quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Moacir C. Lopes (Estante de Livros)

ONDE REPOUSAM OS NAUFRAGOS

Em seu romance de estréia, Maria de cada porto, Moacir C. Lopes conta a pungente história de um grupo de náufragos cinco dias à deriva no mar juntando esforços para continuarem vivos. Em Onde repousam os náufragos, vai além: não é a própria morte que seus personagens precisam evitar, mas o desaparecimento de um navio que deu sentido a suas existências.

O velho cargueiro Jaraguá, há onze anos encalhado no manguezal à margem do delta do Beberibe, além de cargas, transportou passageiros e histórias, algumas comoventes, outras de arrepiar. Quando seu afundamento é decidido, todos os que passaram por suas cobertas se levantam. Não é, como à primeira vista parece, apenas um monte de ferro velho que pretendem defender: é preciso preservar aquela base para o infinito reencontro de desejos e de destinos.

TRECHO DO LIVRO

A beleza é eterna, Lorena, se ela fica gravada em nossa memória, no instante em que a contemplamos, num rosto, num olhar e num sorriso como os seus, ou na tela de um grande pintor, num poema, numa prece, numa página lírica de amor, ou mesmo numa fotografia, eterniza-se no momento em que foi criada. Assim, Dario pensou ao contemplá-la, e até baixou a cabeça para ela não decifrar a intensidade do seu pensamento. Também ela baixara a cabeça, e ainda rolavam uns pingos de lágrimas, porque ambos, agora, voltam a ser a página lírica de amor.
––––––––––––––––––––

POR AQUI NÃO PASSARAM REBANHOS

Sexto e mais alegórico romance de Moacir C. Lopes, Por aqui não passaram rebanhos nos convida a refletir sobre o tempo, a transitoriedade do homem e a eternidade simbolizada pela pedra.

Na linha explícita do realismo mágico, o livro sugere que, enquanto busca sua definição como ser completo, o homem é um monstro em transição. Inspirado no Parque das Sete Cidades, no Piauí, cujas antiqüíssimas formações rochosas lembram seres petrificados, conta a história de um homem despojado do passado que não sabe o que o espera no futuro.

Longe da civilização e em meio a uma região inóspita, Emiliano refugia-se numa caverna onde encontra Selene, jovem bela e sedutora que o espera há três mil anos. Ele se apaixona e tenta a todo custo embarcar no tempo dela para viverem juntos para sempre. No processo, conhece o Sumé, um velho aguadeiro cujo animal carrega tonéis furados no lombo. Por onde vai pingando a água dos tonéis, nasce uma floresta onde crianças se tornam adultos em questão de minutos. Eles dividem o mesmo espaço, mas seus tempos são desencontrados.

No final, de alguma maneira Emiliano se torna eterno, mas nem ele arriscaria dizer se ficou mais próximo da redenção ou da ruína.

TRECHO DO LIVRO

Emiliano não sabe quanto tempo caminhou. Vem de longes caminhos.

Um dia uma mulher morreu nos seus braços e os habitantes de seu povoado, em bandos de caçadores, com armas e cães, o seguiram até o meio da floresta, como fera que estivesse ameaçando o mundo. E ele era apenas uma criança. Nem trazia o contágio da doença que matara aquela mulher. Arrastava consigo apenas o contágio de sua própria espécie.

Muito depois, outra mulher, jovem, morreu nos seus braços. Também esta o amava, e ofertava-lhe o corpo cada noite. Antes, ela lhe dissera: eu vou morrer. E ele falou: vamos. A minha morte será mais longa que a tua. Assim, a partir desse dia, Emiliano começou a morrer. E não sabe quando completará a sua morte.

A última lembrança foi de uma criança com quem conviveu. Não lhe dera nome, nem sabe se chegou a ser sua filha, esposa ou irmã, só recorda que ela estendia-lhe as mãos porque queria convivência. Quando ficou adulta e julgou que já conhecia o mundo, um dia, na bifurcação de dois caminhos, ela seguiu o outro.

Foi esquecendo os gestos aprendidos, porque não conseguiu mais entender seus semelhantes, se aprendeu a sorrir também não sabe. Surpreendeu-se algumas vezes de mãos estendidas mas logo as contraía, envergonhado de querer, de pedir ou mesmo de ofertar-se. Só restava caminhar.

Lembrou-se que, por onde havia passado, o mundo era todo pertencente, cada metro quadrado de chão fora medido, entre um e outro havia faixas que diziam: passe por aqui, cuidado. E cada pedaço do mundo era de alguém que criara um idioma próprio para poder comunicar-se com os rebanhos que lhe pertenciam. Se ele caminhava por um quadrilátero e sua sombra se projetava no quadrilátero vizinho, taxavam bem caro a invasão de sua sombra.

Então, do alto do promontório, contemplando o vale, disse: por aqui não passaram rebanhos. Seguirei por aqui.

Assim, como se o corpo não lhe pertencesse e fosse trapos que espalhara, as estrelas perto do seu rosto, velando seu cansaço, adormeceu sono profundo
–––––––––––––––-

GUIA PRÁTICO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA

Neste Guia, Moacir C. Lopes refaz parte de sua trajetória literária, ensinando a candidatos a escritores o caminho das pedras. Trata-se de um curso completo, que inclui desde uma breve história da literatura, em que gêneros e estilos são comentados, a dicas de como produzir um texto literário com correção, qualidade e original.

De tudo o que é explicado, são dados exemplos, o que torna o Guia mais prático do que acadêmico. Fundamental para professores de literatura e promotores de oficinas literárias. E imprescindível para quem quer aprender a escrever como um mestre.

TRECHO DO LIVRO

Na verdade, somos descendentes diretos daquele hominídio, caçador, do período Paleolítico Superior (cerca de 50 mil anos) que, ao abater uma fera no campo, resolveu gravar no tronco de uma árvore, raspando-o com presas da própria fera, o seu grande feito. Desenhou a figura representativa da fera e a dele mesmo, empunhando a arma utilizada.

Era a primeira mensagem ideográfica.

Tal representação expressava muitos significados, tanto para ele mesmo , como para outros grupos que por ali passassem, e poderiam raciocinar:

a) Um caçador abatou uma ferra. Neste local existe esta espécie de fera.

b) Ele utilizou uma flecha e com ela a venceu. Portanto, essa espécie de animal pode ser abatida por outro caçador, se utilizar a mesma arma.

c) Se esse caçador teve a idéia de nos transmitir seu feito, nós temos a mesma capacidade de transmitir os nossos.

d) Esse único signo pictográfico e ideológico era também um sinal mágico, por ser capaz de transmitir várias idéias aos outros homens e ensinou que, através de outros desenhos, os homens poderiam transmijtir outras idéias, que se desdobrariam infinitamente.

e) Nascia assim o primeiro texto.

Fonte:
www.moacirclopes.com.br

Moacir C. Lopes (1927)


Com o nome de batismo Moacir Costa Lopes, nasceu em 11 de junho de 1927, em Quixadá, Ceará. Perdeu o pai aos 2 anos de idade e a mãe aos 11. Fez seus estudos em Quixadá, Baturité, Fortaleza, posteriormente no Rio de Janeiro. Optou por não concluir estudos regulares, para se dedicar inteiramente à literatura, criando seu próprio método de criação literária, do que resultou seu livro de ensaio/didático Guia prático de criação literária, editado em 2001, pela Quartet Editora. Desde criança, leitor compulsivo de Literatura de Cordel e de folhetins literários que chegavam a Quixadá.

Por sofrer constantes maus tratos do tio, com quem foi morar com os irmãos Mário e Maria de Lourdes, foge de casa, em 1942, seguindo para Maranguape, passa a trabalhar e morar numa estalagem, onde faz poesia e escreve cartas por encomenda, a dinheiro, para mercadores em trânsito. Localizado pelo tio, regressa a Fortaleza e ingressa na Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará em dezembro de 1942.

Já como marinheiro, em plena Segunda Guerra Mundial, viaja para a Base Naval de Natal, de lá para Recife, embarcando no encouraçado São Paulo, vindo depois para o Rio de Janeiro. Embarca em vários navios, em missões de comboios e patrulhamentos navais, especializando-se em tática anti-submarina e radar. Viaja por toda a costa brasileira e outros países, como Uruguai, Paraguai, Argentina, Trinidad-Tobago, República Dominicana, Cuba, Estados Unidos, sobe o rio Amazonas, o rio Paraguai, o rio Mississipi, conhece muitas ilhas, duas das quais, o Atol das Rocas e a Ilha das Trindade, o inspirarão no tema de dois de seus futuros romances.

Enquanto embarcado, além de praticar esportes como box e basquetebol, escreve poesias diariamente e entusiasma-se pela literatura, passa a ler em viagem as primeiras obras de ficção, começando pelos clássicos franceses, depois russos, portugueses, ingleses, e por fim os brasileiros antigos e contemporâneos, além de estudos críticos, filosofia, e antropologia e obras de cultura geral. E os poetas. Em todos os navios em que servia criava uma biblioteca com doações de livros pelos colegas. Com intervalos, nos portos, para viver as aventuras comuns de marinheiro e conviver com os mais variados tipos humanos.

Escreve, em 1944, um romance, que não chega a concluir. Viajando a Porto Alegre, procura Érico Veríssimo; na cidade de Natal, em 1946, procura Luís da Câmara Cascudo, que, ouvindo seus planos literários, lhe sugere escrever sobre a vida dos marinheiros. Começa a escrever, em 1949, a bordo do contratorpedeiro Baependi, onde trabalha na secretaria como datilógrafo, o romance Maria de cada porto, com o qual vem a estrear em dezembro de 1959.

Residindo no Rio de Janeiro desde 1944, passa a colaborar no jornal Humaitá, da Associação dos Marinheiros, com poemas e crônicas, jornal embargado em 1949, e definitivamente fechado em 1964. Mesmo sendo os marinheiros proibidos de estudar, por ordem do então Ministro da Marinha, estudou música no Liceu de Artes e Ofícios, por pretender ser também violinista, e fez o curso completo de Inglês, no Westminster English Course, e a extensão de outros cursos de humanidades. Dá baixa da Marinha de Guerra em novembro de 1950, por conclusão do tempo de serviço.

Passa a trabalhar no comércio, inicialmente como datilógrafo, depois como gerente de compras, gerente de vendas, professor de vendas e de Relações Públicas, fez traduções de obras de alguns autores do idioma inglês para a Seleções Reader’s Digest. Ainda trabalhando no comércio, publica os romances Maria de cada porto (1959), obtendo os prêmios “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras, e “Fábio Prado”, da União Brasileira de Escritores, São Paulo, Chão de mínimos amantes (1961), Cais, saudade em pedra (1962), A ostra e o vento (1964), Belona, latitude noite (1968), todos eles com grande repercussão no Brasil e no exterior, além de traduções na Tchecoslováquia, na Rússia, na Bulgária, na Itália, radioteatralizações na Polônia e em Portugal.

Deixando de trabalhar no comércio, foi colaborador da Enciclopédia Delta Larousse, sob a direção de Antônio Houaiss. Passa a dar aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e na Faculdade Hélio Alonso, nas áreas de Comunicação Social, Jornalismo, Relações Públicas. Em 1969, funda a Editora Cátedra, com a escritora Eduarda Zandron, editora pela qual publicam cerca de mil autores nacionais, a maioria estreantes.

Casa-se com a escritora Eduarda Zandron, nascendo-lhes os filhos Fábio Martins Lopes, em 1968, e Saulo Martins Lopes, em 1973. Seu filho Fábio, que aos dez anos publicou o livro de poesia, Da janela do quarto andar, e, aos quinze anos, a minibiografia Montezuma, o Imperador Asteca, já advogando enquanto cursava Direito na UERJ, professor de Inglês aos dezoito anos, vem a falecer em janeiro de 1989, aos 20 anos, cuja doença e falecimento originou o livro de sua mãe Eduarda Zandron, Ninguém me disse que ia ser fácil (Relato de uma mãe sobre 87 dias de tortura de seu filho condenado por leucemia), publicado em 1990.

Continuou a construir sua obra literária, hoje com vários volumes e reedições (ver adiante, “Edições e reedições de seus Livros”). Além de fartamente adotada em colégios, é estudada nos meios universitários brasileiros e estrangeiros, de que resultaram teses de doutoramento no Brasil e nos Estados Unidos. Em 1978, foi realizado, com sua presença para dissertações e debates, um Simpósio sobre toda sua obra, na Universidade do Arizona, e palestras nas universidades de Santa Bárbara, San Diego, na University of California at Los Angeles – UCLA, e University of Southern California – USC, também em Los Angeles, California, Estados Unidos.

Tem participado de congressos, simpósios e conferências sobre literatura em todo o País, jurado de concursos literários, inclusive do “V Cine Ceará – Festival Nacional de Cinema e Vídeo”, em 1995. Presidente do Sindicado dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro, de 1994 a 1997, reassumiu a presidência para a gestão 1998/2001, onde presidiu também o Conselho Editorial do jornal Tribuna do Escritor.

Seu romance A ostra e o vento, que, desde seu aparecimento, despertou grande interesse em vários cineastas brasileiros e estrangeiros, foi adaptado para o Cinema, em 1997, sob o mesmo título, com roteiro e direção de Walter Lima Jr.

Lança, pela Quartet Editora, no ano 2000, seu novo romance O Almirante Negro (Revolta da Chibata – A Vingança), além da sétima edição brasileira de A ostra e o vento. Em 2001, além da oitava edição de A ostra e o vento, pela Quartet Editora, sai a sua edição italiana, L’ostrica e il vento, em tradução de Gian Luigi De Rosa, Salerno, Itália. Também em 2001, é editado seu livro Guia prático de criação literária, ensaio/didático, pela mesma Quartet Editora, que lança também, em 2002, a nona edição de Maria de cada porto, e, em 2003, seu nono romance, Onde repousam os náufragos. Lançou, em 2006, As fêmeas da Ilha da Trindade, e, em 2007, A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos, além da reedição de outras obras suas atualmente esgotadas, como, em 2009, a terceira edição do seu romance Cais, saudade em pedra. Tem escritos, para publicação oportuna, dois volumes de suas reminiscências, ainda sem título definitivo, e prepara seu décimo segundo romance, a ser editado em 2010, entre vinte e um livros já editados, incluindo ensaios e literatura infantil.

Livros
A Ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos
Por aqui não passaram rebanhos
As fêmeas da Ilha da Trindade
Onde repousam os náufragos
Guia prático de criação literária
A Ostra e o Vento
Maria de Cada Porto
O Almirante Negro – Revolta da Chibata , A Vingança
Calígula – Minibiografia desse imperador romano. (1982, 72 pgs.)

A Dança do Tarô – Texto teatral-poético, encenado com coreografia de Clarice Pinto Lopes, utilizando a simbologia de cada carta do Tarô, com dança acompanhada de texto. (1994, 44 pgs.)

Antologia de Contistas Novos (Seleção, apresentação e notas), edição do Instituto Nacional do Livro, 1971, 2 volumes, 432 pgs., em formato de bolso.

O Capital ao alcance de todos – Texto resumido de O Capital de Karl Marx, mantendo a essência e a súmula das idéias contidas na obra original, inclusive adaptando seus cálculos à moeda brasileira corrente. (1986, 212 pgs.)

Chão de mínimos amantes, romance, 1961
Cais, saudade em pedra, romance, 1963
Belona, latitude noite, romance, 1968
O navio morto in Os Dez Mandamentos, novela, 1968
As viagens de Poti, o Marujinho, infanto-juvenil, 1974
A pedra das sete músicas, infanto-juvenil, 1976
A situação do escritor e do livro no Brasil, ensaio, 1978
O passageiro da Nau Catarineta, romance, 1982
O navio morto e outras tentações do mar, contos, 1995
Moacir C. Lopes e sua obra - 40 anos de literatura, biobibliografia, 2000

Fonte:
http://www.moacirclopes.com.br/

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Trova 109 - Héron Patrício (São Paulo/ SP)


Vicência Jaguaribe (Minipoemas)



A ESPERANÇA

A esperança é a última que morre.
A minha nasceu prematura
E foi a primeira a morrer.

SONHO

Alguns metros de tule
Um espaço aberto
Passos de balé clássico.
Toca estridente o despertador.

REMORSO

Ânsia de vômito
Tontura
Dor de cabeça
- Uma enxaqueca psicológica.

DESILUSÃO

Dançarinos de tango no salão.
Bandoneon tocando Por una cabeza.
Tomba a cabeça do bandoneonista.

DOR FÍSICA

A sensação da impotência.
A certeza da dependência.
Um esgar e um gemido.
A vida suspensa por algum tempo.

A DOR PSICOLÓGICA

A dor entalada na garganta
exige uma providência.
Como foi parar na garganta
esta dor que nasceu
em um momento impróprio?
E existe momento próprio
Pra dor nascer e florescer?

O DIA SEGUINTE

O dia seguinte...
Há dias para os quais
não deveria haver um dia seguinte:
o da morte de uma pessoa amada,
o de uma derrota ou o de uma decepção,
o do Natal.
O dia seguinte é avassalador
como um tsunami.

A INFÂNCIA

Um à vontade
uma espontaneidade
com tempo marcado
uma eterna brincadeira.

Então, digam por que
existem traumas de infância?

ESCÁRNIO

Arrancaste de mim a alegria.
Amputaste-me a vontade de viver.
Decepaste-me a confiança.
O corpo esquartejado
expuseste ao escárnio público.
Ao menos deste aos restos mortais
a bênção de uma sepultura?
––––––––
Fonte:
Colaboração da autora.

Moacyr Scliar (Cego e Amigo Gedeão à Beira da Estrada)


— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?

— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.

— Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.

Este que passou agora não foi um Ford?

— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.

— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.

É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?

— Não, Cego. Foi uma lambreta.

— Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.

Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!

Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este que passou não foi um Mercedinho?

— Não, Cego. Foi o ônibus.

— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.

Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?

— Não. Foi um Volkswagen 1964.

— Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época j á costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?

— Não, Cego, não foi um Candango.

— Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.

Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!

— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.

— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?

— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.

— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:
"Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?"

— "Mais ou menos às três da tarde, Cego" — respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada.

Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?

— Não, Cego. Foi um Volkswagen.

— Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" — "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" — perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys?

— Não, Cego. Foi um Chevrolet.

— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?

— Não, Cego. Foi um Ford 1956.

Fontes:
Para Gostar de Ler. V. 9 . SP: Editora Ática, 1984.
Imagem =
http://antigosverdeamarelo.blogspot.com

Moacyr Scliar (O Escritor em Xeque)



Entrevista dada ao Jornal Estado de Minas

1) Então você leu muitos livros sobre a história de Minas para escrever na noite do ventre, o diamante? Como se deu este processo?

Li, sim, muitos livros. Mas é importante notar que a pesquisa para fins de um trabalho científico (coisa que, como médico, também escrevo) é diferente da pesquisa para um trabalho ficcional. No primeiro caso trata-se de transmitir informações, com referência bibliográfica inclusive; mas, se o escritor de ficção fizer isso, será uma chateação. Portanto, na hora de escrever, trato de "esquecer" tudo o que li. A informação histórica deve estar diluída no romance, como um pano de fundo. A prioridade cabe à ficção.

2) Quando você recebeu o convite para participar da Coleção Cinco Dedos de Prosa, a história do diamante, que o "perseguia", já estava mais ou menos delineada na sua cabeça?

Já estava bem delineada. Eu havia partido de um episódio histórico; quando os hebreus estavam cercados pelos romanos muitas vezes engoliam moedas para evitar que o dinheiro caísse nas mãos do inimigo. Daí veio a idéia de um diamante que é engolido por um menino, membro de uma família judia que está fugindo da Rússia para o Brasil. Àquela altura veio o convite da Editora Objetiva. Meu primeiro impulso foi de recusá-lo, mas, antes de desligar, resolvi perguntar qual era o dedo que faltava. Era o anular. Instantaneamente o diamante "instalou-se" num anel e ali estava a história, praticamente pronta.

3) Você tem participado de várias iniciativas que mostram a profissionalização do mercado para a literatura no Brasil (coletâneas, coleções, contos para livros teóricos como A história da cidadania). Existe um mercado sustentável para a literatura no País?

Existe um mercado em expansão que cresce sobretudo graças ao público juvenil. As escolas hoje estão trabalhando, e com muita criatividade, autores contemporâneos e isto aumentou substancialmente o número de leitores. Mas ainda é difícil viver exclusivamente só de literatura no país. É mais fácil viver de escrever - livros, e também artigos, crônicas, roteiros... Porém não creio que seja decisivo para um escritor viver só de literatura. Kafka, por exemplo, tinha um emprego de tempo integral, mas isso não impedia que à noite e nos horários de folga produzisse grande literatura.

4) É possível perceber, de uns anos para cá, o fortalecimento dos mercados regionais, sobretudo do Sul do País. Pode-se falar em "literatura gaúcha" como um capítulo específico da moderna literatura brasileira?

Certamente, mas dentro de literatura gaúcha temos de diferenciar a literatura regionalista (aquela de um Simões Lopes Neto, por exemplo) que utiliza sobretudo o linguajar da fronteira e a literatura histórica, como a feita por Érico Veríssimo em "O Tempo e o vento". É uma literatura de grande vitalidade, porque a história do Rio Grande não raro passa por momentos dramáticos e também porque o gaúcho é um personagem muito característico. Por último, mas não menos importante, é um Estado de gente culta, que lê bastante, o que ajuda a formar um público leitor.

5) Em alguns dos seus romances há a mescla de personagens históricos como fictícios (Oswaldo Cruz, Noel Nutels, Espinosa).A História ainda reserva boas histórias?

E como! É um filão inesgotável. Agora: é importante visitar a História com o olhar ficcional de hoje. Não se trata de "recuperar" o passado - isto é coisa para historiadores; trata-se de recria-lo ficcionalmente. Não é a História que foi, é a História que poderia ter sido. São as emoções do passado transpostas para o presente.

6) A tradição da literatura judaica está presente em muitos países, em alguns, como os EUA, de forma significativa. Como vê a situação no Brasil, que outros autores podem ser alinhados no que se convencionou chamar de literatura judaica (Samuel Rawet, Clarice Lispector?)

No Brasil, a literatura inspirada na tradição judaica é menos presente nos Estados Unidos, pela simples razão de que naquele país o número de judeus é várias vezes maior. Mas nós também tivemos a experiência da emigração. E esta experiência, nos dois países, é muito parecida. A propósito, lembro um encontro que tive com o Saul Bellow, recentemente falecido, na Universidade de Chicago, onde ele lecionava. A conversa, que começou difícil, por causa do meu embaraço, acabou tomando um rumo inesperado. Bellow, um homem elegante, amável, quis saber de onde eu era, de onde vinham meus pais. Ficou encantado ao saber que eu era filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; era essa também sua origem. Só que os pais dele tinham se dirigido para o Canadá, onde nascera, na cidade de Lachine, em 1915, radicando-se depois nos Estados Unidos.

Claramente era um escritor que, sendo profundamente americano (um escritor de Chicago, para ser mais preciso), valia-se de sua herança cultural para entender melhor a realidade do país. Não era um caso isolado; o mesmo acontecia com outros escritores, Norman Mailer, Bernard Malamud, Philip Roth, que inauguraram, nas palavras do crítico Irving Howe, um novo tipo de regionalismo, não geografico, como aquele através do qual William Faulkner retratou o sul dos Estados Unidos, mas sim étnico. A verdade é que o imigrante recebe uma espécie de compensação por sua condição de marginal da cultura; ele é dono de um olhar privilegiado, um olhar que lhe permite enxergar a realidade do país de maneira diferente. Muitos descobrem assim novas oportunidades de ascensão econômica e social: o caso dos imigrantes que criaram a indústria cinematográfica; outros tornam-se revolucionários e outros ainda enveredam pelo caminho da literatura e da arte. De qualquer modo é uma situação original, que serve como fonte de inspiração. A isto deve-se juntar a tradicional veneração judaica pela palavra escrita e o peculiar humor - aquele humor melancólico, filosófico, que serviu, para um grupo perseguido e amaeaçado, como defesa contra o desespero.

7) Você é um dos escritores brasileiros que mais andam por aí participando de palestras, seminários, congressos, etc. Como faz para administrar tantos compromissos e ainda continuar com o mesmo ritmo de produção?

Organização é fundamental. Na ficção a imaginação pode, e deve, voar solta; mas a vida real tem calendário, tem horários. Compatibilizar essas coisas às vezes dá muito trabalho, mas eu o faço com prazer, mesmo porque escrever é um ato eminentemente solitário. O teclado do computador é diferente do teclado do piano: não dá uma resposta imediata sob a forma de música. Com os leitores um diálogo é possível. Eles tem uma curiosidade que se traduz em numerosas perguntas: de onde surgem as idéias para os textos? Como se escreve um romance, planejando a história, ou deixando que os personagens tomam as rédeas da ação? Você tem horário para escrever?

Para os escritores, por outro lado, o contato com leitores, sobretudo jovens, pode ser muito gratificante. Não é, claro, essencial para o ofício da literatura, ainda que desses encontros possam nascer idéias para textos. É outra coisa. Sobretudo em países como o nome o escritor desempenha papel importante como intelectual, como pessoa que procura entender o seu tempo e transmitir o resultado desse entendimento a seus contemporâneos. Mas o contato com o público não deve ser visto só como uma tarefa intelectual. É antes de mais nada um encontro agradável; e exatamente por ser agradável desmistifica o escritor, mostra que este é um ser humano igual a todos os outros, com as mesmas preocupações e as mesma emoções. O papo leitor-escritor é uma troca emocional. A pergunta fundamental a um jovem que leu um texto não é: "O que quis o autor dizer?", mas sim: "O que sentiste lendo esse texto?". A emoção abre caminho para o entendimento. E emoção, ao menos em minha experiência, é o que não falta nos encontros com o público.

Leia sobre Na noite do Ventre, o Diamante, em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/moacyr-scliar-na-noite-do-ventre-o.html

Fonte:
http://scliar.org/moacyr/

Alberto de Oliveira (Caderno de Poesias)


O ÍDOLO

Sobre um trono de mármore sombrio,
Em templo escuro, há muito abandonado,
Em seu grande silêncio, austero e frio
Um ídolo de gesso está sentado.

E como à estranha mão, a paz silente
Quebrando em torno às funerárias urnas,
Ressoa um órgão compassadamente
Pelas amplas abóbadas soturnas.

Cai fora a noite - mar que se retrata
Em outro mar - dois pélagos azuis;
Num as ondas - alcíones de prata,
No outro os astros - alcíones de luz.

E de seu negro mármore no trono
O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.

(Canções românticas, 1878.)

VASO GREGO

Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia
Então, e, ora repleta ora esvazada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

(Sonetos e poemas, 1886.)

VASO CHINÊS

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o.
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,
Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura;

Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a,
Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.

(Sonetos e poemas, 1886.)

A JANELA E O SOL

"Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende."

E, fechando mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: "Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abri-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!"

(Sonetos e poemas, 1886.)

ASPIRAÇÃO

Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;

Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;

Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se e cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;

E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus,
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;

Ser palmeira, depois de homem ter sido! est’alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;

E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques treme,
e estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E, como um pavilhão, velo lá em cima eu só

Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais - homem - dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!

E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
- Poeta - bramir então à noturna bafagem
Meu canto triunfal!

E isto que aqui não digo então dizer: - que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremedas;

E pedir que, ou no sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de ti!

(Versos e rimas, 1895.)

SOLIDÃO ESTRELADA

Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,

Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?

Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!

Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...

Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.

Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!

E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?

Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!

(Poesias, 2a série, 1906.)

O PIOR DOS MALES

Baixando à Terra, o cofre em que guardados
Vinham os Males, indiscreta abria
Pandora. E eis deles desencadeados
À luz, o negro bando aparecia.

O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia,
Todos os Vícios, todos os Pecados
Dali voaram. E desde aquele dia
Os homens se fizeram desgraçados.

Mas a Esperança, do maldito cofre
Deixara-se ficar presa no fundo,
Que é última a ficar na angústia humana...

Por que não voou também? Para quem sofre
Ela é o pior dos males que há no mundo,
Pois dentre os males é o que mais engana.

(Poesias, 2a série, 1906.)

CHEIRO DE ESPÁDUA

"Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.

Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!

Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.

E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!"

(Poesias, 3a série, 1913.)

SONETO

Agora é tarde para novo rumo
Dar ao sequioso espírito; outra via
Não terei de mostrar-lhe e à fantasia
Além desta em que peno e me consumo.

Aí, de sol nascente a sol a prumo,
Deste ao declínio e ao desmaiar do dia,
Tenho ido empós do ideal que me alumia,
A lidar com o que é vão, é sonho, é fumo.

Aí me hei de ficar até cansado
Cair, inda abençoando o doce e amigo
Instrumento em que canto e a alma me encerra;

Abençoando-o por sempre andar comigo
E bem ou mal, aos versos me haver dado
Um raio do esplendor de minha terra.

(Poesias, 4a série, 1928.)

VESTÍGIOS DIVINOS

(Na Serra de Marumbi)

Houve deuses aqui, se não me engano;
Novo Olimpo talvez aqui fulgia;
Zeus agastava-se, Afrodite ria,
Juno toda era orgulho e ciúme insano.

Nos arredores, na montanha ou plano,
Diana caçava, Actéon a perseguia.
Espalhados na bruta serrania,
Inda há uns restos da forja de Vulcano.

Por toda esta extensíssima campina
Andaram Faunos, Náiades e as Graças,
E em banquete se uniu a grei divina.

Os convivas pagãos ainda hoje os topas
Mudados em pinheiros, como taças,
No hurra festivo erguendo no ar as copas.

(Poesias, 4a série, 1928.)

DENTRO DO SONHO

Tanto de sonho lhe hão chamado a vida
Que por sonho eu a tenho e me convenço
Que tudo nela é sonho, breve ou extenso,
Pouco importa, querida.
Foi sonho aquela vez primeira que nos vimos,
A última sonho foi; sonho o primeiro abraço
Em que os dois nos unimos;
Sonho o dia em que tu entraste por meu braço
Num templo, e logo após na casa que foi nossa;
Sonho o ver-me então moço e o ver-te também moça...
Vinte anos todos de felicidade!
E de improviso tudo acaba, tudo...
Mas esta dor sem fim, esta saudade,
Aquele golpe rudo,
Tredo e medonho,
- Devo-me conformar - não passou tudo
De um sonho que sonhei dentro do grande Sonho.

(Poesias, 4a série, 1928.)

A CASA DA RUA ABÍLIO

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.

(Poesias, 4a série, 1928.)

A ALMA DOS VINTE ANOS

A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos...

Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.

(Poesias, 4a série, 1928.)
--------------------

Alberto de Oliveira (1857-1937)


Antônio Mariano de Oliveira (Palmital de Saquarema, RJ 28 de abril de 1857 — Niterói, 19 de Janeiro de 1937), brasileiro da região fluminense, foi um poeta, professor, farmacêutico, secretário estadual de educação, membro honorário da Academia de Ciências de Lisboa e imortal fundador da Academia Brasileira de Letras. Adotou o nome literário Alberto de Oliveira no livro de estréia, após várias modificações dispersas nos jornais.

Seu pai, mestre-de-obras, transferiu residência para o município de Itaboraí, onde construiu o teatro. De origem humilde, Antônio foi, seguindo o irmão mais velho, à Capital da Província, trabalhar como modesto vendedor. Ambos moravam num barracão aos fundos da casa comercial do Sr. Pinto Moreira, em Niterói, vizinhos do pintor Antônio Parreiras, ainda anônimo, com 17 anos, que lembra, ancião, o contato com o "moço" "de andar firme e compassado".

Diplomou-se em Magistério e Farmácia, cursando Medicina (vindo a conhecer Olavo Bilac), até o terceiro ano, mediante grande esforço pessoal, o que lhe rendeu emprego na Drogaria do "Velho Granado". Também abriu um colégio em Niterói.

Após a glória literária, destacou-se na política como Oficial de Gabinete do primeiro Presidente de Estado/RJ eleito José Thomaz da Porciúncula (1892-1894), do Partido Republicano Fluminense, marcadamente prudentista e antiflorianista [1], com a pasta de Diretor Geral da Instrução Pública do Rio de Janeiro, equivalente ao atual Secretário de Estado de Educação. Durante a transferência da Capital do Estado de Niterói para Petrópolis (1894), devido às insurreições e revoltas pró e contra a Proclamação da República, permaneceu na Cidade Imperial Serrana, já que a excelência de seu trabalho o manteve no cargo durante o mandato de Joaquim Maurício de Abreu (1894-1897). Foi Professor de Português e Literatura no Colégio Pio-Americano (1905) e na Escola Dramática e Escola Normal (1914), dirigida por Coelho Neto.

Participou da famosa "Batalha do Parnaso", ocorrida no Diário do Rio de Janeiro entre 1878 e 1881 contra o Ultra-romantismo piegas e já desgastado, junto com Teófilo Dias, Artur Azevedo e Valentim Magalhães, resgatando as origens do Romantismo dialogadas com aqueles novos tempos. Reunidos em torno de Artur de Oliveira, num café da Rua do Ouvidor, eram integrantes da vanguarda Idéia Nova, ao lado de Fontoura Xavier, Carvalho Jr. e Affonso Celso Jr., que lhe prefaciou o Livro de Ema (deslocado da 1a. para a 2a. série das Poesias). Inspirados na Arte Moderna da França — feita por Théophile Gautier, Théodore de Banville, Charles Baudelaire e Leconte de Lisle, os "Tetrarcas" do Parnasianismo —, e, secundariamente, em Sully Prudhome e José-Maria de Heredia, fizeram todos a maior revolução na poesia brasileira até então, importantíssima para a consolidação da Modernidade do Brasil, no tocante à literatura, a partir da eleição do Novo como valor e da Ruptura como sistema, tradição.

Envolveu-se com os fundadores da inovadora Gazeta de Notícias, Manuel Carneiro e Ferreira de Araújo, publicando poemas posteriormente reunidos no livro Canções Românticas (prefácio de Teófilo Dias) (1878) e conhecendo neste jornal o amigo Machado de Assis, que o citou no famoso artigo "A Nova Geração" (Revista Brasileira, 1879) bem como lhe prefaciou Meridionais (1884), ainda financiadas pelo jornal, livro-chave para a Idéia Nova da Nova Geração, só mais tarde referida conceitualmente, "rotulada" ou esquematizada como "estilo parnasiano".

Decorrido apenas um ano, publica, sob encomenda dos leitores, Sonetos e poemas (1885), consagrando-se junto ao público, o que lhe rende um prefácio de T. A. Araripe Jr. ao livro seguinte, Versos e rimas (1895), títulos talvez alusivos a Sonetos e rimas (1880), de Luís Guimarães Jr., também Jovem Poeta, como eram conhecidos esses revolucionários em prol da poesia autêntica sem os clichês românticos. Depois de quatro livros publicados, foi convidado por Machado de Assis para a Fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, ocasião em que se vê a longevidade do convívio entre o romancista e o poeta.

Com Raimundo Correia e Olavo Bilac, formou a tríade mais representativa da Idéia Nova da Nova Geração, hoje chamado Parnasianismo, reunida em sua casa no bairro Barreto, Niterói/RJ, à época capital de província, e depois no seu famoso Solar da Engenhoca, sito à mesma cidade, ou no bairro Neves, São Gonçalo/RJ, residência anterior. Impecável na métrica e correto na forma, sofre uma vaia que parece ainda ecoar desde a Semana de Arte Moderna de 1922, na voz de críticos literários fiéis à idéia modernista. Mário de Andrade, rancoroso pela rejeição dos parnasianos ao seu livro parnasiano Há uma gota de sangue em cada poema (1917), se empenha em retaliar o velho estilo, cuja principal vítima era o poeta de Saquarema, como se vê nos ensaios "Mestres do Passado", publicados no Jornal do Commercio em 1921 e na "Carta Aberta a Alberto de Oliveira", publicada na Revista Estética no. 3, em 1925.

Nos últimos anos de sua vida, proferiu conferência "O Culto da Forma na Poesia Brasileira", (1913, Biblioteca Nacional; 1915, São Paulo) e ainda foi homenageado pelo Jornal do Commercio, em 1917. No mesmo ano, recebeu Goulart de Andrade na Academia Brasileira de Letras. Foi eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, pelo concurso da revista Fon-Fon (1924), título desocupado desde a morte de seu discípulo e amigo Olavo Bilac, falecido em 1918. Em 1935, prestigia o Cenáculo Fluminense de História e Letras, com sua gloriosa presença. Sem dúvida, o Poeta-Professor é "Andarilho Fluminense", semeando Lirismo e Educação em todos os lugares por que passou: Saquarema, Rio Bonito, Itaboraí, Niterói, São Gonçalo, Petrópolis, Campos e Rio de Janeiro (no seu Estado natal), além de Araxá, São Paulo, Curitiba.

Seus incontáveis versos falam da pujança da natureza fluminense e dos encantos da mulher brasileira, ambas freqüentemente evocadas pela memória. Os temas da Grécia Antiga, que caracterizam o Parnasianismo de moldes franceses, formam uma pequena minoria da obra, em torno de 10%.

Obras
Canções Românticas. Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1878.
Meridionais. Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1884.
Sonetos e Poemas. Rio de Janeiro: Moreira Maximino, 1885.
Relatório do Diretor da Instrução do Estado do Rio de Janeiro: Assembléia Legislativa, 1893.
Versos e Rimas. Rio de Janeiro: Etoile du Sud, 1895.
Relatório do Diretor Geral da Instrução Pública: Secretaria dos Negócios do Interior, 1895.
Poesias (edição definitiva). Rio de Janeiro: Garnier, 1900.
Poesias, 2ª série. Rio de Janeiro: Garnier, 1905.
Páginas de Ouro da Poesia Brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1911.
Poesias, 1ª série (edição melhorada). Rio de Janeiro: Garnier, 1912.
Poesias, 2ª série (segunda edição). Rio de Janeiro: Garnier, 1912.
Poesias, 3ª série Rio de Janeiro: F. Alves, 1913.
Céu, Terra e Mar. Rio de Janeiro: F. Alves, 1914.
O Culto da Forma na Poesia Brasileira. São Paulo: Levi, 1916.
Ramo de Árvore. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1922.
Poesias, 4ª série. Rio de Janeiro: F. Alves, 1927.
Os Cem Melhores Sonetos Brasileiros. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932.
Poesias Escolhidas. Rio de Janeiro: Civ. Bras. 1933.
Póstuma. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1944.

Fontes:
Wikipedia
Releituras

Luís Garcia (Estranha Beleza )

“Por entre os passos que se julgam, não há mais sentido de justiça que o próprio caminho que se decidiu descobrir”

A manhã surgira como num primeiro pequeno ritual. Aquele que atinge o auge da sua beleza quando o próprio sol dá ao dia a imagem que descobre no simples facto de não existir mais uma desculpa que possa inventar, para não oferecer o seu empurrão pessoal ao dia que está quase para nascer. Naquelas paredes cheira a vingança! A porta viaja de ponta a ponta numa melodia acesa no belo que pode existir em ouvir dobradiças oxidadas. Cada pedaço de som mostra o atrevido quanto baste, para ofertar aqueles momentos em que de forma inexplicável sentimos o vigor de um arrepio, como se fossemos resgatados à letargia de um momento e lançados de novo no caos da realidade.

Uma densa nuvem emerge de meia dúzia de euros mal gastos em tabaco de qualidade duvidosa. Esconde também aproximadamente meia dúzia de recordações calculadas e mal perdidas; num hall que se espera, seja só já mais de saída. Por momentos, arrancado à existência mergulhada numa passividade inebriante, Patrício Euclides, reconduz a frequência de um nunca mais. Descobre cada palavra imposta não se sabe muito bem quando e encontra cada sentido como uma decisão contundente, fingida e extremamente correcta.

De novo o hall, que é entrada também. Antecede o que se pode chamar de sala. Uma mesa, a cadeira que ampara quase pateticamente o traseiro pesado do Patrício e uma dezena mal contada de papéis riscados, a fingir um chão. Estranha beleza esta, a que pode existir num local, que já tratou a porcaria por outro nome mais ordinário.

Patrício Euclides teima em descobrir a sala. Revela as velocidades que os seus olhos verde melão perdem em contemplação. Como se uma qualquer taça velha e mal cheirosa, uma imitação barata de cristal francês, pudesse arrancar da penumbra uma garrafa meia vazia e o espaço restante que se consegue inventar para sonhar acompanhasse a viagem daquela solução oxigenada.

Os lábios que já beijaram o amor do Patrício, soltam pequenas palavras inodoras. A embriaguez lava o sentido que qualquer outra, interpretação, procurasse encontrar por entre o hálito impregnado de uma aguardente que melhor ele usara para sarar a ferida que teima em enfeitar-lhe de escarlate aquele joelho demasiadas vezes flectido.

O Patrício sabe o significado daquela sensação. É assim como se pudesse repetir uma palavra, no segundo que se segue à hora de ir embora e saber de cor a resposta que ouviu mais vezes. Porque foi ele mesmo que a inventou, e a coragem para fazer aquela pergunta sabe ao mesmo amargo que fere agora o seco que arrasta nos seus lábios.

Segura com medo. Treme bastante ao ouvir os sons que não consegue compreender e descobre nos apêndices dos seus braços, o refúgio que procura no vazio. Talvez mesmo o abraço que se foi adiando. Nada do que tem hoje lhe parece melhor do que aquilo que pode sonhar para possuir, quando amanhã for aquele momento para saber tudo o que poderia ter conquistado. Das mãos que então tremerem, os olhos verdes dificilmente poderão julgar qualquer movimento que não compreenderem, para além de uma necessidade absurda de sentir o sabor de um abraço.

No verde dos seus olhos, haverá quem jure vê-los grandes, como se pudessem rivalizar duas nozes, perdidos e inflamados, como um grito quando desvenda o mistério da tristeza que se encontra há demasiado tempo numa ressaca que se foi evitando.

Os olhos verdes despertam paixão. Também sabem dizer quando é tempo de ficar sozinho e as mãos ainda a tremer e a cabeça que não para de pender, faz toda a vontade às pernas que seguem um caminho inventado de passos improvisados. Lá fora apenas uma brisa que imite os seus pés pode correr na escuridão encontrada e roubada às luzes da cidade e da sua solidão. Não existe uma única rua que se possa confundir com a sua e ao primeiro vómito, as luzes que se confundem nos olhos que não se querem agarrar à estrada que se decidiu arrastam-se para uma queda que se torna inevitável.

Aperta o que há de seu entre os braços que conhece bem demais, pelas marcas que foi juntando. Uma a uma, como se cada beijo no asfalto fosse premiado com uma recordação para exibir com vaidade. Recebe o ar fresco da madrugada como se fosse uma medalha e contempla as luzes que por fim se vão tornando recordações. Como se procurasse uma metade de amor-próprio que pudesse exibir orgulhoso no caminho que fingisse saber para casa.

Invade-se de uma vontade de sentir um toque em todo o seu corpo. Assim como se houvesse uma capacidade de amar que estivesse escondida, a uma distância abaixo da sua epiderme. Necessita desesperadamente de um banho. Inventa um mar tão conveniente, rebola pela areia da praia com as dunas do esquecimento por cenário e adormece os olhos já salgados demasiadas vezes. E quase sonha. Desperta. Como se houvesse no seu sonho sensações que o queimassem, o que resta da garrafa que chamou de sua ao sair daquele bar oferece-lhe a companhia de que precisa para o único encontro que terá até ao fim daquela noite. A música. Quase pode ouvir ao partilhar o ultimo momento de prazer que se pode descobrir no fundo de uma garrafa, no vício que há nas suas mãos, um segundo de uma alegria imensa que não se pode compreender.

O vento volta a soprar, o carrasco das longas estradas empoeiradas, finge-se de um impulso como se estivéssemos a falar de novidades e uma nova história nascesse deste momento quase hipócrita. Quem ouve o vento sabe que não o pode compreender com a facilidade daqueles que conhecem o seu toque. Quem conhece o vento no auge da madrugada tem apenas que descobrir que não se pode esconder. Aqueles que sabem a verdade escondem a dor nas garrafas que vão amando. Os outros ajeitam o corpo entre o quente e a segurança que se pode encontrar no abraço que se rouba ao segurar a mão de quem está junto e partilha o leito. Como se a verificar da possibilidade do assalto da solidão. Quem ouve assim o vento simplesmente volta as costas e volta a dormir.

O Patrício sabe quem é. Sabe de que lado do seu sonho escuta ele aquele vento. O som seco de uma porta que se fecha acorda o que ainda se pode traduzir por alerta, num ínfimo espaço do seu ser. O som do motor, a velocidade que se inicia, a janela que se abre e o criar do seu próprio vento. Aquele que não poderá pertencer a mais ninguém. Talvez fosse possível naquele mesmo segundo, lado a lado poder retirar daquele momento os dias que já se foram, aquilo que quis esquecer. Tudo somado ao possível do hoje com a certeza das horas passadas e descobrir que o erro existe, na conta que se desconhece, só porque nunca se segurou a vontade necessária para um dia mais tarde tornar melancolia aquela noite. Tão estranha por ser tão repetida.

Fonte:
Revista de Literatura e Arte. Maringá/PR.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Trova 108 - Renato Alves (Rio de Janeiro/RJ)

Camilo Leal (Gananzama Chuá)



Na cozinha da Fazenda Troncão a escrava Mãe Bárbara conversa com sua sobrinha, a escrava mucama Lane Congo:

- Escute o que eu to dizeno pra ocê. O Leopoldo, meu marido, morreu acidentado na Fazenda do Vale. Foi um grande choque. Ele era tão bão pra mim. Agora nóis aqui longe, aprisionada, sem liberdade... Quando ele tava do nosso lado era tão bão. E agora morreu meu fio com um meis de idade. Tenho bastante leite que inté ta doloreno meus peito. Inda mais agora. O Sinhô me alugo pra sua cunhada que tem um fio e ela não tem leite pra amamenta. É! Eu vô tê qui fica quagi dois anos dano mamá pr’ele. Peço pr’ocê, mucana Lane, pra Elpídia e pr’ocê Maud Lumba, minhas treis subrinha que estimo iguá a minima dos meus óio, tenha juízo, molecas. Faça tudo o que fô mandado, pra não sê castigada na minha ausência.

- Tenha cuidado, minha tia! Vá e não se preocupe. Vamos faze o possive pra não sê castigada.

- Então, eu vô. Cuide dos moleques. Inté lá. E nada de choro, minhas moleca.

O feitor Raimundo Caiolá dá ordens aos escravos.

- O tempo ta carrancudo; pelo jeito vai caí chuva e temo muito fejão no carriadô. Não importa si bamo coiê quagi dois mir saco. O que importa é que bamo coiê tudo e que não bamo perde nada. Todo escravo passe logo na pia de saco, sem recramá, ponha na cabeça um ou dois saco e leve inté a tuia. Precisamo guarda tudo e os carro num vai dá cont. Bamo ajuda os carro, por mode que os boi tão cansado. Depois que entrega o saco de feijão pro feitô, na tuia daí pode í pra senzala. Quem não quisé leva, fica essa noite sem comida. Bamo, negada, se encarreia que nem furmiga. E vancê, Magoado, por que não qué carrega seu saco de feijão?

- Meu Sinhô, me perdoe. Não güento com um saco de feijão dois arquere e meio. Carreguei muito tempo que era moço. Hoje não dá mais. Já tenho guagi cem amo; to cansado.

- Você é vagabundo! Como é que o Boieiro bate no cocho e vancê não pode...? É o primeiro que aparece. Se não leva o saco de fejão, vancê vai fica sem comê essa noite.

- Meu Sinhô, não levo; meu corpo não güenta…

- Logo com isso, negada! E vancê ta me respondendo, negro safado! Sabe o que vô fazê, negro... ah? Vô lhe amarra nesse laço e vô leva cincha do meu cavalo e entrega pro feito do viramundo. E se não corre, meu cavalo arrasta.

- Pelo amo de São Jorge que ta dentro da luma, lá inriba da nossa cabeça no céu, veno o que ta aconteceno aqui na terra, me sorte desse laço.

- Não sorto, não negro! Ah-rã! Vancê vai pro viramundo pra aprende, negro…

O escravo Magoado, lançado, é entregue ao feitor do viramundo nestes termos:

- Castigue o Magoado, Feitor. Não tenha presa pra pará, não. Quero que ele aprenda a não desobedecê a disciplina da Fazenda.

- Deixe por minha conta, feitor Raimundo Caiolá. Ele bem sabe que nosso viramundo tem mó. E ele vai te que moê um saco de mio inté amanhã cedo e faze fubá... deixe comigo.

O feitor Raimundo Caiolá voltou para cuidar dos escravos que carregavam feijão, enquanto o velho negro Magoado gritava à sorte:

- Gente, me sorte desse viramundo. Oh! Meu São Jorge! Tiraram minha tanga e o tango, ataram-me as mãos como um ladrão, crueldade sem amor. Eu sô véio cativo que muito trabaiei pro coroné. Por que tanto me judia? Sinhá Moça na janela, venha e mande pará de me judiá.

- Negro, seu nome é Magoado e muito mais magoado você vai ficá se não moê esse saco de mio inté amanhã cedo e fazê fubá. Não pare de girá o viramundo pra não sê mais castigado.

E o velho mal conseguia fazer mover o viramundo.

A escrava Mãe Maria, que ia buscar fubá, ao ver tal acontecimento, corre escondida e chama Sinhazinha Marlene, a quem os escravos colocaram o nome de Gananzama Chuá, como agradecimento à proteção que ela dá a eles. A Sinhazinha, perplexa com tal barbaridade, vai até o viramundo e repreende com veemência o feitor.

- Liberdade imediatamente ao Véio Magoado. Ele não merece esse castigo. De hoje em diante o Véio Magoado não vai ter mais que trabalhar no pesado. Eu quero que ele apenas fique para contar estórias para os moleques. Acho que o Véio tem muito o que contar. Sirva farofa pra ele, Mãe Maria. Ele deve de estar com fome.

Ela saiu rumo a casa carregando Gustavo, que apareceu ali correndo, o seu gato de estimação.

A escrava Mãe Maria ao cuidar do velho escravo lembra a ele os ensinamentos de Mãe Bárbara e comenta saudosa da escrava amiga, alugada há poucos dias:

- Enquanto existi descendente de escravo da Fazenda Troncão nessa terra, vai te roda pra louva Gananzama Chuá, fia do Coroné Bento de Prado, por sê bondosa, faze caridade, livrá os escravo quando são castigados injustamente. É! Mãe Bárbara tem razão... Nóis tudo daqui da Fazenda Troncão do Itu Rio Paranapanema sempre bamo cantá Gananzama Chuá.
========================
Camilo Francisco Leal (1922- 2004) artista plástico, escultor, compositor, contista e poeta, nasceu em Bica da Pedra, SP. Foi um dos pioneiros do Norte do Paraná, que em 1952 trabalhou na fundação e administração da Fazenda Rio da Prata em São João do Caiuá. Em 1963 mudou-se para Maringá, onde viveu até seu falecimento.

Camilo deixou uma obra vasta - 04 livros de contos e poesia, 137 músicas, 10 esculturas em papel e centenas de pinturas, entre óleo, acrílico e desenhos a lápis e esferográfica. A obra completa de Camilo, tematizada em torno da história da vida do negro liberto, mas sem perspectivas, e da vida rural, está sendo catalogada e organizada para publicação.

Patrono da Cadeira n.2 da Academia de Letras do Brasil/ Mariana/MG.

Fontes:
Jornal Aldrava
Pintura

Paulo Monti (Poesias Escolhidas)


ACASO

Prenúncio de chuva:
as nuvens pesam sobre a cidade - elas ou a outra? -
Um telefone brinda um recém-nascido.
Mas, e do tempo, o que dizer?
Um automóvel lança seu rugido:
que é feito de nossos rugidos?
Nossos pés buscam raízes
mas o melhor do tempo está no momento este, o da criação sabadinal:
o sábado com sabor de chuva!
E o resto, só o sonar de neurônio (perdido) refaz
a ânsia de nossos dias.

DRAMA

Meio sem jeito
o poeta se ajoelha ao momento da criação:
já são versos sem sentimentos,
ilhados pelo cimento
e abençoados pelo azul.
Mas, eis que uma chuva precipita o banho universal.
E o pobre poeta sente como é difícil a penosa faina
da disposição livre,
mais difícil, talvez, a arquitetura interna do homem.
O cheiro de terra molhada penetra nos passos comedidos
entre tantos vazios,
e, no peito, algumas poucas plenitudes.
O verso é outro, as luzes estão apagadas.

INTERVALO

Os fantasmas passeiam na casa adormecida.
Enchem cálices vazios
em noites repletas de sonhos novos e antigos.
A lua, navega solitária, satélite:
vive a solidão do espaço!
E as casas abandonadas
encontram razão quase perdida de vida à-toa
os fantasmas são tão vagabundos.
Mas, o mistério é noturno,
e a noite, despertada, anda, anda...

(do livro Poema no ar)

O GRANDE AMOR.

A dor pungente
Do grande amor:
As lágrimas,
Grossas,
Embaçam meu coração - que sangra -
Rasga-se o peito,
A paixão revivida!
Os momentos!
Intensos!
Espontâneos!
Um banho de rio,
Um par de alianças,
Um olho-no-olho,
Um saber mudo
E uma certeza
Da grandeza e força do grande amor.
Suspenso,
Adiado,
Afogado,
No tempo,
Na distância,
Guardado num canto do coração!

PEDAÇOS

Frio: 9ºC
Na rua
E no peito.
Em rios distantes passo
Tão perto
Feito vento
Vago veloz.
Vejo vidraças vazadas:
Último refúgio do sol!
Pedaços de mim
Fora de lugar
Mosaico
Retrato
Fragmentos da vida
Deixada
Sugada
Exaurida.

AURORA

Um sono profundo
Marcado no velho sapato corrompido pelo tempo
Aprisiona o ruflar das asas
Sonolentas da manhã.
O passeio noturno
Liberta antigas canções,
E, em coloridos poços sonoros
Vivem suaves, mas tristes
Criaturas: antigos humanóides.
Num grito isolado e quase sufocado
Algumas tímidas borboletas
Ameaçam o primeiro vôo:
O primeiro vôo...
E, nas contrações azuis da minha sombra,
Transformo-me em anjo sonoro
E musifico.
Faço-o até a última pena,
Até que a primeira estrela da manhã
Bruscamente poligonize-se em minha janela.

BEIRA MARIA

Da praia distante
Quero sal
Gaivotas
Maresias.
Vento salgado
Beira de mar:
Quero de volta
Um verão janeirado de sal e vento
Sal de verão
Ventos de janeiro!
Depois, saudade
Violão macio
Cachaça de rolha
E uma lua(que não precisa nem ser cheia...)!

COTIDIANO

As horas desfilam
Entre promessas que se avolumam
E os sorrisos espontâneos
Dos amigos momentâneos
Sentem as conversas ligeiras
Dos olhares mudos
Dos toques delicados
E as sensações
Ficam no ar suspensas!
Cascatas descambam
Vozes sussurradas
Quase sopradas
Veladas seduções que se instalam:
E a vida se rende ao encanto
Das ninfas gregas que fogem em verdes prados
E tudo se deixa como vento e sol!
E os amantes
Não se amam:
São desamantes
são fruto vazio e cheio de ânsia
São fusão de encontros e separação
são o fim
São amantes nas manhãs
São solitários fins de tarde!
------------------

Paulo Monti



Paulo Monti é natural de Itaqui-RS e reside em Porto Alegre, RS.

Participou, há alguns anos atrás, de concursos nacionais, como o Prêmio de Literatura, de jornadas de poesia no Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB) e tantos outros.

Desde 2004, é Mensageiro da Paz, através do programa “Manifesto 2000”, criado pela Unesco (www.unesco.org) que nomeou a década de 2001-2010 como a década internacional por uma cultura de paz e não violência contra as crianças no mundo inteiro.

Também faz parte do movimento mundial “Poetas Del Mundo”.

Recentemente, obteve Menção Honrosa no “Concurso Internacional de Poesia Livre "Sol Vermelho" - Prêmio Celito Medeiros 2004”, vindo a participar da antologia impressa promovida pelo concurso.

Menção honrosa no Concurso Poético do Jornal Expresso das Letras, em dezembro 2005.

Obteve 3º lugar no Concurso Poético do Jornal Expresso das Letras, em dezembro 2006.

Atualmente, participa, como colaborador, com poesias em português e espanhol, do programa "Poesía y algo más", através da rádio Arinfo (http://www.arinfo.com.ar), o qual é produzido e apresentado por Maria Elena Sancho que se difunde somente pela internet desde a Província de Buenos Aires, aos sábados, 20:00h às 21:00h.

-Site próprio com poesias inéditas, intitulado "Poesias by P@ulo Monti" em:
http://geocities.yahoo.com.br/poeta_2002br/index.htm

-Editor e Diretor da Revista Literária Paralelo 30 (revista virtual), em:
http://geocities.yahoo.com.br/paralelo_30/index.htm

-Miembro del Comite Poyecto .C.del Sur - La Habana - Cuba:
www.proyectoculturalsur.org

-Membro Correspondente da Academia Itaperunense de Letras

-Corresponsal Literário de la Delegación AVELLANEDA de la SADE Seccional SUR BONAERENSE - Argentina.

-Membro da Casa do Poeta Rio-Grandense, em Porto Alegre-RS.

Reconhecimentos Internacionais:

- Unesco Journals World Poetry - "Poesias by P@ulo Monti" - Literatura, Poesia.
- Unesco Journals World Poetry - "Revista Literária Paralelo 30 (revista virtual)" - Literatura, Poesia em Português e Espanhol e Artes em geral.

Também participa da "Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos 12", da Câmara Brasileira de Jovens Escritores, primeira edição, novembro de 2004.

Editor e Diretor da Revista Literária Paralelo 30, em:
http://paralelo30.webcindario.com/index.htm

Blog: http://paulomonti.blogspot.com/

Fonte:
Poetas Del Mundo.
http://www.notivaga.com.br/

Ignácio de Loyola Brandão (Hora de Almoço na Cidade Grande)


Na tarde sombria de segunda-feira, sentado no Viena da Alameda Santos, eu hesitava entre o à la carte e o bufê. Entre pedir a carta, escolher, esperar, decidi pela preguiça, fui ao bufê que é variado, amplo, de acordo com um tempo que exige rapidez e preços acessíveis. Levantei-me, ainda pensando que, nas dicas mineiras da semana passada, me esqueci de recomendar a Casa Cambuquira, de Três Corações, com seus queijos brancos, verdadeiras musses, e os doces de leite Nata Suíça, que batem de longe o famoso e cobiçado La Pataya uruguaio, que a gente, aqui, só consegue quase no contrabando. Lembro-me do Viena desde os tempos em que era uma lanchonete situada em frente do corredor de entrada pela Avenida Paulista. As coxinhas de creme, imensas, o sanduíche com pão italiano e queijo derretido, que valia por almoço e jantar, e as tortas de morango que, no início, eram feitas pela própria dona, provocaram ao longo dos anos um problema: encontrar lugar no balcão, na hora do rush do almoço.

Alguém já parou para observar as pessoas diante de um bufê com suas cores atraentes? Vale por uma sessão de cinema, um programa de televisão. A democracia é total: lado a lado estão executivos com ternos Armani, comerciários, secretárias, estudantes, interioranos (ainda é possível reconhecê-los), bancários, jornalistas, modelos, funcionários das livrarias, consulados, mulheres bonitas. Não, elas não foram fazer compras na Rua Augusta! Há muito a rua deixou de ser point, está se transformando em um amontoado de estacionamentos. A fila diante das comidas se forma, compacta, desorganizada, alguns entram de um lado, outros vêm na contramão, há quem reclame, há quem ceda a vez. Os primeiros devem estar com fome, os outros já passaram pelo primeiro prato e estão voltando.

A diversidade de gostos está nos pratos. Há anos freqüento restaurantes como o Viena, além de circular pelos quilos, e jamais vi dois pratos iguais.

Queria estudar as personalidades por meio do que colocam nos pratos ou na forma como arranjam a comida, separando tudo bem separadinho. Alguns amontoam tudo, outros têm o cuidado de organizar. Tenho uma amiga, diretora de arte que odeia mandioquinha, que faz um desenho, combinando as cores, o verde da alface e da rúcula, o vermelho do tomate, o roxo da beterraba, o amarelo da mandioquinha, o branco do palmito, o alaranjado da cenoura.

Gostava de comer ao lado dela, para admirar o design do prato que devia ser fotografado. A diferença entre o quilo e os bufês é que no quilo não se volta à mesa, porque se paga a cada rodada, as pessoas montam um PF, célebre prato-feito, buscam comidas mais leves.

No bufê há uma certa contenção, vergonha do "pratão", porque as mesas ficam muito juntas e sempre existe a curiosidade de olhar o prato do outro.

Quantas vezes não ouvi a pergunta: "Essa torta, onde o senhor achou? Não estava lá quando passei!" É que, em certos momentos, a comida termina e enquanto o funcionário busca a reposição, fica um espaço vazio por minutos.

Mas comilões apressados na hora do almoço são impacientes. Os bufês democratizaram o salmão, o carpaccio e o estrogonofe, entre outras. Foram comidas "caras", hoje estão ao alcance de qualquer um. O caro que ainda não se vê em bufê e em "quilo" é o camarão à grega, imbatível no preço alto. Os vegetarianos ficam na seção de folhas, os carnívoros recomendam ao chapeiro o ponto que gostam. Ali no Viena, na segunda-feira chuvosa, vi um sujeito colocar oito bifes no prato. Tive vontade de segui-lo, daria para a família inteira. Décadas atrás, quando as pizzas rodízio começaram em São Paulo, entrei em uma do Grupo Sérgio, na Augusta. Foi das primeiras. Estava com toda a redação da Editora Três e fomos conferir a novidade. Uma sensação, poucos imaginam o impacto que causou na gastronomia paulistana a chegada da pizza rodízio. Um dia, ficamos boquiabertos, um homem na mesa ao lado comeu 28 pedaços de diferentes sabores. A garçonete chegava, ele aceitava. Vinte e oito fatias correspondem a quatro pizzas grandes e uma média. Devíamos ter fotografado, registrado e enviado ao Guinness.

Agora, no Viena, fiz meu prato, sentei-me e percebi que o sujeito ao lado desenhava com lápis de cera. Ele estava concentrado, tentando retratar uma loira alta e bonita, que comia sozinha, um ar altivo, cheia de si. Sabia que atraía olhares e fingia que não. Desenhava mal o artista de bufê. Por mais que olhasse e se esforçasse, não conseguia um só traço semelhante. Ou ele estava apenas tentando chamar a atenção da jovem? Aí, percebi que na minha mesa tinha um copinho com dois lápis de cera, um preto e outro amarelo.

Levantei-me, dei uma volta, havia muita gente rabiscando as toalhas de mesa, que são de papel. Desenhar enquanto se come. Por que não ler? Acho que sou dos raros que levam um livro para o restaurante. Dia desses, uma senhora me abordou: "O senhor não sabe que faz mal ler e comer?" Não sabia, como e leio há 50 anos. "Que mal?", indaguei. E ela ficou numa saia-justa, não sabia, sempre ouviu as pessoas dizerem isso. Vou continuar a ler, é uma hora sossegada, me abstraio dos barulhos do restaurante.

Agora, o jovem tentava retratar a loira que continuava indiferente, mas provavelmente com a auto-estima em alta. Será que ele desejava presenteá-la, usar o desenho como apoio para uma abordagem? E me veio à cabeça uma das imagens mais pungentes do cinema, em Os Amantes de Montparnasse (Montparnasse 19), de Jacques Becker, 1957. Modigliani (vivido por Gerard Philipe) precisando comer e vendendo por um preço de banana seus desenhos, de mesa em mesa, nos cafés de Paris, com as pessoas zombando dele. Agora, era o inverso. O jovem bem vestido, comia e queria desenhar. No entanto, estava longe, muito longe, tão distante de Modigliani quanto Marte da Terra.

Fontes:
Jornal O Estado de São Paulo. Caderno 2. Sexta-feira, 4 de junho de 2004.
Imagem descolorida de http://www.papatrilhos.com

Vicência Jaguaribe (O Sonho Encenado )


Na calçada, o inexpressivo violão acompanhando a voz rouquenha e desafinada. Na cabeça, dez anos de sonho. A encenação do sonho, que, de tanto ser sonhado, soava-lhe realidade.

No começo, viajava à capital, onde – dizia – encontrava-se com seu ídolo, um cantor de sucesso do momento. Levava-lhe fitas cassetes, com músicas que compunha. E deixava-as com ele, que as incluía no disco seguinte. Mas, na ficha técnica, apareciam como se fossem composições do próprio cantor. Ele dizia-se revoltado e continuava a tocar o inexpressivo violão, que acompanhava a voz rouquenha e desafinada.

A cidade inteira falava da desonestidade do cantor. Os mais entendidos aconselhavam-no a procurar um advogado. Mas ele persistia nas idas à capital, para apresentar-lhe suas composições. E o cantor continuava a gravar as músicas dele como suas.

Nas últimas visitas não mais o recebia. Estava sempre viajando. Depois, ameaçou-o – dizia ele. O moço desistiu de tentar contato. Mas continuou a tocar seu inexpressivo violão, acompanhando a voz rouquenha e desafinada, que cantava composições de sua lavra. Aquelas composições, suas, que o cantor gravara como se fossem dele. E as músicas faziam sucesso, estouravam nas paradas, recebiam elogios da crítica. Mas não eram as suas composições que faziam sucesso, estouravam nas paradas, recebiam elogios da crítica. Eram composições do cantor. A ficha técnica revelava isso.

E o cantor – seu ídolo – ganhava dinheiro às suas custas. Era voz geral.

E por que não ia conversar com o cantor? Adiantaria alguma coisa uma conversa com ele? Ele sustentaria que o outro era um doente mental, um alucinado, não sabia o que estava dizendo.

O moço resolveu, então, ganhar dinheiro com sua voz rouquenha e desafinada, acompanhada pelo inexpressivo violão.

Naquela tarde de domingo, recebia amigos e conhecidos, que convidara para ouvi-lo cantar suas últimas composições. O palco? A própria calçada.

Todos se entreolharam assustados, quando o moço anunciou o início do show. Quem estava ali não era ele, mas seu ídolo – o mesmo tipo de roupa, o mesmo corte de cabelo, o mesmo repertório. Anunciou-se a si mesmo pelo nome do outro e pegou o inexpressivo violão que acompanharia a voz rouquenha e desafinada.

Naquele momento, a encenação era a própria realidade. Sua integridade mental, ameaçada desde a infância, acabara de esfacelar-se. Ele não reconhecia a si em si mesmo. Em si mesmo, reconhecia o outro. Para todos os efeitos, ele era o outro. Sua mente não podia reconhecer a figura real, porque há muito ele era o outro.

Anunciou o repertório – todo de composições suas, disse. Os amigos, sentados na calçada, e os passantes que paravam para ver o espetáculo – o inexpressivo violão acompanhando a voz rouquenha e desafinada. E todos viram quando ele largou o violão e desnudou-se.

Naquela noite mesmo, levaram-no à capital, onde o internaram em um hospital psiquiátrico. Ao lado da cama, o inexpressivo violão, que não mais acompanharia a voz rouquenha e desafinada, ouvida, todas as tardes, no proscênio criado pela imaginação.

Fontes:
Revista de Literatura e Arte. Maringá/PR. http://www.conexaomaringa.com/

Ivan Jaf (1957)



Escritor: autor, roteirista e editor. Nascido no Rio de Janeiro (1957).

Fez faculdade de filosofia e comunicação pela UFRJ, mas não chegou a terminá-las.

Roteirista de histórias em quadrinhos (terror e ficção científica), revistas nacionais e Skorpio, Itália, 1980/98.

Roteirista de cinema. Filme MALEITA, roteiro premiado pelo Sundance Institute, 1998

Teatro: Adaptação de O OUTONO DO PATRIARCA, de Gabriel Garcia Marques - leitura dramatizada, teatro do Palácio do Catete, direção Expedito Barreira, 1997.

Adaptação de “Lembrar é Resistir”, de Analy Alvarez e Isaías Almada – Presídio da Rua da Relação, direção de Nelson Xavier, 2001.

Livros publicados
BASTIANA VAI À LUTA (infantil, ed. Memórias Futuras, Rio, 87, 7 edições)
O VALE DA ETERNIDADE (infantil, ed. Memórias Futuras, Rio, 90, prêmio aquisição FNLIJ 93)
TRÊS CONTRA T (juvenil, ed. Scipione, São Paulo, 93)
A PONTE PARA O PASSADO (juvenil, ed. Atual, São Paulo, 93, 8 edições)
A FLORESTA DOS HOMENS DOIDOS (juvenil, Scipione, São Paulo, 94)
A MONTANHA DOS OSSOS DE DRAGÃO (juvenil, ed. Atual, São Paulo, 94, 7 edições)
BEIJO NA BOCA (juvenil, ed. Moderna, São Paulo, 94, 6 edições, Prêmio Altamente Recomendável para o Jovem / 94 - Fundação Nacional do Livro)
O CERTO É O CONTRÁRIO (infantil, ed. José Olympio, Rio, 94, 6 edições)
ATRÁS DO PARAÍSO (juvenil, ed. José Olympio, Rio, 95, 4 edições)
A SEMENTE DA PRAÇA (infantil, ed. Jos0é Olympio, Rio, 95)
O PODER FLUTUANTE (juvenil, ed. Scipione, São Paulo, 96)
O PIRATA MAU QUE PEGOU CUPIM NA PERNA DE PAU (infantil, ed. José Olympio, Rio, 96)
O SUPER TÊNIS (juvenil, ed. Ática, São Paulo, 96, 4 edições)
A PRIMEIRA VEZ (juvenil, ed. Moderna, São Paulo, 96, 4 edições)
O SUPER SILVA (juvenil, ed. Ática, São Paulo, 97, 2 edições)
MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA FAMILIAR (juvenil, ed. Atual, São Paulo, 97, 6 edições)
BOCA A BOCA (juvenil, ed. Moderna, São Paulo, 98,)
O ROBÔ QUE VIROU GENTE (juvenil, ed. Ática, São Paulo, 99, 2 edições)
O VAMPIRO QUE DESCOBRIU O BRASIL (juvenil, ed. Ática, São Paulo, 99, 5 edições)
NÃO ESTOU ENTENDENDO NADA (juvenil, ed. Ediouro, São Paulo, 00, 2 edições)
A CHAVE DE CASA (juvenil, ed. Atual, São Paulo, 00, Destaque de Humor/ Prêmio Adolfo Gizen/ União Brasileira dos Escritores, 01)
AGÜENTA FIRME (juvenil, ed. Ática, São Paulo, 00)
AS OUTRAS PESSOAS (novela, Editora do Brasil, São Paulo, 01)
A CORTE PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO (juvenil, ed. Ática, São Paulo, 2001)

Fonte:
Wikipedia

Ivan Jaf (O Escritor em Xeque)


Entrevista exclusiva para o Prof. Wagner Lemos.

Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou, dentre outras coisas.

Nasci e estudei aqui na cidade do Rio de Janeiro. Fiz duas faculdades (jornalismo e filosofia) mas não completei nenhuma delas. Aos 19 anos fui para a Europa e vivi por lá uns 3 anos, até voltar e começar a escrever, e não parar mais.

Como você se tornou escritor?

Me apaixonando por uma máquina de escrever usada que vi numa feira de antiguidades, em Londres.

Qual o seu primeiro livro e do que falava?

Eu precisava fazer alguma coisa com a máquina, e comecei a escrever poemas. Meu primeiro livro foi uma seleção desses poemas, que vendi nos bares e calçadas. Eram poemas filosóficos, existenciais.

Sua obra abrange também quadrinhos, fale um pouco desse lado da sua carreira.

Como eu precisava ganhar dinheiro, comecei a escrever roteiros para histórias em quadrinhos, de terror. Descobri que tinha muita facilidade em visualizar e descrever cenas. Escrevi muitas histórias, por vários anos. Além do terror, ficção científica, em revista do Brasil e da Itália.

Como surgiu a história de “O Vampiro que Descobriu o Brasil”? Em que você se inspirou?

O Vampiro surgiu da necessidade de contar os 500 anos do Brasil visto por um único personagem. Ele precisava ser imortal. Acho que me inspirei em tudo que já li e assisti sobre os vampiros.

Atualmente está a se rever o papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira, pois segundo dizem, ele não foi líder mas um bode expiatório para livrar outros. Por que você optou, neste caso, acompanhar uma versão mais tradicional da história?

Tenho para mim que Tiradentes acreditava no que estava fazendo, e era um ativo e carismático agitador. O que não o impediu de se tornar um bode expiatório no final, quando seus companheiros da elite optaram por fazer "acordos". Como um lado precisava fazer uma vítima, como exemplo, e o outro queria um mártir...

Você teve receios ao citar por nominalmente ou nas entrelinhas personagens da história recente do Brasil, tais como Tancredo Neves, José Sarney e Marco Maciel? Pensou em possíveis represálias da família (no caso de Tancredo) ou dos próprios políticos?

Por um lado tive receio, sim, pois citar nomes daria condições aos envolvidos de moverem processos. Mas também pesou o fato de que, como acredito que a Arte dura mais do que a Política, não queria dar aos citados a chance de serem lembrados no futuro através de um livro meu.

Deixe uma mensagem para os estudantes sergipanos que estudarão “O Vampiro que Descobriu o Brasil” no vestibular.

Eu quis passar em revista a história do Brasil nesses últimos 500 anos, de uma maneira crítica e, espero, divertida, como um incentivo a que os leitores se aprofundem mais no assunto. Eu acredito que saber sobre a História do homem branco nestas terras faz a pessoa querer mudar as coisas, tentar impedir que elas não se repitam. Enfim, forma revoltados. E é com revolta que se progride.

Fonte:
Professor Wagner Lemos.