quarta-feira, 1 de abril de 2009

Hans Christian Andersen (O Rouxinol e o Imperador)



A inspiração para o conto "O rouxinol do imperador" surgiu de um fato real. Conta-se que um homem muito importante na Suécia estava muito doente e pediu como ultima vontade que a cantora Jenny Lind fosse cantar para ele. Ela era uma cantora sueca muito famosa na época e era conhecida como "O rouxinol". Dizem que era tão belo o seu canto que o homem depois de ouví-la melhorou muito, recuperando-se.

A partir dessa história Andersen escreveu este conto. Andersen conheceu Jenny Lind e se apaixonou por ela, mas não foi correspondido. Trata-se de um belo e comovente conto que fala sobre a beleza da arte e da música e também da amizade e do sentimento.

O ROUXINOL E O IMPERADOR

Sabem com certeza que na China o imperador é chinês e que todas as outras pessoas são chinesas também. Esta história aconteceu há muitos anos, mas é precisamente por isso que devem ouvi-la agora, antes que seja esquecida.

O palácio do imperador era o melhor do Mundo, todo ele construído da mais rara porcelana — não tinha preço, mas era tão frágil e delicado que era preciso tomar todo o cuidado quando se andava lá dentro. O jardim do palácio estava coberto de flores maravilhosas, nunca vistas em outro lado; as mais bonitas de todas tinham sininhos de prata, que tocavam para se saber sempre que passava alguém.

Sim, tudo no jardim do imperador tinha sido muito bem planeado, e ele estendia-se até tão longe que nem o jardineiro fazia a menor ideia onde acabava. Se se fosse sempre andando chegava-se a uma bela floresta com árvores muito altas e lagos muito fundos. A floresta ia até ao mar, que era azul e também muito fundo; grandes navios podiam navegar mesmo por baixo dos ramos das árvores. Nesses ramos vivia um rouxinol que cantava tão bem que até o pobre pescador, com todas as suas dificuldades, parava de deitar as redes todas as noites para o ouvir.

— Ah, que maravilha! — dizia ele.

Mas depois tinha de continuar a trabalhar e esquecia-se da ave. Contudo, na noite seguinte, assim que o rouxinol tornava a cantar, o pescador erguia os olhos das redes e dizia mais uma vez:

— Ah, que maravilha!

Vinham viajantes de todos os países do Mundo para admirar a cidade, o palácio e os jardins do imperador. Mas, assim que ouviam o rouxinol, todos diziam:

— Isto é o melhor de tudo!

E, quando voltavam aos seus países, continuavam a falar da ave. Sábios escreveram livros sobre a cidade e o palácio, mas o rouxinol era elogiado mais do que todas as outras maravilhas, e poetas escreveram emocionantes poemas sobre a ave da floresta perto do mar.

Estes livros eram lidos em todo o mundo, e, um dia, alguns deles chegaram às mãos do imperador. Lá ficou ele, sentado na sua cadeira dourada, a ler sem parar; de vez em quando acenava com a cabeça. Estava contente com as esplêndidas descrições do seu reino. Então, chegou à frase: "Mas, apesar de todas estas maravilhas, nada se compara ao rouxinol."

— Que é isto?! — exclamou o imperador. — O rouxinol? Nunca ouvi falar dele. Imaginem! As coisas que aprendemos nos livros!

Então mandou chamar o camareiro.

— Vi aqui neste livro que temos uma ave admirável chamada rouxinol — disse o imperador. — Parece que é a melhor coisa do meu vasto império. Por que é que ninguém me falou dele?

— Bem — respondeu o camareiro —, nunca ouvi ninguém falar nessa criatura. De certeza que nunca foi apresentada na corte.

— Quero que venha aqui esta noite cantar para mim — disse o imperador. — É uma vergonha que toda a gente saiba o que possuo e eu não!

— Nunca ouvi falar nele — repetiu o camareiro —, mas vou procurá-lo e hei-de encontrá-lo!

Sim, mas onde? O camareiro subiu e desceu todas as escadas, andou por todos os salões e corredores, mas, de todas as pessoas que encontrou, nenhuma tinha ouvido falar do rouxinol. Voltou apressado à presença do imperador e disse-lhe que aquilo devia ser uma história inventada pelos escritores.

— Vossa Majestade Imperial não deve acreditar em tudo o que aparece escrito. As coisas que os autores inventam! É mesmo magia negra!

— Mas o livro onde eu soube da ave — afirmou o imperador — foi-me enviado pelo poderoso imperador do Japão, portanto não pode ser mentira! Quero ouvir o rouxinol! Quero ouvi-lo esta noite.

— Tsing-pe! — respondeu o camareiro.

E lá foi ele outra vez escada abaixo e escada acima, por todos os salões e corredores; metade da corte andava a correr atrás dele. Por fim, encontraram uma pobre rapariguinha na cozinha.

— O rouxinol? — perguntou ela. — Meu Deus! Claro que sei! Que bem que ele canta! A maior parte das noites deixam-me levar para casa alguns restos de comida para a minha mãe, que está doente. Vivemos perto do lago, do outro lado da floresta. E quando volto para o palácio, cansada, sento-me um bocadinho e fico a ouvi-lo cantar.

— Rapariguinha! — exclamou o camareiro —, ofereço-te um lugar permanente na cozinha e dou-te licença para veres o imperador a jantar se nos levares até ao rouxinol. A sua presença é exigida esta noite na corte.

Então, partiram em direcção à floresta onde o rouxinol costumava cantar; mais de metade da corte foi com eles. Enquanto iam andando, uma vaca mugiu.

— Oh! — exclamou um pajem. — Já estou a ouvi-lo! Para um animalzinho tão pequeno faz um barulho extraordinário. Mas, sabem, tenho a certeza de já o ter ouvido.

— Não, não, aquilo é uma vaca mugindo! — exclamou a mocinha. — Ainda temos de andar muito.

As rãs começaram a coaxar num charco.

— Maravilhoso! — exclamou o capelão do imperador. — Já estou a ouvir a canção! Parecem mesmo sininhos de igreja!

— Não, não, isso são rãs — disse a mocinha da cozinha. — Mas devemos estar quase a ouvi-lo.

Então, o rouxinol começou a cantar.

— Lá está ele! — disse a mocinha. — Ouçam! Olhem! Está ali! — e apontou para um passarinho cinzento por entre os ramos.

— Será possível? — exclamou o camareiro. — Nunca pensei que fosse assim. Parece tão vulgar! Tão simples! Talvez tenha perdido a cor quando viu todas estas visitas importantes.

— Rouxinolzinho! — chamou a mocinha. — O nosso gracioso imperador gostaria muito que cantasses para ele.

— Com o maior prazer — disse o rouxinol, continuando a cantar tão bem que era um encanto ouvi-lo.

— Parecem mesmo sinos de vidro — disse o camareiro. — Não percebo como é que nunca o tínhamos ouvido. Vai ser um êxito na corte!

— Querem que torne a cantar para o imperador? — perguntou o rouxinol, que pensava que uma das visitas era o imperador.

— Excelentíssimo rouxinol — disse o camareiro —, tenho a honra e o prazer de o convidar para um concerto no palácio esta noite, onde encantará Sua Majestade Imperial com as suas lindas cantigas.

— Soam melhor na floresta — afirmou o rouxinol.

Apesar disso, foi com eles de boa vontade quando ouviu dizer que era desejo do imperador.

Entretanto, que limpezas iam pelo palácio! As paredes e o soalho de porcelana brilhavam, lustrosos, à luz de milhares de luzes douradas. Mesmo no meio do grande salão, junto do trono do imperador, estava um poleiro dourado para o rouxinol. Toda a corte estava presente, e a pequena criadinha da cozinha teve autorização para ficar atrás da porta, porque já tinha o título oficial de Verdadeira Criada de Cozinha. Todos os olhos estavam postos no passarinho cinzento quando o imperador lhe fez sinal que começasse.

Então, o rouxinol cantou tão bem que o imperador ficou com os olhos cheios de lágrimas, que lhe escorreram pelas faces; e o rouxinol continuou a cantar ainda melhor, de modo que cada nota foi direitinha ao coração do imperador. Este ficou muito satisfeito; o rouxinol, declarou ele, iria receber o seu sapato dourado para usar ao pescoço. Mas este agradeceu e recusou, porque já se sentia recompensado.

— Vi lágrimas nos olhos do imperador. Pode lá haver alguma dádiva maior do que essa? As lágrimas de um imperador têm um poder estranho. Já fui suficientemente recompensado.

E cantou mais uma canção com a sua voz maviosa.

— Muito espirituoso, muito divertido; a criatura é namoradeira — diziam as damas da corte, enchendo as bocas de água para fazerem um ruído de gargarejo.

Por que é que não haviam de ser também rouxinóis? Até os lacaios e as criadas de quarto acenavam, com ar de aprovação, o que significa muito, porque estes são sempre os mais difíceis de contentar. Não havia dúvida: o rouxinol era um êxito.

Ficaria na corte e teria uma gaiola só para si, com autorização para ir apanhar ar duas vezes durante o dia e uma vez à noite. Seria acompanhado, em cada excursão, por doze criados, cada um a segurar firmemente uma fita de seda atada a uma patinha da ave. Não, essas saídas não eram muito divertidas.

Um dia, chegou um grande embrulho para o imperador. Trazia uma palavra escrita por fora: ROUXINOL.

— Olha! Outro livro sobre a nossa famosa ave! — exclamou o imperador.

Mas não era um livro; era um pequeno brinquedo mecânico dentro de una caixa, um rouxinol de corda. Tinha o feitio de um verdadeiro, mas estava coberto de diamantes, rubis e safiras. Quando se lhe dava corda, cantava uma das canções que o verdadeiro passarinho costumava cantar, e a sua cauda andava para baixo e para cima, brilhando em prata e ouro. A volta do pescoço trazia uma fita, onde estava escrito: "O rouxinol do imperador do Japão nada vale comparado com o rouxinol do imperador da China."

— Que maravilha! — disseram todos.

E o mensageiro que tinha trazido o presente recebeu o título de Principal Portador Imperial de Rouxinóis.

— Agora têm de cantar juntos. Que dueto que vai ser!

Então os dois passarinhos tiveram de cantar juntos, mas não foi um êxito. O problema era que o verdadeiro rouxinol cantava à sua maneira e a canção do outro saía de uma máquina.

— Isto não é vergonha nenhuma — afirmou o Mestre da Música Imperial. — Está perfeitamente afinado: na realidade, ele até podia ser um dos meus alunos.

Então, o pássaro de corda foi posto a cantar sozinho. Agradou quase tanto à corte como o verdadeiro, e evidentemente que era muito mais bonito à vista, todo brilhante, como uma pulseira ou um alfinete de peito. Cantou a mesma canção trinta e três vezes sem se cansar. Os cortesãos não se importariam de a ouvir mais umas vezes, mas o imperador achou que era a vez do verdadeiro.

Mas onde estava o rouxinol? Tinha voado pela janela, para a sua floresta verdejante, sem ninguém dar por isso.

— Tch, tch, tch! — fez o imperador, aborrecido. — Que significa isto?

E os cortesãos resmungavam e franziam as testas.

— Mas temos aqui o melhor! — disseram.

E o rouxinol de corda teve de cantar outra vez.

Era a trigésima quarta vez que o ouviam, mas ainda não sabiam bem a canção. Era difícil de aprender. E o Mestre da Música Imperial teceu à ave os mais altos elogios: era superior ao rouxinol vivo, não apenas na aparência exterior, mas também no que tinha lá dentro.

— Sabem, senhores e senhoras e, acima de todos, Vossa Majestade Imperial, com o verdadeiro rouxinol nunca se sabe o que vai acontecer, mas com a ave de corda tem-se a certeza; é tudo fácil: podemos abri-la e ver como pensa, como cada nota segue a outra com precisão!

— Era isso mesmo o que eu estava a pensar — ouviu-se aqui e ali.

E, na segunda-feira seguinte, o Mestre da Música Imperial foi autorizado a mostrar publicamente o pássaro ao povo. Também ele devia ouvi-lo cantar, tinha declarado o imperador. E assim foi. E ficaram todos tão entusiasmados como se estivessem tontos de beberem muito chá, um antigo costume chinês. Disseram todos:

— Ah!

E levantaram os indicadores e acenaram com as cabeças.

Mas o pobre pescador, que tinha ouvido o verdadeiro rouxinol, afirmou:

— Lá bonito é... e até parece o rouxinol... Mas parece que falta qualquer coisa, não sei bem...

O verdadeiro rouxinol foi banido do reino do imperador.

O pássaro artificial recebeu um lugar especial numa almofada de seda junto da cama do imperador; empilhados à volta estavam todos os presentes que lhe tinham dado, todo o ouro e jóias. Foi distinguido com o título de Principal Trovador Imperial da Mesa-de-Cabeceira, Primeira Classe à Esquerda, porque até os imperadores têm o coração do lado esquerdo. O Mestre da Música Imperial escreveu um solene trabalho em vinte e cinco volumes sobre o pássaro mecânico. Era muito extenso e erudito, cheio das mais difíceis palavras chinesas. Mas toda a gente fingiu que o tinha lido e compreendido. Ninguém queria passar por estúpido!

Tudo isto continuou durante um ano, até que o imperador, a corte e o resto do povo chinês sabiam de cor cada notazinha da canção do passarinho de corda; mas, por isso mesmo, cada vez gostavam mais dela. Podiam cantá-la em coro — e faziam-no.

Os rapazitos da rua andavam por todo o lado a cantar: rrr, trrr, piu, piu, piu, e o imperador também cantava — um som maravilhoso, não havia dúvida.

Mas, uma noite, precisamente quando o pássaro de corda estava a cantar e o imperador, deitado na cama, o ouvia, qualquer coisa fez "crac!" dentro do pássaro. Brrrr! O mecanismo continuou a rodar, e a música parou. O imperador saltou da cama e mandou chamar o seu médico. Mas de que servia o médico? Então foram buscar o relojoeiro, e este, depois de muitas resmungadelas e mexidelas no pássaro, conseguiu arranjá-lo mais ou menos. Mas preveniu toda a gente de que tinha de ser usado muito poucas vezes; as peças estavam quase gastas por completo e não era possível substituí-las sem estragar o som.

Que golpe horrível! Não se atreviam a pôr o pássaro a cantar mais do que uma vez por ano, e mesmo isso já era um risco. Contudo, nessas ocasiões anuais, o Mestre da Música Imperial fazia sempre um discurso cheio de palavras difíceis, dizendo que o pássaro estava tão bom como sempre — e, claro, uma vez que ele dizia que sim, era porque ele estava tão bom como sempre...

Passaram cinco anos, e uma grande tristeza abateu-se sobre o país. O povo era muito amigo do imperador, mas ele estava gravemente doente e não se esperava que sobrevivesse. Já tinha sido escolhido novo imperador, e a multidão esperava nas ruas que o camareiro lhe desse notícias. Como estava o imperador? O camareiro abanava a cabeça.

Frio e pálido, o imperador jazia no seu leito real. Na verdade, a corte achava que já tinha morrido e foi a correr saudar o seu sucessor. Os criados de quarto foram a correr coscuvilhar uns com os outros e as criadas juntaram-se todas para beberem café,. Tinham sido estendidos panos pretos em todos os salões e corredores para amortecer o som dos passos, de maneira que o palácio parecia muito, muito sossegado.

Mas o imperador ainda não tinha morrido. Pálido e imóvel, jazia na sua magnífica cama com longos cortinados de veludo e pesados cordões dourados. Através de uma janela aberta lá no alto, a Lua brilhava sobre o imperador e o pássaro artificial.

O pobre imperador mal podia respirar; sentia como se tivesse qualquer coisa a pesar-lhe sobre o coração. Abriu os olhos e viu a Morte sentada sobre ele. A Morte tinha a coroa de ouro do imperador na cabeça, numa das mãos segurava a espada imperial de ouro e na outra a esplêndida bandeira imperial. E, por entre os cortinados de veludo, espreitavam estranhos rostos: alguns horríveis e outros belos e bondosos. Eram as boas e as más acções do imperador, que olhavam para ele, enquanto a Morte se sentava sobre o seu coração.

— Lembras-te?... Lembras-te?... — diziam os rostos baixinho, um a seguir ao outro.

E contaram e lembraram tantas coisas que a testa do imperador acabou por ficar coberta de suor.

— Nunca soube... nunca percebi... — gritou ele. — Música, música! Toquem o grande tambor da China! Salvem-me destas vozes!

Mas as vozes não se calavam. Continuavam sempre, enquanto a Morte acenava com a cabeça, como um mandarim, a tudo o que diziam.

— Música! Dêem-me música! — pedia o imperador. — Belo passarinho dourado, canta, peço-te que cantes! Dei-te ouro e coisas preciosas; pendurei o meu sapato dourado ao teu pescoço com as minhas próprias mãos. Canta, peço-te, canta!

Mas o pássaro estava silencioso; não havia ninguém para lhe dar corda, e sem corda não tinha voz. E a Morte continuava a olhar fixamente para o imperador com as grandes órbitas vazias. Tudo estava calado, terrivelmente calado.

Então de repente, perto da janela, soou a mais bela canção. Era o verdadeiro rouxinol, que se tinha empoleirado num ramo lá fora. Sabendo do mal do imperador, o passarinho tinha voltado para o confortar e trazer-lhe esperança.

À medida que cantava, as firmas fantasmagóricas foram desaparecendo, até se desvanecerem. O sangue começou a correr mais depressa pelo corpo do imperador. A própria Morte ficou presa à canção.

— Canta mais, canta mais, pequeno rouxinol! — pediu a Morte.

— Canto, se me deres a grande espada de ouro... sim, e a bandeira imperial... e a coroa do imperador...

E a Morte devolveu cada um dos tesouros em troca de uma canção e o rouxinol continuou a cantar. Cantou sobre o calmo adro da igreja onde cresciam as rosas brancas, onde as flores do sabugueiro cheiravam tão bem, onde a erva fresca está sempre verde por causa das lágrimas dos que ali choram os seus mortos. Então, a Morte encheu-se de saudades do seu jardim e saiu pela janela, flutuando como um nevoeiro gelado.

— Obrigado, obrigado! — disse o imperador. — Passarinho celestial, sei quem és! Eu bani-te do meu reino e, no entanto, só tu vieste ajudar-me, e afastaste os horríveis fantasmas da minha cama e libertaste o meu coração da Morte. Como hei-de recompensar-te?

— Já me recompensaste — respondeu o rouxinol. — Quando cantei para ti da primeira vez caíram-te lágrimas dos olhos e essa dádiva não posso esquecer. Essas são as jóias que não se compram nem se vendem. Mas agora tens de dormir para ficares bom e forte. Olha, vou cantar para ti.

E cantou e o imperador caiu num sono calmo e reparador.

O Sol brilhava sobre ele através da janela quando acordou, restaurado, desaparecidas a fraqueza e a doença. Nenhum dos criados tinha lá entrado ainda, porque todos pensavam que ele estava morto.

— Tens de ficar sempre comigo — disse o imperador. — Mas só cantas quando quiseres. E, quanto ao pássaro de corda, vou parti-lo em mil bocados.

— Não faças isso — respondeu o rouxinol. — Fez o que pôde por ti. Guarda-o. Eu não posso morar num palácio, mas deixa-me ir e vir à minha vontade, e à noite empoleiro-me neste ramo, junto da tua janela, e canto para ti. Hei-de trazer-te felicidade, mas também pensamentos sérios. Hei-de cantar sobre as pessoas felizes do teu reino, mas também sobre os que se sentem tristes. Cantarei sobre o bem e o mal, que têm estado sempre à nossa volta, mas que têm sempre escondido de ti. Os passarinhos voam em todas as direcções, até ao pescador, à casinha do trabalhador, até junto de tantos que estão longe de ti e da tua corte magnífica. Amo o teu coração mais do que a tua coroa, apesar de a coroa ter algo de mágico. Sim, hei-de voltar, mas tens de me prometer uma coisa.

— O que quiseres! — exclamou o imperador.

Tinha-se levantado e vestido as suas roupas imperiais e segurava a espada dourada junto do coração.

— A única coisa que te peço é isto: não digas a ninguém que tens um amigo passarinho que te conta tudo. É melhor guardar segredo.

E, com estas palavras, o rouxinol voou para longe. Os criados vieram ver o amo morto, mas ficaram ali espantados!

— Bom dia! — disse o imperador.

Fonte:
http://www.beatrix.pro.br/

Caco Xavier (Quadrinho Quadrado 1)

Fonte:
http://www.releituras.com

Janaína Lauxen (Um drink para a posteridade)


Estava tomando minha oitava cerveja, mas já estava bêbado desde a segunda. Beber com o estômago vazio faz mal, e eu sei, mas não tenho fome. Tenho sede, e de cerveja. Ainda mais depois que Ana me trocou por um sujeito que usa sapatos marrom-claros e gel no topete. Perdi completamente o apetite e o controle.

Larissa falava sem parar sobre como sua mãe era má, e seu namorado era um grosso, e seu emprego era uma porcaria, e sobre como era incompreendida, sofrida e maltratada.

Foi quando um estrondo lá fora emudeceu todo o bar — inclusive o Iggy Pop, que cantarolava na JukeBox.

Eu estava de costas para a porta, e num primeiro momento acreditei que alguém houvesse caído um tombo. Todos os dias os bêbados e os adolescentes bebem e lá pelas tantas caem tombos.

Só que não era um bêbado, nem era um tombo.

Alguma coisa havia despencado de algum apartamento, do prédio onde, no térreo, funcionava o bar. Só não alcançou o chão porque foi freado pelo telhado de lona, que cobria a porta de entrada do estabelecimento.

Ninguém estava sentado lá fora por causa da chuva. E demorou alguns segundos até que alguém resolvesse levantar e ir conferir o que, de fato, estava acontecendo. Mas bastou um se movimentar, após aquele compelido silêncio, para que todos se acotovelassem até a porta, desesperadamente curiosos.

— Que medo, meu! O que deve ser aquilo? — perguntava, aflita, Larissa, enquanto agarrava-se ao meu braço como se eu — logo eu — pudesse lhe proteger de alguma coisa.

— Devem ter jogado alguma coisa pela janela. Um sofá, talvez — respondi, sem prestar muita atenção no que estava falando.

— Porque alguém atiraria um sofá pela janela?

— Nunca se sabe.

Então alguém gritou:

— É uma mulher!

Uma mulher?

Levantamos alvoroçados. Por mais que atirar sofás pela janela não seja exatamente comum, por essa ninguém esperava: uma garota, com cerca de 20 e poucos anos, era retirada do toldo, agora parcialmente destruído.

— Ela está viva?

— Acho que sim, o toldo amorteceu a queda.

Abriram passagem, e o garçom já telefonava para a ambulância quando a infeliz recobrou os sentidos:
— O que...?

Todo mundo parou em pé a sua volta, calados, esperando.

Ela olhou para os lados, e finalmente pareceu entender o que havia acontecido:

— Com certeza eu não morri e isto aqui não é o céu, certo?

— Pode ter certeza que não — respondeu alguém.

— Merda — ela socou o chão sem muita força — Tentar se matar e não conseguir é o auge do fracasso.

Ninguém disse nada porque ninguém sabia o que dizer.

A ambulância estacionou espalhafatosa, e a moça levantou, aparentemente inteira:

— Mandem a ambulância de volta — falou, desagradada — Estou mais viva do que quando saltei.

O garçom explicou a situação para os médicos que, desconfiados, foram embora.

A garota, cujo nome nunca soube, caminhou até o balcão e pediu um conhaque: “Para a posteridade”, disse alto e sarcasticamente, já parecendo embriagada.

Talvez já estivesse.


Aos poucos, as pessoas foram voltando aos seus lugares, e não demorou para a JukeBox voltar a tocar. Voltei a pensar em Ana e Larissa voltou a resmungar. O garçom voltou a servir as mesas, e os bêbados voltaram a encher os copos.

Alguns minutos depois, parecia que nada havia acontecido.

Como se nenhuma garota de vinte e poucos anos tivesse tentado se matar, feliz ou infelizmente sem sucesso.

Como se esta garota não estivesse agora mesmo sentada ali, há poucos metros, furiosa pelo suicídio frustrado e certamente por todas as frustrações da vida de alguém com vinte e poucos anos.

Como se ela não estivesse com o copo de conhaque intocado na sua frente, há tempos observando seu fundo, como se quisesse ali se afogar.

Talvez não estivesse.

Nunca se sabe.
====================
Sobre a Autora
Janaína Lauxen (1985) é natural de Passo Fundo (RS). Participou de diversas antologias e, em 2009, lança seu primeiro livro, "Uma carta por Benjamin", pela editora Multifoco.


José Pinto (Lançamento do livro SANTINHO – Uma Vida Breve)



Tendo como pano de fundo, por um lado o regime militar, de triste memória, e por outro, os deslumbrantes cenários do Rio de Janeiro e das belíssimas paisagens de Cuba, desenrola-se a saga de SANTINHO Uma Vida Breve.

O ponto central da narrativa é a história de uma criança, nascida numa favela da Cidade Maravilhosa, que adotada por um casal de jornalistas, com eles forma uma família muito feliz. Até que forças ocultas da repressão, por motivos desconhecidos, lhes impõem uma implacável perseguição, culminando com a prisão do jornalista, sua degradação e a conseqüente expulsão do país. A violência, que atinge em cheio também sua família, desarticula suas vidas separando-os e jogando-os em um universo cruel e desconhecido. O jornalista encontra asilo em Cuba, onde por dez anos vive como um pária, cercado por um grupo de latino-americanos, que como ele, amargam a incerteza do destino e sofrem a humilhação do exílio. Sua mulher e o filho, que ficaram no Brasil, vivem o drama de suas próprias histórias! Histórias cheias de percalços, torturas, desesperanças e superação. São anos de intenso sofrimento, mas mesmo assim não lhes faltou coragem para continuar lutando contra a adversidade e cada um, desconhecendo o destino do outro, tenta se libertar daquela dramática sina que lhes foi imposta.

A volta do exílio, dez anos depois, a busca pelo que deixara para trás, e a tentativa de se readaptar e recomeçar uma nova vida é narrada pelo próprio jornalista de forma intensa e emocionante. E o final é surpreendente! Esta é uma história de ficção, mas os acontecimentos são tão reais, que poderiam ter sucedido com qualquer brasileiro que viveu naquela época. Para escrever esta saga foram feitas centenas de entrevistas e levantados fatos e acontecimentos que jamais chegaram ao conhecimento público. O autor pretende compartilhar com o leitor essas descobertas e também sua grande emoção ao compor esta obra.

SANTINHO, Uma Vida Breve, de José Pinto (402 pp., R$ 43,90), está disponível somente pela internet. O leitor deve acessar www.biblioteca24x7.com.br , para adquirir seu exemplar.

O livro está à venda também na Amazon.com: http://www.amazon.com/Santinho-Vida-Breve-José-Pinto/dp/8578930657/
=======================
Sobre o autor

José Pinto, ou Zépinto, profissional vinculado à área de comunicação por mais de trinta anos. Fotógrafo, Diretor de filmes publicitários, Produtor de longas metragens e Roteirista. Começou a carreira no final da década de 50 como Repórter Fotográfico no jornal Diário de Minas, em Belo Horizonte. Foi cinegrafista na extinta TV Itacolomy e na Minas Filmes. Atuou como Repórter Fotográfico free-lancer para jornais do Rio: O Dia, Ultima Hora e outros. Em São Paulo, trabalhou para Ultima Hora e para a Revista Claudia da Editora Abril, e outras. Fez parte da lendária equipe da Revista REALIDADE.

Na década de 70 montou um estúdio fotográfico dedicado à publicidade que logo se transformou numa produtora de filmes publicitários. Em quase três décadas de atividades produziu mais de dois mil comerciais, centenas de filmes institucionais, dezenas de curtas-metragens e alguns longas-metragens, entre eles,

O Rei da Noite, de Hector Babenco;
Nasce Uma Mulher, de Roberto Santos;
Pixote, de Hector Babenco.

Teve dezenas de filmes premiados em todos os festivais nacionais:
Premio Colunistas, Profissionais do Ano da Rede Globo, Festival Rio de Publicidade, Clube de Criação SP; Clube de Criação Rio; Fiap, Festival Latino Americano de Publicidade; Marketing Rural, e muitos outros concorreram e foram premiados nos festivais internacionais: Festival Internacional de Filmes Publicitários de Cannes; Clio; London Festival; Festival de Veneza; New York Festival e outros.

Desde 1995 trabalha como roteirista para o mercado publicitário e editorial. Tem mais de trinta roteiros de curtas e longas metragens escritos. Entre eles:
Amarga Decisão – longa-metragem.
Trágica Paixão - longa-metragem sobre a vida de Peixoto Gomide.
Maria Quitéria – longa-metragem sobre a heroína baiana da Independência.
Vôo Curto - curta-metragem de John Porciúncula-.
Em fase de acabamento curta-metragem de Ana Paula Bergo.
E Agora... – curta-metragem de Antonio Graco.

Tem também inúmeros contos à espera de edição, tais como:
Os Últimos Raios do Sol. Concorrendo a Talentos da Maturidade do Banco Real
Agulhas e Canções; O Canivete Suisso; Tudo por uma bola; O Afastado.

SANTINHO concorreu ao PAC- Programa de Apoio Cultural da Secretaria da Cultura de São Paulo, 2007 Prêmio Edição do Livro Pelo Escritor ficando com Menção Honrosa entre mais de 200 concorrentes.

Fonte
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece

Estação Cultura em Canoas/RS


O Estação Cultura é um antigo sonho que se torna realidade e reúne em um só lugar: música, livros, café e cultura.

Tem a proposta e o desafio de proporcionar, também, lazer cultural à cidade de Canoas. Boa música para um happy hour aconchegante, espaço cyber café e ótima literatura.

Eletrônicos portáteis, presentes e papelaria completam o mix, além, é claro, de uma livraria com acervo de qualidade, o que garante sofisticação e bom gosto.

O Estação Cultura não é apenas mais um lugar em Canoas/RS. É o Lugar que você merece há muito tempo!

Projetos sob a coordenação da escritora Neida Rocha.

Se você procura um local para passar bons momentos, ler um bom livro e ou escutar música de qualidade, acompanhado de um delicioso café: Seja bem vindo, será um prazer atendê-lo!

Rua Gonçalves Dias, 88 loja 4 – Canoas/RS

Fontes:
– E-mail de Neida Rocha
http://www.estacaocultura.com.br/

segunda-feira, 30 de março de 2009

Paulo Bentacur (Algumas Poesias)

Alex Matthiensen (Num cantinho da Lagoa
Ibirapuera, SC) [2007] aquarela
A PRIMEIRA NOVELA DE ERICO VERISSIMO

Amaro tem um piano.
Faz amor por aluguel.

Na pensão de Tia Zina,
fita a menina Clarissa
com nostálgica saudade
do amor que não viveu.

Um papagaio gasta o nome,
repetindo-o, sempre, sempre.
Clarissa tem um temperamento,
que a adolescência nem disfarça.

É primavera, os residentes
vêm de tantos lugares, são
tão diferentes que Amaro
perde-se em si mesmo, e
busca-se em camas sem
ilusão, em inocências
que só pode fitar,
à espera que o futuro
faça o presente dar frutos.

Amaro tem nome de luto.
Clarissa tem nome de sol.
Duas presenças opostas
que se encontram por acaso
como quem, fora de casa,
abana a um conhecido,
sorri, valeu, e é só isso.
=====================

DESPERTAR


Acordo sem um acordo com a manhã
que esguicha suas freadas já tão cedo,
e sem ceder a qualquer convite, ergo
o corpo já cansado antes dos medos
comuns a qualquer homem que caminha
entre as ruas ou mesmo entre a família.

A noite passou lenta e não me deu
sonhos, estremeções nem mesmo o peso
de um pesadelo a dar sentido ou temor
para o dia que se pretende poderoso.
Levanto, escovo os dentes, me submeto
à repetitiva água do chuveiro.

Debaixo do aguaceiro, ora quente,
ora frio, me arrepio: dia seguinte.
Ontem houve o que houve e não repete
nada, ainda mesmo que eu me esforce
na reprodução de um cotidiano.
(Arte a fixar para o amanhã.)

Tão cedo e, entre bocejos,
arquejo no esforço de pensar
que hoje é só o começo, sol penteado
no qual ruge a ordem desses tempos
empurrando-me como se tudo afinal
urgisse, por mais que eu tanto faça.

Não saberei quando parar no exato instante
em que parar. Caindo, o sol trará
a noite e, de novo, o inquieto
povoará o vencido lençol até que a luz
sacuda-o, amarfanhado rosto. O espelho
o denuncia sem que o acuda o banho.
===========================

ASCENSÃO E QUEDA DO DIÁLOGO

Um homem liga a tevê, o rádio, escuta o vozerio da rua.
Esse homem veste roupas que não combinam.
Aperta as mãos, sorri, goza o frio enervante da dúvida
em saber qualquer coisa que o conduza para algo
que se possa chamar de um lugar.
Nem precisa ser um destino.

Um homem que não conhecemos e que, cansado de si,
entende e aceita que não o verem não significa o fim
nem o começo de uma história, e portanto ele pode
continuar desse jeito, tevê, rádio e rua gritando
e ele nem aí, falando também, ao mesmo tempo,
sem que os outros escutem, imitando sua surdez.

Um homem que parece tudo, menos mudo – como tudo.
Que engole ávido a mudez a tomar conta do fluxo
de ruídos que explodem para o silêncio faminto.
=======================

CAFÉ

O marrom pleno,
quase negro.
O cheiro se evola,
o ar a bebê-lo,
enquanto olho
a xícara, a mesa
– eis minha missa
e um companheiro.

Sirvo o líquido,
aspiro o aroma,
e o beberico.
Sou homem rico
com tão pouco.
Preparo outro
e o estendo
até o amigo,
e digo: “toma”.

Nem é preciso.
As mãos seguram
a taça plena
que depois pousa
sobre a mesa.
Corpo aquecido
e o paladar
com um sabor
nunca esquecido.

Além da mente
a acordar
para o real
que ainda dorme
tão inocente.
Lá fora o dia
boceja, lento,
com sua fé.

Nada mais tem
até que alguém
beba um café.
Então, num salto,
põe-se em pé.

E é caminhar.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Pintura = http://www.flickr.com/photos/alex_matthiensen

Paulo Bentacur (A gênese do gênio)

John Faed (Shakespeare e seus contemporâneos) [1851]
O jornal era de circulação modesta, mas o anúncio impressionava: “Transforme-se num Shakespeare em seis meses. Curso de redação literária administrado pelo Professor Paiva.”

Paiva era bem relacionado, solteiro apesar dos circunspectos 57 anos, e além do anúncio pelo qual pagara R$ 490,00 reais para inserção diária na página 3, havia outros que davam autenticidade ao que o professor prometia. “Agradeço ao Professor Paiva por ter resolvido em meio ano o que mais de dez de prática literária constante não conseguiram. Hoje sou disputado por várias editoras.” Quem assinava o agradecimento público era um desconhecido, o que gerava desconfiança quanto à eficácia do método do Professor, mas isso Paiva explicava facilmente. Não ia um homem coberto pela glória expor-se assim; para tanto, utilizara-se de pseudônimo, registrando a gratidão justa e, ao mesmo tempo, preservando-se.

O fato é que em pouco tempo a agenda de Paiva não dispunha mais de datas: 83 alunos freqüentavam sua casa, revezando-se numa carga horária bastante puxada. Todos os dias, das 9 às 18h, Paiva recebia alguma promessa. Seu desafio era transformar essa promessa em realidade, desafio maior ainda se considerarmos que a maciça maioria não era promessa de coisa alguma.

Militares reformados com vida ociosa e fantasias beletristas, que mal sabiam redigir uma carta; senhoras viúvas, ou solteiras mesmo, que sonhavam em ocupar suas paredes com diplomas de menção honrosa; publicitários que dominavam as mumunhas da redação metida a esperta e engraçadinha e que queriam mais, bem mais. Paiva jurava que tinha mais.

Durante uns seis anos a casa de Paiva conviveu um movimento que as casas da vizinhança, mesmo aquelas dadas a festas nada ocasionais, ignoravam. Mas a constância dos alunos não repetia nomes, apenas quantidade. O Major Hipólito freqüentou aquele vetusto recinto uns três meses, e logo pediu baixa. Silvinho Cláudio, redator da Fala Ação, ficou menos tempo ainda, quatro semanas, e desistiu. Ismael dos Santos Bicalho, jornalista aposentado, foi um que entrou e saiu da casa do professor sempre disposto a entrar de novo. Não se convencia da ausência de progresso em seus textos. Culpava a si mesmo, não a Paiva, cujos esforços eram ingentes. Mas um dia Ismael cansou, ou talvez tenha ficado constrangido, nunca se sabe. Dona Élida Paranhos continuava, jamais falhou uma aula nesses seis anos, mas Élida era uma mulher de fibra, constante em tudo que fazia, e sua esperança, nada secreta, era tão vasta como vasta era sua carência, e a nada abandonava, nem sequer à decepção que sentia com as aulas de Paiva há mais de dois anos.

Enquanto mais de 75% dos alunos iam ficando pelo caminho, desistindo, dando o braço a torcer ao comentário de um parente que punha sérias dúvidas sobre o futuro do literato, os 25% que permaneciam, permaneciam porém com o ânimo arrefecido, sem forças sequer para debater o método do aplicado Paiva.

Os anúncios continuavam, e faziam aquele sucesso. Todos na cidade se admiravam que um homem pudesse transformar outro num Shakespeare, logo em quem. Mas depois de seis anos – o mundo é impaciente – os luminares da comunidade passaram a perguntar-se: falando nisso, quando é que vamos ver na prática o que a teoria tão entusiasticamente anuncia?

Nada viam surgir além dos nomes de sempre, os novos nomes de sempre, se se pode dizer assim, gente que estréia com cara de quem vai dependurar a chuteira no segundo livro, e é bom que dependure depressa, se pensa, quando não dependuram somente – mas já – no terceiro.

Enquanto isso, a cidade vizinha, com quatro universidades, três grandes jornais e sete nomes a ostentarem fortuna crítica a pô-los na lista dos cem maiores da literatura contemporânea do país (o que, somando todos, não dá meio Shakespeare), ia, de ano em ano, apresentando uma que outra novidade, a causar susto na pasmaceira geral. A novidade sacudia a rotina, ficava na vitrine algum tempo, até sumia depois, mas ficava o suficiente para dar a impressão aos conterrâneos de Paiva que o seu método não era lá essas coisas.

O próprio Paiva, homem sério, dedicado, cujo único pecado fora aceitar a oferta do departamento de Anúncios e Classificados do jornal em colocar também aquele outro tipo de anúncio, naturalmente forjado (garantir a própria sobrevivência trabalhando é de tal ordem que dispensa alguns escrúpulos), começou a ficar nervoso com a previsível queda de procura por seu curso. A queda se deu. Propaganda boca a boca, sabe-se, tem eficiência como nenhuma outra.

O Major falou com dezenas de ex-companheiros de caserna que aspiravam às letras, ao curso de Paiva, e que desistiram antes de tentar. Silvinho Cláudio até que foi piedoso, dispunha de um forte veículo, mas satisfez-se em dizer num único programa de televisão, um só, que o método de Paiva era ultrapassado, mais psicológico que literário, que era comovente, e risível, a teoria do Professor acerca da gênese do talento mais como bloqueio a ser rompido do que técnica a ser ensinada. Silvinho admitia que a idéia não estava errada, mas o papel do professor deveria ser outro, o de ensinar truques, formas, caminhos específicos, atalhos para a verdade estilística contida nos limites de cada um. O professor, no fundo, era apenas um simpático motivador, só isso. Motivação não era o que faltava àquela gente. Talvez faltasse talento, e ele independe de motivação, é outra coisa, mais obscura, menos relacionada ao caráter, ao contrário do que Paiva pregava.

O Professor, depois do programa, que, aliás, fora assistido unicamente por dois alunos seus – e ele tinha ainda 49 cândidos nomes que não ficaram sabendo do depoimento do publicitário –, decidiu acabar com tudo. Doía-lhe a derrota de ver aquela gente toda sem nenhum futuro. Doía-lhe os que haviam ficado pelo caminho. Doía-lhe, não sendo um Shakespeare, tentar fazer brotar nos outros o Shakespeare que nele não brotaria nunca. Sabia o que não fizera para que não brotasse, e gostaria de tentar, à exaustão, que seus alunos não cometessem os erros que ele cometera. Mas o mundo quer Shakespeares, precisa deles, e urgente. Seis anos é muito tempo.

Paiva tinha acumulado bons recursos durante aquele período. Podia, sem sangrar suas divisas, devolver o dinheiro dos 49 heróicos remanescente. Convocou-os em regime de urgência. Uma fila formou-se na entrada de sua casa.

Devolveu o que haviam pago como antecipação. Disse que nada podia fazer além do que eles mesmos poderiam. Sentia-se cansado, e cansaço é incompatível com criação. Quando se quer descansar é porque o mundo ou foi criado, ou foi destruído. Não pôde continuar falando.

Um vulto destacou-se do grupo que o ouvia falar. Era Élida Paranhos.

Deu um abraço comovido em Paiva.

– Gosto de ti, te acho um homem de bem, e isso vale mais que ser um gênio. Tá cheio de gênio por aí, mas homem de bem, não sei não.

O perfume de Élida era doce, porém suave, não pesava. Seu rosto branco estava levemente dourado pelo calor. Paiva não resistiu.

Beijou-a, esquecido de qualquer vergonha, e talvez já enamorado.

Aliás, nesse caso, nem Shakespeare resistiria. Nem Shakespeare.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Paulo Bentacur (1957)



Paulo (Roberto Ribeiro) Bentancur nasceu em Santana do Livramento, RS, em 20 de agosto de 1957. É escritor, poeta e crítico, praticando diversos gêneros, do infanto-juvenil à poesia. Foi editor da Imprensa Oficial do RS (2000-2002), quando, junto com o artista gráfico Antonio Henriqson, editou a revista cultural VOX XXI e Coordenador do Livro e Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.

Teve contos publicados na Argentina e na Itália.

Ganhou quatro prêmios Açorianos:
– 1995, categoria especial, a Instruções Para Iludir Relógios (um livro sem gênero);
– 1996, infanto-juvenil, a O Menino Escondido (Freud);
– 2004, categoria especial, como organizador de Simões Lopes Neto – Obra Completa;
– 2005, em poesia, para Bodas de Osso.

Ganhou dois prêmios especiais, Maria Bentancur, nascida em 1984, e Laura Marengo Bentancur, em 1999.

Trabalhou durante 20 anos em diversas editoras como revisor, preparador de originais, tradutor do espanhol e editor assistente. Atualmente presta serviços de assessoria editorial para diversas casas publicadoras.

Também ministra oficinas de criação literária e de leitura crítica, além de fazer palestras pelo País todo –acerca de sua obra, autores clássicos, questões relevantes à leitura numa nação que não lê e mistérios da arquitetura da narrativa.

Livros

Infanto-juvenis:
– Agulha ou linha, quem é a rainha? (Ed. Projeto, 1992, em 6ª edição)
– O menino que não gostava de histórias (Ed. Solivros, 1995, esgotado)
– As surpresas do corpo (Difusão Cultural, 1997);
– Quem não lê, não vê (Difusão Cultural, 1997);
– Os homens na caverna – Platão (Ed. Mercado Aberto, 1994; Ed. Artes e Ofícios, 2a ed. 2001);
– É lógico, pô! – Aristóteles (Ed. Mercado Aberto, 1994; Ed. Artes e Ofícios, 2a ed. 2001);
– O menino escondido – Freud (Ed. Mercado Aberto, 1995, Prêmio Açorianos 1996; Ed. Artes e Ofícios, 2a ed. 2001);
– O criador de monstros – Kafka (Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– As cores que tremiam – Van Gogh (Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– Entre o céu e a terra – Shakespeare (Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– A máquina de brincar (Bertrand Brasil, 2005; adotado pelo Governo do Estado de São Paulo através do PNLD);
– As rimas da Rita (Bertrand Brasil, 2005);
– O olhar das palavras (Bertrand Brasil, 2005).

Para adultos:
– Instruções para iludir relógios (contos/crônicas, Ed. Artes & Ofícios, 1994, Prêmio Açorianos 1995);
– A Feira do Livro de Porto Alegre – 40 Anos de História (ensaio, CRL, 1994);
– Os livros impossíveis (contos/crônicas, 00h00.com, Paris, França, 2000);
– Frio (contos, Ed. Sulina, 2001);
– Bodas de osso (poesia, Bertrand Brasil, 2005, Prêmio Açorianos 2005);
– A solidão do Diabo (contos, Bertrand Brasil, 2006).

Co-autoria:
– Rio Grande do Sul - Cenas e paisagens (legendas, com fotos de Eduardo Tavares; Ed. Sulina, 1997).

Obras coletivas:
– Nós, os gaúchos 2 (ensaios, Ed. da UFRGS, 1994);
– Amigos secretos (contos, Ed. Artes e Ofícios, 1994);
– A cidade de perfil (crônicas, Secretaria Municipal de Cultura, 1995);
– A magia das águas (ensaios, Ed. Riocell, 1997);
– Meia encarnada, dura de sangue (contos sobre futebol, Ed. Artes e Ofícios, 2001);
– A linha que nunca termina - Pensando Paulo Leminski (ensaios, Ed. Lamparina, 2005);
– Contos de bolso (minicontos, 43 autores gaúchos, Ed. Casa Verde, 2005);
– Contos de bolsa (minicontos, 47 autores gaúchos, Ed. Casa Verde, 2006);
– Contos de algibeira (minicontos, autores brasileiros e portugueses, Ed. Casa Verde, 2007);
FICÇÃO
- Histórias para o prazer da leitura (antologia dos 50 melhores contos da revista Ficção, Ed. Leitura, 2007).

Organização e anotações críticas:
– Obra completa, de Simões Lopes Neto (Ed. Copesul/Já editores/Sulina, 2003, Prêmio Açorianos 2004);
– Grandes personagens da literatura gaúcha (ensaios e coordenação editorial, Ed. Copesul/Aplauso, 2004).

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Paulo Bentancur em Xeque



Entrevista realizada por Danilo Corci, da Revista Speculum.

Crítico literário, poeta, contista, autor de romances e escritor infanto-juvenil, Bentancur conseguiu um feito hercúleo: transformar seu romance num dos grandes momentos culturais de 2006, ano que trouxe ao Brasil inúmeras bandas, exposições monstras, como a Bienal, e outros lançamentos literários relevantes. Óbvio que comparar suportes criativos diferentes é uma bobagem, mas ao extrair o sumo do que fica, "A Solidão do Diabo" é o ponto alto das novidades. Melhor ainda. Perene, pois mesmo agora, em 2007, sua leitura é mais do que recomendada.

Em 59 histórias, o livro faz uma inteligente incursão à cadência cínica e melancólica que, talvez, o suposto "homem contemporâneo" tem cultivado com tanta vontade. O "se segura malandro" brasileiro é implodido sob uma óptica muito mais afiada sobre o que nós mesmos estamos acostumados a encontrar na literatura brasileira. Menos Macunaíma, mais Constantine (mas esqueça o ícone pop), os anti-heróis brasileiros agora sentem frio e febre. Entretanto, melhor do que falar de um livro que já vem com a "Bíblia II" e com a história do homem que quer ser mágico e milagreiro só para ser muito mais cínico do que qualquer um poderia imaginar, é deixar o próprio autor falar sobre sua obra - ainda que, de fato, nem isso seria necessário já que o livro fala por si próprio.


Fale um pouco sobre sua trajetória literária. Como começou a vida de escritor?

Paulo Bentancur: Começou sem que eu mesmo percebesse. Era menino, 9, 10 anos, e já escrevia todos os dias. Quando fui ver, era tarde demais. Aos 16 já publicava em tudo que era jornal (contos, poemas, crônicas, resenhas). Demorei para lançar o primeiro livro apenas por excesso de zelo (o que nunca é demais). Mas o batismo das letras foi cedo. Ah, e minha formação, até mesmo por suas características de precocidade, foi de autodidata.

Existe algum escritor que exerce uma influência marcante no seu trabalho? Ou algum ícone não-literário

Vários escritores me influenciaram. O segredo é saber conduzir essa influência sem que ela cale a sua própria voz de escritor. Kafka, Cortázar, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Dalton Trevisan Rubem Fonseca, Bernardo Carvalho, Paul Auster. Isso na prosa. Na crítica, Paulo Hecker Filho, David Arrigucci Jr., José Paulo Paes. Na poesia, Manuel Bandeira, Drummond, Miguel Hernández, Federico García Lorca, João Cabral de Melo Neto e, mais recentemente, Paulo Henriques Britto.

Você também escreve para crianças. Qual é a diferença entre escrever um infanto-juvenil e um livro "adulto"? O que é mais complexo?

Para adultos, naturalmente, é mais complexo. Porque nos exige vir à tona, inteiramente. E o público adulto já está irremediavelmente sedado por uma série de vícios literários (entre os quais, a preguiça mental, mortal). O público infanto-juvenil é mais receptivo e dá mais prazer ao escritor, discutindo a obra em aula, em feiras de livro, em eventos ao ar livre.

"A Solidão do Diabo" não é seu primeiro livro, e notei que ele é bem consistente. Isso é resultado da tarimba, da experiência?

Isso é resultado de muuuuuito trabalho. O conto mais antigo foi escrito em 1997. O mais recente, em 2006. Logo, dez anos se passaram até o livro ficar pronto. A tarimba, a experiência, ajudam; porém, quando o escritor as usa para apressar seus resultados, dá com os burros n’água.

Como você separa todos estas multifunções que exerce: crítico, poeta, contista, romancista infanto-juvenil? Há muita interferência de estilos na hora de escrever?

Há todo o tipo de interferência, não só de estilos. De prazos, de estrutura, de público-alvo, de envolvimento do autor com o projeto. O crítico, na medida em que (por enquanto) se resume a resenhas e artigos em jornais, revistas e sites culturais do País, corre mais solto. Porém não custa lembrar que o perigo de cometer uma leviandade ao criticar a obra alheia é enorme. Então, muito cuidado, sr. crítico... O poeta vive quase ao acaso. O poema o assalta: ele, o poeta, é puramente uma vítima - que fica com o produto do assalto. Já o ficcionista, seja conto ou romance, pode ir se planejando melhor. O mesmo acontece (e com menos dificuldade) para o autor infanto-juvenil, ainda que escrever para crianças seja um delicado desafio: o de lidar com o tempo que é delas e não é nosso (o nosso, o da infância, já não serve como referência).

Voltando à "Solidão do Diabo": O Diabo realmente está só?

Sim. O Diabo é o homem, em última instância. E, mesmo pensando na metafórica figura do demônio-mor, em quem ele poderia confiar como um parceiro à altura de sua ambição e necessidades? O Diabo é um pobre-diabo...

Seus contos, mesmo que não sejam necessariamente existencialistas, parecem embebidos num existencialismo desencantado, meio "blasé", meio cínico. Você concorda com esta afirmação?

Concordo. Menos com o "blasé". O desencanto não esconde (filtra) sua amargura. E não pode existir amargura "blasé". Ela se dá ares (daí um certo cinismo), à procura de forças para resistir. Como disse Clarice Lispector, desistir de si mesmo é o único ato imoral. Meus personagens desistem de tudo menos da consciência crítica, esse crime radical, essa ação salvadora e, simultaneamente, condenadora. Meu "pós-existencialismo" repõe o "existir" como ser-tão-somente, e não como uma possibilidade de vida, o que seria um luxo. Já nem a morte assusta. Passamos desse ponto. Aí reside o escândalo.

Logo de saída, em "O Mágico do Azar", você já brinca com o caráter dúbio de um homem. É mais ou menos assim que você enxerga o homem contemporâneo?

Menos. O homem contemporâneo protege-se numa outra espécie de ambigüidade, em que o único papel que exerce é aquele que lhe abre as portas mais facilmente, e não papéis que ele tenha prazer em criar. Ou morbidez em criar. O homem contemporâneo não cria, não arrisca. Nunca a mesquinhez esteve a serviço de um sistema tão tacanho como agora. E a razão, hoje, é cínica por demais. Qualquer risco é chamado de loucura. Daí sermos uma fábrica de doentes mentais; no mínimo, de neuróticos.

Seus contos tem um magnetismo desfragmentador de idéias, comportamento, uma melancolia embutida, mesmo quando busca uma mão mais leve, como no conto do duelo de futebol na cidadezinha. A melancolia é um dos seus assuntos preferidos?

A melancolia é um estado natural de homens submetidos. Submetidos, simplesmente. A tudo. Que lhes resta senão a melancolia, quando os prazeres estão numa espécie de índex moral e a maioria é julgada e sentenciada sem direito a um mínimo de privacidade? O mundo exige que se passeie nu no canteiro central da avenida. E riem da nossa nudez. Então a escondemos com artefatos ridículos que desenham o imaginário de péssimo gosto da época. A melancolia, em suma, é a música calada que faz bater um coração cansado e lento.

Aliás, o futebol está bem presente nas histórias. Você é um torcedor daqueles sofredores ou apenas gosta de um jogo?

Sofredor. Meu time, o Internacional, acabou de sagrar-se campeão mundial interclubes. Acham que assisti ao jogo? Enfartaria se o fizesse. Fiquei paralisado, esperando a hora de terminar o que eu imaginava um massacre do Barcelona. Quando soube do resultado, nem acreditei. Até agora não acredito. Choro mais nas derrotas do que vibro nas vitórias. Mas é temperamento, não dêem bola.

"A Solidão do Diabo" vem com um grande destaque para "A Bíblia II". De onde surgiu a idéia de uma história como essa?

De um livro que sonho escrever, OS LIVROS IMPOSSÍVEIS. Idéia meio borgeana. Livros que nunca existiram: tipo SANCHO PANÇA SEM QUIXOTE, OS ESQUECIDOS (História sobre escritores de segunda categoria dos séculos XVIII, XIX e XX, totalmente esquecidos), e por aí vai...

Ainda sobre "Bíblia II". Seria este seu conto favorito? Apesar de todo o destaque dado na capa, por exemplo, acredito que outros, como "O mesmo ônibus" sejam ainda mais impactantes. Você concorda com isso ou não faz distinção?

Faço, claro. Há contos que prefiro mais a outros. "A Bíblia II" foi uma jogada editorial, para chamar o público. mas me parece um conto honesto, inventivo. Para meu gosto, prefiro "Como um Anjo", "Diante do túmulo de meu pai", "Ruínas", e, sim, o humor surpreendente de "O Mesmo Ônibus".

Moacyr Scliar escreveu o prefácio. De onde vem sua relação com ele? Parceiros literários?

Sempre gostei da literatura do Scliar. Natural que mostrasse a ele meus primeiros escritos. Ele me acompanha há uns 30 anos. Sabe bem das minhas possibilidades e, me parece, escreveu sobre elas.

Febre e frio. Por que da divisão? Como você organizou esta seleção de contos para cada um deles?

A seção "Frio" já estava pronta desde 2001, quando fiz uma ediçãozinha em separado, de circulação apenas regional. Como conseqüência inevitável, me parece, surgiu "Febre", o outro e o mesmo lado da questão, dependendo da ótica do leitor. A febre aí pode ser fria, e o frio, um arrepio na espinha, de quem sente o espírito e a carne queimarem.

Em "O Crítico" estaria você dialogando consigo mesmo?

Não. Foi uma homenagem que fiz a um grande crítico, generoso, corajoso, que metia medo nos carreiristas de sempre. O escritor que o evita é que fica mal aos olhos do leitor, acredito.

Qual sua história favorita de "A Solidão do Diabo", aquela que você mandaria para alguém como amostra de seu trabalho?

"Como um Anjo".

Por quê? Qual o segredo contido ali?

Acho que o livro é tão porrada, tão punk, dark, down, etc., que o anticlímax contido ao longo de "Como um Anjo", a opção por uma vida de omissões, a paz da paz (essa antítese do êxtase, essa escolha pela não-escolha, essa morte em vida sem a sombra insuportável da tragédia), francamente, considero a idéia um achado. O conto TRAI o livro, pega o conjunto no contrapé. E, creio, vai deixar o leitor desnorteado. Daí eu gostar tanto dele. Bem, e o ritmo, cuidadoso, musical - literatura para mim é ritmo, antes de enredo. Ah, e criar um personagem sem trama alguma, pô, isso é que é desafio. Bom, e o "Crusoé". Tem tuuuudo a ver com a atmosfera que o meu espírito respira.

Como você definiria seu estilo literário?

À queima-roupa com uma (ou várias) músicas ao fundo, tocando sem parar. Realismo perturbado de poesia.

Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Muitas. O mercado quer é exotismo (lá fora compram o Brasil da Amazônia, da Bahia, da MPB; aqui compram o Islã, que está na moda). Literatura de qualidade, ainda mais de autor nacional, vende muito pouco, quase nada. Mal conseguimos driblar o prejuízo. E a resposta está na pergunta que você fez: "um país que está bem longe de ser um apreciador de livros". Eu completaria "de bons livros", já que bobagem, como ficções para se matar o tempo (quando deveríamos ganhá-lo, com coisas reveladoras, transformadoras) são o que mais vende. Os besta-sellers.

Por fim, como você vê a literatura brasileira contemporânea? Quais são os escritores que você indicaria para uma leitura atenta?

Vejo muito bem em produção, não em consumo. Eu indicaria W. J. Solha e seu incrível "História Universal da Angústia", várias histórias de crimes hediondos da humanidade recontadas de forma brilhante; Rubem Mauro Machado e um livro que interessa a todo jovem e adulto, uma história de formação, moral, emocional, amorosa: "A Idade da Paixão"; Vicente Franz Cecim e seu inclassificável "Ó Serdespanto" (assim mesmo, sem espaço), um livro que mistura filosofia, narrativa, lendas, poesia - e que acho que vai além da literatura que conhecemos. Coisa inovadora de fato! Além disso, é bom conferir Bernardo de Carvalho, Chico Buarque (o cara escreve bem mesmo), Daniel Galera ("Mãos de Cavalo"), Paulo Scott ("Senhor da Escuridão"), Luiz Ruffato ("Vista Parcial da Noite"), Flávio Braga ('O Que Eu Contei A Zveiter Sobre Sexo"). Bom, a lista vai ficar grande demais. Porque a literatura brasileira está se mostrando grande.

Fonte:
Revista Speculum. http://www.speculum.art.br/ , em 16/03/2007.

Theófilo de Amarante (Extractos de composição)

Salvador Dali (Cabeça nas Nuvens)
Se o Ego não fosse um computador!
Andaríamos com pilhas de alfarrábios na cabeça
que se enterraria no chão,
pela coacção do peso
e a complexidade das mensagens.

Se o estômago não fosse uma fábrica gástrica.
Teríamos no ventre,
portas e janelas dum enorme armazém de comidas e bebidas.
Estaríamos sujeitos à complexidade da conservação
e ao peso da gestão.

Se os olhos fossem uma máquina fotográfica.
Passariam a maior parte do tempo no quarto escuro,
revelando as imagens que absorve.
Viveríamos relembrando pontos fixos
sem ver a complexidade evolutiva.

Se a audição fosse um centro de gravação.
Teríamos nos ouvidos,
um auditório tão amplexo
que ouviríamos somente o boato da nascente
e o urro da morte.

Se o corpo não fosse o universo.
Seriamos diluídos nos esquemas da anteposição.
O Ego, o estômago, os olhos e a audição.
Vagariam nas trevas desunidos
na procura da união.
------------------
Fonte:
Colaboração do autor.

domingo, 29 de março de 2009

Eno Teodoro Wanke (Poesia)


Não gostava de poesia. Pelo menos dizia não gostar. E dizia que não gostava porque – por fantástico que possa parecer – jamais tinha lido um poema. Na verdade, não tinha o hábito da leitura.

Um dia, porém, deparou com um livro aberto sobre a mesa de jantar da pensão. Outro hóspede o deixara ali, esquecido.

Leu a primeira frase. Achou esquisita, mas agradável. Leu a segunda. Não era má. Leu a terceira – e viu que a última palavra rimava com a palavra de fecho da primeira.

Levou um pequeno susto. Era um poema, o que estava lendo!

Hesitou. Prosseguiria na leitura?

Decidiu continuar para ver no que dava. Leu o quarto verso.

é. Era interessante.

Continuou a ler. Deliciou-se. Passou para o poema seguinte. Não é que era bom?

Foi assim que o cidadão Diogo Albuquerque Mendonça perdeu para sempre o direito de dizer que não gostava de ler poesia.

Fonte:
WANKE, Eno Teodoro. Caminhos: minicontos. 1.ed. RJ: Plaquette, 1992, p.35.
Imagem = CD Rom Digeratti.

Nelson Saldanha D’Oliveira (No Embalar das Trovas)

Luciano de Oliveira (Casal no Balanço)
Se queres um mundo aberto,
Compreensivo num segundo,
É preciso abrir primeiro
O teu coração ao mundo.

Se em troca do teu afeto
Exiges o afeto meu,
Já não tens razão de queixa
O meu coração é teu.

Passei toda minha vida
Buscando a felicidade,
No final só encontrei
Um punhado de saudade.

Primavera estação mágica
Cheia de luz e de amores,
Torna a vida mais alegre
E salpicada de flores.

Na praia ondas rolavam,
Alegremente a cantar,
Parecia até namoro
Das areias com o mar.

Recordo a vida do campo
Com ternura e com saudade,
Pois á só encontrei amigos,
Afeição, muita lealdade.

O amor se assemelha à flor,
Sem regar pode morrer,
Deixando apenas lembranças,
Perfume do bem-querer.
========
Fontes:
Antologia dos Acadêmicos: edição comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.
Pintura =
http://fazendoarteemfeira.blogspot.com

Nelson Saldanha D’Oliveira (1919)



Professor, contador, jornalista escritor e orador.

Nasceu em Curitiba (PR), a 1 de novembro de 1919, filho do escritor, historiador e engenheiro Dr. Bernardino d”Assunção Oliveira e Da. Francisca Saldanha d’Oliveira.

Foi agraciado em 1980 com o título de Cidadão Honorário de Ponta Grossa, onde prestou serviços como Diretor de Cultura do Município.

Membro de:
– Centro de Letras do Paraná
– Centro Cultural Euclides da Cunha (Ponta Grossa)
– Instituto Genealógico Brasileiro (SP)
– Associação Internacional da Imprensa (Montevidéu – Uruguai)
– Presidente da Academia de Letras José de Alencar (PR)
– Governador do Elos Internacional da Comunidade Lusíada, Distrito Elista (DE) 05.

Publicações:
– Cidade de Curitiba (Curitiba: O Formigueiro, 1983)
– Prelúdio de Idéias e de Palavras (Curitiba: Editora do Autor, 1945)
– Lysimaco F. Da Costa – Homem de Ciência, Mestre Erudito (Curitiba: Academia de Letras José de Alencar, 1962);
– Páginas de Seis Vidas (Ponta Grossa: Planeta, 1986).
– Páginas de Seis Vidas – livro em Braile (Curitiba: Centro de Informática para Deficientes Visuais Prof. Hermann Gorgen, 2000)
entre outras.

Fontes:
Antologia dos Acadêmicos: edição comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.
Capa do Livro = Paisagem Campestre Paranaense de Albano Agner de Carvalho.
Fotografia para o blog = José Feldman

sábado, 28 de março de 2009

97* Aniversário de Nascimento de Luís Antônio Pimentel

Fotomontagem = José Feldman

Antônio Augusto de Assis (Cadeira de Poesias)


Carnaval

É sexta-feira,
véspera da folia.
Lá vai Maria.

Lá vai lavar em lágrimas
a vida ávida de vida,
sofrida vida dividida
em dívidas e dúvidas.

É sábado, é domingo,
é segunda, é terça gorda.
Roda no asfalto o samba,
geme o povo em sobressalto.
Roda rotunda a moça moma,
peitos nus lançando chamas.
Gemem bocas de crianças,
barrigas ocas
mendigando mamas.
Roda impávido o desfile
na avenida multicor.
Gemem pálidos
rostos esquálidos
desfilando a dor.
O sonho roda, geme o horror.

O samba-enredo, o medo em roda.
A serpentina, o ser penante.
A passarela, o pária ao lado.
O palanque, a pelanca.
O pandeiro, a pancada.
O sambeiro, o sem-nada.
O tamborim, o camburão.
O saxofone, o saque-sem-fundo.
A fantasia, a mão vazia.
A apoteose, a verminose.
A alegoria, onde a alegria?

O trilo do apito,
o grito do aflito,
o confete, o conflito.

É quarta-feira, cinzas.
Lá vai Maria.
Lavai, Maria.
Lavai o mundo, Maria.
Lavai o imundo,
mundo imundo vasto mundo,
lavai o mundo, Maria!
––––––––––––––––––––
Luolhar

Duas luas
viu Ismália
na noite em que enlouqueceu:
“viu uma lua no céu,
viu outra lua no mar”.

Bem mais louco,
vejo três,
quando me ponho a cismar:
a terceira é a que flutua
tentadoramente nua
na noite do teu olhar.
–––––––––––––––––

Terceira infância

Meu neto
me disse um dia:
— Converse comigo, vô,
mas converse como amigo,
mais amigo do que vô.

Desfez-se logo a distância.

Conversamos.
Conversamos.
Conversamos.

Ele na primeira,
eu na terceira infância.
=====================

Aurora bela

Da janela do meu quarto
vejo Aurora na janela.

Toda tarde, à mesma hora,
Aurora lá.
Que será que ela olhará?

Aurora, Aurora,
Aurora bela,
bela Aurora da janela,
Aurora
de olhar sem fim...

Se sobrar uma olhadinha,
por favor, olha pra mim!
===========================

Por um beijo

Por um beijo eu lhe dou o que sou e o que tenho:
os bons sonhos que sonho, as plantinhas que planto,
a pureza, a alegria, as cantigas que eu canto,
e o meu verso se acaso houver nele arte e engenho.

Por um beijo eu lhe dou, se preciso, o meu pranto,
as angústias da luta em que há tanto me empenho,
as saudades da infância e do chão de onde venho,
as promessas que eu faço em segredo ao meu santo.

Por um beijo eu lhe dou meus anseios de paz,
minha fé na ternura e no bem que ela faz,
meu apego à esperança e ao que a possa manter.

Por um beijo, um só beijo, um momento de amor,
eu lhe dou meu sorriso, eu lhe dou minha dor,
o meu todo eu lhe dou, dou-lhe inteiro o meu ser!
------

Fontes:
- A Cadeira. Revista Virtual. Ano 2. N.4 Out/nov/dez 2008. Academia Niteroiense de Letras. (Prata da Casa). http://www.academianiteroiense.org.br/
- Fotomontagem em cima do logotipo da revista virtual A Cadeira = José Feldman

sexta-feira, 27 de março de 2009

Comemoração de Aniversário da Biblioteca Comunitária Prof. Waldir de Souza Lima (Itu)

CONVITE

O PONTO DE LEITURA - Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima - tem o prazer de convidar V. Sa. e família para a comemoração de um ano de atividade, a ser realizada no dia 28 de março de 2009 (sábado), a partir das 16 horas na sede localizada à Rua Floriano Peixoto, 238 - Centro - Itu (SP).

Na ocasião acontecerá um Sarau Literário e Musical com a presença dos grupos Coesão Poética (Sorocaba), Sarau Largo 13 (São Paulo), Cia. Teatral Metamorfose (Itu) e Apotheke Blues Band (Itu).

Contamos com sua presença. A entrada é gratuita.
Fonte:
Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima

Bolsas de pesquisa em Portugal



A Cátedra Jaime Cortesão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, está oferecendo bolsas de estágio de pesquisa em Portugal. As inscrições vão até o dia 31 de março.

A cátedra, criada em 1991, tem entre seus objetivos promover o desenvolvimento de pesquisas no campo da história e cultura de Portugal e do mundo de língua portuguesa. Com apoio do Instituto Camões, selecionará cinco pesquisadores interessados em bolsas de duração máxima de dois meses para a realização de pesquisas em arquivos, bibliotecas ou centros de memória e documentação em Portugal durante 2009.

O auxílio de 700 euros por mês se destina ao custeio da permanência em Portugal (diárias). Os candidatos devem estar inscritos em programas de pós-graduação (em nível de mestrado ou doutorado).

O processo seletivo ocorrerá em duas fases. Para se inscrever, os candidatos devem apresentar os documentos indicados até o dia 31 de março. Com base na análise dos documentos, no dia 13 de abril serão divulgados os selecionados na primeira fase, que serão convocados para entrevista.

Valor do auxílio:

700,00 € (euros) / mês

Duração:

Um ou dois meses, de acordo com o interesse e o plano de trabalho do candidato.

Prazos de inscrição

05/03/2009 a 31/03/2009 inscrição no processo seletivo – nos dias e horários indicados

13/04/2009 divulgação do resultado da primeira fase

22 a 24/04/2009 entrevistas com os candidatos

30/04/2009 divulgação do resultado final

Documentos para inscrição:

1. ficha de inscrição preenchida - disponível no site da cátedra

2. projeto de pesquisa (mestrado, doutorado ou pós-doutorado);

3. plano de trabalho em Portugal (descrevendo as atividades a serem realizadas, como entrevistas, pesquisas em arquivos, bibliotecas e/ou centros de memória e documentação), com definição do período almejado para a viagem e aceite do orientador;

4. carta-convite de um pesquisador em Portugal;

5. duas cartas de recomendação de pesquisadores reconhecidos no Brasil;

6. comprovação (declaração) de inscrição em programa de pós-graduação;

7. histórico escolar da graduação;

Envie e-mail, com todos os documentos e ficha de inscrição anexos, de preferência, de segunda à sexta-feira, das 11h às 19h.

O e-mail não deve conter texto, apenas arquivos, um para cada documento e ficha de inscrição
O título do email deve ser: INSCRIÇÃO (SEU NOME) Exemplo: INSCRIÇÃO PAULO TIAGO

Aguarde o e-mail de confirmação da inscrição e sigas as instruções nele contidas.

Mais informações: www.fflch.usp.br/cjc e (11) 3091-1511/2010 (das 11h às 19h).

Fontes:
Douglas Lara.
http://www.sorocaba.com.br/acontece
http://www.fflch.usp.br/cjc/bolsas/bolsaportugal2009/index.html

quinta-feira, 26 de março de 2009

Arioswaldo Trancoso Cruz (1942) poesias


Contraponto

Eu fui feliz quando te vi cantando,
Como feliz eu fui quando sorrias.
Na tua vida fui-me abandonando,
Nos teus caprichos consumi meus dias.

Hoje, tu passas, nem sequer notando
Este coitado em quem tu te valias
Quando, de angústia, muita vez chorando,
Neste ombro amigo as mágoas desfazias.

Mas, pouco importa se tudo esqueceste,
Pois, de nós dois, somente tu perdeste
Quando, afinal, me deste liberdade.

Um coração magoado injustamente,
Compreende logo que uma dor mordente
É o contraponto da felicidade
--------------------------

Despertando

Não temo este universo em que desperto
Da fuga interminável de sonhar,
Quando nem consegui reter por perto
Fragmentos do estar, ou do passar.

Foi um completo turbilhão, deserto
De valores vitais em que apoiar
O leque de experiências em aberto
Que nunca me cabiam vivenciar.

Pressinto já momentos de beleza,
Numa vida juncada da certeza
Multiforme do despertar seguro,

Que é saudade agridoce o sonho albino
Deste misto de humano e de divino
Cujo ser se projeta no futuro.
--------------------------------
Sobre o Autor

Filho de Bernardo Cruz e de Oscália Trancoso Cruz, nasceu em Morretes, Paraná, em 29 de julho de 1942. Sua formação acadêmica e profissional foi realizada em Porto Alegre, onde viveu dos 7 aos 38 anos de idade. Retornou ao Paraná, em Curitiba, em 1980, atuando alguns anos no comércio de panificação.

Professor de Filosofia e História na Rede Pública Estadual de Ensino.

Poeta, artesão e desenhista.

Integrante das entidades culturais:
- Centro de Letras do Paraná;
- Academia de Letras José de Alencar (atualmente como presidente)
- Sala do Poeta do Paraná

Possui sonetos premiados por estas entidades curitibanas, além de poesias publicadas em periódicos locais e no livro "Poetas e Poesias de Ouro", da Editora Litteris, Rio de Janeiro.

Fonte:
Antologia dos Acadêmicos. Edição Comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.

72. Aniversário do Nascimento de Affonso Romano de Sant'Anna

Fotomontagem = José Feldman

Affonso Romano de Sant'Anna (O vôo da águia)


Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa tipo "propostas para um novo milênio", como o fez Ítalo Calvino. Mas à$ vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos. Ei-lo:

"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.

Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.

Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.

A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos."

Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".

Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos inunda com sua luz.

Este texto vale mais que mil ilustrações.

Sei como é difícil uma nova ou surpreendente idéia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.

A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·

Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas de sua personalidade.

Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.

Já mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.

O ano está começando.

Mais grave ainda: um século está se iniciando.

Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.

Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.

Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.

Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.” ·

Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.

Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.

Então a águia, digamos, acabou de descasar.

(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)

Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.

(Tem que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)

Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.

(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)

Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.

(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)

Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.

(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)

Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.

Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.

Época de metamorfose.

Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.

Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.

Mas que fique sempre no azul o imponderável vôo da águia.

Fontes:
Jornal “O Globo”. Segundo Caderno, 3 de janeiro de 2001.
Imagem = http://blog.cancaonova.com/

Affonso Romano de Sant'Anna (1937)



Affonso Romano de Sant'Anna nasceu em 27/03/1937, em Belo Horizonte - MG

É um caso raro de artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.

Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.

Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória.

Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista “Imprensa”, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país.

Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país. Trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e apesar das dificuldades impostas pela ditadura realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a “ Expoesia” - evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira.

Durante sua gestão, pela primeira vez no país a chamada literatura infanto-juvenil passou a ser estudada na universidade e a ser tema de teses de pós-graduação. Foram também abertos cursos de Criação Literária com a presença de importantes escritores nacionais.

Foi autor, dentro da universidade, de trabalhos pioneiros sobre música popular, como o livro "Música popular e moderna poesia brasileira".

Como jornalista trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil (pesquisa e copydesk), Senhor(colaborador) ,Veja(critico), Isto É(Cronista), colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi cronista d da Manchete e do Jornal do Brasil . e está n'O Globo desde 1988.

Considerado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond, realmente substituiu este último como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. E foi sobre Carlos Drummond de Andrade a sua tese de doutoramento (UFMJ), intitulada:"Drummond, o gauche no tempo", que mereceu quatro prêmios nacionais.

Nos duros tempos da última ditadura militar, Affonso Romano de Sant'Anna publicou corajosos poemas nos principais jornais do país, não nos suplementos literários, mas nas páginas de política . Poemas como “ Que país é este?” (traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão), foram transformados em “posters”, aos milhares, e colocados em escritórios, sindicatos, universidades e bares.

Nessa época produziu uma série de poemas para a televisão (Globo) .Esses poemas eram transmitidos no horário nobre, no noticiário noturno e atingiam uma audiência de 60 milhões de pessoas.

Como presidente da Biblioteca Nacional — a oitava biblioteca do mundo, com oito milhões de volumes — realizou entre 1990 e 1996 a modernização tecnológica da instituição, informatizando-a, ampliando seus edifícios e lançando programas de alcance nacional e internacional.

Criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reúne 3.000 instituições e o PROLER ( Programa de Promoção da Leitura), que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios em 1991 lançou o programa “Uma biblioteca em cada município”.

Criou na Biblioteca Nacional os programas de tradução de autores brasileiros, de bolsa para escritores jovens e encontros internacionais com agentes literários.

Seu trabalho à frente da Biblioteca Nacional possibilitou que o Brasil fosse o país-tema da Feira de Frankfurt( 1994), o país-tema, na Feira de Bogotá(1995) e no Salão do Livro( Paris, 1998).

Lançou a revista “Poesia Sempre”, de circulação internacional, tendo organizado números especiais sobre a América Latina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha.

Foi Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas(1995-1996), que reúne 22 instituições desenvolvendo amplo programa de integração cultural no continente.

Foi Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe-CERLALC), 1993-1995.

Como poeta participou do “International Writing Program”(1968-1969) em Iowa, USA, dedicado a jovens escritores de todo o mundo.

Tem participado de dezenas de encontros internacionais de poesia. Esteve no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia(2005) , realizou uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda (2004), esteve na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins (1996), na Casa de Bertold Brecht, em Berlim (1994), no Encontro de Poetas de Língua Latina (1987), no México, no Encontro de Escritores Latino-americanos em Israel (1986).

Mereceu vários prêmios nacionais destacando-se o da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo "conjunto de obra".

Foi júri de uma série de prêmios internacionais como o Prêmio Camões (Portugal/Brasil), Prêmio Rainha Sofia (Espanha), Prêmio Peres Bonald (Venezuela), Prêmio Pégaso/Mobil Oil (Colômbia/USA), Reina Sofia (Espanha).

Diversos textos seus foram convertidos em teatro, balé e música e tem diversos CDs de literatura gravados com sua voz e na voz de atores diversos.

Sua obra tem sido objeto de teses de mestrado e doutorado no Brasil e no exterior.

Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tiradentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont.

É casado com a escritora Marina Colasanti.

Prêmios Literários:
. "Prêmio Mário de Andrade" - Com o livro "Drummond, o gauche no tempo."
. "Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal" - Com o livro "Drummond, o gauche no tempo."
. "Prêmio União Brasileira de Escritores" - Com o livro "Drummond, o gauche no tempo."
. "Prêmio Pen-Clube" - Com o livro "O canibalismo amoroso"
. "Prêmio União Brasileira de Escritores" - Com o livro "Mistérios Gozosos"
. "Prêmio APCA-Associação Paulista de Críticos de Arte", pelo conjunto de obra

OBRAS DO AUTOR:

Poesia

. "Canto e Palavra"- 1965 - Imprensa Oficial de Minas Gerais
. "Poesia sobre Poesia"- 1975 - Imago/RJ
. "A Grande Fala do Índio Guarani"- 1978 - Summus Editorial/SP
. "Que País é Este?"- 1980 - Civilização Brasileira - 1984 - Rocco/RJ
. "A Catedral de Colônia e Outros Poemas"- 1987 - Rocco/RJ
. "A Poesia Possível" (poesia reunida) - 1987 - Rocco/RJ
. "O Lado Esquerdo do Meu Peito"- 1991 - Rocco/RJ
. "Epitáfio para o século XX" (antologia) - 1997 - Ediouro/SP
. "Melhores poemas de Affonso Romano de Sant'Anna - Global/SP
. "A grande fala e Catedral de Colônia" (ed. comemorativa) -1998 - Rocco, Rio
. "O intervalo amoroso" (antologia). - 1999 - L&PM/Porto Alegre
. "Textamentos" - 1999 - Rocco/RJ
. "Vestígios" - 2005 - Rocco/RJ
. "A cegueira e o saber" - 2006 - Rocco/RJ

Crônicas:
. "A Mulher Madura"- 1986 - Rocco/RJ
. "O Homem que Conheceu o Amor"- 1988 - Rocco/RJ
. "A Raiz Quadrada do Absurdo"- 1989 - Rocco/RJ
. "De Que Ri a Mona Lisa?"- 1991 - Rocco/RJ
. "Mistérios Gozosos"- 1994 - Rocco/RJ
. "A vida por viver" - 1997 - Rocco/RJ
. "Porta de Colégio" (antologia) - 1995 - Ática/SP
. "Nós os que matamos Tim Lopes" - 2002 - Expressão e Cultura
. "Pequenas seduções" - 2002 - Sulina
. "Que presente te dar" - 2002 - Expressão e Cultura
. "Antes que elas cresçam" - 2003 -Landmark
. "Os homens amam a guerra" - 2003 - Francisco Alves
. "Que fazer de Ezra Pound" 2003 - Imago

Ensaios:
. "O Desemprego da Poesia"- 1962 - Imprensa Universitária de Minas Gerais
. "Drummond, o "gauche" no tempo" - Record/Rio - 1990
. "Política e Paixão"- 1984 - Rocco/RJ
. "Análise Estrutural de Romances Brasileiros" - 1989 - Ática/Petrópolis
. "Por um novo Conceito de Literatura Brasileira"- 1977 - Eldorado/RJ
. "Música Popular e Moderna Poesia Brasileira" - 1997 - Vozes/Petrópolis
. "Emeric Marcier "- 1993 - Pinakothec/RJ
. "O Canibalismo Amoroso"- Rocco/RJ - 1990
. "Paródia Paráfrase & Cia."- 1985 - Ática/SP
. "Como se Faz Literatura "- 1985 - Vozes /Petrópolis
. "Agosto 1991: Estávamos em Moscou"- 1991 - Melhoramentos/SP (com Marina Colasanti)
. "O que aprendemos até agora?" - Edutifia, São Luís, Maranhão (1984). Ed. Universidade de Santa Catarina - SC, 1994
. "Barroco, alma do Brasil." - 1997 - Comunicação Máxima/Bradesco, RJ
. Reeditado em inglês, francês e espanhol , 1998
. A sedução da palavra(ensaio e crônicas). Letraviva. Brasili, 2000
. Barroco, do quadrado à elipse. Rocco,Rio, 2000
. Desconstruir Duchamp, Vieira e Lenti Casa Editorial, 2003

Fonte:
http://www.cronicascariocas.com.br/