevo-de-encontro, no qual os trombones predominam. É chamado de abafo porque abafa o som da orquestra de outro clube de frevo que se encontre nas imediações.
ABOIO. É um canto triste, geralmente com poucas e alguns até sem palavras, entoado pelos vaqueiros quando conduzem a boiada. Alguns vaqueiros, entretanto, improvisam versos como no aboio cantado: "- Ei, boi!./ Ei, vaca malhadinha!..."
ABRE-ALAS. 1. É o carro alegórico que simboliza a escola de samba e, no desfile, vem em seguida à Comissão-de-Frente; 2. O Abre-Alas, de Chiquinha Gonzaga, foi a primeira canção do carnaval carioca (1899).
ABRIDEIRA. É o começo de tudo: a primeira dança, o primeiro copo de bebida, o primeiro prato do almoço ou do jantar. E saideira é o último copo, a última rodada, quando a reunião vai terminar.
ABUSÃO. É a superstição que o povo tem de fazer ou não alguma coisa. Por exemplo: a) deixar o chinelo emborcado, a mãe pode morrer; b) passar por baixo de uma escada não é bom, podem acontecer desgraças na vida da pessoa; c) abrir-a-boca (bocejar) e não fazer o sinal da cruz, o diabo pode entrar.
ACADEMIA. 1. É um jogo ginástico infantil, muito antigo, no qual a criança pula com um pé só, para apanhar a pedrinha que jogou do primeiro até o último quadrado. Em outras partes do país o jogo também é conhecido como amarelinha, cademia. 2. Nome que se dá ao coro masculino de uma escola de samba.
ACALANTOS. Os acalantos são cantados pelas mães do mundo todo para adormecer seus filhos: 1. "Boi, boi, boi/Boi da cara preta/Vem pegar este menino/Que tem medo de careta"; 2. "Xô, xô, pavão/Sai de cima do telhado/Deixe meu filho dormir/Seu soninho sossegado"; 3. "Nanai, meu menino/Nanai meu amor/A faca que corta/Dá talho sem dor". O mesmo que cantiga-de-ninar, berceuse, cantiga-pra-botar-menino-pra-dormir.
ACARAJÉ. É um bolo de feijão–fradinho com molho de pimenta-malagueta, cebola, camarão. Muito vendido em tabuleiros e barracas de Salvador, é considerado um prato da culinária baiana.
ADÁGIO. O adágio é uma das fórmulas clássicas da sabedoria popular. Tem forma rítmica, com sete sílabas. Os brasileiros não fazem diferença entre adágio, anexim, rifão, máxima, ditado, dito, e não obedecem ao número de sílabas. Exemplos: Pimenta nos olhos dos outros é refresco, Filho de burro um dia dá coice, Pé de galinha não mata pinto, Quem anda na garupa não pega as rédeas, Sombra de pau não mata cobra, Mulher de janela, nem costura nem panela.
ADIVINHAÇÃO. A adivinhação é universal. Pode ser em prosa, como: "O que é, o que é? Cai em pé e morre deitado? (chuva)"; "O que é, o que é? Tem quatro pés, mas não anda? (mesa)"; "O que é, o que é? Nasce grande e morre pequeno? (vela, lápis)"; "O que é, o que é? De dia está no céu (da boca) e de noite está na água (no copo)? (dentadura)". A adivinhação pode ser em verso, como a do vinho e do vinagre: "Somos iguais no nome,/ Desiguais no parecer;/ Meu irmão não vai à missa,/ E eu não posso perder,/ Entre bailes e partidas,/ Todas lá me encomendarão;/ Nos trabalhos de cozinha/ Isso é lá com meu irmão".
ADIVINHANDO–CHUVA. Quando um menino está trelando muito, ou um adulto apronta alguma arte, diz-se que estão adivinhando chuva.
ADUFE. É um pandeiro quadrado, oco, feito de madeira leve, coberto com dois pergaminhos delgados, tocado com todos os dedos, menos o polegar que serve para sustentá-lo.
AFOXÉ. Cordão carnavalesco de negros na Bahia, trajando roupas principescas de fazendas brilhantes, entoando canções de candomblé na língua nagô ou ioruba.
AGOGÔ. É um instrumento musical de origem africana, usado nos candomblés. É uma dupla campânula de ferro na qual se bate com uma varinha de metal, cada campânula produzindo um som diferente. Também é usado nas orquestras de carnaval, principalmente quando estão tocando o maracatu pernambucano.
AGOURO. Veja ABUSÃO
AGOSTO. É o oitavo mês do ano. No mundo todo agosto é conhecido como o mês da desgraça, da infelicidade, quando coisas horríveis acontecem com as pessoas. Não é bom casar, viajar, fazer negócios, mudar de casa, durante o mês de agosto, porque nada dá certo.
AGUARDENTE. Bebida de alto teor alcoólico, obtida pela destilação de frutos, cereais, raízes, sementes, etc. A mais conhecida é a aguardente feita de cana-de-açúcar.
AIPIM. É o nome que se dá à macaxeira, mandioca doce. No Nordeste, o aipim é mais conhecido como macaxeira. Os índios faziam vinho de aipim, muito bom para o fígado, servido nas festas dos indígenas brasileiros. No Nordeste, quando um homem conduz uma mulher e consente que ela caminhe pela extremidade da calçada, é chamado de macaxeira. A mulher deve ficar sempre à direita de quem vem e à esquerda de quem vai.
AJUDAR-A-MORRER. No sertão nordestino quando alguém está sofrendo muito, custando a morrer, sua família chama o ajudador, uma pessoa que, conforme o nome está dizendo, ajuda o doente a morrer mais depressa, cantando incelença, rezando. Veja INCELENÇA.
ALAMOA. A alamoa aparece na Ilha de Fernando de Noronha. É uma mulher de cor branca, de longos cabelos louros, nua, para tentar os pescadores. Os homens vêem a alamoa, ficam apaixonados por sua beleza e, de repente, ela se transforma num esqueleto horrível, perseguindo quem foge dela. A alamoa mora no Pico, uma elevação rochosa situada no Arquipélago. Toda sexta-feira a Pedra do Pico se abre e, na chamada ponta do Pico, aparece uma luz que atrai as mariposas e os homens que se encontram nas imediações.
ALCEU MAYNARD ARAÚJO nasceu no dia 21 de dezembro de 1913, na cidade de Piracicaba, SP. Formou-se professor em 1930 e veio para São Paulo, ingressando no Curso Colegial e Científico do Colégio Ipiranga. Em 1944 bacharelou-se na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, depois do que exerceu diversas funções e pertenceu a diversas entidades. Na área do Folclore publicou: Cururu (1948), Danças e ritos populares de Taubaté (1948), Folia de Reis de Cunha (1949), Rondas infantis de Cananéia (1952), Literatura de cordel (1955), Ciclo agrícola, calendário religioso e magias ligadas às plantações (1957), Poranduba paulista (1958), Folclore do mar (1958), Medicina rústica (1961), Novo dicionário brasileiro – verbetes de folclore (1962), Folclore nacional (1964), Pentateuco nordestino (1971), além de muitos ensaios e artigos na imprensa brasileira e revistas especializadas. Já é falecido.
ALECRIM. É uma planta usada na medicina popular para curar tosse, rouquidão, falta de ar. Combate o mau-olhado.
ALFAZEMA. É uma planta com a qual se faz um perfume tradicional e é usada, também, para que o enxoval dos recém–nascidos fique cheiroso. No quarto da parturiente, a tradição manda queimar alfazema. Também é usada nos banhos de cheiro.
ALFELÔ. É um dos doces dos mais antigos trazidos pelos árabes para a Espanha e Portugal. Os colonizadores portugueses trouxeram o alfelô para o Brasil. É ainda vendido em algumas cidades do Nordeste. É uma pasta de mel em ponto grosso, "puxado" até clarear; depois se fazem colunas finas, embrulhadas em papel colorido. Quando o alfelô é feito com mel de engenho passa a ser chamado de puxa–puxa. É uma delícia.
ALFENIM. É um doce popular, feito de massa de açúcar muito branquinha, em forma de flor, sapato, cachimbo, peixe, etc. Foi trazido pelos árabes para Portugal e Espanha. Os colonizadores portugueses trouxeram o alfenim para o Brasil.
ALFINETE. O alfinete está ligado a muitas superstições, dentre as quais, as seguintes: alfinete apanhado no chão, dá felicidade no dia em que é apanhado; alfinete que foi usado em vestido de noiva deve ter a ponta cortada e ser atirado fora para não ser utilizado por outra pessoa, para não diminuir a felicidade da noiva. Alfinetes também são o dinheirinho que os maridos dão às esposas para as suas pequenas despesas. Dois alfinetes amarrados em cruz, com linha preta, trazem a desgraça para a casa onde forem escondidos. Para acabar com o feitiço é bom, a pessoa que achou, urinar neles.
ALHO. O alho combate a tosse em forma de chá ou lambedor, e a dor de dente quando colocado na cavidade do dente. O cheiro do alho afasta todas as feitiçarias e onde houver alho não haverá bruxaria por perto. Os lobisomens e as mulas sem cabeça fogem do alho como o Diabo da cruz.
ALPARCATA. É uma sandália de couro presa aos pés por meio de uma correia. No Nordeste sertanejo a alparcata geralmente é leve, de couro cru, chamada de alparcata de rabicho. Os frades costumam usar alparcatas que são os sapatos mais baratos. Na linguagem popular essa sandália também é conhecida como alpargata, alpercata, alpregata, pregata, pracata.
ALPARGATA. Veja ALPARCATA
ALPERCATA. Veja. ALPARCATA
ALPREGATA. Veja ALPARCATA
ALTIMAR PIMENTEL nasceu no dia 30 de outubro de 1936, na cidade de Maceió, AL, havendo exercido as seguintes funções: diretor do Teatro Santa Rosa (João Pessoa), diretor do Departamento de Extensão Cultural da Paraíba, coordenador do Núcleo de Pesquisa e Documentação de Cultura Popular da Paraíba, diretor da Rádio Correio da Paraíba, assessor cultural do Instituto Nacional do Livro (Rio de Janeiro), assessor cultural da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da UFPB (1977-1979), assessor administrativo da Câmara dos Deputados (Brasília, 1980), membro do Conselho Estadual de Cultural da Paraíba (1963), secretário do Conselho Consultivo de Alto Nível do Instituto Nacional do Livro (Rio de Janeiro, 1969), redator da Coordenação do Ministério da Agricultura (Brasília, 1974), assessor de imprensa do Ministério da Agricultura (Brasília, 1975), assessor de divulgação de Imprensa e relações públicas da Câmara dos Deputados (Brasília, 1975), do jornal Correio Braziliense (Brasília, 1976), da Agência de Notícias dos Diários Associados (Brasília, 1976), do Jornal e da Rádio Correio da Paraíba (João Pessoa, 1970/76). Publicou, na área do Folclore, O coco praieiro (1968), O Diabo e outras entidades míticas no conto popular (1969), O mundo mágico de João Redondo (1971), Estórias da boca da noite (1976), Saruã, lenda de árvores e plantas do Brasil (1977), Barca da Paraíba (1978), Catálogo prévio do conto popular da Paraíba (1982), Estórias de Cabedelo (1990), Estórias de São João do Sabugi (1990), Incantion (Flórida, USA, 1990), Estórias do Diabo (1995), Estórias de Luzia Tereza (1995), Contos populares brasileiros – Paraíba (1996), Contos populares de Brasília (1998), Como nasce um cabra da peste (adaptação teatral do livro de igual título, de Mário Souto Maior, 1997). Autor de várias peças teatrais, Altimar Pimentel também publicou muitos ensaios e artigos na imprensa brasileira.
ALUÁ. É uma bebida de milho ou de abacaxi, depois de fermentados. Usa-se, também, principalmente em Pernambuco, o aluá feito com arroz. No Ceará, o aluá é feito com milho torrado, fermentado com água e rapadura que, em Pernambuco, recebe o nome de quimbembé.
ALVÍSSARAS. Recompensa que se dá à pessoa que traz boas notícias ou que entrega coisas perdidas.
AMADEU AMARAL nasceu no dia 6 de novembro de 1875, em Monte-Mor, SP. Fez o curso primário em Capivari. Com onze anos de idade, em 1888, foi para São Paulo trabalhar como menino de recados na firma Lion & Cia. Sabe-se que freqüentou o curso anexo da Faculdade de Direito, trocando-o pelo de Jornalismo que trazia nas veias como herança de seu pai, João de Arruda Leite Penteado, fundador da Gazeta de Capivari (1885). Foi auto-didata. Começou a trabalhar no Correio Paulistano e, em seguida, em O Estado de São Paulo, foi oficial de gabinete do Chefe de Polícia, trabalhou na Secretaria de Justiça de São Paulo. Em 1922, mudou-se para o Rio de Janeiro, secretariando a Gazeta de Notícias, foi Diretor do Imposto de Renda e, transferido para Belo Horizonte ou Porto Alegre, resolveu pedir demissão. Retornou a São Paulo, nomeado diretor do Ginásio Moura Santos (1927/8). Foi membro da Academia Brasileira de Letras, na vaga de Olavo Bilac (1919) e da Academia Paulistana de Letras. Jornalista, poeta, novelista, conferencista, folclorista, Amadeu Amaral publicou vários livros. Na área de Folclore, são de sua autoria, O dialeto caipira (1920), A poesia da viola (1921) e Tradições populares (obra póstuma, 1948). Faleceu em São Paulo, no dia 24 de outubro de 1929.
AMARELINHA. Veja ACADEMIA.
AMAZONAS. São mulheres indígenas, guerreiras, exímias cavaleiras, sem marido, que amputavam um dos seios para melhor empunharem seus arcos e flechas. Foram avistadas, pela primeira vez, em 24 de junho de 1541, por Frei Gaspar de Carvajal, na foz do Rio Jamundá, na Amazônia.
AMENDOIM. Também conhecido por mendobi, mandubi, amendoí, menduí, manobi, midubim, o amendoim, assado ou cozinhado, com sal, é consumido no mundo inteiro também como tira-gosto nos cock-tails. Conta a tradição que o amendoim só deve ser plantado por mulheres. Plantado por homem, ele não nasce.
AMIGA. É um prato feito com o caldo do feijão, engrossado com farinha, temperado com pimenta, cebola, a gosto da pessoa. Também tem o nome de remate e, no Recife, é conhecido como apito.
AMULETO. É toda medalha, inscrição, bentinho, venera, figa, figura ou qualquer objeto que se traz pendurado no pescoço ou na roupa, com um broche, para prevenir as doenças, curá-las, destruir os malefícios e desviar as calamidades. É usado por todos os povos desde o começo do mundo.
ANDAR. Tem menino que custa a andar. Para que ele comece a andar é bom fazê-lo caminhar em volta de sua casa nas três primeiras sextas-feiras durante três meses seguidos. Ou segura-se a criança pelas mãos, dizendo-se, três vezes: - "Vamos para a missa, menino!"
ANEL. Feito de metal, de madeira, de osso, de plástico ou de vidro, o anel é usado há séculos como adorno ou com um significado especial por todos os povos. A aliança é usada pelos noivos no dedo anular da mão direita e, pelos casados, no da mão esquerda. As viúvas passam a usar as duas alianças no mesmo dedo. Na linguagem infantil, os dedos têm outros nomes: o polegar é o cata-piolho, o indicador é o fura-bolo, o médio é o maior de todos, o anular é o senhor vizinho, o mínimo é o mindinho. Os meninos costumam brincar de anel. Faz-se uma roda de meninos e meninas e um deles, com um anel entre as mãos, vai passando pelas mãos dos outros e, entre as mãos da pessoa de sua preferência, namorado ou namorada quase sempre, deixa o anel. Depois um deles é argüido: "- Onde é que está o anel?". Se o indagado disser com quem está o anel, ele continuará a brincadeira, passando o anel. Se errar, sai da brincadeira, leva um bolo ou outro castigo.
ANEXIM. Veja ADÁGIO.
ANGU. É uma papa mole de fubá de milho ou de farinha de mandioca, feita com água e sal, ou com leite, ou caldo de peixe, de carne ou de camarão para se comer com guisado ou carne assada. Também se faz o angu, no Nordeste, de outra maneira: somente à base de milho, do xerém (angu doce, na ceia, e salgado, para ser comido com carne).
ANJINHOS. São anéis de ferro, com parafusos, presos a uma tábua, para apertar os polegares dos criminosos e fazê-los confessar seus crimes. Também foram usados no tempo da escravidão.
ANJO. Diz-se das criancinhas quando morrem. Como não chegaram a pecar, vão para o céu e são anjos.
ANJO DA GUARDA. É o anjo que Deus dá a cada pessoa quando nasce, para protegê-la, defendê-la, mostrando sempre o caminho do bem. Antes de dormirem, as mães costumam rezar, com seus filhos, a oração do anjo da guarda: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarde e governe e ilumine. Amém". Ou "Amigo bom, Anjo de Deus, vinde guiar os passos meus. Fazei-me uma boa criança".
ANO-NOVO. Celebrado com muita festa, muita comida, muita bebida e dança, a festa do Ano-Novo é comemorada no primeiro dia do ano que começa, representado por uma criança recém-nascida, enquanto que o ano velho, o que passou, é representado por um velho de longas barbas e de andar trôpego, apoiado num bastão. O povo criou uma série enorme de crendices e superstições ligadas à entrada do Ano-Novo. No primeiro minuto do Ano- Novo, a pessoa deve estar com uma cédula de maior valor na mão direita ou no sapato do pé direito para dar o primeiro passo para ser feliz e nunca lhe faltar dinheiro. Deve estar vestida de branco (influência dos cultos afro-brasileiros) ou de amarelo, que é a cor do ouro. Rompido o Ano-Novo, a pessoa deve dar o primeiro passo com o pé direito. Também é bom fazer o seguinte: 1. Comer sete caroços de romã e guardar as sementes na carteira para garantir um ano sem aperto; 2. Usar roupas novas, inclusive as íntimas; 3. Comer carne de porco, porque o porco fuça para frente, evitando carne de peru, que cisca para trás; 4. Guardar a rolha da garrafa de champanhe num lugar que ninguém possa descobrir; 5. Trocar toda a roupa da cama; 6. Fazer muito barulho, gritar, quando romper o ano, que é para afugentar os maus espíritos; 7. Jogar moedas da calçada para dentro de casa, para atrair dinheiro; 8. Livrar-se de tudo quanto for velho, quebrado, imprestável; 9. Acender todas as luzes da casa para receber um Ano-Novo cheio de luz e de alegria.
ANTÔNIO, Santo. Fernando de Bulhões nasceu em Lisboa, Portugal, no dia 15 de agosto de 1195. Ingressou na Ordem de São Francisco em 1220 e, como frade, recebeu o nome de Antônio. Faleceu no dia 13 de junho de 1231, em Arcela, perto de Pádua, na Itália. É um dos santos mais populares não somente em Portugal como também no Brasil. É considerado como santo casamenteiro. Quando as moças não encontram rapazes para casar fazem promessas a Santo Antônio e muitas delas conseguem um marido. Santo Antônio também ajuda a encontrar as coisas perdidas. Os escravos africanos pintaram de preto uma imagem de Santo Antônio que passou a ser conhecido como Santo Antônio dos Pretos.
ANTÔNIO SILVINO. Era este o nome de guerra de Manuel Batista de Moraes, nascido em Afogados da Ingazeira, PE, em 1875. Como o assassino de seu pai não foi preso, Antônio Silvino procurou fazer justiça com as próprias mãos, à sua maneira. Durante quatorze anos foi o governador do Sertão. Era um cangaceiro que respeitava as mulheres, distribuía dinheiro, tomado dos ricos (as moedas), com os pobres. Vivia sempre perseguido pelas forças policiais de vários estados do Nordeste. Foi ferido em combate em Taquaritinga, PE, no dia 28 de novembro de 1914 e preso. Depois de cumprir quase toda a pena a que fora condenado, Antônio Silvino morreu em Campina Grande, PB, em agosto de 1944. Muitos folhetos de feira foram escritos pelos poetas populares sobre sua valentia, seus combates, sua vida.
APARTAÇÃO. No sertão, o gado é criado solto. As vacas e os bois são ferrados com a marca do dono. E, depois do inverno, o gado é reunido pelos vaqueiros das fazendas para ser entregue aos seus donos. É a apartação, uma das melhores festas do sertão, com muita comida, baile, reunindo vaqueiros e fazendeiros. Acontece, então, a vaquejada. Veja VAQUEJADA.
APITO. É um pequeno instrumento de sopro, usado pelo regente de uma orquestra, para avisar o início do toque de um frevo e, também, pelo mestre da bateria das escolas de samba. Veja AMIGA.
ARANHA. Diz o povo que quando Nossa Senhora, com São José e o Menino Jesus iam fugindo para o Egito, perseguidos pelos soldados de Herodes, esconderam-se em uma gruta e uma aranha teceu uma teia na entrada e os soldados não acharam os fugitivos, razão pela qual Nosso Senhor abençoou a aranha e sua teia. Não é bom desmanchar uma teia de aranha porque ela traz felicidade. Botando uma aranha num saquinho de pano e pendurando esse saquinho no pescoço de uma pessoa que sofra de algum mal na garganta, essa pessoa ficará curada.
ARARA. É uma dança engraçada. Todos os pares estão dançando, menos um rapaz que, em determinado momento, grita: Arara! Todos os rapazes trocam suas damas e quem ficar sem dama para dançar é o novo arara.
ARCO-ÍRIS. Também conhecido como arco, arco celeste, arco-da-chuva, olho de boi, arco-da-velha, o arco-íris não é muito amigo dos agricultores porque ele bebe a água dos rios, dos açudes, das lagoas. Para acabar com o arco-íris costumam fazer filas de pedrinhas, de gravetos, pauzinhos e ele vai embora porque não gosta de linhas retas.
ARENGA-DE-MULHER. Diz-se, no Nordeste, da chuva fraca, fina, insistente, que não pára.
ARGUEIRO. Para retirar um argueiro do olho nada como esfregar a pálpebra e dizer: "Vai-te argueiro, pro olho do companheiro"! Ou então botar uma semente de alfavaca na pálpebra e esfregá-la.
ARIANO SUASSUNA nasceu no dia 16 de junho de 1927, na cidade de João Pessoa, PB. Fez o primário em Taperoá, PB. Concluiu o curso de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife (PE), em 1946. Professor de Estética e Teoria do Teatro na Universidade Federal de Pernambuco, foi poeta e, quando ainda era estudante de Direito, fundou, com Hermilo Borba Filho e outros, o Teatro do Estudante de Pernambuco. Renomado teatrólogo, romancista, foi membro fundador do Conselho Federal de Cultura e, em 1969, Diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. Levando a literatura popular em verso para suas peças teatrais, Ariano Suassuna, na área de Folclore, publicou A poesia clássica do sertão nordestino (1949), Coletânea da poesia popular nordestina: romances do heróico (1962), Coletânea da poesia popular nordestina: romances do ciclo heróico – conclusão (1964).
ARRASTA-PÉ. Baile popular. O mesmo que bate-chinela, forró.
ARRASTAR-A-MALA. Diz-se de quem deu uma viagem perdida, isto é, de quem foi procurar uma pessoa e não a encontrou, por exemplo.
ARRIBAÇÃ. Também conhecida como ribaçã, rebaçã, avoante, avoete, é uma ave de imigração que aparece no sertão nordestino. A arribação chega no fim do inverno, em bandos, nas caatingas, passando nos lugares onde encontram o capim-milhão, que é a alimentação que prefere. Os caçadores entram em ação e abatem uma quantidade enorme de arribaçãs que são vendidas nas feiras.
ARRUDA. Amuleto contra o mau-olhado. A casa que tiver um pé de arruda plantado no jardim as forças contrárias desaparecem. É uma planta muito usada nas macumbas, nos candomblés, nos catimbós. Na medicina popular a planta funciona como fortificante do sistema nervoso, como sudorífico e também como aperitivo. Suas sementes, secas e queimadas, combatem os insetos.
ASCENSO FERREIRA nasceu em 1895, na cidade de Palmares, PE, onde passou sua infância e adolescência, tendo sua mãe como professora. Aos treze anos foi obrigado a trabalhar na loja de um tio para ajudar no orçamento doméstico. Com alguns amigos fundou, em 1917, a sociedade literária Hora Literária de Palmares, com reuniões dominicais, quando os sócios liam e discutiam suas produções intelectuais. No mesmo ano estreou como poeta, publicando Pro Pace, soneto dedicado a Oliveira Lima, no Jornal do Recife. Participou do movimento modernista (Mário de Andrade foi seu hóspede, certa vez) e colaborou nos jornais e revistas da época, percorrendo os grandes centros literários do país lendo seus famosos poemas. Publicou: Catimbó (1927), Cana Caiana (1939), Xehenhem (1951), 64 poemas e 3 historietas populares (livros e discos) (1958), Catimbó e outros poemas (1939). Na área de Folclore escreveu Maracatu, Presépios e Pastoris, O bumba-meu-boi, na revista Arquivos, da Prefeitura do Recife, 1942-1944. Faleceu em 1965.
ASSOMBRAÇÃO. É o aparecimento de barulhos, de vozes, de correntes arrastadas, de gemidos, de sons misteriosos, de luzes em casas mal-assombradas.
ASSUSTADO. Existente até hoje, o assustado é a maneira de se comemorar o aniversário de uma pessoa amiga, sem que ela saiba. Juntam-se os amigos, compram-se os comes e bebes, contrata-se uma pequena orquestra e, de surpresa, aparecem todos na casa do aniversariante, onde dançam, comem, bebem e conversam até tarde da noite.
ATABAQUES. São tambores feitos com peles de animais, espichadas sobre a abertura de um pau oco e que servem para marcar o ritmo de danças religiosas nos clubes afro-brasileiros e foram trazidos pelos escravos africanos.
ATIRADEIRA. É o mesmo que tiradeira, estilingue, funda, setra, baladeira, badoque ou bodoque. São duas tiras de borracha de câmara de ar de automóvel amarradas nas extremidades de uma pequena forquilha e que vão ser fixadas num pequeno pedaço de couro onde é colocada uma pedrinha. Pegando-as a forquilha com a mão esquerda e, com a mão direita, esticando-se as tiras de borracha, a pedrinha é arremessada até certa distância. A baladeira serve para caçar passarinhos.
AVIÃO. Veja ACADEMIA.
AVOANTE. Veja ARRIBAÇÃ.
AVOETE. Veja ARRIBAÇÃ.
AXÉS. É a mistura do sangue dos animais sacrificados nos cultos afro-brasileiros.
AZIA. Calor de estômago, azedume. Para melhorar é bom dizer três vezes: "Azia, ave-maria".
AZUL e ENCARNADO. São as cores dos dois cordões dos pastoris. Há uma explicação católica sobre a cor dos cordões dos pastoris: o encarnado representa o manto de Jesus Cristo e o azul representa o manto de Nossa Senhora. Veja PASTORIL.

Fonte:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco

Machado de Assis (Verba Testamentária)



"... Item, é minha última vontade que o caixão em que o meu corpo houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, à rua da Alfândega. Desejo que ele tenha conhecimento desta disposição, que também será pública. Joaquim Soares não me conhece; mas é digno da distinção, por ser dos nossos melhores artistas, e um dos homens mais honrados da nossa terra..."

Cumpriu-se à risca esta verba testamentária. Joaquim Soares fez o caixão em que foi metido o corpo do pobre Nicolau B. de C.; fabricou-o ele mesmo, con amore; e, no fim, por um movimento cordial, pediu licença para não receber nenhuma remuneração. Estava pago; o favor do defunto era em si mesmo um prêmio insigne. Só desejava uma coisa: a cópia autêntica da verba. Deram-lha; ele mandou-a encaixilhar e pendurar de um prego, na loja. Os outros fabricantes de caixões, passado o assombro, clamaram que o testamento era um despropósito. Felizmente, — e esta é uma das vantagens do estado social, — felizmente, todas as demais classes acharam que aquela mão, saindo do abismo para abençoar a obra de um operário modesto, praticara uma ação rara e magnânima. Era em 1855; a população estava mais conchegada; não se falou de outra coisa. O nome do Nicolau reboou por muitos dias na imprensa da Corte, donde passou à das províncias. Mas a vida universal é tão variada, os sucessos acumulam-se em tanta multidão, e com tal presteza, e, finalmente, a memória dos homens é tão frágil, que um dia chegou em que a ação de Nicolau mergulhou de todo no olvido.

Não venho restaurá-la. Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito. Obra de lápis e esponja. Não, não venho restaurá-la. Há milhares de ações tão bonitas, ou ainda mais bonitas do que a do Nicolau, e comidas do esquecimento. Venho dizer que a verba testamentária não é um efeito sem causa; venho mostrar uma das maiores curiosidades mórbidas deste século.

Sim, leitor amado, vamos entrar em plena patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito. Ao contrário, desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele algum vício interior, alguma falha orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com que ele corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais aos dele, ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda se compreende que, nos casos em que o brinquedo é único, ou somente raro, o jovem Nicolau console a vítima com dois ou três pontapés; nunca menos de um. Tudo isso é obscuro. Culpa do pai não pode ser. O pai era um honrado negociante ou comissário (a maior parte das pessoas a que aqui se dá o nome de comerciantes, dizia o marquês de Lavradio, nada mais são que uns simples comissários), que viveu com certo luzimento, no último quartel do século, homem ríspido, austero, que admoestava o filho, e, sendo necessário, castigava-o. Mas nem admoestações, nem castigos, valiam nada. O impulso interior do Nicolau era mais eficaz do que todos os bastões paternos; e, uma ou duas vezes por semana, o pequeno reincidia no mesmo delito. Os desgostos da família eram profundos. Deu-se mesmo um caso, que, por suas gravíssimas conseqüências, merece ser contado.

O vice-rei, que era então o conde de Resende, andava preocupado com a necessidade de construir um cais na praia de D. Manuel. Isto, que seria hoje um simples episódio municipal, era naquele tempo, atentas as proporções escassas da cidade, uma empresa importante. Mas o vice-rei não tinha recursos; o cofre público mal podia acudir às urgências ordinárias. Homem de estado, e provavelmente filósofo, engendrou um expediente não menos suave que profícuo: distribuir, a troco de donativos pecuniários, postos de capitão, tenente e alferes. Divulgada a resolução, entendeu o pai do Nicolau que era ocasião de figurar, sem perigo, na galeria militar do século, ao mesmo tempo que desmentia uma doutrina bramânica. Com efeito, está nas leis de Manu, que dos braços de Brama nasceram os guerreiros, e do ventre os agricultores e comerciantes; o pai do Nicolau, adquirindo o despacho de capitão, corrigia esse ponto da anatomia gentílica. O outro comerciante, que com ele competia em tudo, embora familiares e amigos, apenas teve notícia do despacho, foi também levar a sua pedra ao cais. Desgraçadamente, o despeito de ter ficado atrás alguns dias, sugeriu-lhe um arbítrio de mau gosto e, no nosso caso, funesto; foi assim que ele pediu ao vice-rei outro posto de oficial do cais (tal era o nome dado aos agraciados por aquele motivo) para um filho de sete anos. O vice-rei hesitou; mas o pretendente, além de duplicar o donativo, meteu grandes empenhos, e o menino saiu nomeado alferes. Tudo correu em segredo; o pai de Nicolau só teve notícia do caso no domingo próximo, na igreja do Carmo, ao ver os dois, pai e filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por galanteria, lhe meteram no corpo. Nicolau, que também ali estava, fez-se lívido; depois, num ímpeto, atirou-se sobre o jovem alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os pais pudessem acudir. Um escândalo. O rebuliço do povo, a indignação dos devotos, as queixas do agredido, interromperam por alguns instantes as cerimônias eclesiásticas. Os pais trocaram algumas palavras acerbas, fora, no adro, e ficaram brigados para todo o sempre.

— Este rapaz há de ser a nossa desgraça! bradava o pai de Nicolau, em casa, depois do episódio.

Nicolau apanhou então muita pancada, curtiu muita dor, chorou, soluçou; mas de emenda coisa nenhuma. Os brinquedos dos outros meninos não ficaram menos expostos. O mesmo passou a acontecer às roupas. Os meninos mais ricos do bairro não saíam fora senão com as mais modestas vestimentas caseiras, único modo de escapar às unhas de Nicolau. Com o andar do tempo, estendeu ele a aversão às próprias caras, quando eram bonitas, ou tidas como tais. A rua em que ele residia, contava um sem-número de caras quebradas, arranhadas, conspurcadas. As coisas chegaram a tal ponto, que o pai resolveu trancá-lo em casa durante uns três ou quatro meses. Foi um paliativo, e, como tal, excelente. Enquanto durou a reclusão, Nicolau mostrou-se nada menos que angélico; fora daquele sestro mórbido, era meigo, dócil, obediente, amigo da família, pontual nas rezas. No fim dos quatro meses, o pai soltou-o; era tempo de o meter com um professor de leitura e gramática.

— Deixe-o comigo, disse o professor; deixe-o comigo, e com esta (apontava para a palmatória)... Com esta, é duvidoso que ele tenha vontade de maltratar os companheiros.

Frívolo! três vezes frívolo professor! Sim, não há dúvida, que ele conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas vistosas, castigando as primeiras investidas do pobre Nicolau; mas em que é que este sarou da moléstia? Ao contrário, obrigado a conter-se, a engolir o impulso, padecia dobrado, fazia-se mais lívido, com reflexo de verde bronze; em certos casos, era compelido a voltar os olhos ou fechá-los, para não arrebentar, dizia ele. Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos, ou melhor, adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fora, nas praias ou no mangue. Rixas, sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além das dores cruéis que padecia, e que a família teimava em não entender. Se acrescentarmos que ele não pôde estudar nada seguidamente, mas a trancos, e mal, como os vagabundos comem, nada fixo, nada metódico, teremos visto algumas das dolorosas conseqüências do fato mórbido, oculto e desconhecido. O pai, que sonhava para o filho a Universidade, vendo-se obrigado a estrangular mais essa ilusão, esteve prestes a amaldiçoá-lo; foi a mãe que o salvou.

Saiu um século, entrou outro, sem desaparecer a lesão do Nicolau. Morreu-lhe o pai em 1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com um médico holandês, treze meses depois. Nicolau passou a viver só. Tinha vinte e três anos; era um dos petimetres da cidade, mas um singular petimetre, que não podia encarar nenhum outro, ou fosse mais gentil de feições, ou portador de algum colete especial sem padecer uma dor violenta, tão violenta, que o obrigava às vezes a trincar o beiço até deitar sangue. Tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma. E o resto não era menos cruel. Nicolau ficava então ríspido; em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir-se também, e perseguia os cães, a pontapés; não sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal. Enfim dormia; e ainda bem que dormia. O sono reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarca, beijando os cães entre as orelhas, deixando-se lamber por eles, dando-lhes do melhor que tinha, chamando aos escravos as coisas mais familiares e ternas. E tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da véspera, e acudiam às vozes dele obedientes, namorados, como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o outro.

Um dia, estando ele em casa da irmã, perguntou-lhe esta por que motivo não adotava uma carreira qualquer, alguma coisa em que se ocupasse, e...

— Tens razão, vou ver, disse ele.

Interveio o cunhado e opinou por um emprego na diplomacia. O cunhado principiava a desconfiar de alguma doença e supunha que a mudança de clima bastava a restabelecê-lo. Nicolau arranjou uma carta de apresentação, e foi ter com o ministro de estrangeiros. Achou-o rodeado de alguns oficiais da secretaria, prestes a ir ao paço, levar a notícia da segunda queda de Napoleão, notícia que chegara alguns minutos antes. A figura do ministro, as circunstâncias do momento, as reverências dos oficiais, tudo isso deu um tal rebate ao coração do Nicolau, que ele não pôde encarar o ministro. Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da única em que o conseguiu fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguém, ou só uma sombra, um vulto, que lhe doía nas pupilas ao mesmo tempo que a face ia ficando verde. Nicolau recuou, estendeu a mão trêmula ao reposteiro, e fugiu.

— Não quero ser nada! disse ele à irmã, chegando a casa; fico com vocês e os meus amigos.

Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da cidade, vulgares e ínfimos. Nicolau escolhera-os de propósito. Viver segregado dos principais era para ele um grande sacrifício; mas, como teria de padecer muito mais vivendo com eles, tragava a situação. Isto prova que ele tinha certo conhecimento empírico do mal e do paliativo. A verdade é que, com esses companheiros, desapareciam todas as perturbações fisiológicas do Nicolau. Ele fitava-os sem lividez, sem olhos vesgos, sem cambalear, sem nada. Além disso, não só eles lhe poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a vida, senão deliciosa, tranqüila; e para isso, diziam-lhe as maiores finezas do mundo, em atitudes cativas, ou com certa familiaridade inferior. Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhes restitui a saúde; acariciava-as paternalmente, dava-lhes o louvor abundante e cordial, emprestava-lhes dinheiro, distribuía-lhes mimos, abria-lhes a alma...

Veio o grito do Ipiranga; Nicolau meteu-se na política. Em 1823 vamos achá-lo na Constituinte. Não há que dizer ao modo por que ele cumpriu os deveres do cargo. Integro, desinteressado, patriota, não exercia de graça essas virtudes públicas, mas à custa de muita tempestade moral. Pode-se dizer, metaforicamente, que a freqüência da câmara custava-lhe sangue precioso. Não era só porque os debates lhe pareciam insuportáveis, mas também porque lhe era difícil encarar certos homens, especialmente em certos dias. Montezuma, por exemplo, parecia-lhe balofo, Vergueiro, maçudo, os Andradas, execráveis. Cada discurso, não só dos principais oradores, mas dos secundários, era para o Nicolau verdadeiro suplício. E, não obstante, firme, pontual. Nunca a votação o achou ausente; nunca o nome dele soou sem eco pela augusta sala. Qualquer que fosse o seu desespero, sabia conter-se e pôr a idéia da pátria acima do alívio próprio. Talvez aplaudisse in petto o decreto da dissolução. Não afirmo; mas há bons fundamentos para crer que o Nicolau, apesar das mostras exteriores, gostou de ver dissolvida a assembléia. E se essa conjetura é verdadeira, não menos o será esta outra: — que a deportação de alguns dos chefes constituintes, declarados inimigos públicos, veio aguar-lhe aquele prazer. Nicolau, que padecera com os discursos deles, não menos padeceu com o exílio, posto lhes desse um certo relevo. Se ele também fosse exilado!

— Você podia casar, mano, disse-lhe a irmã.

— Não tenho noiva.

— Arranjo-lhe uma. Valeu?

Era um plano do marido. Na opinião deste, a moléstia do Nicolau estava descoberta; era um verme do baço, que se nutria da dor do paciente, isto é, de uma secreção especial, produzida pela vista de alguns fatos, situações ou pessoas. A questão era matar o verme; mas, não conhecendo nenhuma substância química própria a destruí-lo, restava o recurso de obstar à secreção, cuja ausência daria igual resultado. Portanto, urgia casar o Nicolau, com alguma moça bonita e prendada, separá-lo do povoado, metê-lo em alguma fazenda, para onde levaria a melhor baixela, os melhores trastes, os mais reles amigos, etc.

— Todas as manhãs, continuou ele, receberá o Nicolau um jornal que vou mandar imprimir com o único fim de lhe dizer as coisas mais agradáveis do mundo, e dizê-las nominalmente, recordando os seus modestos, mas profícuos trabalhos da Constituinte, e atribuindo-lhe muitas aventuras namoradas, agudezas de espírito, rasgos de coragem. Já falei ao almirante holandês para consentir que, de quando em quando, vá ter com Nicolau algum dos nossos oficiais dizer-lhe que não podia voltar para a Haia sem a honra de contemplar um cidadão tão eminente e simpático, em quem se reúnem qualidades raras, e, de ordinário, dispersas. Você, se puder alcançar de alguma modista, a Gudin, por exemplo, que ponha o nome de Nicolau em um chapéu ou mantelete, ajudará muito a cura de seu mano. Cartas amorosas anônimas, enviadas pelo correio, são um recurso eficaz... Mas comecemos pelo princípio, que é casá-lo.

Nunca um plano foi mais conscienciosamente executado. A noiva escolhida era a mais esbelta, ou uma das mais esbeltas da capital. Casou-os o próprio bispo. Recolhido à fazenda, foram com ele somente alguns de seus mais triviais amigos; fez-se o jornal, mandaram-se as cartas, peitaram-se as visitas. Durante três meses tudo caminhou às mil maravilhas. Mas a natureza, apostada em lograr o homem, mostrou ainda desta vez que ela possui segredos inopináveis. Um dos meios de agradar ao Nicolau era elogiar a beleza, a elegância e as virtudes da mulher; mas a moléstia caminhara, e o que parecia remédio excelente foi simples agravação do mal. Nicolau, ao fim de certo tempo, achava ociosos e excessivos tantos elogios à mulher, e bastava isto a impacientá-lo, e a impaciência a produzir-lhe a fatal secreção. Parece mesmo que chegou ao ponto de não poder encará-la muito tempo, e a encará-la mal; vieram algumas rixas, que seriam o princípio de uma; separação, se ela não morresse daí a pouco. A dor do Nicolau foi profunda e verdadeira; mas a cura interrompeu-se logo, porque ele desceu ao Rio de Janeiro, onde o vamos achar, tempos depois, entre os revolucionários de 1831.

Conquanto pareça temerário dizer as causas que levaram o Nicolau para o Campo da Aclamação, na noite de 6 para 7 de abril, penso que não estará longe da verdade quem supuser que — foi o raciocínio de um ateniense célebre e anônimo. Tanto os que diziam bem, como os que diziam mal do imperador, tinham enchido as medidas ao Nicolau. Esse homem, que inspirava entusiasmos e ódios, cujo nome era repetido onde quer que o Nicolau estivesse, na rua, no teatro, nas casas alheias, tornou-se uma verdadeira perseguição mórbida, daí o fervor com que ele meteu a mão no movimento de 1831. A abdicação foi um alívio. Verdade é que a Regência o achou dentro de pouco tempo entre os seus adversários; e há quem afirme que ele se filiou ao partido caramuru ou restaurador, posto não ficasse prova do ato. O que é certo é que a vida pública do Nicolau cessou com a Maioridade.

A doença apoderara-se definitivamente do organismo. Nicolau ia, a pouco e pouco, recuando na solidão. Não podia fazer certas visitas, freqüentar certas casas. O teatro mal chegava a distraí-lo. Era tão melindroso o estado dos seus órgãos auditivos, que o ruído dos aplausos causava-lhe dores atrozes. O entusiasmo da população fluminense para com a famosa Candiani e a Meréia, mas a Candiani principalmente, cujo carro puxaram alguns braços humanos, obséquio tanto mais insigne quanto que o não fariam ao próprio Platão, esse entusiasmo foi uma das maiores mortificações do Nicolau. Ele chegou ao ponto de não ir mais ao teatro, de achar a Candiani insuportável, e preferir a Norma dos realejos à da prima-dona. Não era por exageração de patriota que ele gostava de ouvir o João Caetano, nos primeiros tempos; mas afinal deixou-o também, e quase que inteiramente os teatros.

— Está perdido! pensou o cunhado. Se pudéssemos dar-lhe um baço novo...

Como pensar em semelhante absurdo? Estava naturalmente perdido. Já não bastavam os recreios domésticos. As tarefas literárias a que se deu, versos de família, glosas a prêmio e odes políticas, não duraram muito tempo, e pode ser até que lhe dobrassem o mal. De fato, um dia, pareceu-lhe que essa ocupação era a coisa mais ridícula do mundo, e os aplausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram-lhe idéia de um povo trivial e de mau gosto. Esse sentimento literário, fruto de uma lesão orgânica, reagiu sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir graves crises, que o tiveram algum tempo na cama. O cunhado aproveitou o momento para desterrar-lhe da casa todos os livros de certo porte.

Explica-se menos o desalinho com que daí a meses começou a vestir-se. Educado com hábitos de elegância, era antigo freguês de um dos principais alfaiates da Corte, o Plum, não passando um só dia em que não fosse pentear-se ao Desmarais e Gérard, coiffeurs de la cour, à rua do Ouvidor. Parece que achou enfatuada esta denominação de cabeleireiros do paço, e castigou-os indo pentear-se a um barbeiro ínfimo. Quanto ao motivo que o levou a trocar de traje, repito que é inteiramente obscuro, e a não haver sugestão da idade é inexplicável. A despedida do cozinheiro é outro enigma. Nicolau, por insinuação do cunhado, que o queria distrair, dava dois jantares por semana; e os convivas eram unânimes em achar que o cozinheiro dele primava sobre todos os da capital. Realmente os pratos eram bons, alguns ótimos, mas o elogio era um tanto enfático, excessivo, para o fim justamente de ser agradável ao Nicolau, e assim aconteceu algum tempo. Como entender, porém, que um domingo, acabado o jantar, que fora magnífico, despedisse ele um varão tão insigne, causa indireta de alguns dos seus mais deleitosos momentos na terra? Mistério impenetrável.

— Era um ladrão! foi a resposta que ele deu ao cunhado.

Nem os esforços deste nem os da irmã e dos amigos, nem os bens, nada melhorou o nosso triste Nicolau. A secreção do baço tornou-se perene, e o verme reproduziu-se aos milhões, teoria que não sei se é verdadeira, mas enfim era a do cunhado. Os últimos anos foram crudelíssimos. Quase se pode jurar que ele viveu então continuamente verde, irritado, olhos vesgos, padecendo consigo ainda muito mais do que fazia padecer aos outros. A menor ou maior coisa triturava-lhe os nervos: um bom discurso, um artista hábil, uma sege, uma gravata, um soneto, um dito, um sonho interessante, tudo dava de si uma crise.

Quis ele deixar-se morrer? Assim se poderia supor, ao ver a impassibilidade com que rejeitou os remédios dos principais médicos da Corte; foi necessário recorrer à simulação, e dá-los, enfim, como receitados por um ignorantão do tempo. Mas era tarde. A morte levou-o ao cabo de duas semanas.

— Joaquim Soares? bradou atônito o cunhado, ao saber da verba testamentária do defunto, ordenando que o caixão fosse fabricado por aquele industrial. Mas os caixões desse sujeito não prestam para nada, e...

— Paciência! interrompeu a mulher; a vontade do mano há de cumprir-se.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. (Volume de contos, publicado em 1882). Costaflosi Ltda., 1998.
Imagem = http://ainternetmeassusta.blogspot.com

Adriana Falcão (O doido da garrafa)



Ele não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas as outras pessoas do mundo insistiam em dizer que ele era doido.

Depois que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.

O Doido da Garrafa fazia passarinhos de papel como ninguém, mas era especialista mesmo em construir barquinhos com palitos. Batizava cada barco com um nome de mulher e, enquanto estava trabalhando nele, morria de amores pela dona imaginária do nome. Depois ia esquecendo uma por uma, todas elas, com exceção de Olívia, uma nau antiga que levou dezessete dias para ser construída.

Batucava muito bem e vivia inventando, de improviso, músicas especialmente compostas para toda e qualquer finalidade, nos mais variados gêneros. Uai aí aquela da mulher de blusa verde atravessando a rua apressada, e o Doido da Garrafa imediatamente compunha um samba, uma valsa, um rock, um rap, um blues, dependendo da mulher de blusa verde, do atravessando, da rua e do apressada. Geralmente ficava uma obra-prima.

Gostava muito de observar as pessoas na rua, do cheiro de café, de cantar e de ouvir música. Não gostava muito do fato de ter pernas, mas acabou se acostumando com elas. De cabelo ele gostava. Em compensação, tinha verdadeiro horror a multidão, bermudão, tubarão, ladrão, camburão, bajulação, afetação, dança de salão, falta de educação e à palavra bife.

Escrevia cartas para ninguém, umas em prosa, outras em poesia, como mero exercício de estilo.

Tinha mania de dar entrevistas para o vento e já sabia a resposta de qualquer pergunta que porventura alguém pudesse lhe fazer um dia.

Ajudava o dicionário a explicar as coisas inventando palavras necessárias, como dorinfinita.

Adorava álgebra, mas tinha particular antipatia por trigonometria, pois não encontrava nenhum motivo para se pegar pedaços de triângulos e fazer contas tão difíceis com eles.

Conhecia mitologia a fundo.

Tinha angústia matinal, uma depressão no meio da tarde que ele chamava de cinco horas, porque era a hora que ela aparecia, e uma insônia crônica a quem chamava carinhosamente de Proserpina.

Sentia uma paixão azul dentro do peito, desde criança, sempre que olhava o mar e orgulhava-se muito disso.

Acreditava no amor, mas tinha vergonha da frase.

Às vezes falava sozinho, Preferia tristeza à agonia.

Todas as noites, entre oito e dez e meia, era visto andando de um lado para o outro da rua, método que tinha inventado para acabar de vez com a preocupação de fazer a volta de repente, quando achava que já tinha andado o suficiente. (Preferia que ninguém percebesse que ele não tinha para onde ir.) Enquanto andava, repetia dentro da cabeÇa incessantemente a palavra ecumênico sem ter a menor idéia da razão pela qual fazia isso.

Durante o dia o Doido da Garrafa trabalhava numa multinacional, era sujeito bem visto, supervisor de departamento, ganhava um bom salário e gratificações que entregava para a mulher aplicar em fundos de investimento.

No fim do ano ia trocar de carro.

Era excelente chefe de família.

Não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo pensavam, lá vai o Doido da Garrafa, e assim se esqueciam das suas próprias garrafas um pouquinho.

Fonte:
FALCÃO, Adriana. O doido da garrafa. SP: Ed. Planeta do Brasil, 2003.
Capa do livro = http://ilvia.blogspot.com

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Carlos de Oliveira (1921 – 1981)


Carlos Alberto Serras de Oliveira (Belém do Pará, 10 de Agosto de 1921 — Lisboa, 1 de Julho de 1981) .

Em Belém do Pará se encontravam seus pais, portugueses cumprindo o fado (curto) da emigração. Longe da tranquilidade que só uma adaptação conseguida transporta, regressam a Portugal em 1923, fixando-se primeiro na Camarneira, onde vivia um seu avô, e quatro anos mais tarde em Febres para onde o pai, o saudoso Dr. Américo de Oliveira, virá exercer medicina depois de ter sido designado médico municipal. Aqui, Carlos frequenta a Escola Primária, onde foi discípulo da Professora Maria dos Prazeres Barbosa Baptista.

É pois aqui, em plena Gândara, que o "Carlitos", como era conhecido, passará a infância e a juventude, mantendo sempre ao longo da sua vida e na sua obra uma forte ligação a esta região.

"Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora das Febres. Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade infantil enorme, uma emigração espantosa. Natural portanto que tudo isso me tenha tocado (melhor, tatuado). O lado social e o outro, porque há outro também, das minhas narrativas ou poemas publicados (...) nasceu desse ambiente quase lunar habitado por homens(...)[O Aprendiz de Feiticeiro, p. 204].“Trago a janela de muito longe, da casa de meu avô”(idem, p. 173).

Durante dois anos (1931-33) frequenta o ensino secundário em Cantanhede, vila que inspirará a "Corgos" dos seus romances. Vai depois para Coimbra (1933), onde frequenta o Liceu D. João III, cidade onde permanecerá até 1948. Aí estuda e acabará por formar-se em Histórico-Filosóficas. Convive com grandes figuras da Cultura Portuguesa, consagrados já uns, outros, como ele, sedentos de conhecer: Afonso Duarte, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Fernando Namora são alguns íntimos seus.

Durante este "período coimbrão" da sua vida publica o seu primeiro livro de poemas, Turismo (1942), com ilustrações de Fernando Namora. Publica depois o seu primeiro romance, Casa na Duna (1943) logo seguido de Alcateia (1944), livro que virá a ser apreendido pela PIDE, a polícia política de Salazar.

Visita Febres nas férias, sempre que pode, fazendo-se acompanhar, por vezes, de Fernando Namora com quem jogava a malha no Largo em convívio com populares.

Em 1945 publica um novo livro de poesias, Mãe Pobre. Os anos 1945 e seguintes serão, para Carlos de Oliveira, bem profícuos quanto à integração e afirmação no grupo que veicula e auspera por um “novo humanismo”, com a participação nas revistas Seara Nova e Vértice e a colaboração no livro de Fernando Lopes Graça Marchas, Danças e Canções – coletânea de poesias de vários poetas, musicadas por aquele, canções que vieram a ser conhecidas por “heróicas”.

Termina em 1947 a sua Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, e no ano seguinte instala-se definitivamente em Lisboa, não deixando, contudo, de se deslocar periodicamente a Coimbra e à Gândara.

Um ano mais tarde casa com Ângela, uma jovem madeirense que conhecera em Coimbra enquanto estudante e que será a sua companheira de todas as horas. A ela dedica o escritor alguns dos seus livros (o romance Finisterra), poemas como "Carta a Ângela" e "Ilha" de Terra de Harmonia e ainda alguns excertos, como é o caso do seguinte em que surge referida anagramaticamente como Gelnaa:

"Ainda jovem quando a conheci, os olhos mais claros do que hoje (a vida escureceu-lhos bastante), o cabelo solto num halo de bruma e brisa, que faz pensar nos amanheceres da sua ilha (...)"(O Aprendiz de Feiticeiro)

Em 1953 publica Uma Abelha na Chuva, o seu quarto romance e, unanimemente reconhecido como uma das mais importantes obras da literatura portuguesa, estando integrado nos conteúdos programáticos da disciplina de português no ensino secundário.

Em 1957 organiza, com José Gomes Ferreira, numa abordagem do imaginário popular os dois volumes de Contos Tradicionais Portugueses, alguns deles posteriormente adaptados ao cinema por João César Monteiro.

Em 1968 publica dois novos livros de poesia, Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem e colabora com Fernando Lopes no filme por este realizado e terminado em 1971, Uma Abelha na Chuva, a partir da obra homônima. Publica em 1971 O Aprendiz de Feiticeiro, coletânea de crônicas e artigos, e Entre Duas Memórias, livro de poemas, pelo qual lhe é atribuído no ano seguinte o Prêmio de Imprensa. Em 1976 reúne toda a sua poesia em Trabalho Poético, dois volumes, apresentando os livros anteriores, revistos, e os poemas inéditos de Pastoral, livro que será publicado autonomamente no ano seguinte. Publica em 1978 o seu último romance Finisterra, paisagem povoada de inspiração gandaresa, obra que lhe proporciona a atribuição do Prêmio Cidade de Lisboa, no ano seguinte.

Morre na sua casa em Lisboa a 1 de Julho de 1981.
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É um dos grandes poetas deste século, combinando a preocupação de intervenção social (neo-realismo) com a reflexão sobre a escrita no próprio processo da sua produção, o que cnfere à sua obra grande densidade e agudeza nos efeitos diversificados da sua leitura (Mãe Pobre, 1945, Entre Duas Memórias, 1971).

O mesmo se pode dizer em relação aos seus romances, nos quais se detecta uma evolução da problemática neo-realista mais pura (Casa na Duna, 1943) até à sua elaboração através da sobriedade do sentimento e do protesto (Uma Abelha na Chuva, 1953), culminando na complexidade de Finisterra (1978), composto a partir de mecanismos de repetição ficcional e de decalque temático e descritivo, que emerge na fronteira da oscilação da modernidade na nossa história literária.

Poesia
* Turismo (1942);
* Mãe Pobre (1945);
* Colheita Perdida (1948);
* Descida aos Infernos (1949);
* Terra de Harmonia (1950);
* Cantata (1960);
* Micropaisagem (1968, 1969);
* Sobre o Lado Esquerdo, o Lado do Coração (1968, 1969);
* Entre Duas Memórias (1971);
* Pastoral (1977).

Romance
* Casa na Duna (1943; 2000);
* Alcateia (1944; 1945);
* Pequenos Burgueses (1948; 2000);
* Uma Abelha na Chuva (1953; 2003);
* Finisterra: paisagem e povoamento (1978; 2003).

Crônicas
* O Aprendiz de Feiticeiro (1971, 1979).

Antologia
* Poesias (1945-1960) (1962);
* Trabalho Poético (1976; 2003).

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
http://cvc.instituto-camoes.pt/literatura/carlosoliveira.htm
http://www.cm-cantanhede.pt/biblioteca/personagens_co.asp

Carlos de Oliveira (Teia de Poesias)

(a grafia original foi mantida)
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Amazónia

I
Selva.
O negro, o índio
e o mais que me souber.
O fogo doutro céu,
o nome doutro dia.
Tudo o que estiver
nos nervos
quem me deu.

II
Navegação.
O Amazonas
atira os barcos ao mar.
Defende o seu coração
Marca as zonas
de navegar

III
Fruto.
Minha selva
de nervos.
Potros,
potros na selva.

Maré cheia,
árvores em parto,
ondas sobre ondas
dum inferno farto.
Inferno pleno.
Terras verdes
e céu moreno.

Sol loiro.
Estrídulo, de hastes vermelhas.
Toiro.

Plasma.
Nus, torcidos.
Estrelas, que poucas.
Vento de todos os sentidos.
Bocas.

IV
Céu.
Apalpo e oiço
o silêncio. O silêncio
adensou e rangeu.

V
Anjos
entregam-se a anjos
e caem na terra
embebedados.
A terra

freme,
sabor de sol que lhe ficou
do dia calcinado,
treme

minhas orgias doiradas
enquanto as asas dos anjos
caem maculadas.
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Elegia de Coimbra

Gela a lua de março nos telhados
e à luz adormecida
choram as casas e os homens
nas colinas da vida.

Correm as lágrimas ao rio,
a esse vale das dores passadas,
mas choram as paredes e as almas
outras dores que não foram perdoadas.

Aos que virão depois de mim
caiba outra sorte em herança:
o oiro depositado
nas margens da lembrança.
-----------------------------

Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.
================================

Soneto fiel

Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.
=================================

Estrela

Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.
===========================

Salmo

A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.
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Infância

Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
=======================

Gândara

IV

Ao lume da estrumeira
lagos esverdeados.
Passam os meninos a tarde inteira
a olhar os lagos encantados.

Os vermes que apodrecem
aconchegando-nos nas mãos avaras:
os dedos dos meninos enegrecem,
os lagos ficam mais claros.

Já esqueceram a lagoa e a maneira
de atirar pedras às águas calmas como um manto.
Enfeitiçados, os lagos da estrumeira
trazem-nos naquele encanto.
=============================

Estalactite IV, VI e VIII

Localizar
na frágil espessura
do tempo,
que a linguagem
pôs
em vibração
o ponto morto
onde a velocidade
se fractura
e aí
determinar
com exactidão
o foco
do silêncio.

Algures
o poema sonha
o arquétipo
do voo
inutilmente
porque repete
apenas
o signo, o desenho
do Outono
aéreo
onde se perde a asa
quando vier
o instante
de voar

Caem
do céu calcário,
acordam flores
milénios depois,
rolam de verso
em verso
fechadas
como gotas,
e ouve-se
ao fim da página
um murmúrio
orvalhado.
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Seguindo o fio

seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:
======================

Nevoeiro

A cidade caía
casa a casa
do céu sobre as colinas,
construída de cima para baixo
por chuvas e neblinas,
encontrava
a outra cidade que subia
do chão com o luar
das janelas acesas
e no ar
o choque as destruía
silenciosamente,
de modo que se via
apenas a cidade inexistente.
===========================
Fotomontagem = José Feldman

Carlos de Oliveira (Dunas)


Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:

“O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem.”

Fontes:
http://www.triplov.com/poesia/carlos_de_oliveira/

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Machado de Assis (A Carteira)



...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar se, apanhá la e guardá la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

- Olhe, se não dá por ela; perdia a de uma vez.

- É verdade, concordou Honório envergonhado.

Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro.

Endividou se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem se, e os jantares a comerem se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

- Tu agora vais bem, não? dizia lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.

- Agora vou, mentiu o Honório.

A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma coisa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

Um dia, a mulher foi achá lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou lhe o que era.

- Nada, nada.

Compreende se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar mal, e a más horas.

A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde.

Tinha se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou a, meteu no bolso, e foi andando.

Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava lhe se podia utilizar se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida?

Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar lha; insinuação que lhe deu ânimo.

Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar se ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá la.

Mas daí a pouco tirou a outra vez, e abriu a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu se e contou: eram setecentos e trinta mil réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos...

Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí lo. Restituí lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar me do dinheiro," pensou ele.

Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou a por fora, e pareceu lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

A descoberta entristeceu o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.

"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."

Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.

- Nada.

- Nada?

- Por quê?

Mete a mão no bolso; não te falta nada?

- Falta me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. - Sabes se alguém a achou?

- Achei a eu, disse Honório entregando lha.

Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu lhe as explicações precisas.

- Mas conheceste-a?

- Não; achei os teus bilhetes de visita.

Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

Fontes:
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
http://www.bibvirt.futuro.usp.br. In CD Rom E-Learning n.3. Digerati

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Mario Quintana (A Vida...)


A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, passaram-se 50 anos!
Agora, é tarde demais
para ser reprovado...
Se me fosse dada, um dia,
outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente
e iria jogando, pelo caminho,
a casca dourada
e inútil das horas...
Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido à falta de tempo. A única falta que terá, será desse tempo que, infelizmente, não voltará mais.

Fonte:
http://www.velhosamigos.com.br/

Nicanor Filadelfo Pereira (Porque escrevo)


Aqui estou confortavelmente acomodado nesta poltrona giratória. À minha frente, uma pequena tela a reverberar luz no seu mais intrigante tom de cinza. Meus dedos repousam suaves sobre pequenos objetos quadriláteros. Intuitivamente os dedilho e me pergunto: por que escrevo? Minha alma, instigada, começa a percorrer o etéreo... Diáfanas imagens iniciam o seu pairar dolente que, pouco a pouco, começam fluir palavras, palavras e verbos, verbos e conjunções. - Mas o verbo é a palavra! - E palavras não são verbos e verbos não são palavras? As conjunções vão unindo palavras e os verbos juntam-se às palavras. As conjunções não conjugam os verbos. As palavras levam os verbos a se conjugarem conjuntamente, em extrema simbiose e cumplicidade.

E nessa conjunção de alma e de imagens e divagações e sonhos, eis que surge o texto, e do texto surgem idéias que se entretecem, entrelaçando-se num fluir gostoso, inebriante, como o voar da borboleta azul, num florido jardim em manhã primaveril. A minha alma entra em devaneio... Ao devanear, entro no êxtase de imagens e de palavras e as conjugo como se a voar estivesse sobre o etéreo das imagens, sobre o etéreo das palavras, e as tomo como asas. Voando, vou ao mais profundo dos sentimentos e percorro a alma. Esquadrinho-a, constato, então, que amo. E, amando, descubro que amar é verbo, verbo que tem o condão da vida e que a vida necessita do verbo, do verbo que dá vida à palavra. Daí porque escrevo: porque amo e, ao amar, eu escrevo e, se escrevo, é porque amo a palavra. Amando vou escrevendo, escrevendo vou amando, amando o que escrevo.

Fonte
Cenario Cultural. http://www.cintianmoraes.com.br/colaboradores/nicanor.html

José Saramago (Memorial do Convento)



Apesar de ter sido trazida da Áustria já há dois anos, especialmente para gerar o sucessor ao trono de D. João V, rei de Portugal, a rainha D. Maria Ana Josefa parece não conseguir engravidar. Sendo o rei um símbolo de virilidade, ela é quem é considerada infértil e, conseqüentemente, a única culpada pelo fato de o rei ainda não ter tido herdeiros. Quando, ao cair da noite, o rei se prepara para ir ao quarto da rainha para mais uma tentativa, chega ao palácio D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, acompanhado de um velho frade franciscano, Antônio de S. José, que propõe uma solução para o problema do rei. Diz o frade que a rainha engravidaria assim que o rei prometesse construir um convento para os frades da ordem dos franciscanos na vila de Mafra. Feita a promessa, o casal real vai finalmente para o quarto.

Depois de consumado o ato sexual, rei e rainha dormem e sonham cada um com seus próprios desejos, suas diferentes fantasias: ela sonha que tem um encontro amoroso com seu cunhado, o Infante D. Francisco, enquanto o rei sonha que seu pênis está se transformando em árvore e, logo em seguida, em colunas do convento que ele prometera construir para os franciscanos.

Em tom irônico, o narrador revela suspeitas de que, antes mesmo da promessa, talvez a rainha já estivesse grávida e que talvez o padre o já sabia disso. Em todo caso, se a concepção da rainha ocorresse, o fato seria visto como mais um entre os vários milagres tradicionalmente relacionados à ordem de São Francisco. Diz-se, por exemplo, que um tal frei Miguel da Anunciação, mesmo depois de morto, conservara seu corpo intacto durante dias, atraindo, desde então, uma grande quantidade de devotos para sua igreja. Em outra ocasião, a imagem de Santo Antônio, que vigiava uma igreja franciscana, locomovera-se até à janela, onde ladrões tentavam entrar, passando-lhes assim um grande susto. E do convento de S. Francisco de Xabregas conta-se que, certa vez, suas lâmpadas tinham sido roubadas, e logo depois foram encontradas, como se por acaso, num mosteiro de jesuítas. A gravidez da rainha foi atribuída ao poder milagroso de Santo Antônio ou, segundo outros, à ameaça que um frade velho fizera contra a imagem do santo, acusando o protetor de descuido.

Passado o "entrudo" , como de costume, durante a quaresma as ruas se encheram de gente que fazia cada um suas penitências. Segundo a tradição, a quaresma era a única época em que as mulheres podiam percorrer as igrejas sozinhas e assim gozar de uma rara liberdade que lhes permitia até mesmo de se encontrarem com seus amantes secretos. Porém, D. Maria Ana não podia gozar dessas liberdades, pois, além de ser rainha, agora se encontrava grávida. Assim, tendo ido para a cama cedo, consolou-se em sonhar outra vez com D. Francisco, seu cunhado. Passada a quaresma, todas as mulheres retornaram para a reclusão de suas casas.

Em contraste com os conflitos da família real está a história de Baltasar Mateus, um homem de 26 anos, conhecido como "o Sete-Sóis". Baltasar dirige-se a Lisboa, caminhando pela estrada real, depois de ter sido soldado e perdido a mão esquerda em uma batalha contra a Espanha, para decidir a quem pertenceria o trono espanhol. Com um que lhe servia de mão e um espigão de ferro que funcionava como uma arma, Baltasar pede esmola em Évora e, a caminho de Lisboa, mata um ladrão que havia tentado assaltá-lo. Não sabendo ainda se ficaria em Lisboa ou se continuaria viagem em direção a Mafra , onde ainda viviam seus pais, Baltasar anda pelas ruas da capital e conhece João Elvas, com quem, junto a outros mendigos, vai passar a noite num "telheiro abandonado". Antes de dormir, cada um conta histórias de crimes que ocorreram na cidade, os quais são comparados às mortes que alguns deles presenciaram na guerra.

Não somente por causa da gravidez de cinco meses, mas também por estar de luto pela morte de seu irmão, a rainha Maria Ana deixa de freqüentar o grande auto-de-fé na praça do Rossio em Lisboa, evento muito popular, que já há dois anos não ocorria. Ali seriam castigados pela Inquisição diversos casos de heresia.

Entre os condenados pelo Santo Ofício, um é focalizado com maior destaque. É Sebastiana Maria de Jesus, acusada de ser feiticeira e cristã-nova . Sebastiana, durante alguns parágrafos, torna-se a narradora da história.

Sebastiana Maria de Jesus tem uma filha de 19 anos: Blimunda, jovem de poderes sobrenaturais, que assiste à procissão ao lado do padre Bartolomeu Lourenço. Perto dela está um homem, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, a quem ela se dirige e cujo nome procura saber. Voltando a sua casa, Blimunda leva consigo o padre e deixa a porta aberta para que o recém-conhecido também possa entrar. Depois de o padre sair, Blimunda convida Baltasar para que fique morando em sua casa, pelo menos até que ele tivesse que voltar a Mafra . No dia seguinte, ao acordar, Blimunda, sem abrir os olhos, come um pedaço de pão e promete a Baltasar que nunca o olharia "por dentro".

Começa aqui a fiel e duradoura amizade entre os três personagens que se contrapõem aos personagens da família real, heróis da historiografia oficial. Inicia-se também a relação amorosa entre Baltasar e Blimunda, que ocupará o centro da narrativa.

Ao encontrar-se com o padre Bartolomeu Lourenço, que estava procurando usar sua influência no palácio para conseguir dinheiro. Baltasar fica sabendo que o padre era conhecido como "o Voador", por ter criado uma máquina a qual todos ridicularizam, chamando de "a passarola". Baltasar aceita o convite do padre para ser seu ajudante no projeto de construir a tal "máquina de voar", mas enquanto não chega o dinheiro para o material necessário, fica trabalhando em um açougue.

Enquanto isso, no palácio, para decepção do rei, a rainha dá à luz uma menina, Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, que é batizada por sete bispos. Apesar de o frade Antônio de S. José já ter morrido quando do nascimento da criança, a promessa do rei de construir o convento seria mantida.

Baltasar, que sempre dormia no lado direito da enxerga _ , procura saber por que Blimunda sempre comia pão ao acordar, antes mesmo de abrir os olhos. Ele já tinha tentado descobrir o mistério através do padre Bartolomeu Lourenço que, apesar de conhecer a verdadeira razão, não a quis revelar, dizendo apenas que voar é um mistério pequeno se comparado ao mistério de Blimunda. Certa manhã, tentando desvendar esse mistério de uma vez por todas, Baltasar esconde o pão de Blimunda que, ao acordar, começa a procurá-lo desesperadamente. Finalmente, depois de receber o pão das mãos de Baltasar, Blimunda revela que tem o poder de "olhar por dentro das pessoas", o que podia fazer somente quando estava em jejum. No dia seguinte, para provar-lhe seu poder (ou infortúnio), Blimunda, ainda em jejum, sai à rua com Baltasar, evitando olhá-lo, já que antes tinha prometido não "olhá-lo por dentro".

Dentre as coisas que vê, Blimunda descreve a gravidez de uma mulher, o que existe no subsolo, o órgão sexual de um jovem, apodrecido por doença venérea, e até mesmo uma moeda enterrada no chão.

Enquanto no palácio nascia D. Pedro, segundo filho da família real, e o rei viajava a Mafra para escolher o lugar onde seria erguido o convento monumental, Baltasar e Blimunda mudam-se para a abegoaria na quinta do duque de Aveiro, amigo do rei, em S. Sebastião da Pedreira. Além de proporcionar-lhe o lugar de trabalho, o rei, que se interessara pelo projeto do padre como uma criança se interessa por um brinquedo novo, com sua amizade e influência protegia o padre das garras da Inquisição que, caso viesse saber dos projetos do padre, teria motivos suficientes para acusá-lo de heresia.

Na quinta do duque de Aveiro, Padre Bartolomeu, com a ajuda de Baltasar e Blimunda, prossegue na construção da passarola. Decide, então, partir à Holanda, onde dizem que os sábios conhecem os mistérios da alquimia e a natureza do éter , o único elemento que, segundo ele, estava faltando para que sua invenção fosse concluída.
Baltasar e Blimunda, depois que o padre parte, decidem mudar-se para Mafra , terra natal de Baltasar. Antes de partir, o casal decide assistir, ao invés de mais um auto-de-fé que seria realizado na praça do Rossio, a uma outra festa popular, a tourada. Assim como os autos-de-fé , as touradas sempre terminavam com um forte cheiro de carne queimada, proveniente do churrasco realizado no final da festa _ . Ao chegar à casa da família em Mafra , acompanhado de Blimunda, Baltasar é recebido por sua mãe, Marta Maria, já que João Francisco, seu pai, estava trabalhando no campo. Baltasar fica sabendo que sua única irmã, Inês Antônia, estava casada com Álvaro "Pedreiro" Diogo. Dos dois filhos desse casal, apenas um sobreviveria, sendo que o outro morreria ao atingir a mesma idade em que o infante D. Pedro, filho de D. João V, também morreria, anos mais tarde.

Baltasar fala à família de suas intenções de ficar morando com a mulher em Mafra . A família acolhe bem Blimunda, depois de se certificar de que ela não era judia ou cristã-nova , o que não era completamente verdade. O pai informa ao filho recém-chegado de que abrira mão de suas terras na Vela, pois elas haviam sido desapropriadas para a construção do convento, uma obra monumental que, segundo acreditavam, traria muitos empregos para os moradores da região, especialmente para o cunhado de Baltasar, que era pedreiro. Baltasar vai visitar as obras do convento e, ao retornar, encontra Blimunda conversando com Maria Marta, de quem a jovem se tornaria companheira e ajudante, enquanto Baltasar iria trabalhar com o pai no cultivo de terras que não lhes pertenciam.

Encontrando-se o rei bastante enfermo, seu irmão aproveita as perspectivas que lhe são favoráveis e revela à rainha seu interesse em tornar-se seu marido e o novo rei. O infante D. Francisco declara saber que é objeto dos sonhos da rainha, numa conversa que seria a primeira entre tantas que finalmente acabariam por destruir o desejo original que ela experimentara. Mesmo depois de recuperada a saúde do rei, seus antigos sonhos nunca teriam aquele mesmo encanto de antigamente, já que ela tem plena consciência de que sua condição de mulher e rainha mudaria pouco, fosse ela casada com um ou outro irmão.

Voltando da Holanda, onde estivera por três anos, o padre Bartolomeu Lourenço dirige-se à quinta de S. Sebastião da Pedreira, encontrando a albegoaria abandonada. Algumas semanas depois, parte em direção a Coimbra, de onde conta retornar já "doutor em cânones". Antes, porém, decide visitar o casal amigo em Mafra , onde, ao chegar, encontra um pároco, Francisco Gonçalves, que lhe oferece um quarto para ficar hospedado. Em conversa com Blimunda e Baltasar, o padre Bartolomeu conta-lhes o que descobrira na Holanda, ou seja, que ao contrário do que se pensa, o éter não é uma substância que possa ser encontrada pelas artes da alquimia, mas que, antes de subir ao céu, o éter existe dentro das pessoas, pois nada mais é do que a "vontade" de cada um. Assim, o padre pede a Blimunda que olhe dentro das pessoas e encontre essa "vontade", que é como uma nuvem fechada. E que, cada vez que percebesse a vontade de alguém escapando, que ela a capturasse usando um frasco contendo âmbar, que é a substância que atrai o éter.

Em Mafra, pela primeira vez Blimunda comunga conforme manda os ensinamentos da igreja católica, ou seja, em jejum. Ao fazê-lo, vê na hóstia uma nuvem fechada, o que muito a impressiona. Já tendo o padre ido para Coimbra há algum tempo, o casal decide partir de volta à quinta, assim que passassem as festividades de inauguração dos alicerces do convento, cujas primeiras pedras seriam colocadas pelas mãos do próprio rei.

Dias antes da inauguração dos alicerces, uma grande tempestade de vento, comparável ao "sopro de Adamastor" derruba a igreja de madeira construída especialmente para a cerimônia. Sabendo do acidente, o rei começa a distribuir moedas de ouro, e distribui ainda mais quando os pedreiros voltam ao trabalho e reconstroem a igreja em dois dias, de modo que o que era catástrofe passou a ser visto como milagre. No primeiro dia de festividades, a inauguração foi feita em cerimônias restritas a poucos convidados e, no dia seguinte, (ou seja, a 17 de novembro de 1717, seis anos depois de o rei ter feito sua promessa), realizou-se uma grande festa pública.

De volta à quinta do Duque de Aveiro, Baltasar desmonta a passarola que, abandonada, encontrava-se com a estrutura enferrujada e os panos cheios de mofo. Pouco tempo depois chega o padre, que logo quer saber quantas vontades Blimunda já recolhera. Ao ouvir que até então havia apenas trinta "vontades" na garrafa, o padre lhe diz que eram necessárias pelo menos duas mil. Baltasar continua trabalhando na "máquina de voar" enquanto padre Bartolomeu vai constantemente a Coimbra, a fim de concluir seus estudos. Quando volta definitivamente para Lisboa, o padre fica conhecendo o músico Domenico Scarlatti , napolitano de 35 anos, professor particular de música da infanta D. Maria Bárbara que, a essas alturas, já tem nove anos de idade. O encontro dos dois homens estimula uma discussão sobre o poder extraordinário da música e a essência da verdade, comparando-se finalmente a música do italiano com a oratória do padre.

Em outra ocasião, o padre e o compositor se encontram e juntos vão à S. Sebastião da Pedreira, onde o padre revela seu segredo ao músico e apresenta-lhe a "trindade terrestre", composta por ele, o amigo e ajudante Baltasar e sua companheira Blimunda.

Depois da partida do italiano que, tendo prometido que voltaria trazendo seu cravo e o tocaria para o casal e para a passarola, o padre Bartolomeu Lourenço começa a trabalhar em um sermão que estava preparando para a festa do Corpo de Deus. Nesse sermão, que a princípio receberia a aprovação e até mesmo a admiração dos padres e censores do Santo Ofício, o padre questiona os fundamentos da doutrina cristã da trindade divina.

Sabendo de uma epidemia de febre amarela que, trazida do Brasil, se alastrava por Lisboa e já matara quatro mil pessoas em três meses, o padre Bartolomeu pede a Blimunda que aproveite a ocasião para recolher as vontades que se desprendem do peito dos moribundos. Blimunda faz o que o padre lhe pedira e, no final da epidemia, consegue recolher as duas mil vontades necessárias para fazer voar a "passarola". O casal acaba se tornando conhecido em Lisboa, por sempre andar pela cidade sem medo da epidemia.

Depois de cumprida a tarefa, Blimunda fica doente e, durante toda sua convalescença, o músico Scarlatti vai tocar-lhe cravo, o que contribui para a restauração de sua saúde.

Estando as vontades recolhidas e a máquina de voar já pronta, nada falta para que o invento do padre seja testado. Além disso, o rei já não pode fazer nada para que o Duque de Aveiro lhes empreste a quinta onde trabalham. O padre, que andava receoso do Santo Ofício, vai ao palácio se certificar da proteção e amizade do rei, mas volta aflito, pois descobrira que o Santo Ofício já estava a sua procura. Assim, só lhe resta propor ao casal que os três terminem rapidamente o projeto e juntos fujam na "máquina de voar". Assim, depois de retirarem o telhado da abegoaria e colocarem tudo o que possuem dentro da máquina, deixando para trás apenas o cravo de Domenico Scarlatti , a "passarola" enfim levanta vôo. Scarlatti , que chegara à quinta a tempo de ver a máquina subir aos ares, senta-se ao cravo e toca uma música, antes de lançar o instrumento ao fundo de um poço.

Depois de passarem despercebidos sobre a cidade de Lisboa, os três sobrevoam a vila de Mafra , onde várias pessoas vêem a máquina voadora, julgando ser uma aparição do Espírito Santo. Encontrando dificuldades para controlar a máquina, finalmente a fazem aterrissar, graças à iniciativa de Blimunda de segurar junto a seu peito as duas esferas contendo as "vontades".

No dia seguinte, o casal impede o padre, que se encontrava aflito de emoção ou de medo, de atar fogo à máquina. Mas não podem impedir que ele parta sozinho mata adentro, para nunca mais voltar. Blimunda e Baltasar escondem a máquina sob a ramagem e partem na mesma direção tomada pelo padre, até chegarem, depois de alguns dias, a Mafra , onde uma procissão celebrava o milagre que o povo acreditava ter presenciado. Ali, Baltasar, a exemplo de tantos outros moradores locais, começa a trabalhar nas obras do convento, cuja dimensão e quantidade de homens que emprega muito o impressionam, apesar de achar o ritmo com que se desenvolve demasiado lento. Chegam notícias do terremoto de Lisboa, que foi seguido de inaudita tempestade _ . Apesar dos estragos causados por ambos os desastres, implementaram-se os negócios de vários setores da sociedade e, em particular, da igreja, que freqüentemente se aproveitava das catástrofes para alimentar a religiosidade popular.

Dois meses depois de terem chegado a Mafra , Baltasar decide voltar ao Monte Junto, onde haviam deixado a máquina de voar. Ele a encontra no mesmo lugar, mas necessitando de alguns reparos. A partir de então, ele faria visitas freqüentes ao local, cuidando da manutenção da máquina, sempre com uma certa esperança de reencontrar o padre. Algum tempo depois, Domenico Scarlatti chega a Mafra , onde fora visitar as obras do convento, ficando hospedado na casa de um visconde. Ao se cruzarem na rua, Blimunda e Scarlatti , tentando evitar as suspeitas dos moradores, que poderiam achar estranho duas pessoas de níveis sociais tão diferentes se conhecerem, conversam às escondidas. O músico trazia a notícia da morte do padre Bartolomeu de Gusmão em Toledo, Espanha, para onde ele havia fugido no dia 19 de novembro, o dia da tempestade em Lisboa. Em seguida, enquanto no palácio o rei medita sobre suas riquezas, celebra-se em Mafra uma missa para um grande número de trabalhadores.

A construção do convento exige esforços colossais e causa muitas vítimas. Um dos eventos mais penosos foi o transporte, da vila de Pêro Pinheiro até a vila de Mafra , de uma imensa pedra, destinada a ser a laje de uma varanda sobre o pórtico da igreja. Seiscentos homens e um grande número de bois foram utilizados na empreitada, que durou oito dias, durante os quais não faltaram acidentes fatais. Um dos casos mais dramáticos foi o do trabalhador Francisco Marques, que acabou esmagado sob uma roda de um carro de bois.

Depois de quase quatro anos em Mafra , Blimunda pela primeira vez pede a Baltasar para acompanhá-lo em uma de suas visitas periódicas ao Monte Junto. Depois de lá chegarem, resolvem passar a noite para que, ao amanhecer, Blimunda, ainda em jejum, se certificasse de que as vontades ainda estavam guardadas dentro de cada uma das duas esferas.

Enquanto isso, na residência real, D. João V manifesta seu desejo de construir uma Basílica em Portugal como a de S. Pedro em Roma. Para dar conta do projeto gigantesco, o rei chama o arquiteto alemão João Frederico Ludovice (ou Ludwig), que o dissuade da idéia, com o argumento de que o rei não viveria o suficiente para ver a obra concluída. Convencido, o rei decide então ampliar a dimensão do projeto do convento de Mafra, de modo que, ao invés de 80, coubessem nele 300 frades, o que muito agrada ao provincial dos franciscanos da Arrábida. O projeto é, sem dúvida, ambicioso demais para os recursos do reino, o que se reflete em conversa, imaginada pelo narrador, entre o rei e o almoxarife ou guarda-livros.

Finalmente, o rei decide que a sagração da basílica deveria ser realizada dois anos mais tarde, no dia vinte e dois de outubro de 1730, quando ele completasse 41 anos, estivesse ou não a obra concluída. Com a ampliação do projeto, tornara-se necessário que se recrutasse um grande número de trabalhadores, dentre os quais muitos seriam levados a fazer o trabalho contra a própria vontade, o que causaria grande tristeza a muitas famílias de toda a região. Simultaneamente, as famílias reais de Portugal e de Espanha logo se preparariam, em 1729, para se unirem através de dois casamentos.

De fato, a "troca das princesas" uniria, em 1729, as famílias reais de Portugal e Espanha, segundo um acordo que já havia sido concluído havia quatro anos. Mariana Vitória, da Espanha, de 11 anos, seria trazida a Portugal para que se casasse com o infante D. Pedro, enquanto Maria Bárbara, de 17 anos, seria levada a Espanha para unir-se a Fernando, dois anos mais novo que a noiva. Assim, uma comitiva leva a família real até a fronteira dos dois países, sobre o rio Caia, em Elvas, passando por Mafra . Na região de Mafra , os trabalhadores, que à força são levados às obras do convento, chamam a atenção da princesa e por um momento lhe despertam compaixão.

Além da coincidência entre o nascimento da princesa e a promessa do rei de construir o convento de Mafra , no nível popular, duas outras histórias convergem. João Elvas, que conhecera Baltasar em Lisboa logo depois da guerra, acompanha, junto a um grupo de pedintes, a comitiva à fronteira onde está situada sua cidade natal. Ao conversar com um certo Julião Mau-Tempo, que menciona a enorme pedra transportada até Mafra, João Elvas lembra-se do ex-soldado, seu amigo Baltasar, com quem o interlocutor havia trabalhado.

Em 1730, pouco mais de um ano depois da "troca das princesas", a basílica do convento seria enfim consagrada, mesmo estando as obras, tanto as da basílica como as do convento, ainda longe de serem concluídas. Várias estátuas de santos desfilam pelas ruas e são transportadas até o local onde seriam instaladas. Blimunda e Baltasar resolvem ver as imagens dos santos Segundo acreditam, os santos passariam a noite conversando pela última vez, antes de serem isolados em seus nichos, na basílica.

Ao amanhecer, Baltasar decide ir sozinho ao Monte Junto, verificar o estado da "passarola". Ao tentar fazer os já costumeiros reparos na máquina, Baltasar tropeça e rasga os panos que cobriam as esferas, de modo que quando os raios de sol as atingem, a máquina inesperadamente levanta vôo. Blimunda vai procurá-lo no dia seguinte, ao mesmo tempo em que romarias se dirigem à sagração da basílica, mas não encontra seu amado, apenas o espigão de ferro, que ela não hesita em usar quando um frade a tenta violá-la.

Blimunda continua a procurar Baltasar durante nove anos, perambulando por todas as partes do país. Sua jornada termina em Lisboa, em situação semelhante àquela em que conhecera Baltasar. Em 1739, em um auto-de-fé na praça do Rossio, onze vítimas encontram-se a caminho da fogueira - inclusive o dramaturgo Antônio José da Silva, "O Judeu". Estava lá também Baltasar, cujo vulto Blimunda vê. Quando Baltasar está para morrer, sua "vontade" se desprende e é finalmente recolhida dentro do peito de sua amada Blimunda.

Fontes:
1100 Cursos e Apostilas. CEC0004 - Digerati Com. Tecnologia Ltda. (CD ROM)
Capa do Livro = http://www.submarino.com.br

Teste o seu Português 1



"O pior erro que você pode cometer na vida é o de ficar o tempo todo com medo de cometer algum erro".

Deleitemo-nos com Carlos Drummond de Andrade:

No meio do caminho
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Obs.: Tal texto não tem sequer uma palavra a ser alterada sob o ponto de vista do novo acordo ortográfico. Você percebe que não há palavras com sinal gráfico (diacrítico).

Deixemos as pedras no meio do caminho e leiamos, também de Drummond:

Privilégio do mar
Neste terraço mediocremente confortável,
bebemos cerveja e olhamos o mar.
Sabemos que nada nos acontecerá.
O edifício é sólido e o mundo também.
Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
labutando em mil compartimentos iguais.
Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e vem cá em cima respirar a brisa do oceano,
o que é privilégio dos edifícios.
O mundo é mesmo de cimento armado.
Certamente, se houvesse um cruzador louco,
fundeado na baía em frente da cidade,
a vida seria incerta... improvável...
Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.
Como a esquadra é cordial!
Podemos beber honradamente nossa cerveja.

Obs.: O segundo texto do poeta tem apenas uma palavra a ser alterada sob o ponto de vista do novo acordo ortográfico (tranquilas). O trema desapareceu, foi eliminado das palavras portuguesas, devendo ser usado apenas em nomes estrangeiros.

Vamos ver se você já está se acostumando com a nova ortografia.

1 - Você teve uma ótima ______________.
a ( ) idéia;
b ( ) ideia.

2 - Sua ___________ não me incomoda.
a ( ) feiura;
b ( ) feiúra.

3 - Eu _________ todas as suas falhas.
a ( ) perdôo;
b ( ) perdoo.

4 - Coitados, eles ___________ de tudo!
a ( ) descreem;
b ( ) descrêem.

5 - Essa onda de ___________ está cada vez mais ____________.
a ( ) seqüestros - freqüente;
b ( ) sequestros - frequente.

Respostas na lateral esquerda ao final

Fonte:
Terezinha Bellote Chaman.
http://www.dgabc.com.br/

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Escritor brasileiro recordista no Guinness com mais de mil livros publicados


Com uma idéia na cabeça e uma Olivetti nas mãos, José Carlos Ryoki de Alpoim Inoue escreveu 999 livros em 6 anos sobre os mais variados temas. Best-sellers assinados com pseudônimos estrangeiros — James Monroe, George Fletcher, Jeff Taylor, Bill Purse e muitos outros, somando um total de 39 nomes "americanizados" — "Era uma exigência das editoras", explica Ryoki.

Seu milésimo livro acompanha um prefácio do jornalista Alexandre Garcia: “As histórias de seus livros são de tirar o fôlego. Como os eventos ocorrem em minutos e dias, Ryoki faz os batimentos cardíacos dos leitores aumentarem. É difícil interromper a leitura por causa da narração que acontece como num filme, como no bom cinema americano com todos os ingredientes repletos de sexo, corrupção, violência, política, espionagem e um final surpreendente. Ryoki é o Pelé da literatura.”

Recentemente ele lançou pela Editora Globo o livro "SAGA", um romance de 365 página que conta a história de quatro gerações de uma família japonesa no Brasil.

E o livro técnico de número 1.074, pela Summus Editorial, "Vencendo o desafio de escrever um romance", onde trata o processo criativo e redacional como técnica, enfatizando a disciplina, a pesquisa e a organização. A obra traz informações valiosas tanto para escritores iniciantes como para os que já publicaram e desejam se aprimorar.

E vem por aí o "O Fruto do Ventre", um livro que, segundo a Editora Record, promete ser um sucesso com mais de 500 páginas repletas de ação e muito suspense.

Críticos e jornalistas falam sobre o autor que já teve seu seu nome como objeto de matérias em importantes publicações e programas de TV, como a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha da Tarde, Jornal da Tarde, Valeparaibano, Gazeta de Vitória, A Tribuna, revistas Veja, IstoÉ e Manchete, no Brasil; revista Lire e Culture, na França; Der Spiegel, na Alemanha; Wall Street Journal (matéria de capa), nos USA; e várias outras publicações ao redor do mundo; programas Jô Soares - Onze e Meia (SBT) Globo Repórter e Fantástico (Rede Globo), e foi entrevistado pela Radio Culture de Paris e pela Nippon Televison Network, de Tóquio, entre outros:

"A maioria das pessoas não conseguem ler na mesma velocidade que ele escreve." Jô Soares, Jô Onze e Meia

"Ele produz capítulos inteiros durante suas idas ao banheiro." Matt Moffet, Wall Street Journal

“O mais produtivo escritor do Brasil e do mundo tem seus trabalhos escritos com um português perfeito.” ANSA Agency

“Não é difícil encontrá-lo escrevendo em seu PC de 6 às 2 da manhã.” Fantástico, TV Globo

“A produção literária do incansável Ryoki Inoue levou-o não apenas ao Guinness Book como o autor mais prolífico do mundo, mas também a ser comparado a Georges Simenon por alguns críticos internacionais. Outros comparam seu estilo e sua velocidade de produção com Sidney Sheldon. Outros dizem que ele pode ser posto ao lado de Harold Robbins, principalmente pela forma como tece as tramas de seus thrillers.” Flávio Tiné

“Ryoki alimenta sozinho mais de 400 mil leitores por mês.” Eduardo Bueno, Estadão

O milésimo livro marca a virada na carreira de José Carlos Ryoki de Alpoim Inoue. E agora, Presidente? Um romance político-policial que aproxima esse escritor de ficção da realidade brasileira.” Paulo Pestana, Correio Brasiliense

“Junto com a imaginação e o dom de escrever, o que o torna especial é sua disciplina e determinação.” Goulart de Andrade

"A maioria das edições dos livros escritos por Ryoki alcançam mais de 10 mil exemplares. Todos eles são vendidos imediatamente." Severino Francisco, Correio Brasiliense

Quem quiser já pode aproveitar e baixar no site http://www.ryoki.com.br/ seis de seus livros, como "A Carta Amassada" e "A Bruxa", escrito em 1992, desta vez utilizando-se do computador.

Fonte:
http://www.overmundo.com.br/overblog/