quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Trova 117 - Sylvio Ricciardi (Ribeirão Preto/SP)

Aparecido Raimundo de Souza (Estranho num Lugar Esquisito)


Durante meses, Panetôncio freqüentou um consultório psiquiátrico com a reclamação de que havia um imenso jacaré debaixo de sua cama.

— E toda noite ele me mostra uma boca cheia de dentes...

— Não são dentes, são presas. E não se diz “boca”. Jacarés não têm boca, e sim mandíbulas.

— Não importa, doutor, o caso é que não agüento mais.

O médico tentava persuadir o paciente de todas as formas possíveis:

— Panetôncio, você não reside num prédio de apartamentos em plena Barra da Tijuca com segurança, circuito interno de televisão e alarmes por todas os cantos?

— Perfeito, mas o jacaré me amedronta apesar de toda essa tecnologia de ponta.

— Não existe nenhum jacaré.

— Claro que existe, doutor. E a cada dia parece mais furioso.

— Só na sua imaginação.

— Não é imaginação, doutor, é real.

— Sua esposa viu esse suposto jacaré?

— Não.

— Nem seus filhos?...

— É verdade!

— Seu sogro chegou a dormir uma noite no quarto e também nada viu, ou ouviu?

— Meu sogro dorme mais que a cama. É só recostar a cabeça e no minuto seguinte está contando carneirinhos.

— Sua sogra?

— Uma besta quadrada. Não enxerga um palmo adiante do nariz. A única coisa que sabe fazer, e cá entre nós, muito bem, é ver defeitos em mim e maquinar intrigas do arco da velha com minha mulher.

— Seu irmão dormiu lá com a esposa dele, na semana passada, não dormiu?

— Dormiu.

— E não viu nem ouviu absolutamente nada?

— Meu irmão, doutor, só pensa naquilo 24 horas por dia. Não tem uma noite que deixe a mulher descansar em paz. Esteja em casa ou na casa dos outros, o negócio dele é furunfar. Nem os dias sagrados da companheira -, o senhor compreende -, aqueles do famoso “lacinho vermelho”, ele respeita.

— Fazer amor faz um bem danado à saúde, Panetôncio. Alivia o estresse do dia-a-dia. A alma se liberta das tensões e fica mais leve e solta. Concorda?

— Concordo, doutor, concordo plenamente. Mas o senhor precisa entender o seguinte: balançando o esqueleto, ele não vai ver nada, como, aliás, não viu. E o jacaré continua embaixo da minha cama, tranqüilo, sem problemas, me enchendo o raio do saco.

— Insisto, Panetôncio, que não há nenhum jacaré debaixo da sua cama. Volte para seu quarto e procure ficar em paz. Sua esposa, da última vez que falou comigo, reclamou que, por causa desse bendito jacaré, você não só mudou de quarto, como abandonou a cama. Esse negócio está me cheirando a outra coisa...

— Que outra coisa, doutor?

— Amante. Você arranjou uma namoradinha e está engabelando dona Líliam com essa história sem pé nem cabeça.

— Não trairia minha cara metade por nada deste mundo. Ainda que encontrasse a Bruna Lombardi peladinha, dos pés a cabeça.

— Escute o que vou dizer: sua esposa, com essa conversa toda, está abalada. Muito abalada. Sem contar que também está necessitada. Mulher necessitada é perigosa. Começa a subir pelas paredes. Se você não dá conta, não comparece...

— Sei disso tudo doutor. Mas como posso me concentrar?

— Você pode. Você é um homem ou é um rato?

— Depois que o jacaré apareceu comecei a ter dúvidas sobre minha masculinidade. Acho que sou um coelho assustado. E coelho tem medo de jacaré. Li algo a respeito numa revista especializada em animais. O doutor seguia na sua linha de conduta e perseverava com acirrada veemência na ânsia de demover a idéia fixa da cabeça de seu paciente.

— O jacaré -, Panetôncio, ou melhor, esse famigerado jacaré é apenas uma alucinação passageira -, fruto da sua estafa, da sua debilidade. Resumindo, meu amigo, coisa provocada pelo excesso de trabalho e pela fadiga. Você tem se desgastado muito, ultimamente. Sua ocupação, na Bolsa de Valores -, compreendo -, é muito pesada e irritante. Deixa os nervos a flor da pele, a cabeça a mil, os neurônios em frangalhos. Sei que não é fácil passar o dia inteiro com três telefones no ouvido...

— Quatro, doutor, quatro.

— Que seja! Três, quatro ou apenas um, não importa. O que conta, o que faz diferença, é você estar o tempo todo gritando, berrando e gesticulando feito um desmiolado e despirocado das idéias. Preste atenção no conselho que vou lhe dar, e vou fazê-lo como seu amigo, não como médico. Tire uns dias e saia com a família em férias. Coloquei, inclusive, meu sítio, em Pedra de Guaratiba, à sua disposição. Está lembrado?

— Estou, doutor. Mas o jacaré está cada vez mais esfomeado. Se o senhor, que é um especialista, que estudou anos a fio para procurar dar uma solução plausível para o meu caso e, no final das contas, não puder, ou não conseguir me ajudar, quem poderá me levar à cura dessa merda, ou à merda dessa cura?

O rapaz continuou a freqüentar, ainda por um bom tempo, as seções no consultório, como sempre fazia, todas as quartas-feiras, na parte da tarde. Com isso, o médico estava quase convencendo a criatura de que tudo não passava, realmente, de fantasias e devaneios oriundos de um desgaste físico e mental acima da linha do ponderável, e que, em decorrência disso, se levasse os próximos encontros mais a sério, logo sairia completamente restabelecido.

Entretanto, por três quartas-feiras seguidas, Panetôncio não compareceu ao consultório, nem comunicou à secretária o motivo de sua ausência. Apreensivo e visivelmente preocupado, o psiquiatra ligou para a residência de seu cliente.

— Gostaria de falar com seu Panetôncio — disse o doutor à mulher com a voz chorosa que o atendeu.

— O Pane morreu... Quero dizer, o Panetôncio faleceu... — respondeu a pessoa, em soluços.

— Com quem falo?

— Líliam, a esposa.

— Dona Líliam, sou eu, o médico psiquiatra do seu marido.

— Doutor, desculpe não tê-lo avisado antes. Sabe como são essas coisas. Uma correria: liberar corpo no IML, correr atrás de funerária, avisar todos os parentes e amigos, cuidar do enterro, fretar ônibus, comprar flores, coroas, escolher cemitério, ver jazigo, colocar anuncio em obituário de jornal, marcar com antecedência a missa de sétimo dia, uma loucura!

— Estou pasmo, dona Líliam. Fiquei realmente sem saber o que lhe dizer...

— Pois é. O senhor que é médico ficou assim, assombrado, praticamente sem saída. Imagina como estamos nós que convivíamos diariamente com ele. E todo o resto da família. Completam sete dias, amanhã. A propósito, gostaria que o senhor viesse para a missa. Vai ser na Igreja de Nossa Senhora das Cabeças, na Rua Belizário Pena, ali na Penha.

— Farei o possível. De qualquer forma, minhas sinceras condolências.

— Obrigada, doutor.

— Por favor, esclareça uma dúvida, dona Líliam. Panetôncio morreu... Morreu de quê?

— Foi devorado por um jacaré que estava escondido debaixo da cama dentro do nosso próprio quarto.
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Sobre o Autor
Aparecido Raimundo de Souza, 56 anos, jornalista. Natural de Andirá, Paraná. Free-lancer das revistas "Textos Inteligentes" e "Isto é gente". Publicou: Quem Se Abilita? (prefácio de Paulo Coelho); Com Os Chifres À Flor Da Cabeça (25 cronicas); Tudo o que eu Gostaria de Ter Dito (livro com 365 frases dos mais diversos autores, frases essas publicadas durante três anos numa coluna que manteve na Revista Class, em Vitória, no Espírito Santo); As Mentiras Que As Mulheres Gostam De Ouvir (25 cronicas); A Outra Perna Do Saci, Refúgio para Cornos Avariados (25 cronicas), Mulheres em Estado de Coma; Travessuras de Mindinho e Fura Bolos; Talvez Eu Volte para Casa na Primavera.
Os textos de Aparecido Raimundo de Souza retratam o cotidiano das pessoas. São escritos leves e soltos, alguns cheios de intransigências, outros salpicados de ironia e muita picardia e irreverência. Seu estilo lembra o escritor gaúcho Luiz Fernando Veríssimo, embora tenha criado uma grafia própria e inconfundível.

Fontes:
Colaboração do autor
wikipedia

Airton Monte (O Escritor em Xeque)

entrevista realizada em janeiro de 2007

O Jornal cearense O Povo, em uma conversa franca e bem humorada com Airton Monte, cronista de uma Fortaleza boêmia, solidária e fraterna que propõe o hedonismo e o anarquismo educado como utopia para a humanidade

O mundo é grande e cabe no breve instante da crônica de Airton Monte. Espelho de si mesmo, o cronista contempla sua própria persona e espreita a humanidade pelo prisma de sua aldeia. Traduz para o espírito de Fortaleza as paixões, os desejos e os abismos da alma humana. O fascínio pelo inconsciente lhe levou à psiquiatria, onde o profissional austero toma a frente do poeta galhofeiro, arrebatado e espirituoso que se deita no divã da literatura. Pela cidade (real ou rememorada), Airton circula desvendando o universal nos bares mais simples da Gentilândia e fazendo explodir o particular de cada flagrante em arroubos universais de inspiração poética.

Em uma manhã de conversa franca e bem humorada com quatro repórteres do O POVO, regada a muita cerveja e a uma dezena de cigarros, o cronista se revela. É o torcedor fiel, o teórico da literatura, o marido apaixonado, o amigo saudoso e o cidadão desolado com a cidade que “enselvageceu”. Sem amarras, sem pautas específicas, a conversa segue fluida por mais de duas horas. Do riso generoso aos dramas mais tocantes e deles à piada mais escatológica. Literatura, Praia de Iracema, Clube do Bode, drogas, anarquismo e gentileza. O mundo é grande e cabe no breve trago que acende o fio da inspiração e da memória.

O medo que eu tenho da palavra tempo é o de me tornar obsoleto em relação ao tempo presente”, revela o artista que, cronista, agarrado às amenidades e às urgências do dia-a-dia, soube se inscrever na posteridade pelo talento da palavra. O mundo é grande e cabe na breve (e encantadora) Fortaleza de Airton Monte.

O POVO - Quando a gente ligou pra você para convidá-lo para a entrevista, você ficou feliz mas brincou com a história do tempo, brincou com o agouro ou o mau agouro de dar uma entrevista como essa nessa altura da vida. Você tem medo do tempo?

Airton Monte - Se eu disser que não tenho medo do tempo eu estaria mentindo. O meu medo do tempo não é o medo de morrer, não é o medo de envelhecer. O medo da palavra tempo é o de me tornar obsoleto em relação ao presente. A minha briga toda é essa. Não posso me desligar das raízes do meu passado. Aquilo que eu aprendi está aprendido. Mas tanto na medicina quanto na literatura, meu medo é o de ficar obsoleto. De ficar um velho gagá. Aqueles antigões, parados no tempo, sem diálogo com ninguém, que passam a vida num tempo ilusório, um tempo passado.

OP - E como você tenta superar isso?

Airton Monte - Estudando, lendo. Tanto de um lado quanto de outro, eu tenho de estar antenado. Na medicina, minha vantagem é que não preciso gastar rios de dinheiro para ir aos congressos. Eu ligo o computador e recebo os anais, entro nos sites da Sociedade Médica Brasileira, da Associação de Psiquiatria. Estou o tempo todo atualizado.

OP - Você tem livros que estão sendo utilizados no vestibular. Quando você conversa com esse público do vestibular, esse público mais novo, esse medo da obsolescência aumenta?

Airton Monte - Eu nunca tive dificuldade de me relacionar com esse público mais jovem do que eu. Nem muito mais jovem nem muito mais velho. Eu tenho vários grupos de convivência. Eu tenho a turma da Gentilândia, que é a turma da minha infância, da minha idade. Tenho a turma do papai, que é uma turma mais velha, da idade do papai, de 80 anos, 90. Tem a turma do Clube do Bode. E nesse vestibular, a partir de 2004, 2005, o que me deu mais surpresa foi que de repente aquela garotada chegou e disse: “olha, a gente está te lendo porque a gente está gostando”. E eu conseguia me comunicar com eles no mesmo nível. Brincando, rindo. Não me sinto deslocado entre os jovens. Eu sou como aquele velho jogador, o Romário, que ainda está ali rondando a área, sobrou a bola pedindo para eu chutar, eu chuto.

OP - E fisicamente, você se cuida?

Airton Monte - Decididamente, eu nunca fui exemplo para ninguém. Não vou a médico, não sei a quantas vai meu colesterol, minha glicemia. A única coisa que me incomoda, fisicamente, de vez em quando, é a asma, que o cigarrinho corrige, não tem problema. Eu bebo do mesmo jeito que bebia quando era jovem. Como as mesmas coisas que comia. Eu quero ficar velho. Se puder até ver meus netos crescerem eu queria. Agora, do meu jeito. Não me interessa viver uma vida sem poder sair, sem poder fazer as coisas de que gosto. De clínico geral eu tenho pavor porque você entra lá saudável e sai doente (risos). Tenho muitos amigos médicos, sou da máfia, mas reconheço que não sou exemplo pra ninguém. Se alguém quer viver muito, não siga meu exemplo. Comigo está dando certo. Estou praticamente com 58 anos, com corpo de bailarino espanhol e um fígado de 20 que nunca me deu problema.

OP - A Fortaleza que você começou a descrever em tuas crônicas era uma cidade bem menor, mais pacata. Nossa cidade hoje é um monstrengo que cresce desordenadamente, sem respeito pelo passado e sem respeito pelo próprio fortalezense. Como você se relaciona com essa Fortaleza mais jovem?

Airton Monte - Eu cresci em Fortaleza. Nasci aqui. Tenho 57 anos, nunca saí daqui. Nasci na Rua Dom Jerônimo, de parto normal, filho do primeiro amor, do primeiro “descuido”, como dizia a minha mãe. E fui criado naquele território mágico ali da Gentilândia, do Benfica, do Jardim América. Mas Fortaleza foi mudando de uma maneira que me fez ter que mudar também. E a mudança foi brutal. Hoje eu caminho em alguns lugares - com exceção da Gentilândia, por exemplo, que permanece mais ou menos como era antes -, e perco as referências que tinha. A Praia de Iracema morreu. Eu tive de aprender a conviver com essa Fortaleza. Uma cidade em que vivo com medo, medo por mim, por meus filhos; uma cidade em que não posso me arriscar muito e ir numa esquina, a caminhar pela cidade, coisa que adorava fazer. De dez anos pra cá, passei a viver nessa Fortaleza que ensandeceu, enselvageceu, onde nós perdemos aquilo que era a democracia da gentileza, a democracia do lirismo. Hoje não somos mais próximos, nós somos ilhas. Ilhas de solidão, de desconfiança.

OP - E o que a nossa cidade ainda tem de positivo? O que ainda te inspira na Cidade?

Airton Monte - As coisas boas de Fortaleza. O subúrbio. Alguns subúrbios. O domingo no subúrbio, ainda tem isso. Eu vejo na rua do meu pai, na Dom Jerônimo; vejo na Gentilândia também. Ano Novo e Natal as pessoas entram nas casas umas das outras e uma leva uma torta, outra leva não sei o quê.

OP - Mas você ainda circula?

Airton Monte - Circulo na Gentilândia, nos bairros do Benfica. Na Praia de Iracema jamais. Todos os sábados vou ao Clube do Bode, que é a livraria do Sérgio Braga. E nós bebemos no Florida Bar, que é o braço armado do Clube do Bode (risos). É o Hezbollah do Clube do Bode, tem aquele tira-gosto letal, só come quem está acostumado. Depois de 25 anos de tira-gosto de botequim você fica imunizado contra qualquer vírus. O Clube do Bode é esculhambação, é uma instituição anárquica, lírica, etílica, musical. Lá, o Nonato Luis dá um show num violão velho daquele do Falcão. Lá só quem não pode cantar é o Falcão. Apesar de ser o cantor oficial do grupo. Mas ele é proibido de cantar, por uma questão de higiene pública (risos).

OP - Há assuntos que você considera proibidos nessas rodas? Assuntos que, quando vêm à tona, você se retira?

Airton Monte - A única coisa que eu me retiro é quando começam a falar mal de amigo meu. Porque dos meus amigos só quem pode falar mal sou eu. E em tom de galhofa. Então, nós temos essa certa fidelidade. Quando está todo mundo junto, a gente fala mal mesmo. Mas não há coisas proibidas. Onde ando, há católicos, crentes, ateus, políticos de esquerda, de direita. Eu não sei mais nem se existe isso de esquerda ou de direita. Eu mesmo, esse ser anárquico, sou ateu e está aqui (pegando no escapulário pendurado no pescoço) o escapulário do meu beque central contra os maus olhados que é São Francisco, o “Chiquinho”. Ele é o sujeito que eu mais admiro, que foi revolucionário e mais cristão do que Cristo. Um sujeito que ia dar muito trabalho para a Igreja Católica hoje se fosse vivo.

OP - Que histórias engraçadas ou curiosas você recorda do convívio com essas turmas do Clube do Bode, da Gentilândia, etc?

Airton Monte - São várias. Eu andava muito com o Rogaciano (Leite Filho, jornalista) e o Paulo Mamede (jornalista). Tem uma história que é uma sacanagem que não se deve fazer com ninguém. Estávamos os três no Cais Bar. Uma noite, entra um mulherão daqueles de arrasar. Todo mundo dando em cima. A mulher acha de se engraçar do Paulo Mamede, um sujeito altamente periculoso (risos). E a gente só com inveja, aquela inveja mortal. Aí o Paulo Mamede começou bem com a menina, já começou com os beijos, etc. Lá pelas tantas, ele teve uma espécie de incômodo intestinal (risos) e teve de ir ao banheiro. E lá demorou-se. Quando ele demorou a gente inventou a seguinte história, de improviso. O Rogaciano se apresentou, eu disse quem era e a moça disse: “ai, você é psiquiatra?”. Eu disse: “sou’. “Inclusive, ele é primo do Paulo Mamede, esse rapaz aqui”, eu apontando para o Rogaciano. “E eu sou médico do Paulo Mamede”. “Ai, o senhor é médico dele?”. “Sou, sou psiquiatra, mas ele está bem” (risos). “Ele sai aos fins de semana e eu estou aqui acompanhando ele. Minha única preocupação é que ele está tomando um remédio forte e está misturando com bebida como você está vendo. As reações ninguém pode prever. Geralmente, ele fica muito violento” (risos). O Paulo Mamede chega feliz da vida do banheiro e ela já estava meio esquisita. O Paulo Mamede não entendia nada. Eu disse: “rapaz, tu não tem papo pra segurar a mulher”. Nós só fomos confessar isso pra ele, lá pelas quatro da manhã, no Estoril. E ele em vez de ficar com raiva começou foi a rir. E assim tem várias. O Augusto Pontes, tem umas frases que são terríveis. Ele diz assim: “Eu tenho uma boa e uma má notícia pra vocês. Qual vocês querem ouvir primeiro?”. “A notícia boa”. E ele: “O Fausto Nilo vem pra cá”. “E a notícia ruim?”. E o Augusto: “Ele vai cantar” (risos).

OP - O João Cabral de Melo Neto costumava dizer que não acreditava em inspiração, que o ofício de poeta era um ofício que exigia muito trabalho. Você acredita em inspiração?

Airton Monte - Aí tem uma diferença. O texto de ficção eu não tenho nenhum prazo para entregar. Então, é uma coisa que eu vou maturando, posso passar três anos refazendo, cortando. Já a crônica é diária. E é um gênero literário - apesar de alguns babacas dizerem que não é, eu digo que depende do cronista. Uma crônica do Rubem Braga é um texto literário, já um texto do Paulo Coelho não é nada, é uma mágica (risos). É um feitiço. Ele faz até chover e levita (risos). Mas a crônica, eu tenho que entregar o texto. O POVO já me paga pouco, se eu não entregar... (risos). Apesar de toda essa anarquia, eu sou muito profissional nas coisas. Então, eu tenho que chegar e escrever. Em termos de inspiração, os textos que você escreve ou saem de parto natural, quando você escreve um conto em dois minutos, ou saem de parto a fórceps, quando você tem que dar uma forçada. E tem dia que só sai na porrada, só vai na cesariana (risos).

OP - Você sempre escreve seus textos à mão?

Airton Monte - Porque à mão eu escrevo mais rápido. Mesmo se eu tivesse um notebook, eu não levaria um notebook, que custa uma fortuna, para a beira da praia, para o pessoal entupir de farofa... (risos). Se você leva para o bar ou para a praia, vão derramar cerveja em cima. O cabra vai dar palpite, outro quer mexer. Escrever, então, é um ato muito solitário. Não é como o cinema, que é uma arte coletiva.

OP - Algumas vezes, você coloca algumas coisas bem pessoais em suas crônicas. Você chega a se arrepender de alguma maneira das coisas que você expôs ao público?

Airton Monte - Nunca me arrependi. Não dá para me arrepender porque tudo foi consciente. Eu não sou aquele sujeito que escreve com raiva. O texto que me deu mais polêmica foi o Tratado Geral da Maconha, que quase vou em cana porque o Moroni (Bing Torgan) me acusou de incentivo e apologia ao uso e ao tráfico de drogas. Mas se você vai ler, você vai ver que era um tratado geral da maconha mesmo, baseado em toda a literatura que eu tinha sobre drogas, toda a minha experiência pessoal e clínica. Isso foi publicado no tablóide de literatura do jornal O POVO. Nos anos 80. O Moroni era diretor ou era delegado da Polícia Federal. Eu tive que ir depor, dei um depoimento farmacológico e o pobre do escrivão quase fica louco lá (risos). Mas o Moroni deu azar porque uma semana depois eu peguei ele num debate na UFC sobre drogas. Acho que, só de sacanagem, me botaram lá. E o Moroni disse: “meu sonho é viver num país que não precisasse de polícia”. Eu disse: “comunista, o senhor é um comunista radical” (risos). Aí ele ficou maluco. E eu disse: “O senhor é um comunista radical. O senhor é mais comunista que o Karl Marx e o Engels juntos. O senhor é um revolucionário maior que o Che Guevara. O senhor quer a guerrilha”. E ele não entendeu e eu fui explicar. “O senhor quer viver numa sociedade sem crime. Isto é, só há crime porque há a propriedade privada. Então, para não haver mais crime tem que abolir a propriedade privada. O senhor está pregando a abolição da propriedade privada, isso é comunismo do brabo”. Rapaz, esse homem ficou louco, engasgou-se, foi se embora. Acho que ele não me prendeu de novo porque não podia. Então, essa coisa de você escrever com raiva eu aprendi. Quando eu tenho alguma raiva, eu espero uma semana a coisa amornar para me tornar racional porque depois desse tempo todo de jornal a gente começa a ter noção da responsabilidade que a gente tem diante do leitor.

OP - Há um texto seu que foi muito marcante que foi publicado na época em que sua mãe faleceu...

Airton Monte - Não foi só um texto, foram uns três textos. Eu acompanhei a agonia da minha mãe na UTI, me envolvi muito. Minha mãe estava na UTI pela vigésima vez, não era mais gente. E aquilo me dava uma dor imensa. Eu ia lá desligar os aparelhos na marra, não queria saber o que é que ia acontecer. Médico sabe fazer isso. Eu até já tenho meus planos traçados com dois ou três amigos que é para ter uma margem de segurança. Se um de nós cair nessa situação de vegetal, o outro vai lá e dá um jeito. O ser humano tem direito. Já que ele não pode escolher como nascer, ele tem o direito de escolher como morrer. Na hora em que souber que estou com uma pereba dessas grandes, e que não puder mais fazer o que faço e que vou ficar numa cama feito abestado e tal, ou na cadeira de roda naquela base de bota o velho no sol, tira o velho do sol pro velho não mofar... (risos). Ah, a boca do véi tem mosca entrando (risos). É de lascar, bicho. Então, escrevi na emoção. Eu tava no consultório, ela (dona Sônia) me telefonou dizendo “tua mãe morreu”. Atendi todos os pacientes com a mesma calma que podia aparentar e fui para o velório. Fiquei lá até meia noite, pedi para me deixarem em casa, escrevi a crônica numa máquina de escrever, avisei para a empregada que de manhã o motoqueiro vinha pegar. Nem dormi. Enchi a cara de uísque, fui para o funeral e fiquei lá até minha mãe se enterrar. Só não assisti à missa. E voltei para escrever, escrevi umas três vezes. Então, esses textos mais pessoais, escritos, como dizem os advogados de bandido, sob forte emoção, esses saem. Mas mesmo assim eu tenho que ter cuidado.

OP - Você falou que não anda mais em estádio, mas é um torcedor apaixonado do Fortaleza. Como é a tua relação com o futebol hoje?

Airton Monte - Eu sou essencialmente torcedor de três times. Fortaleza, Seleção Brasileira e o Botafogo, que é minha paixão realmente. Eu fui torcedor que nunca fui de brigar, eu sou de chorar, de assistir aos jogos da seleção de camisa amarela, de ter o time do Botafogo na minha parede, de ser fã do Garrincha mais do que do Pelé. Eu amo o futebol, então gosto do futebol bem jogado. Torcia Botafogo, mas vibrava com o time do Santos, com o time do Palmeiras. Eu vibrava com o Fortaleza que tinha Mozarzinho, Croinha. Como é que não ia vibrar? Ou com o Ceará que tinha Gildo, Lucena, Zé Eduardo. Então, o futebol para mim é expressão artística. O futebol continua sendo uma das paixões da minha vida. Não consigo viver sem futebol, eu gosto da bola bem jogada. Eu não quero ver malabarismo, o cara colocar a bola no ombro e sair fazendo que nem o Ronaldo. Eu quero ver é jogar que nem o Zidane, dar um passe de 40 metros, isso é o futebol que estou acostumado a ver.

OP - O Estoril foi um lugar importante para tua geração. Como é para você ter se afastado da Praia de Iracema? Como você entende o fato de Fortaleza ter perdido o Estoril, a Praia de Iracema?

Airton Monte - Praticamente o Estoril caiu na minha cabeça. A gente sabia que mais cedo ou mais tarde ia cair porque toda vida que chovia havia um problema. Eu estava em casa, com uma ressaca lascada, mas a rapaziada ligou dizendo que o Estoril tinha caído. Quando cheguei lá, eu vi o Estoril demolido e aquela mesa fúnebre ao lado, umas cinco ou seis pessoas. E aquilo foi terrível pra gente. Todo mundo ficou revoltado, triste. Ali, eu comecei a perceber que a Praia de Iracema começava a morrer, definitivamente. A Praia de Iracema perdeu a alma dela, deixou de ser um território lírico, poético e engraçado. Na nossa geração, não era de bom tom, diziam os colunistas sociais, ir a Praia de Iracema porque eram onde os maus moços das boas famílias se encontravam com as meninas boas das más famílias. O Estoril era um valhacouto de comunistas, maconheiros e desocupados. Ser poeta naquele tempo era meio complicado. Ninguém queria ser poeta, nem os médicos. Era meio complicado, ser músico, ser poeta, se dizer boêmio. Eu sofri muito na minha carreira, eu e outros colegas. A gente era malhado, “porra o cara é médico e vive no Estoril, bebendo cerveja”. De vez em quando a polícia federal batia lá atrás da maconha. Cansei de ficar em pé na parede, todos nós, sendo revistados, a polícia atrás da maconha, só que a maconha a negada já tinha escondido há muito tempo que ninguém era besta (risos). Outras vezes, eles fechavam a Ponte Metálica. A gente ia para ver o pôr do sol e de repente nos avisavam que tinham uns policiais lá embaixo para cheirar as mãos de quem descia pra ver se tinha maresia. Eu disse: “não tem problema, todo mundo mete a mão no fundo, remexe um pouquinho”. E a negada sentia o nosso fiofó (risos). Nunca mais ficaram lá.

OP - Você falou que já não sabe dizer o que é esquerda ou direita em nossos dias. Ainda há alguma utopia, algum horizonte político que você persegue, que você imagina que a gente possa alcançar?

Airton Monte - Eu fui católico fiel até os 15 anos, depois me tornei ateu, fui comunista, com todos os defeitos que a gente teve. Mas a gente fez uma coisa legal em nossa geração. Hoje, posso me definir como um anarquista utópico. Anarquismo no sentido filosófico da palavra. O homem bem educado ou suficientemente bem educado, conhecendo seus limites, não precisa de leis para dizer o que se pode ou não fazer. Sabendo muito bem onde termina minha liberdade e onde começa a do outro, não precisa de nenhuma lei do silêncio para me dizer que não posso levantar o som alto depois das onze para não incomodar meu vizinho. O importante, o caminho para o Brasil e para o mundo seria primeiro a educação. É formando inteligência que a gente vive. Democracia é você dar oportunidades iguais. Tanto faz ser um filho de carroceiro ou de um milionário. O importante é você dar oportunidades iguais, o mesmo nível de estudo, os mesmos professores. Eu sei que isso nunca vai acontecer. Mas o estudo público já foi bom no tempo do Liceu do Ceará. Educação é fundamental.

OP - A tua geração sempre lutou por muitas dessas bandeiras. Em que você acha que a tua geração errou para que nós chegássemos aos problemas que estamos vivendo hoje?

Airton Monte - Nós erramos pelo simples fato de querer fazer a revolução sem o povo. Nós não vimos que o segredo da revolução não estava no campo, nós não éramos uma ilha. Depois de tanto tempo pensando, eu vejo que nosso caminho tinha de ser diferente. Não era o interior, eram as favelas. E achávamos que o povo era burro. Ou infantilizamos o povo, sendo o pai dele, ou imbecilizamos ou glorificamos. Essa entidade mágica que eu não sei quem é, o povo. Porque eu também sou o povo. O povo também é sem vergonha. É vilão e vítima.

Fonte:
Jornal de Poesia. janeiro de 2007

Aprendendo sobre Poesia (Parte II)

Pintura de Martins de Barros
POESIA E PROSA

Em primeiro lugar, cumpre observar, que segundo René Wellek (Teoria da Literatura), "na sua maioria, a moderna teoria literária mostra-se inclinada a pôr de parte a distinção entre prosa e poesia", muito embora tal distinção venha sendo objeto de discussão que, provavelmente, perdurarão sempre. Observe-se ainda que não se trata aqui de estabelecer distinção entre prosa e verso, facilmente notada. De fato, prosa e verso "são formas tecnicamente diferentes da obra literária" (Wilson Martins). Não se confundiria, formalmente, um poema épico com um romance, embora sejam, tanto um quanto o outro, obras literárias e, mais que isso, participem ambos da mesma natureza, isto é, sejam obras essencialmente narrativas.

O mesmo não se observa quando se trata de fazer distinção entre prosa e poesia. A dificuldade começa com a terminologia, pois se temos as palavras verso (forma técnica) e poesia (essência) diferentes entre si e designando coisas diferentes, o mesmo não se dá com a prosa. Temos um único termo para designar tanto um certo tipo de forma técnica quanto certa essência. Observe-se ainda que "prosa" é o oposto de "verso", mas não é, necessariamente, oposto de poesia.

Para compreensão do assunto, estabeleçamos o seguinte, tomando por base o aspecto formal:

a- Prosa (na sua essência) é o que está escrito em prosa (forma técnica).

b- Poesia (na sua essência) é o que está escrito em verso (forma técnica).

Como se vê, tal disposição faria, na realidade, distinção apenas entre prosa e verso, além de identificar poesia e verso, quando a poesia pode aparecer em verso ou em prosa.

Por isso, na distinção entre prose e poesia deve-se tomar por base o "conteúdo que as palavras transmitem e a postura assumida por que pretende transmiti-lo" (Massaud Moisés).

Note-se, entretanto que, participando - tanto a prosa quanto a poesia - da mesma natureza, utilizando-se dos mesmos signos, sendo deformações da realidade, é claro que poesia e prosa se assemelharão em vários pontos. Entretanto, à poesia interessa apenas o mundo interior, o "eu" do poeta, "seu objetivo verdadeiro é o reino infinito do espírito". O poeta volta-se para dentro de si mesmo, para as camadas interiores de seu ser, de sua alma, buscando nelas seus sentimentos, suas emoções. Pode-se dizer, portanto, que

Poesia é a emoção (pessoal) através da palavra.

A paisagem exterior só interessa ao poeta como projeção de seu próprio "eu", ou quando aparece interiorizada, ou ainda quando desperta certos ecos na alma do poeta, fazendo com que ele saia de dentro de si mesmo, projete-se na Natureza e retorne à sua própria alma, como nos versos abaixo:

Já o Sol se encobria
a este tempo, mais
ficando a terra sombria,
e o gado nos currais
já então se recolhia;
ouvi cães longe ladrar,
]e os chocalhos do gado
com um som tão concertado,
que me fizeram lembrar
de quanto tinha passado.
(Bernardim Ribeiro)

Ou ainda nesses, de Fernando Pessoa:

Contemplo o lago mudo
Que a brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

Quando aparece na poesia a paisagem a realidade exterior, "o mundo subjetivo e objetivo aderem-se, embrincam-se formando uma só entidade, subjetivo-objetiva, com a forçosa predominância do primeiro".

Além dessa distinção, podemos observar que se a linguagem da poesia conserva, até certo ponto, a ordem lógica necessária à inteligibilidade - mesmo que esta não seja essencial - essa ordem lógica é muito mais necessária na prosa, já que ao prosador interessa antes a realidade objetiva, a realidade que o cerca, do que seu mundo interior, caótico e vago. Daí a razão de o prosador lançar mão da lógica ao produzir sua obra literária, lógica que não existe, necessariamente, na obra poética. Embora tanto o prosador quanto o poeta usem a metáfora, ela é menos vaga, menos ambígua na prosa do que na poesia, pois "a linguagem da prosa retrata, descreve, fixa, narra os aspectos históricos, visíveis, que estão à mercê da observação de todos" (Massaud Moisés).

Feita a distinção entre prosa e poesia pelo tom interior de uma e outra, e pela linguagem que as caracteriza, resta dizer que a poesia manifesta-se, geralmente, através do verso, ou seja, num ritmo mais acentuado que o da fala habitual, caracterizando-se na representação gráfica por linhas cortadas com certa regularidade, como no exemplo abaixo:

"Oh, quem me dera não sonhar mais nunca.
Nada ter de tristeza nem saudades
Ser apenas Moraes sem ser Vinícius!
Ah, pudesse eu jamais, me levantando
Espiar a janela sem paisagem.
O céu sem tempo e o tempo sem memória!
Que hei de fazer de mim que sofro tudo
Anjo e demônio, angústias e alegrias
Que peco contra mim e contra Deus!
Às vezes me parece que me olhando
Ele dirá, do seu celeste abrigo:
Fui cruel por demais com esse menino..."
(Vinícius de Moraes, "Elegia, quase uma ode", Op. cit., pág. 72)

Pode aparecer, ainda, de modo contínuo, num ritmo mais natural, mais identificado com o da fala habitual; graficamente se representará preenchendo linhas inteiras da página, como no seguinte exemplo:

SOM

"Trago todas as vibrações da rua, por um dia de sol, quando uma elétrica corrente de movimento circula no ar...
Mas, de todas a vibrações recolhidas, só me ficou, vivendo a música do som no ouvido deliciado, a canção da tua voz, que eu no ouvido guardo, para sempre conservo, como um diamante dentro de um relicário de ouro.
Cá está, cá a sinto harmonizar, alastrar em som o meu corpo todo, como flexuosa serpente ideal, a tua clara voz de filtro luminoso, magnética, dormente como um ópio...
Muitas vezes, por noite em que as estrelas marchetam o céu, tenho pulsado à sensação de notas errantes, de vagos sons que as aragens trazem.
As fundas melancolias que as estrelas e a noite fazem descer pelo mar ser, da amplidão silenciosa do firmamento, dão-me à alma abstratas suavidades, vaporosos fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas imensas de inauditas sonoridades.
E, calado, na majestade sombria da Natureza, como num religioso recolhimento de cela, vou ouvindo, esparsos na vastidão, esmorzando nos longes, entre redondos tufos escuros de folhagem, onde se oculta alguma luxuosa existência de mulher, inebriantes sons de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos.
E os sons chegam, vêm até mim, na estrelada tranqüilidade da noite, frescos e finos, como através de rios claros que nevassem ou de vagas embaladoras que o frio luar prateasse.
E eu penso, então, nessas simpáticas, corretas atitudes e expressão da música.
Vejo, na nitidez de cristal do pensamento, a harpa, sonora asa de ouro, com as cordas tensas, dedilhada por brancas mãos aristocráticas que arrancam dela frêmitos, soluçantes dolências, plangências incomparáveis."
(Cruz e Sousa, Missal, Obra Completa, Rio, Aguilar, 1961, pág. 424)

A prosa, por sua vez, aparece normalmente de modo contínuo, formando linhas inteiras, o que não impede que apareçam páginas de prosa em verso, como no seguinte exemplo:

"Em tanto que se ordena a brutal festa,
Nada sabiam na marinha gruta
Os habitantes da prisão funesta,
Que, ardilosa, lho esconde a gente bruta;
E enquanto a feral pompa já se apresta,
Toda a pena em favor se lhe comuta.
Nem parecem ter dado a menor ordem,
Senão que comam e, comendo, engordam.

Mimosas carnes mandam, doces frutos -
O araçá, o caju, coco e mangaba;
Do bom maracujá lhe enchem as grutas,
Sobre rimas e rimas de goiaba;
Vazilhas põem de vinho nunca enxutas
E a imunda catimpoeira, que da baba
Fazer costuma a bárbara patrulha,
Que só de ouvi-lo o estômago se embrulha."
(Frei José de Santa Rita Durão, Caramuru, Rio, Agir, 1957, pág. 28)

Às vezes a poesia faz interferência na prosa, isto é, encontramos passagens poéticas em obras que classificaríamos seguramente de prosa. Está neste caso o trecho do romance Mar Morto transcrito abaixo:

"Lívia olha o mar morto de águas de chumbo. Mar sem ondas, pesado, mar de óleo. Onde estão os navios, os marinheiros e os náufragos? Mar morto de soluços, quedê as mulheres que não vêm chorar os maridos perdidos? Onde estão as crianças que morreram na noite do temporal? Onde está a vela do saveiro que o mar engoliu?E o corpo de Guma que boiava com longos cabelos morenos na água que era azul? Na água plúmbea e pesada do mar morto de óleo corre como uma assombração a luz de uma vela à procura de um afogado. É o mar que morreu, é o mar que está morto, que virou óleo, ficou parado, sem uma onda. Mar morto que não reflete as estrelas nas sua águas pesadas.
Se a Lua vier, se a Lua vier com sua luz amarela, correrá por cima do mar morto e procurará como aquela vela o corpo de Guma, o de longos cabelos morenos, o que marchou pela estrada do mar para o caminho das Terras do Sem Fim, das costas da Arocá."

O trecho que sucede a esta marca um retorno à prosa, à narrativa:

"Lívia olha de sua janela o mar morto sem Lua. Aponta a Madrugada. Os homens que rondavam a sua porta, o seu corpo sem dono, voltaram para as suas casas. Agora tudo é mistério. A música acabou. Aos poucos as coisas se animam, os cenários se movem, os homens se alegra. A madrugada rompe sobre o mar morto."
(Jorge Amado, Mar Morto, 16ª edição, pág. 262)

Nestas condições, tendo em vista a teoria e os textos apresentados, observamos que a distinção entre prosa e verso, no seu aspecto formal, não oferece nenhum problema. Os textos de Bernardim Ribeiro, Vinícius de Moraes e de Santa Rita Durão são escritos em verso, ou seja, em linha regulares cortadas, ao passo que os textos de Jorge Amado e de Cruz e Sousa o são em prosa, isto é, em linhas inteiras, que ocupam toda a página.

Quanto à distinção entre poesia e prosa, ou seja, prescrutando-se a essência dos textos, é de se notar que as composições de Bernardim Ribeiro, Vinícius de Moraes, Cruz e Sousa e a primeira parte do texto de Jorge Amado estão vazados numa linguagem que caracteriza a emoção pessoal, o modo de ver particular de cada autor, sendo, portanto, exemplos de pura poesia.

De outra sorte, o texto de Santa Rita Durão e a segunda parte do texto de Jorge Amado mostram uma ordem lógica, caracterizadora da realidade objetiva que cerca o autor, sendo, portanto, exemplos de prosa.

Resumindo:
1- Texto de Bernardim Ribeiro
a - quanto à forma: verso
b - quanto à essência: poesia

2- Texto de Vinícius de Moraes
a - quanto à forma: verso
b - quanto à essência: poesia

3- Texto de Cruz e Sousa
a - quanto à forma: prosa
b - quanto à essência: poesia

4- Texto de Santa Rita Durão
a - quanto à forma: verso
b - quanto à essência: prosa

5- Texto de Jorge Amado (primeira parte)
a - quanto à forma: prosa
b - quanto à essência: poesia

6- Texto de Jorge Amado (segunda parte)
a - quanto à forma: prosa
b - quanto à essência: prosa

Finalizando, diremos que o texto de Cruz e Sousa e a primeira parte do texto de Jorge Amado identificam-se como Prosa Poética, e o texto de Santa Rita Durão identifica-se como Poema em Prosa ou Prosa em Verso.
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continua...
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Fonte:
Colégio Terra Nova.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Aloisio Alves da Costa (1935 - 2010) "In Memoriam"

Aloisio Alves da Costa (20 Novembro 1935 – 24 Fevereiro 2010)



Aloísio Alves da Costa, o "Velho Marujo" como gostava de ser chamado faleceu na data de hoje, 24 de fevereiro de 2010.

Aloísio nasceu a 20 novembro de 1935 em Umari/CE, filho de Vicente Alves da Costa e Vicência Alves Aranha. Ex militar da Marinha brasileira. Residiu bom tempo em Nova Friburgo, onde iniciou suas atividades poéticas obteve o honroso título de "Magnífico Trovador". Publicou "Cantigas um sonhador" e "Cantigas de três”.
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Trovas que Deixam Saudades

Quem não aprende em menino,
tem que aprender na velhice,
que ter pai pobre é destino,
mas sogro pobre é burrice!...

Minha irmã conta as topadas,
que já deu pelos caminhos,
pelas pedras arrancadas...
- E eu conto, pelos sobrinhos!...

Sambando quase pelada,
no 'No bloco do vai sem medo",
Paulete foi mais cantada
que o refrão do samba enredo..

Quando a noiva viu a cama
que a esperava pra dormir,
mandou sustar o proclama
e desistiu do faquir!...

Na farmácia, ao ver o busto
da balconista, hesitante,
em vez de xarope, o Augusto
pediu mesmo foi calmante!...

O que faz eu ter ciúme
da Rosinha - diz o Freire:
- É que a Rosa tem perfume
mas não é flor que se cheire...

Sendo orador de alta escala,
é tão profundo e erudito,
que a gente, quando ele fala,
só entende o... "tenho dito".

Partiste, chorando tanto,
no teu rumo oposto ao meu,
que, solidário ao teu pranto,
o céu fechou-se... e choveu...

Na tua ausência, a meu lado,
em cima de nossa mesa,
o candelabro apagado
mantém a saudade acesa!...

Teimei no amor... e errei tanto
na teimosia de amar,
que eu mesmo não sei mais quanto
errei tentando acertar!...

Partiste, cigana errante,
e de uma noite em teu leito,
restou-me um sonho distante
e esta saudade em meu peito'...

Meu sonho em mágoa desfeito,
tão grande fez meu desgosto,
que não cabendo em meu peito
se fez pranto em meu rosto!...

Feito de essência divina
e fluídos de eternidade,
um grande amor não termina,
mas se transforma em saudade!

Dando na alma embevecida,
laços de amor e amizade,
fui, na jangada da vida
um pescador de saudade!...

Sempre que a vida me nega
segurança nos meus passos,
minha esperança me pega
e me carrega nos braços!

Na luta contra a cobiça,
mantendo na alma a esperança,
meu desejo de justiça
é maior que o de vingança!

Quando a vida se complica
nas horas de solidão,
amigo é aquele que fica
depois que os outros se vão.

Não busques falso tesouro
se bens duráveis garimpas...
Nem sempre as mãos que têm ouro
e pedras raras, são limpas...

Castigado desde cedo,
tanto apanhei do destino,
que nunca tendo um brinquedo,
nem lembro que fui menino.

Dói a saudade em meu peito
e eu canto, não silencio...
Quando mais pedras no leito,
mais alto o canto do rio!...

Nem ouro, nem pedra rara,
nada que vem do garimpo,
vale um fio de água clara
no leito de um rio limpo...

Quando a voz de um pai ressoa
e a de um filho abaixa o tom,
conselho é semente boa,
plantada em terreno bom!

Sou de onde o vento trabalha,
lá onde a brisa fagueira
embala de leve a palha,
beijando a carnaubeira! ...

Era uma vez uma dona
que andava a pé, sem ninguém;
e tanto pediu carona,
que ganhou carro também! ...

Teu olhar... a voz macia...
tuas promessas de amor...
- são notas de fantasia
na pauta da minha dor.

Dos jogos o mais nocivo,
até hoje, em meu caminho,
tem sido o rebolativo da mulher
do meu vizinho!

Dos ideais o maior
é viver, lutar, e, após,
deixar um mundo melhor
aos que vêm depois de nós.

Enquanto o Zé Liberato
sai em busca da gatinha,
pela janela entra um gato
que janta a sua sardinha!

Creio em Deus, unicamente
não ando rezando à-toa...
- tenho uma alma que sente
e um coração que perdoa!

Somente um bem acontece
quando a gente cai doente:
doente é que se conhece
quem é amigo da gente.

Vejo em ti, coroa rica,
dois males que não têm cura:
- capa de pura pelica,
- cara de pelanca pura!

De olhos baços, pelas ruas,
vi, distante de Belém,
que sem a chuva das duas,
saudade molha também!

Já diz o velho ditado,
que lenha verde e viúva,
com paciência e cuidado
pegam fogo até na chuva!...

Quando a lei se faz omissa
e a impunidade se solta,
do silêncio da justiça
surgem gritos de revolta...

Não condeno o revoltado
que defende seu direito...
-revolta de injustiçado,
merece todo respeito!

Quando instantes de carinho,
trazem saudades depois,
lembrança é viver sozinho
de um sonho vivido a dois.

Quando não vens, na ansiedade
desses momentos perversos,
vem a musa da saudade
pôr mais saudade em meus versos.

Agora que tu partiste
e a saudade está chegando,
desculpe o meu verso triste,
minha musa está chorando!...

Volátil, discreta e doce,
no instante certo, presente,
a musa é como se fosse
o anjo-da-guarda da gente...

As musas, não posso vê-las...
vivem num mundo distante...
mas posso além das estrelas
ouvi-las a todo instante

No momento doce e breve
que a inspiração nos invade,
dos versos que a gente escreve,
a musa escreve metade!...

Na luta contra a cobiça,
mantendo na alma a esperança,
meu desejo de justiça
é maior que o de vingança!

Preguiçoso, o "ZÉ PIJAMA",
Tanta preguiça agasalha,
Que a mulher só não reclama
Porque o vizinho trabalha.

Mensagem de amor profundo,
nos deu o Mestre Divino...
O maior homem do mundo
antes foi pobre menino!...

Esta saudade infinita
do amor que a gente viveu,
é a mensagem mais bonita
que o meu passado viveu!...

Vencendo o tempo e a distância,
mensagens da mocidade,
sempre nos trazem da infância,
saudade ... muita saudade...

Mensagem que se recebe
e nos enche de quimeras,
é aquela em que se percebe
que as palavras são sinceras

Ante o medo que angustia,
talvez a grande mensagem,
fosse a que Deus nos diria ...
- Coragem, filho, coragem ...

Dói a saudade em meu peito
e eu canto, não silencio...
Quanto mais pedras no leito
mais alto o canto do rio!

Na tua ausência, ao meu lado
em cima da nossa mesa,
o candelabro apagado
mantém a saudade acesa.

Dentro da noite inclemente
De frio intenso e garoa,
o agrado de um beijo quente
garante que a noite é boa!...

- Pelas ruas da lembrança,
nas cirandas das calçadas,
saudade, sonho e esperança,
brincam juntos de mãos dadas!

- Quando o amor se faz lembrança
e a solidão nos invade,
ou se vive de esperança
ou se morre de saudade...

- Quando Deus fez da Trindade
a divina aventurança,
entre a fé e a caridade,
pôs em destaque a esperança...

- Na carta que ela me fez,
nas reticências sem fim,
a incerteza de um "talvez"
dá-me esperanças de um "sim"...

Na linha desta saudade,
que é tua e também é minha,
nós somos nós de verdade
nas duas pontas da linha!

Passa o tempo, a idade avança...
e na velhice inclemente,
a velha, numa cobrança
mata o velho... inadimplente...

Toda noite na gandaia,
vai muito mal a Loló...
Pois perdeu além da saia
outras coisas no forró.
______________
Fonte:
UBT Juiz de Fora

Batista de Lima (Navegando num Mar de Poesias)


Pródigo

Sempre retorno para casa
não para a casa
para onde sempre retorno

Retorno para uma outra casa
que carrego aos ombros
para outra casa
que me carrega aos ombros

Sempre carrego essa casa do retorno
que cabe em qualquer casa
e não cabe em casa alguma

Não adiante a casa onde nasci
nem a casa onde todo dia nasço

A casa que carrego
não tem portas nem paredes
nem ocupa terreno algum

A casa que carrego
é apenas uma casa
uma profunda e vasta casa

A Casa de meu Avô

A casa de meu avô
tem histórias que o vento
esqueceu nas cumeeiras

Traços traçam
amarelo de tempo
nas pessoas dos retratos
No chapéu de meu avô
o peso do esperar
pendurou-se nas abas

O último cachorro
deixou seu jeito no canto da porta
seu grito no longe da serra
e no susto dos bichos

Nos varais as marcas dos panos
se envergonham de nudez
Nos baús o cheiro dos lençóis
espera a vida
que se esvaiu pelas frechas

A casa de meu avô
é uma dor sem jeito



O que faz mais dura a solidão
é tirar de mim o que me falta

O que faz doer a solidão
é sua sede
é ter que arrancar
destas entranhas
um oceano de podridade
de quem freqüentou a escola das facas
onde o que corta não é o gume
mas a falta da lâmina

O que fere não é a dor
é sua ausência assassina
pendurada nos cabides da alma

O que dói na solidão
é ter que amar
e amar é perder uma banda
é extrair um bonde de um homem
é extrair um bosque de uma mulher

O que mais fere na solidão
é sua inscrição cravada em brasa
no braço inútil do verso
uma família em torno da mesa
comendo pratos de silêncio

O que mais dói na solidão
é perder de mim
os outros que carrego
o segundo contra o primeiro
o terceiro que instiga
o quarto que dorme
o quinto que inicia
uma infinidade de outros

O que dói na solidão
é essa batalha que não acaba mais
entre guerreiros invisíveis
enquanto um boi passeia nas nuvens
e uma bicicleta muge
já que os verdes anos foram nulos
para quem nasceu maduro
para quem perdeu o ciso
na primeira dentição
e o cordão umbilical
nos bicos de um galo cego
Ia prás bandas da Cipaúba

Quanto dói
ver a velha mangueira se desfazendo
velha velha mangueira
por quanto tempo roerei
teus nós
por quanto tempo aguardarei
a manga que os passarinhos
bicam
no último dos galhos

O que dói na solidão
é o vira-lata sozinho
revirando o deserto
da cidade esquecida nas ruas
é ter um pai com muitas capas
todas com seus mistérios
se desfazendo em barro
por um caminho que m’espera

O que mais dói na solidão
é ter na mão uma chave
que nada abre
que nada abre
O que mais dói na solidão
é não se poderem conter
os fantasmas que teimam
em saltar das sombras
de cada canto
São essas cobras
passeando em nossa cabeça
serpentário infindável

Difícil conviver
com a inesgotável solidão
mais difícil mesmo
é compor o verso
sem a vaca no divã
triste luna
rodonoite
áspera/mente

Só mesmo a roda grande
s’escondendo em menor roda
Só mesmo a bicicleta
pendurada no trem noturno
Só mesmo a melancia
no rio em cheia
boiando
E os carneiros na mesa grande boiando
os teus olhos boiando na bandeja
os teus seios boiando no cuscus
os teus sais boiando nas iguarias
os teus ais boiando na rememória

O que mais dói
não é tua ausência
mas tua presença
estando longe
Lembra-te pois do açude
onde as águas ainda nos guardam
e os peixes nos carpem
em lágrimas de cumplicidade

Lembra-te da porta marcada
pelos mistérios de estar fechada
da casa retendo a mesa onde
saboreávamos os silêncios familiares
e escrevíamos a história da solidão
no livro branco do cotidiano

A solidão mora lá e é manca
e usa bengala preta
e óculos no nariz
e se veste de uma veste que nunca muda
e tem na mão fechada a chave da
nossa libertação

Solidão solidão
meu coração é uma cidade
entre muralhas
esperando tuas chaves

Solidão solidão
certa vez em Mombaça
pedia esmolas p'ra São Sebastião
e desenhei teu corpo num surrão de mangas
e em bandas de coité de brejo
Desenhei teu corpo
num portão de vidro
éramos dois
que não eram dois
Éramos dois e só um sol
a claridade e seu dorso
a clara idade e sua dor

Solidão solidão
estamos em pleno mar e não
há mar nenhum
Estamos em pleno sono
e não há qualquer sonho
só minha mão como um rosto
cortando em muitos
o luar de agosto

O que dói na solidão é ter
Ter é estar preso
pesar pesadamente fixo
Não ter
é poder voar
Leve
levo-me às alturas
lavo-me candura
com o vôo esculpido
no azul azul
o azul está no prato
servido e sorvido
seres vivos
estamos nele
e ele em nós
pasto de pasto
repasto
solitariamente circular
rodando em torno da roda
A solidão eixa e deseixa
em roda
quanto mais vemos
menos vivemos
coração coração

Tenho ossos e mais ossos
a rodear
Que tenho feito senão rodear
nunca quebrei o fêmur do que está posto
nem a tíbia das situações sem jeito
Rodear é fugir
Solidade
quando chegamos ao trem
não havia trilho
No açude não havia água
só a dor do pescador
dois meninos
engolindo uma duna
e uma duna engolindo um astro
uma foto de uma foto partida
onde o instante enterrou-se
A solidão é uma foto em que
se retorce
um inconformado instante

Solidão é desencontrar-se nos próprios passos
nos próprios ossos
perder o azul do firmamento
deixar de extrair gerânios
das pedras e de suas raízes
deixar de pentear os raios do sol
desarredondar a lua em luares
atravessados

Uma casa é uma caixa
de apenas portas
e abertas todas
uma casa é um avesso
um delírio espesso
vasto berro de barro
vagido e gozo
vôo espargido
de sonho e suspiro

Minha solidão é nódoa grudada
no ombro esquerdo do corpo
onde jaz a mala
das minhas desventuras

Minha mãe é a terra
e cumpro seu estatuto
em retomar ao seu ventre
meus filhos todos me seguirão
vastíssimos sonhos
de/verão

Tarde tarde
a solidão me salga as horas
a mulher que retém o homem
suas asas e águas
rio seco
areia de leito
íngua cortada
ferida tratada a urina
caborge
no meu pescoço levo teu pescoço
teus passos laçados
teu poder de vôo
teu grito guardado

Solidão é Laura de costas
Laura láurea loura
minha querida Laura
chorarei lágrimas douradas
quando tua nudez
se esculpir no relâmpago

Querida Laura
recupera aquele instante
em que nossos dedos se
tocaram
e nos perdemos

Recupera o instante anterior ao toque
quando a correnteza era mais forte em mim
o despencar mais vertical
retendo aqui esse abismo
que me engole

Recupera teu pai
e a cuia
que enchamos de esperanças
antes do leite

Recupera tua mãe
e a chuva fina
no telhado

Recupera as águas
que nos levaram
e lavaram
nossos sais
o céu azul
o curto mundo
onde só o coração era vasto

Recupera as curvas
dos caminhos

Recupera o fogo de
monturo em nós

Se não me queimo
não posso iluminar
se não te firo
não extraio de ti o coração
"rosa vermelha
do meu bem querer"

Na noite tarde
o que resta é meu corpo lá
e eu daqui
olhando sua/minha posição fetal
e essa angústia de perdê-lo de vista
Não sei quando perderei
essa dor
de perder a casca
a casa do ser não importa tanto
se tantas se erguem
Só o ser é uno
solitariamente nu
e eu molusco
a vida inteira tenho construído essa casca
que me expele e me retém
escravo da construção
construir é viver
terminar a casa é terminar-me
é expulsar-me da casca construída

Foi fácil colocar a flor
atrás da flor
e ficar de uma só flor
reinventando pomares

Foi fácil reverter a manhã
colocando alvoreceres
de sol a pino
Foi fácil engatinhar
pelas galáxias
semeando brancas nuvens

Houve no entanto
um difícil momento
mudar o destino da tarde

Solidão solidade
quando procurarei no bolso
o poema
encontrei aberta uma artéria
e teu rosto de fada
tua avó morrente
uma floresta escura

Quando procurei no bolso
o poema
encontrei um mistério esculpido
algumas lavadeiras
oito bicicletas
e uma tia puxando um terço
solitária

Quando procurei no bolso
o poema
te vi mais uma vez
prima/vera/ndo
Vi também uma dor sangrando
solitária

Nos nossos bolsos pulsam
os meninos que enxotam o demônio
escondido num cupim
e uma mulher de tarrafa
tentando pescar o mar
nas entranhas de um peixe

Nos nossos bolsos
pulsa o destino do poetar o
revirar cada coisa para
desvendar seus mistérios
enquanto meus mistérios
para trás vão ficando
cada vez mais distantes
cada vez mais distantes
-------------

Fonte:
Soares Feitosa. Jornal de Poesia.

Batista de Lima (O Insepulto)


Terêncio Espinheira passava em frente à capela de São Raimundo quando sentiu travar o coração. Tombou, arrastou-se e morreu babando no último banco da igreja. O sacristão comunicou ao padre Otávio e foi avisar à família: duas filhas que com Espinheira moravam lá pras bandas do motor do arroz.

As duas receberam com alegria, a notícia, e não foram à casa santa, ver o corpo do pai. Pe. Otávio pediu um caixão ao Major Apolônio que, como prefeito, enterrava os mortos da cidadezinha por conta dos dinheiros municipais. Mas não havia caixão para Espinheira, destratador de políticos e destruidor do patrimônio público. A saída foi o velho sacerdote providenciar uma rede para conduzir o morto, e o fez constrangido porque muitas vezes, Terêncio, embriagado, invadira a igreja durante a santa missa, montado no seu cavalo cardão.

As filhas não compareceram pois festejavam a morte do pai com muitas rodadas de cerveja quente num reservado do Bar da Bia. Nunca mais apanhariam no meio da rua, do pai feito fera, apesar das suas idades, com mais de trinta anos cada uma. À tarde Pe. Otávio utilizou o serviço de som da igreja e pediu ajuda aos cidadãos de Sipaúbas para o transporte do defunto até o cemitério, ninguém apareceu. Nem adiantava, pois Gervásio, o coveiro, já se havia negado a cavar a cova, depois de tanto sofrer nas mãos de Espinheira. O vigário teve a idéia de pagar com o pouco dinheiro da coleta da missa a um carroceiro para carregar o morto. O carroceiro veio mas o burro puxador da carroça assombrou-se ao ver o morto e disparou de rua afora de carroça seca. Espinheira anoiteceu insepulto.

Já exalando mau cheiro, era alta noite, quando Pe. Otávio teve a idéia de colocar o cadáver num carro de mão e empurrá-lo até os fundos da igreja onde um riacho caudaloso transbordava em cheias de abril. Jogou o corpo na correnteza e veio desinfetar a capela.

No dia seguinte por mais de uma légua de riacho abaixo apareceram centenas de piranhas mortas, e nos invernos dos anos seguintes nunca mais correu água no riacho das Guaribas.

Fonte:
Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto.

Airton Monte (Ave Noturna)



– Seu doutor, o álcool comeu meu juízo. Daí cortei o pulso a gilete, engoli caco de vidro, bebi veneno de cobra e o veneno roeu minhas palavras. Desde então fiquei mudo, com medo das pessoas. Como falar com as pessoas? Como fazê-las entender meu mundo partido em dois, três, sei lá quantos pedaços? Não, eu não estou delirando agora. Consigo sentir-me por dentro de mim, domino meu próprio corpo. Sou eu quem fala agora. Não os outros que sobrevivem por baixo de minha pele.

– Seu doutor, me dê um cigarro, me faça carinho na cabeça como minha velha mãe fazia. Sim, agora eu me lembro como a casa era escura. De como o cheiro de mato verde espalhava-se de fora para dentro da casa nas tardes de sábado. Meu pai montava um cavalo preto e suas esporas de prata tilintavam. Eu desenhava na parede do porão figuras mágicas, meio gente, meio bicho, sempre com os dentes arreganhados. De noite elas saltavam das paredes e me mordiam os braços, as pernas, me puxavam da rede, não me deixavam dormir.

– Seu doutor, vamos brincar de ciranda? A vida não é uma ciranda? Se o senhor não sabe disso é porque está louco também. Quem somos, os loucos? Diante de vocês, separados de vocês pela tênue linha, duvido quem arrisque o salto. Nossos sonhos. Quem se importa com nossos sonhos? Quem nos penetra até o fundo do poço sem medo de não voltar? Quem?

– Seu doutor, o caso é simples. Me dê meu remédio que eu quero dormir. A porta está sempre fechada e permanecerá fechada entre nós. Qual de mim estará falando agora? Qual de você estará me ouvindo? Sou eu não sendo eu e minhas palavras voam soltas no ar. Enquanto isso eu permaneço preso como alguém que amarra uma pedra no pescoço e salta do alto de uma ponte. Lá embaixo, onde a água é mais escura, mais fria, mais suja, ele tenta voltar, mas os pulmões estouram e a morte é a única companheira.

– Seu doutor, me dê sua mão que eles vêm vindo de todos os lados. Meu nome é não ter nome. E o medo é um animal esquisito, gelado, com braços de polvo. Caminho em torno de você e o observo: a veste branca, a caneta entre os dedos como uma cobra. Do lado de fora, encostado à porta, o enfermeiro é uma estátua a ouvir. Por que você não o chama? Por que você não ordena que ele enfie-me no braço ou na bunda esta maldita seringa? Esse é o seu trabalho, doutor. O meu é lhe dar trabalho, esgotar sua paciência, acabar com seu fim de semana.

– Seu doutor, por que não morro? É tão difícil morrer. E se eu lambuzasse seu rosto com merda? O que você faria, doutor? E se eu xingasse sua doce mãezinha? O que você faria, doutor? É fácil ter medo quando o medo ajuda a viver. Junte o medo com o ódio e você terá uma bela receita de sobrevivência. Pelo menos para gente como nós, que vive num espaço vazio, sem raízes, como se pudesse existir uma árvore solta no espaço descrevendo sempre eternamente a mesma órbita, inútil órbita.

– Seu doutor, não se avexe. Mal comecei a falar. Se você reparar bem, verá que eu danço como se falasse com o corpo inteiro. Quer entrar na dança também? Os cães estão uivando pra lua. Mas a lua está longe demais para ouvi-los. Há sangue nos meus dedos. Meus olhos estão furados como os olhos de uma boneca. Amarraram cordéis em nossos membros. Não posso mover-me para muito longe nem para muito perto. Para longe deles, para perto de vocês. Já observou como as pedras jogadas às margens do rio são tristes, doutor? Sou uma dessas pedras, doutor. O tempo vai me cobrindo de tempo, lodo, tempo.

– Bobagem, doutor, essa sua mania de tentar me olhar através de mim como se eu fosse um espelho. Às vezes, tenho a impressão de que você está falando só com a minha roupa. Você se esconde por trás dos óculos como o avestruz enterra a cabeça na areia. Estamos um diante do outro e nada podemos fazer ou falar. As muralhas estão erguidas. As mãos não empunham martelos para derrubá-las.

– Que nada, doutor. Todos esses livros ao seu redor lhe fazem ficar pequeno como o diabo. Já não consigo suportá-lo, doutor. Somos inimigos. Só conseguimos nos olhar assim como estamos agora: você de um lado e eu do outro. Entre nós as muralhas.

Fontes:
Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto.

Airton Monte (1949)


Airton Monte nasceu em Fortaleza (1949) e nunca dela se mudou.

Filho de Airton Teixeira Monte e Valdeci Machado Monte.

Médico psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará, cronista do jornal O Povo, comentarista de rádio, redator de televisão, letrista, teatrólogo, é essencialmente poeta e contista.

Iniciou-se na revista O Saco, onde publicou contos.

Um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura.

Estreou, no gênero conto, com o volume O Grande Pânico (1979), seguido de Homem Não Chora (1981) e Alba Sangüínea (1983).

Tem no prelo Os Bailarinos. Participou de algumas antologias: Os Novos Poetas do Ceará III, Antologia da Novo Poesia Cearense, Verdeversos e 10 Contistas Cearenses.

Tem também um livro de poemas.

Dona Sônia, esposa de Airton Monte, diz que o marido nunca sabe cobrar pelos textos que lhe são encomendados. “Até mesmo os laudos periciais da psiquiatria, ele vem perguntar para mim quanto é que tem que cobrar”. “Você é minha ministra da Fazenda”, brinca Airton.

Falando do amigo Jorge Pieiro, que Airton considera um dos principais nomes da nova geração de escritores cearenses, Airton diz que Pieiro é o moderno da turma, o “cara que faz cabelo, coisa e tal”, é o “metrossexual”. “Mas como ele é muito baixinho, a gente chama ele de ‘meio metro sexual’”.

Já o escritor Pedro Salgueiro, Airton chama de Pedro Sangreiro, “porque ele mata tudo que é personagem”. “Enganchou num conto, ele mata os personagens todos”.

Bárbara, filha de Airton Monte, é quem coordena a página dedicada ao pai no orkut, site de relacionamentos da internet. “Uma vez ela ficou furiosa porque perguntaram a ela se ele batia em mim”, conta dona Sônia. “Minha filha não fique assim, diga que eu bato nela, bato em você, bato no Pablo (filho de Airton), bato no cachorro, em todo mundo”, conta Airton às gargalhadas.

Airton diz que tem três ou quatro livros de poesia prontos, além de um romance, uma novela sobre futebol, uma peça de teatro e um livro de contos “Os bailarinos”. “Há tanta coisa aí guardada”, conta. “Eu não publico porque desde que publiquei meu primeiro livro pela editora Moderna que decidi não publicar mais nenhum livro com o meu dinheiro. Afinal, o escritor já é o camelô de si mesmo, tem que escrever e sair vendendo o bicho de mão em mão, indo nos programas de rádio, etc”.

Segundo dona Sônia, quando está num restaurante, Airton repara se há algum casal conversando e fica imaginando o assunto para poder se inspirar em suas crônicas. “Ele me manda ao toalete para eu passar perto do casal e ouvir o que eles estão dizendo", revela.

Fontes:
Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto.
Soares Feitosa. Jornal de Poesia.

Moacir Costa Lopes (O homem atrás do escritor, o escritor atrás do homem)


Desvendando o homem atrás do escritor e o escritor atrás do homem, hoje, em nossa quinta entrevista, o escritor cearense, radicado no Rio de Janeiro, Moacir Costa Lopes, que nasceu em 11 de junho de 1927, em Quixadá, Ceará. Criou seu próprio método de criação literária, do que resultou seu livro de ensaio/didático Guia prático de criação literária, editado em 2001. Marinheiro, na Segunda Guerra Mundial, Escreve sobre a vida dos marinheiros, sugestão do folclorista Luís da Câmara Cascudo , estreando com o romance Maria de Cada Porto. Colaborador de diversos jornais, obteve diversos premios. Vinte e um livros já editados, incluindo ensaios e literatura infantil.

Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou.

Nasci em Quixadá, Ceará, em 11 de junho de 1927, perdi meu pai aos 2 anos de idade, minha mãe aos 11, indo morar com um tio, fugi de casa no início de 1942 por maus tratos. Localizado por meu tio, regressei, mas logo tratei de entrar para a Marinha do Brasil, o que realizei em final de 1942, participando de inúmeras viagens em diversos navios durante toda a Segunda Guerra Mundial. Dei baixa da Marinha em 1950. Meus estudos foram muitas vezes interrompidos, e resolvi que não me interessavam estudos formais, passando a um autodidatismo focado exclusivamente nos estudos de literatura e da cultura geral. Assim, nenhum estímulo eu tive na minha infância. Desde criança tornei-me leitor compulsivo de literatura de cordel, com sua cultura medieval e de personagens típicos como cangaceiros, figuras messiânicas e folclore. Já como marinheiro foi que vim a ler o primeiro romance, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e não parei mais de ler os mestres da literatura universal, com o objetivo de estudar a visão-de-mundo de cada um e seu estilo literário, concluindo que se um dia pretendesse me tornar escritor, deveria começar por ser um grande leitor, decifrando a carpintaria literária dos mestres.

Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever.

Foi um longo aprendizado literário, através da leitura, começando com os fran-ceses, Balzac, Gustave Flaubert, Stendhal, Anatole France, Guy de Maupassant, Victor Hugo, Marcel Proust, além de clássicos como Montesquieu, passando à literatura russa, tendo Dostoievski e Tolstoi, Gogol como os principais, depois a inglesa, com William Shakespeare, Charles Morgan, Charles Dickens, Emily Brontë, James Joyce, passando aos portugueses, em que pude destacar Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano e Eça de Queiroz. Além de obras imprescindíveis como as de Homero, Idíada e Odisséia, A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Dom Quixote, de Cervantes. Finalmente, chegando à literatura brasileira, quando passei a estudar com mais afinco o estilo de cada autor, já lidando com nosso idioma. Foram muitos, sendo os principais Machado de Assis, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Dalcídio Jurandir, Érico Veríssimo, Jorge Amado, e, finalmente, Graciliano Ramos, que passei a considerar o mais importante ficcionista brasileiro, dono de estilo impecável.

Fale um pouco sobre sua trajetória literária. Como começou a vida de escritor?

Ainda marinheiro, depois de muita leitura resolvi tornar-me escritor, organizan-do meu próprio método de criação literária, na busca de um estilo próprio. Como trabalhava na secretaria dos navios em que servia, tinha máquina de escrever a meu dispor, que utilizava durante os dias e noites de alto-mar . A par de obras literárias, lia muito sobre cultura geral, antropologia, filosofia, história das religi-ões, mitologia, história geral e do Brasil, folclore, enfim o de que necessitaria para suporte de minha literatura, inclusive lia dicionário, sobre concordância e regência, com exercícios de retenção de palavras essenciais.

Teve a influência de alguém para começar a escrever?

Começar a escrever foi opção sem influência de ninguém, a não ser das obras que lia. Hoje, depois de 21 livros publicados, com várias reedições, traduções em vários países e muitos estudos sobre eles, no Brasil e no estrangeiro, tenho minha home page – http://www.moacirclopes.com.br/ , e-mail – http.moacirclopes@gmail.com e uma comunidade de orkut, aberta por Marcos Vinícius Teixeira, professor mineiro, ficcionista e poeta. Viver de literatura é muito difícil no Brasil e por falta de consumidor de livros, com ínfima percentagem de leitores de ficção e poesia, que preferem na maioria obras de autoajuda, e não possuímos hoje um serviço mais atuante de informações sobre a verdadeira cultura brasileira, seus escritores, seus pintores, seus escultores, seus músicos de primeira linha, seus artistas em geral.

Como começou a tomar gosto pela escrita?

Desde minha juventude tive tendência para as fábulas, a literatura, a começar pelos livros de cordel e os folhetins com histórias em capítulos impressos, de escritores brasileiros e estrangeiros (semelhantes às novelas de Tv atuais), que chegavam a Quixadá. Comecei a tomar gosto mesmo pela escrita, como disse, em contato com os clássicos da literatura universal.

Qual a sua opinião a respeito da Internet? A seu ver, ela tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

A Internet é um instrumento poderoso para a divulgação de cultura, mas apenas em escala mínima, mais para pesquisa limitada de temas, com a vantagem de remeter seus pesquisadores a obras mais substanciais, para pesquisa mais aprofundada, porque o livro é que é o instrumento essencial da cultura. Mas a Inter-net começou recentemente a contribuir na difusão de meu trabalho literário.

Tem prêmios literários? Quais e quantos?

Sim, tenho prêmios literários, sendo os principais o “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras, e o “Fábio Prado”, da União Brasileira de Escritores, São Paulo, por iniciativa de meus editores. Mas não acredito em prêmios literários, eles não alteram o valor intrínseco da obra literária, apenas ajudam na sua divulgação. No Brasil, entretanto, a concessão de grande parte dos prêmios literários é suspeita pelo notório apadrinhamento.

Livros publicados. Quais?

Como afirmei acima, publiquei até agora 21 obras, sendo 11 romances, outros de contos, infanto-juvenis e de ensaios, com várias reedições e traduções em vários países, com teses de mestrado e doutorado de professores brasileiros e estrangeiros, além de muitos estudos menores, sobre toda minha obra. Haveria que destacar o romance de estréia, Maria de cada porto, hoje em nona edição, e A ostra e o vento, em oitava edição, adaptado para o cinema em 1997, sob o mesmo título, que obteve muitos prêmios. Entre os livros de ensaio, destacaria Guia prático de criação literária, fruto de minhas pesquisas, e concentrando nele aulas que ministrei sobre criação literária, na UFRJ e na Faculdade Hélio Alonso, do Rio de Janeiro, e continuo utilizando em aulas, palestras e conferências, e A situação do escritor e do livro no Brasil, no qual apresento os principais problemas do escritor. Estou preparando outras obras, entre elas um romance e um livro de memórias, em dois volumes.

Seu romance que escreveu em 1944, mas não concluiu. Fale sobre ele. Sobre o que era? Porque iniciou e porque não concluiu?

O romance que escrevi em 1944, aos 17 anos, não possuía ainda as qualidades literárias que eu esperava. Nem recordo o assunto, mas não possuía a temática de mar, nem teve título e nem cheguei a concluir por não saber como terminá-lo. A solução foi destruí-lo.

Maria de Cada Porto, em 1959, foi então o seu primeiro romance concluido. que obteve premios na Academia Brasileira de Letras e União Brasileira de Escritores. Como foi este processo de criação deste livro? O senhor pretendia se lançar no mercado com ele, ou era apenas o prazer de escrever, não importando o que poderia obter depois?

Em 1946, em visita ao folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Natal, RN, comecei a escrever o romance que viria a receber o título de Maria de cada porto, sobre a vida dos marinheiros, a bordo e em terra, suas aventuras, seus amores, e as operações da Marinha do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, usando como espinha dorsal o caso do naufrágio do cruzador Bahia, poucos dias depois de terminada a guerra, com tripulação de 380, da qual foram salvos com vida apenas 27 marinheiros, após 4 dias de sede, fome e loucura em 16 balsas. Só vim a publicá-lo em 1959, com grande repercussão de crítica e de público. Eu não contava com essa repercussão, a literatura era meu grande desafio, enfim me senti um pouco realizado, quando várias editoras me procuraram para a publicação de obras futuras, abrindo-me suas portas. Na verdade, eu pretendia construir uma obra literária.

Quem considera entre vivos e falecidos os maiores escritores do Brasil?

O Brasil já possui uma das melhores literaturas do mundo, embora pouco difun-dida aqui e lá fora. Um professor norte-americano, Leo Barrow, meu amigo, me afirmou que Machado de Assis poderia ser comparado a Shakespeare em valor literário. Eu destacaria, além dele, José de Alencar, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lima Barreto, Euclides da Cunha, que, não sendo ficcionista, seu livro Os Sertões, influenciaria nossos ficcionistas, como também influenciaria o livro Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Aluísio de Azevedo, Domingos Olímpio, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Dalcídio Jurandir, Herberto Sales, Campos de Carvalho, Rui Mourão, e alguns de minha geração para cá, que não menciono para não cometer injustiça a outros porventura não mencionados. E nossos importantes poetas, como Gonçalves Dias, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Olavo Bilac, Jorge de Lima, Ma-nuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana.

Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um "clic" e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente, precisa de algum ambiente especial ?

Não existe essa situação psicologicamente definida. Cada obra a escrever exige muito trabalho, muita pesquisa sobre o tema a ser abordado, a linguagem a ser usada, o tempo, os personagens, mesmo porque cada livro exige uma linguagem diferente, um estilo apropriado a essa história. E tudo é fruto de planejamento, de organicidade, não desprezando, contudo, a espontaneidade. Até a escolha dos nomes dos personagens é um desafio, se vou levar a história em narrativa feita na primeira pessoa ou na terceira, se no passado ou no presente. A inspiração surgirá no desenvolvimento do livro. Não tenho ambiente especial para criar, mas necessito de isolamento, embora muitas vezes eu escreva até com a televisão ligada ou com o barulho vindo da rua.

Como é que você concebe suas obras?

Para tornar-se escritor, não é apenas exercitar a escrita. Antes de mais nada, a vocação é essencial. Depois, vem a fase do aprendizado, da leitura dos mestres da literatura universal, a busca de um estilo próprio. O essencial não é apenas contar uma história, porque os meios de comunicação o fazem diariamente, nos jornais, em revistas, na rádio, na televisão, mas a forma como contar essa histó-ria, ou seja, o uso da linguagem, do estilo, das simbologias, das metáforas. Como disse anteriormente, gasto muito tempo planejando o livro a escrever. Levo uns dois anos até concluí-lo, depois de várias vezes que o reescrevo até encontrar a linguagem apropriada.

Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós, chega apenas o que a mídia divulga?

Há uma constelação de escritores desconhecidos da maioria dos leitores. Se formos nos basear no que a mídia divulga diariamente, não passaremos de uma dúzia de best-sellers estrangeiros, a maioria deles sem importância literária. Existem conforme citado anteriormente vários nomes de escritores brasileiros pouco lembrados pelos leitores, e que não podem ser negligenciados pelos jovens candidatos a escritor.

Na sua opinião, que livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

De escritores da língua portuguesa, eu destacaria os clássicos, como Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Júlio Dantas, Bernardim Ribeiro, e os clássicos brasileiros citados acima. Além de importantes poetas portugueses, destacando-se Luís de Camões, Guerra Junqueira, Fernando Pessoa, Miguel Torga.

Qual o papel do escritor na sociedade?

O papel do escritor na sociedade é o que ele expõe nos textos que escreve. Há que se levar em conta que o livro é o mais fidedigno intérprete da cultura nacional, o escritor é esse mensageiro, individual e soberanamente, porque não se curva a injunções políticas, mesmo em períodos de ditadura. Ele não precisa ser engajado, e não deve, porque o engajamento restringe o valor da obra, sendo que sua mensagem é a permanência da sua obra.

O que lê hoje?

Hoje, sinto-me chocado com qualquer ato que fuja aos padrões da ética. Continuo sendo leitor compulsivo. Leio autores novos e releio os clássicos, não apenas obras de ficção e de poesia, como qualquer obra de cultura geral.

Qual é a sensação ao se conseguir um prêmio na Academia Brasileira de Letras?

Apesar de haver obtido um prêmio da Academia Brasileira de Letras pelo meu primeiro livro, enviado por editores a acadêmicos dos anos 60 do século passa-do, sou muito descrente de prêmios literários, qualquer seja a sua origem, inclu-sive os concedidos pela ABL.

E por ser convidado para ao lado de nomes do quilate de Machado de Assis, ser considerado Escritor Imortal?

A ABL possui métodos estranhos para a indicação de futuros membros, e não são os mais justos. Como exemplo, não poderia explicar como importantes escritores e poetas não conseguiram dela fazer parte, como Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, bem mais importantes do que a maioria dos que por lá passaram ou permanecem.

Fale algum fato engraçado relativo a algum momento literário, ou sua criação.

Um dos fatos engraçados foi quando eu estava sozinho em casa, à noite, escrevendo uma parte do meu livro A ostra e o vento, focando o personagem Saulo, que não existe como pessoa física, mas é uma entidade criada pela mente da personagem Marcela e fica circulando a ilha, passageiro do vento. A cena que eu escrevia era a que ele, Saulo, vai penetrando na casa do farol para possuir Marcela. No auge da cena, começo a sentir que Saulo está atrás de mim. Parei de escrever, assustado, fechei o apartamento e corri para a rua.

Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Tenho vários projetos, que ultrapassarão meu tempo de vida. A morte é mero detalhe de uma vida longa, que não deixa de ser uma longa viagem, e enquanto houver luz no mundo estarei acordado. A cultura popular é muito da alma de um povo e tem que ser preservada. A globalização veio como instrumento colonizador de países de cultura mais sólida contra países menos desenvolvidos culturalmente. Se não mantivermos vivos nosso folclore, nossos mitos, heróis e costumes, outros países quererão penetrar no vácuo cultural com seus heróis, folclore, mitos e costumes que nada têm a ver com nossa cultura.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O aprendiz de escritor deve ler o que lhe caia às mãos. A “porcaria” literária é também útil para nos ensinar o quê e como não devemos escrever. Eu tenho na minha biblioteca uma pequena coleção desses livros, considerando que, como editor durante mais de 20 anos, fui obrigado a ler muitos livros que me chegavam, sem nenhuma qualidade literária, mas sempre úteis. Em verdade, não existe livro ruim, existe um grau de evolução de leitor, o livro “porcaria” pode ser o mais admirado por um leitor iniciante, de pouca cultura como leitor.

Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever?

Meu único conselho a pessoas que começassem agora a escrever seria o de apenas ler os mestres da literatura para conhecer o que foi feito antes dele, e procurar a originalidade. Muitos analistas afirmam que não existe mais a possibilidade de se ser original, porque tudo já foi escrito. Têm razão em termos, mas cada escritor é um universo individual, daí sua originalidade.

O que é preciso para ser um bom escritor?

Para ser um bom escritor, é preciso lembrar que o talento não pode ser passado adiante, não é hereditário nem parte do inconsciente coletivo ou da memória genética, é uma qualidade individual.

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa? Outros trabalhos culturais, opiniões, crítica, etc.

Nada a acrescentar, porque as perguntas foram abrangentes e me permitiram respostas abrangentes.

Se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos, quais seriam?

Deus é uma figura emblemática. Digamos que fosse um gênio aprisionado nu-ma garrafa como aparece em um filme de As mil e uma noites: o primeiro desejo seria ensinar o brasileiro a escolher melhor seus governantes para evitar incompetentes na direção do país. O segundo seria varrer da política nacional esses corruptos que já ocupam os postos principais. O terceiro seria disseminar a cultura entre todos os habitantes, para que cada um passasse a entender de moral, ética, estética, com possibilidade de plena escolha das necessidades básicas, evitando a massificação da mediocridade, dominando as noções de nacionalismo, a prática da cidadania.

Rio de Janeiro, 13 de fevereiro, 2010.

Fonte:
Entrevista virtual concedida a José Feldman para o Pavilhão Literário Singrando Horizontes

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Aprendendo sobre Poesia (Parte I)

Pintura de J. P. Martins Barata
Conceituação de Literatura :

Deve-se aos filósofos gregos, conhecidos como sofistas, a primeira tentativa de conceituar literatura. Tomaram eles a palavra "literatura" em seu sentido mais amplo, já que consideravam obra literária qualquer obra escrita que obedecesse a certos preceitos:
– os da invenção: verdade e originalidade;
– os da disposição: variedade dentro da perfeita unidade de exposição;
– os da elocução: pureza da língua, correção gramatical, clareza e harmonia.

Para os sofistas, então, A Arte Literária consiste na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução.

O primeiro a estabelecer uma distinção entre literatura, em sentido restrito (obra estética) e literatura, em sentido amplo (qualquer obra escrita) foi Platão e depois Aristóteles. Para o último: Literatura é a imitação (mimese) da realidade.

Para o filósofo grego, só é obra literária a que imita ou "recria" a realidade. Não se trata, evidentemente, apenas de reprodução servil ou simples cópia da realidade. Trata-se, antes, de imitação, de representação construída pelo autor, de apresentação da realidade segundo a maneira de ver do autor. "O poeta imita, representa uma ação conforme à realidade ou à verdade, mas uma ação construída e arranjada por ele." Essa imitação não se estende, porém, à realidade ou à natureza exterior: ela tem por objeto a vida humana, o homem, seus costumes, seus estados de alma, suas paixões, suas ações. Além disso, realidade aqui tem sentido muito amplo: não apenas aquilo que é, mas também o que normalmente ou moralmente deveria ou poderia ser.

Assim sendo, um tratado de Anatomia, considerado pelos sofistas como obra literária, desde que obedecesse aos princípios já mencionados, não o seria para Aristóteles, pois num tratado dessa espécie não haveria "recriação" da realidade, isto é, a realidade não seria apresentada da maneira pela qual é vista pelo autor; haveria, antes, descrição da realidade tal qual é.

No século XIX, volta a predominar o conceito de literatura em sentido ainda mais amplo que o dos sofistas:

Literatura é um conjunto de produção escrita de um povo, de um indivíduo.

Atualmente podemos encontrar vários conceitos de literatura, em sentido restrito como, por exemplo, o de Fidelino de Figueiredo:

Arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista.

Ou o de Massaud Moisés:

Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.

Observe-se que ambos os conceitos têm, em comum, o fato de considerarem como literatura apenas a ficção ou supra-realidade.

Partindo do pressuposto de que a Literatura - como a Filosofia e as Ciências - é forma de conhecimento, esclarecem-se os conceitos acima determinando-se o tipo de conhecimento usado na elaboração da obra literária, o que, inclusive, vai distinguir a literatura das outras formas de conhecimento.

Há dois tipos de conhecimento:

a- conhecimento conceptual: adquirido através do estudo, da reflexão, da lógica;

b- conhecimento intuitivo: "elaboração espontânea das impressão recebidas".

Para escrever uma obra científica ou filosófica, lançamos mão da realidade existente, do conhecimento conceptual ou adquirido e, às vezes, do conhecimento intuitivo (mas sempre em menor grau).

Evidentemente, não podemos descrever cientificamente uma árvore sem conhecimento de Botânica, conhecimento conceptual, adquirido através do estudo, da observação, da reflexão. Aplicado o conhecimento conceptual à realidade a ser descrita, tratar-se-á, é claro, da classificação da árvore, do tipo de suas folhas e raízes, de sua utilidade, etc. O que houver de intuitivo ou pessoal numa obra desse tipo não se relacionará com a matéria exposta, mas à preferência por determinada disposição da obra, pela escolha de determinada forma ou por certo torneio frasal. A matéria, a essência da obra, será tratada da maneira mais impessoal e científica possível.

Por outro lado, o conhecimento intuitivo permite-nos escrever sobre árvore sem que tenhamos noção alguma de Botânica. Nesse caso, não nos referimos a determinada classe ou a determinado tipo de árvore, mas à árvore em geral. A obra resultante será, então obra literária e não obra científica. Entrará em jogo a visão pessoal que o autor tem da realidade "árvore", visão essa que não necessita do conhecimento conceptual para existir. Este tipo de conhecimento entrará obra em grau muito menor, através, por exemplo, do conhecimento da língua, na capacidade de escolher palavras e coordená-las de modo a tornar inteligível a visão do autor.

Parece evidente também que, usando o conhecimento intuitivo, a realidade "árvore" não será a mesma para todos, pois cada um de nós tem uma visão pessoal, única, da realidade. Se essa realidade é descrita, ela será deformada, não em sua essência, mas na projeção dessa essência. Essa realidade deformada, ou seja, com outra forma, que varia de acordo coma maneira de ser de cada um, de acordo com a educação, com a vivência, com a sensibilidade, essa realidade deformada é a ficção ou supra-realidade.

Nos exemplos abaixo, tomou-se a definição de "rio", segundo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete e a visão que alguns autores têm da realidade "rio". No primeiro caso, teremos a definição, baseada no conhecimento conceptual; no segundo, a visão de rio, segundo o conhecimento intuitivo de cada um e que variará de autor para autor:

1- "Rio, s.m. curso considerável de água, que tem geralmente origem nas montanhas e vem recebendo pelo caminho a água dos regatos e ribeiras até lançar-se, por uma ou mais embocaduras, no mar ou noutro rio; grande curso de água em geral".

2- "Aqui e ali fugiam roscas do rio, que carregava águas barrentas. À sua margem multiplicara a vazante espraiados tranqüilos, que cintilavam ao sol. Já audível, o rumorejar da cachoeira encorpava-se a cada passo avante; era uma cortina de sons que se erguia numa nesga do horizonte e que, em pouco, alastrando, ganhava todo o circuito da paisagem, estrondejando compactamente.

Meto-me por um trilho que se desgarra da estrada, em direitura da cachoeira. Cruzo pedestres, já de volta, com sacos e jacás atestados de peixe. Conversam gritando com surdos, para fazerem-se ouvir. Avisto, por fim, constringidos entre paredões de rocha, os rolos de água, despenhando-se. São os degraus em que a torrente rabeia, fustigando o leito, como serpente assanhada a encrespar a cauda nervosa...

A torrente despeja-se aos fluxos e refluxos. Quando a ondada passa, pulam os peixes em cada poço, inumeráveis, projetando-se para o ar, a despedir chispas de prata dos corpos retorsos, nervosamente enovelados e vibráteis. Abaixo da cachoeira, onde a caudal se rebalsa e retoma a majestade de seu curso lento, a água é torva, quase negra; e, ao olhar que lhe escruta a profundeza, essa negura revela-se feita de cardumes de dorsos escuros, que esfervilham, evolucionando processionalmente no bojo dos remansos, esperando o seu turno de lançar o salto. Lateralmente derivam fios escassos, delgadas fitas que traçam sinuosidades no lajedo, fazendo escala em caldeirões escavados na rocha." (Godofredo Rangel, Vida Ociosa, S. Paulo, Comp. Ed. Nacional, 2ª ed., s.d. pág.234).

3- OS RIOS

Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente.

Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.

Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,

Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...

(Olavo Bilac, Tarde, In "Poesias", Rio, Francisco Alves, 13ª ed., 1928, pág. 300)

4- ÁGUA CORRENTE

Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.
Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...
Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...

Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...

(Olegário Mariano, Água Corrente, In "Poesia". Agir, Rio, 1968, pág. 55)

5- O RIO

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu a terra;

Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu

(Vinícius de Moraes, Antologia Poética, Rio, Editora do Autor, 2ª ed., 1960, pág. 234)

Como se observa, cada um dos autores teve uma visão pessoal e particular da realidade rio, e a projeção da essência dessa realidade é feita diferentemente por eles.

A Godofredo Rangel o rio transmite a impressão de atividade animal, como a lembrar-lhe que a sua majestade não se deve ao aspecto inanimado e ao mesmo tempo grandioso que a Natureza lhe conferiu. Ele é um ser sensível que se enfurece e se acalma ao sabor dos cometimentos.

Para Olavo Bilac o rio é a projeção do seu próprio estado de espírito. É com uma conotação de amarguras, de desejos contrariados e insatisfeitos que a realidade rio se apresenta para ele. Sente-se aí a alma do poeta oprimida pelo inexorável, deixando-se levar pela força incontrolável do desenrolar da vida humana, enxergando a esperança no futuro e a saudade no passado.

Para Olegário Mariano, longe de ser tão-somente a água corrente, o rio é o sonho do lavrador, a evocação protetora de um teto, aquele sangue da terra que plasma o misticismo transcendental da religião. E nesse plano atemporal, o rio, movendo graciosamente o engenho, poupando o braço do homem, transfigura-se na bondade, como a lembrar ao homem a grandiosidade da obra divina, já agora movendo não a roda do engenho, mas o sentimento humano, tocando-o enternecendo-o pelo dom maravilhoso do sublime e da generosidade.

Finalmente, Vinícius de Moraes, mesmo explicando o nascimento, o desenvolvimento e a majestade do rio feito, foi buscar no universo poético a constelação de imagens com que pessoaliza a realidade rio. O poeta parte da causa para o efeito, mostrando que a simples gota de chuva que se projeta de encontro ao solo, seja na flacidez da terra que lhe abre o ventre (atente-se para a singularidade da imagem), seja na dureza das rochas, do ouro, do carvão, do ferro ou do mármore, vai esta gota sequiosa de espaço, em busca da luz, do horizonte largo.

Depois desses exemplos, é fácil concluir que, sendo eles deformações da realidade através de palavras de sentido múltiplo e pessoal, todos se caracterizam como obras literárias.

Do ponto de vista da linguagem, cumpre ainda notar que o signo usado pelas ciências e filosofias é o mais preciso possível, além de tender para o universal. Assim, se se diz que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos", enunciamos um princípio em que o sentido de cada uma das palavras será imutável a universal, podendo, inclusive, ser representado por signos que não são palavras.

O mesmo não se dá com a obra literária: nela, as palavras não são univalentes; ao contrário, são polivalentes, isto é, têm mais de um valor, mais de um significado, podendo variar de autor para autor ou de leitor para leitor. E, exatamente nessa possibilidade de escolha, nessa polivalência dos signos, está uma da maneiras de distinguir obra científica ou filosófica de obra literária.

Note-se que nenhum dos conceitos mencionados envolve qualquer idéia de valoração. Preocupou-se, tão somente, em conceituar obra literária e distingui-la de obra não literária. Assim sendo, qualquer obra escrita que ser enquadre nos dois últimos conceitos mencionados pode ser considerada obra literária, sendo seu valor como tal, objeto de outro tipo de estudo.
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continua...
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Fonte:
Colégio Terra Nova.