terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Aprendendo sobre Poesia (Parte I)

Pintura de J. P. Martins Barata
Conceituação de Literatura :

Deve-se aos filósofos gregos, conhecidos como sofistas, a primeira tentativa de conceituar literatura. Tomaram eles a palavra "literatura" em seu sentido mais amplo, já que consideravam obra literária qualquer obra escrita que obedecesse a certos preceitos:
– os da invenção: verdade e originalidade;
– os da disposição: variedade dentro da perfeita unidade de exposição;
– os da elocução: pureza da língua, correção gramatical, clareza e harmonia.

Para os sofistas, então, A Arte Literária consiste na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução.

O primeiro a estabelecer uma distinção entre literatura, em sentido restrito (obra estética) e literatura, em sentido amplo (qualquer obra escrita) foi Platão e depois Aristóteles. Para o último: Literatura é a imitação (mimese) da realidade.

Para o filósofo grego, só é obra literária a que imita ou "recria" a realidade. Não se trata, evidentemente, apenas de reprodução servil ou simples cópia da realidade. Trata-se, antes, de imitação, de representação construída pelo autor, de apresentação da realidade segundo a maneira de ver do autor. "O poeta imita, representa uma ação conforme à realidade ou à verdade, mas uma ação construída e arranjada por ele." Essa imitação não se estende, porém, à realidade ou à natureza exterior: ela tem por objeto a vida humana, o homem, seus costumes, seus estados de alma, suas paixões, suas ações. Além disso, realidade aqui tem sentido muito amplo: não apenas aquilo que é, mas também o que normalmente ou moralmente deveria ou poderia ser.

Assim sendo, um tratado de Anatomia, considerado pelos sofistas como obra literária, desde que obedecesse aos princípios já mencionados, não o seria para Aristóteles, pois num tratado dessa espécie não haveria "recriação" da realidade, isto é, a realidade não seria apresentada da maneira pela qual é vista pelo autor; haveria, antes, descrição da realidade tal qual é.

No século XIX, volta a predominar o conceito de literatura em sentido ainda mais amplo que o dos sofistas:

Literatura é um conjunto de produção escrita de um povo, de um indivíduo.

Atualmente podemos encontrar vários conceitos de literatura, em sentido restrito como, por exemplo, o de Fidelino de Figueiredo:

Arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista.

Ou o de Massaud Moisés:

Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.

Observe-se que ambos os conceitos têm, em comum, o fato de considerarem como literatura apenas a ficção ou supra-realidade.

Partindo do pressuposto de que a Literatura - como a Filosofia e as Ciências - é forma de conhecimento, esclarecem-se os conceitos acima determinando-se o tipo de conhecimento usado na elaboração da obra literária, o que, inclusive, vai distinguir a literatura das outras formas de conhecimento.

Há dois tipos de conhecimento:

a- conhecimento conceptual: adquirido através do estudo, da reflexão, da lógica;

b- conhecimento intuitivo: "elaboração espontânea das impressão recebidas".

Para escrever uma obra científica ou filosófica, lançamos mão da realidade existente, do conhecimento conceptual ou adquirido e, às vezes, do conhecimento intuitivo (mas sempre em menor grau).

Evidentemente, não podemos descrever cientificamente uma árvore sem conhecimento de Botânica, conhecimento conceptual, adquirido através do estudo, da observação, da reflexão. Aplicado o conhecimento conceptual à realidade a ser descrita, tratar-se-á, é claro, da classificação da árvore, do tipo de suas folhas e raízes, de sua utilidade, etc. O que houver de intuitivo ou pessoal numa obra desse tipo não se relacionará com a matéria exposta, mas à preferência por determinada disposição da obra, pela escolha de determinada forma ou por certo torneio frasal. A matéria, a essência da obra, será tratada da maneira mais impessoal e científica possível.

Por outro lado, o conhecimento intuitivo permite-nos escrever sobre árvore sem que tenhamos noção alguma de Botânica. Nesse caso, não nos referimos a determinada classe ou a determinado tipo de árvore, mas à árvore em geral. A obra resultante será, então obra literária e não obra científica. Entrará em jogo a visão pessoal que o autor tem da realidade "árvore", visão essa que não necessita do conhecimento conceptual para existir. Este tipo de conhecimento entrará obra em grau muito menor, através, por exemplo, do conhecimento da língua, na capacidade de escolher palavras e coordená-las de modo a tornar inteligível a visão do autor.

Parece evidente também que, usando o conhecimento intuitivo, a realidade "árvore" não será a mesma para todos, pois cada um de nós tem uma visão pessoal, única, da realidade. Se essa realidade é descrita, ela será deformada, não em sua essência, mas na projeção dessa essência. Essa realidade deformada, ou seja, com outra forma, que varia de acordo coma maneira de ser de cada um, de acordo com a educação, com a vivência, com a sensibilidade, essa realidade deformada é a ficção ou supra-realidade.

Nos exemplos abaixo, tomou-se a definição de "rio", segundo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete e a visão que alguns autores têm da realidade "rio". No primeiro caso, teremos a definição, baseada no conhecimento conceptual; no segundo, a visão de rio, segundo o conhecimento intuitivo de cada um e que variará de autor para autor:

1- "Rio, s.m. curso considerável de água, que tem geralmente origem nas montanhas e vem recebendo pelo caminho a água dos regatos e ribeiras até lançar-se, por uma ou mais embocaduras, no mar ou noutro rio; grande curso de água em geral".

2- "Aqui e ali fugiam roscas do rio, que carregava águas barrentas. À sua margem multiplicara a vazante espraiados tranqüilos, que cintilavam ao sol. Já audível, o rumorejar da cachoeira encorpava-se a cada passo avante; era uma cortina de sons que se erguia numa nesga do horizonte e que, em pouco, alastrando, ganhava todo o circuito da paisagem, estrondejando compactamente.

Meto-me por um trilho que se desgarra da estrada, em direitura da cachoeira. Cruzo pedestres, já de volta, com sacos e jacás atestados de peixe. Conversam gritando com surdos, para fazerem-se ouvir. Avisto, por fim, constringidos entre paredões de rocha, os rolos de água, despenhando-se. São os degraus em que a torrente rabeia, fustigando o leito, como serpente assanhada a encrespar a cauda nervosa...

A torrente despeja-se aos fluxos e refluxos. Quando a ondada passa, pulam os peixes em cada poço, inumeráveis, projetando-se para o ar, a despedir chispas de prata dos corpos retorsos, nervosamente enovelados e vibráteis. Abaixo da cachoeira, onde a caudal se rebalsa e retoma a majestade de seu curso lento, a água é torva, quase negra; e, ao olhar que lhe escruta a profundeza, essa negura revela-se feita de cardumes de dorsos escuros, que esfervilham, evolucionando processionalmente no bojo dos remansos, esperando o seu turno de lançar o salto. Lateralmente derivam fios escassos, delgadas fitas que traçam sinuosidades no lajedo, fazendo escala em caldeirões escavados na rocha." (Godofredo Rangel, Vida Ociosa, S. Paulo, Comp. Ed. Nacional, 2ª ed., s.d. pág.234).

3- OS RIOS

Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente.

Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.

Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,

Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...

(Olavo Bilac, Tarde, In "Poesias", Rio, Francisco Alves, 13ª ed., 1928, pág. 300)

4- ÁGUA CORRENTE

Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.
Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...
Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...

Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...

(Olegário Mariano, Água Corrente, In "Poesia". Agir, Rio, 1968, pág. 55)

5- O RIO

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu a terra;

Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu

(Vinícius de Moraes, Antologia Poética, Rio, Editora do Autor, 2ª ed., 1960, pág. 234)

Como se observa, cada um dos autores teve uma visão pessoal e particular da realidade rio, e a projeção da essência dessa realidade é feita diferentemente por eles.

A Godofredo Rangel o rio transmite a impressão de atividade animal, como a lembrar-lhe que a sua majestade não se deve ao aspecto inanimado e ao mesmo tempo grandioso que a Natureza lhe conferiu. Ele é um ser sensível que se enfurece e se acalma ao sabor dos cometimentos.

Para Olavo Bilac o rio é a projeção do seu próprio estado de espírito. É com uma conotação de amarguras, de desejos contrariados e insatisfeitos que a realidade rio se apresenta para ele. Sente-se aí a alma do poeta oprimida pelo inexorável, deixando-se levar pela força incontrolável do desenrolar da vida humana, enxergando a esperança no futuro e a saudade no passado.

Para Olegário Mariano, longe de ser tão-somente a água corrente, o rio é o sonho do lavrador, a evocação protetora de um teto, aquele sangue da terra que plasma o misticismo transcendental da religião. E nesse plano atemporal, o rio, movendo graciosamente o engenho, poupando o braço do homem, transfigura-se na bondade, como a lembrar ao homem a grandiosidade da obra divina, já agora movendo não a roda do engenho, mas o sentimento humano, tocando-o enternecendo-o pelo dom maravilhoso do sublime e da generosidade.

Finalmente, Vinícius de Moraes, mesmo explicando o nascimento, o desenvolvimento e a majestade do rio feito, foi buscar no universo poético a constelação de imagens com que pessoaliza a realidade rio. O poeta parte da causa para o efeito, mostrando que a simples gota de chuva que se projeta de encontro ao solo, seja na flacidez da terra que lhe abre o ventre (atente-se para a singularidade da imagem), seja na dureza das rochas, do ouro, do carvão, do ferro ou do mármore, vai esta gota sequiosa de espaço, em busca da luz, do horizonte largo.

Depois desses exemplos, é fácil concluir que, sendo eles deformações da realidade através de palavras de sentido múltiplo e pessoal, todos se caracterizam como obras literárias.

Do ponto de vista da linguagem, cumpre ainda notar que o signo usado pelas ciências e filosofias é o mais preciso possível, além de tender para o universal. Assim, se se diz que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos", enunciamos um princípio em que o sentido de cada uma das palavras será imutável a universal, podendo, inclusive, ser representado por signos que não são palavras.

O mesmo não se dá com a obra literária: nela, as palavras não são univalentes; ao contrário, são polivalentes, isto é, têm mais de um valor, mais de um significado, podendo variar de autor para autor ou de leitor para leitor. E, exatamente nessa possibilidade de escolha, nessa polivalência dos signos, está uma da maneiras de distinguir obra científica ou filosófica de obra literária.

Note-se que nenhum dos conceitos mencionados envolve qualquer idéia de valoração. Preocupou-se, tão somente, em conceituar obra literária e distingui-la de obra não literária. Assim sendo, qualquer obra escrita que ser enquadre nos dois últimos conceitos mencionados pode ser considerada obra literária, sendo seu valor como tal, objeto de outro tipo de estudo.
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continua...
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Fonte:
Colégio Terra Nova.

Antonio Brás Constante (Do copo ao corpo e ao fundo do poço)



O mundo é um lugar fantástico; coisas simples, como o mel, são verdadeiras maravilhas da natureza. A semente que cai na terra germinando em bela planta, como um limoeiro, por exemplo, que se enche de flores e delas surge o fruto. Até a areia pode ter seus grãos transformados em vidro. Pensem na cana-de-açúcar, que uma vez processada vira alimento, combustível e até o álcool de farmácia.

Eis que então surgiu o homem, cuja inteligência tornou-o senhor absoluto de tudo que existe no mundo. Seu gênio criativo foi desenvolvendo as maravilhas modernas que conhecemos, entre elas carros, casas, aviões, etc. Mas alguns indivíduos resolveram fazer diferente. Então o homem pegou o vidro e inventou o copo, dentro dele pôs o mel e o limão. Da cana-de-açúcar fez a cachaça, juntando-a aos demais ingredientes dentro do copo. Bebeu todo o seu conteúdo e viu que aquilo era bom, recomeçando o processo várias vezes, até que quebrou o copo, derramou o mel, cortou o dedo ao fatiar o limão, cambaleou até um canto qualquer e decidiu tomar só a cachaça diretamente do gargalo mesmo.

A partir daí surgiu o “bebum”.

O bebum enche a cara por vários motivos, mas não lembra de nenhum deles, pois justamente bebe para esquecê-los. Isso o torna uma criatura sem passado e muito provavelmente sem futuro. E lá se vai o arremedo de homem, encharcado de bebida, de volta para casa por ter sido expulso do bar. Após toda uma caminhada em “zigue-zague”, com eventuais paradas para recordar o motivo de estar caminhando pela noite ao invés de ter continuado no boteco, o bebum finalmente chega em sua morada, onde acredita que irá encontrar a sua amada esposa (ao menos espera que desta vez aquela seja a sua casa, já que nas outras inúmeras vezes ele bateu em casas erradas).

Para quem não sabe, nessas situações a “amada esposa” é aquela criatura que fica dentro de casa, sentada no sofá de frente para a porta. Geralmente vestida de roupão de dormir, calçando pantufas felpudas cor-de-rosa e que mesmo podendo facilmente abrir a porta para a entrada do bebum, deixa que ele mesmo faça isso. Algo que pode demorar um bom tempo, pois se já foi difícil achar a rua e a casa, agora começa a tarefa mais difícil que é inserir a chave na diminuta fechadura que fica aparecendo de forma dupla e se movendo freneticamente na sua frente. Quando pressente que o seu alcoolizado marido conseguirá finalmente adentrar pela porta, a esposa então se levanta. Permanece com o rosto fechado e os braços cruzados. Sua mão esquerda tamborilando os dedos no cotovelo direito e a mão direita segurando o rolo de macarrão.

A primeira coisa que as mulheres dizem nessas ocasiões é algo do tipo: “sabe que horas são?”. Como se essa informação pudesse ser de qualquer valia para o organismo empapado de bebida que paira na sua frente de pé (tentando manter o equilíbrio), também conhecido como marido. Essas mulheres ainda podem se considerar felizardas. Duro mesmo é quando o bêbado resolve bancar o machão. Quebrando tudo, batendo na mulher e nos filhos. Transformando seu lar em um tormento para todos aqueles que convivem com ele.

Enfim, o mundo é um lugar maravilhoso, cheio de coisas maravilhosas. Infelizmente o alcoolismo não é uma delas, pois, na estrada da vida, a bebida é o combustível que leva qualquer indivíduo velozmente para longe de todas as pessoas que ele ama. Conduz seu destino para um profundo e solitário abismo, localizado no fundo de uma garrafa.

Fonte:
CONSTANTE, Antonio Brás. Hoje é o seu aniversário – PREPARE-SE: e outras histórias. Porto Alegre, RS: Age, 2009.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Moacyr Scliar (A Colina dos Suspiros)



Com um texto bem-humorado, em A Colina dos Suspiros, de 1999, o autor brinca com a paixão dos brasileiros pelo futebol: se eu morrer na sexta-feira quero ser enterrado no sábado, na hora do jogo. Esse amor pelo clube que está presente nas grandes cidades com os seus jogadores famosos mobiliza também o coração dos torcedores dos times dos times prquenas cidades, distantes e humildes.

Até a presença do cartola, figura tão criticada no meio futebolístico, se faz representar na cidade de Pau Seco: o fazendeiro da região praticamente sustenta time, e nenhuma decisão é tomada sem o seu consentimento.

A ironia do texto cativa o leitor atento, e a venda do estádio do Pau Seco para a construção de um cemitério verticalizado, ponto turístico da cidade, recebe do autor tratamento primoroso. A escolha do nome "Pirâmide do Repouso Eterno", eufemismo para cemitério, seduz os habitantes da cidade, pois atenderia à vaidade humana na hierarquização dos sepultamento: grande jogada de marketing da personagem, lance do mais fino humor de Scliar.

Enredo

Futebol, intriga, paixão e mistério são os ingredientes desta história. A história é verídica. Nos anos 70, o Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre, vendeu seu estádio e o lugar se tornou um cemitério (João XXIII). Entre os torcedores do time figura o escritor gaúcho Moacyr Scliar, que inspirado no episódio escreveu um romance divertido. Justamente sobre uma equipe decadente cujo campo vai abrigar a Pirâmide do Eterno Repouso. Entre os tipos pitorescos que recheiam a trama, o mais estranho é Rubinho, craque com potencial de gênio, atormentado por assombrações.

A ascendência russa e a cultura judaica são decisivas na obra de Moacir Scliar, assim como os conhecimentos, experiências e vivência de médico sanitarista. Admiração confessa pelos escritores Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Franz Kafka e, na música, por Mozart, Philip Glass e Chico Buarque. Futebol é o tema de A colina dos suspiros, do gaúcho Moacyr Scliar, e a pequena cidade de Pau Seco é o cenário.

Da realidade à ficção, o autor apresenta neste romance a pequena cidade de Pau Seco, com dois clubes de futebol que se digladiam há muito tempo. Futebol em Pau Seco é o que move ou paralisa a cidade. O estádio fica junto do cemitério.

Ali, o Pau Seco Futebol Clube, à beira da falência, cede seu estádio para a construção de um cemitério. A salvação está em Rubinho, um dos trabalhadores da obra, que se revela um extraordinário jogador.

Rubinho, a possível salvação dos paussequenses, é o jogador-revelação da cidade, que sofre uma humilhação pública, pois tem medo de marcar gol em frente ao túmulo do falecido ídolo Bugio. Desaparece, e só tem um desejo - vingança. Trata-se de um momento decisivo em sua vida. Com humor e sutileza, questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal são discutidos.

O cemitério volta a ser estádio. Aí aparece de tudo: coronel todo-poderoso com seus mandos e desmandos, pobre que sai do anonimato para a riqueza sem preparo, maracutaias e espertezas. Esta narrativa terá surpreendentes desdobramentos e também por isso, fascina o público jovem ou, melhor, de qualquer idade. Com humor e sutileza, Moacyr Scliar discute questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal. Com humor leve, essa saborosa crônica cativa pelo ótimo texto, só interrompido pelas risadas que desperta.

Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_colina_dos_suspiros

Vânia Diniz (A Pequena Órfã)


Quando eu era muito pequena não compreendia nenhuma diferença entre as pessoas. Como pertencia a uma classe privilegiada e tudo era realizado com facilidade à minha volta tinha a ilusão de que todos podiam satisfazer suas necessidades básicas e que “Ter uma casa “ era tão natural como nascer.

Crescendo um pouco comecei a me aperceber o meio privilegiado a que pertencia., porém jamais tinha imaginado a separação que poderia haver entre seres humanos . Aprendera teoricamente que éramos todos iguais, porém notara sempre, desde muito cedo que no colégio que estudava havia uma ala separada, freqüentada por meninas que vestiam um humilde uniforme, o contraste do que era o nosso e que costumavam ajudar nos trabalhos domésticos, embora houvesse uma parte do dia que dedicavam aos estudos.

Essas meninas passavam casualmente por nós, alunas, quando estavam fazendo qualquer tarefa, sem, entretanto nos dirigir a palavra ou iniciar qualquer conversa.

Ocorreu que eu simpatizei com uma daquelas meninas, o que foi recíproco. Senti uma estranha amizade por aquela criança, da minha idade, mas tão acanhada, cujos olhos castanhos profundos era marcados pelo estrabismo que não diminuía a meiguice da expressão. Olhamo-nos como duas boas amigas e sempre que podíamos conversávamos, o que era raro, sem que ninguém nos visse. Isso, porém trazia muito medo à minha secreta amiga que temia que as freiras ou professoras nos vissem juntas. E muitas vezes perguntávamos reciprocamente o que isso poderia haver de mal.

Algumas vezes ela me dizia que era pobre e eu rica e eu lhe perguntava o que isso poderia interferir em alguma coisa.

Tinha uma poderosa atração por aquela ala que ficava na parte de cima do colégio e que sabia ser o pequeno orfanato que as freiras mantinham.

Um dia aproximei-me dela na mesma hora que uma professora ia passando e Soninha advertiu-me da possibilidade de sermos punidas de alguma maneira.

- Cuidado. Preciso ir, ela me disse ,entre triste e revoltada.

- Não fique assim, por favor. Elas não podem fazer nada. Afinal, o que tem de mais conversarmos?

- Você sabe que somos diferentes e que isso não será bom para nós duas. Só que me parece, eu serei a maior prejudicada.

Aquelas palavras me confrangeram e me afastei magoada, sem, entretanto tirar da cabeça a idéia de visitar a ala proibida. Pensativamente afastei-me e por um longo período fiquei sentada no pátio do colégio, onde minhas colegas brincavam na hora do recreio, até que uma freira veio saber o motivo do meu afastamento. Nada disse. Tentava digerir as diferenças que ocorriam e que agora já me preocupavam, pois não conseguia esquecer algo que não podia compreender.

Um mês depois procurei me encontrar com a pequena órfã para lhe dar um livro que havia trazido e quando a encontrei vi no seu sorriso a felicidade pelo fato de não a ter esquecido mesmo depois de sua admoestação. Uma freira veio em minha direção e chamou-me, perguntando o motivo pelo qual eu ainda não havia me juntado às minhas colegas. Receosa de que minha amiga fosse advertida encaminhei-me em direção ao corredor que me levaria às salas, não sem antes ser interrogada pelo fato de estar conversando com Soninha. Disse-lhe que achava isso um absurdo e que me fizesse compreender o mal existente . Ela respondeu-me com evasivas, dizendo que um dia eu compreenderia o valor de aprender a seguir regras preestabelecidas. Não concordei com minha mestra, mas como pretendia realizar o desejo secreto de conhecer o outro lado do enorme colégio , calei-me para não chamar atenção.

Muitas vezes, durante aquele período de minha vida, senti o contraste nas coisas que aprendia e na prática do dia a dia. Não tinha mais do que dez anos e experimentava um estranho amargor ao verificar o que considerava , na época uma injustiça e mais ainda pela sensação de impotência que muitos anos depois viria a sentir em vários acontecimentos tristes e que naquela fase não sabia definir nas minhas reflexões o termo apropriado.

Foi num dia que me parecia igual aos outros que resolvi realizar o sonho de muitos meses. Nunca irei esquecer a sensação de leveza e expectativa que me dominou nos momentos que antecederam a minha exploração pela área desconhecida e, no entanto quanto mais se aproximava o momento da minha indisciplina e um medo latente aflorava, mais eu me sentia empolgada.

Estava acostumada a andar pelo colégio e gostava disso, porém naquele dia não sei como havia conseguido uma desculpa para sair da aula momentos antes do seu término.

Costumava correr por aqueles caminhos conhecidos, mas sempre com a presença de um adulto a alguma distância. Assim foi com uma sensação de liberdade que cheguei ao local de várias dependências que se posicionavam na parte mais alta da enorme escada.

Com o coraçãozinho batendo fortemente, as faces em fogo e os olhos atentos e exploradores deparei-me em primeiro lugar com uma sala de estar decorada com gosto e sobriedade e em seguida uma pequena biblioteca que me fascinou enormemente e que jamais esquecerei. Lembrava da enorme biblioteca do colégio, onde gostava de ficar e aquele simpático e acolhedor ambiente me conquistou imediatamente, exatamente pelo contraste impressionante e pela elegância natural que transparecia.

Quando ia encaminhar-me para outro lugar do singular pavilhão deparei-me com Soninha a olhar-me de maneira insólita no corredor largo e curto. Nesse momento arrependi-me realmente daquele passeio idealizado. Ela me fitava com medo.

E senti que me julgava uma traidora pelo modo como a arriscava.

Não queria acreditar naquele olhar e, no entanto a despeito de tudo eu fazia isso por amizade e carinho. Queria demonstrar que éramos iguais, que todos eram iguais. Ela não compreendera? Lentamente voltei-me aguçada pelo barulho que ouvira e vejo minha mestra aproximando-se lentamente no portal do tranqüilo corredor , agora tão assediado.

A sensação de que tinha perdido uma causa e uma amiga pressionava meus ouvidos e notei que as lágrimas envolviam meus olhos com um inexplicável atordoamento. Não sentia nem um pouco de medo de qualquer punição, apenas não tolerava parecer inconseqüente à pequena órfã indefesa.

Mas ela aproximou-se de mim e com um raro sorriso imensamente doce tocou em meu braço.

- Não chore, não, por favor. Não importa o que aconteça. Sei agora que somos todos iguais e que a única coisa que nos separa é a falta de amor de algumas pessoas. Mas só algumas...

Olhei-a abraçando-a enquanto minha mestra se curvava e segurava nossas cabeças juntas , trazendo-as de encontro a seu peito sem coragem de falar.

Muitas vezes iria me lembrar disso com indizível carinho e mais tarde, muito mais tarde, quando fui visitar meu colégio, deparo com uma jovem irmã, que não estudara tanto quanto as freiras titulares, mas que cuidava da portaria.

Olhando-a, revi debaixo da touca religiosa, os olhos estrábicos, porém imensamente ternos e incrivelmente bonitos da pequena órfã.

Depoimento real omito, porém, nomes verdadeiros para preservar-lhes a privacidade.

Fontes:
http://www.vaniadiniz.pro.br/
Imagem = http://migracao.sisfacil.com.br/

Heloisa Buarque de Hollanda (Literatura Marginal)


No quadro que estamos tratando aqui, ou seja, a cultura como exemplo de resistência e produção de novos sentidos políticos em países em desenvolvimento inseridos no contexto da globalização, a literatura também mostra algumas propostas e mudanças estruturais no sentido de sua criação e divulgação. Nestes casos, a própria noção de cultura, e por tabela a de literatura, é forçada a repensar seus parâmetros e até mesmo, – o que mais interessante -, sua função social.

É neste sentido que reafirmo que as características e as estratégias das expressões artísticas vindas das periferias vêm surpreendendo como a grande novidade deste início de século com o desejo de responder ao acirramento da intolerância racial e às taxas crescentes de desemprego provenientes dos quadros econômicos e culturais globalizados.

A literatura também não ficou imune a estes novos inputs. É da tradição da série literária brasileira, uma atenção significativa aos temas da miséria, da fome, das desigualdades sociais e, ultimamente, da violência urbana. E, como já mencionei anteriormente, é da nossa tradição cultural, o engajamento político e o compromisso social do intelectual, neste caso, do escritor. Nesse sentido, um detalhe interessante no conjunto de nossa produção literária é o fato de que, ao contrário de nossos irmãos latino-americanos, nunca tivemos o testemonio como gênero literário. Especialmente depois dos anos 60, o testemonio tornou-se importante por conseguir dar a voz, ainda que de forma indireta, aos segmentos sociais cujo acesso ao livro e à literatura foi negado. Um dos testemonios mais famosos é o conhecidíssimo caso da narrativa da índia guatemalteca Rigoberta Menchú que, ao lado de sua família, desde muito cedo, engajou-se no movimento camponês em defesa dos direitos humanos e da justiça social. Nessa luta, Rigoberta assistiu seu pai, mãe e irmão serem torturados e violentamente assassinados. Mesmo só, Rigoberta prosseguiu na sua militância chegando à liderar, em 1981, um dos movimentos mais radicais de seu país, a Frente Popular. Dez anos mais tarde em 1992, Rigoberta ganharia o Prêmio Nobel da Paz. Em 1983, havia contado sua história para Elizabeth Debray, que anota meticulosa e fielmente seu relato que vai resultar no primeiro registro latino-americano de testemonio, o livro I, Rigoberta Menchú. Desde então, o gênero se espalha pela literatura política latinoamericana mas no Brasil, temos apenas um caso de testemonio, o livro Cícera sobre a experiência trágica de uma empregada doméstica escrito em colaboração com Danda Prado.

A ausência desta forma colaborativa de narração entre nós talvez expresse a lógica da verticalidade da estrutura das nossas relações de poder e, portanto, a facilidade de agenciamentos e composições patronais entre classes sociais no Brasil. O fato é que o escritor sempre foi o sujeito do discurso sobre o pobre e o excluído da sociedade brasileira. (Me parece que neste sentido, o caso da museografia não está muito longe da literatura).

Com a subida da violência em 1987/88, emblematicamente datada pelos arrastões no Arpoador, o interesse da classe media sobre o assunto começa a se manifestar de maneira mais clara e recorrente Em 1993, o tema da violência atinge seu ápice, só que agora a mobilização da opinião pública é produzida no sentido inverso, o da violência policial. É deste ano, em julho, o massacre da Candelária, no qual 8 crianças entre as 50 que dormiam nas escadarias da Igreja foram mortas a tiros por policiais, seguido, em agosto, ou seja, um mês depois, pelo massacre de Vigário Geral responsável pela morte de 21 inocentes também pela polícia.

Especialmente essa segunda chacina vai marcar época na nossa cultural social e política. Intelectuais, artistas e representantes da sociedade civil, unem-se e começam a articular ações concretas em torno de políticas em defesa da cidadania e dos direitos humanos. É desse momento a criação de organizações como o Viva Rio e a realização de marchas pela paz e contra a violência. Não vou me deter nisso aqui porque não é o caso, mas essas ações e, sobretudo, as articulações entre agentes da classe média e as comunidades das favelas e conjuntos habitacionais marcam o início de um tipo de produção cultural até hoje inéditas no Brasil. São produções destas comunidades que interpelam a cultura main stream e tornam-se sucessos de público e de crítica. Do ponto de vista da história literária, dois livros escritos por autores de classe média inauguram uma produção que vai se desenvolver de forma autônoma e com grande força. São eles Zuenir Ventura com Cidade Partida, de 1994, que relata de forma originalíssima, entre o documental e o literário, as ações pós-massacre de Vigário Geral e Estação Carandiru de Dráuzio Varela, publicado em 1999, sobre as condições sub-humanas de vida no maior presídio da América Latina.

As características propriamente narrativas desses dois livros são bastante interessantes e sobretudo sintomáticas. Cidade Partida traz um narrador cuja posição não pode ser confundida com o que seria um livro de denúncia social, no qual o autor se aproxima de seu objeto e através dele traz à tona uma realidade da qual não se teria notícia senão pela posição privilegiada deste mesmo autor. Também não me parece refletir a objetividade necessária e característica do relato jornalístico. Mesmo não sendo um autêntico testemonio, o relato de Zuenir ao longo de toda sua narrativa, mantém uma postura ambígua: opinativa e afetiva – no sentido da noção de valor-afeto de Antônio Negri – e ao mesmo tempo franqueia um espaço de canal aberto para a fala do outro. Zuenir empresta a sua voz à comunidade que examina, até mesmo ao traficante Flavio Negão, um fato inédito nas narrativas jornalísticas ou literárias. Pela primeira vez, o asfalto ouve as razões, os gostos e a dor de uma ampla e diversificada gama de habitantes da favela, os “terríveis agentes da violência”, iniciando um processo de aproximação entre a favela e o asfalto, sem recorrer a falsas colorações heróicas ou vitimizadas.

Em 1999, Dráuzio Varela vai percorrer um caminho parecido com Carandiru. Aqui a escuta médica, de traços confessionais, que implicam no pressuposto da confiança entre quem relata e seu ouvinte, reproduz também de forma não diretamente opinativa o pensamento e o cotidiano do presos em carceragem. Essas são duas obras que, de certa forma, marcam um lugar de relativa abertura da voz da periferia para o mercado das grandes editoras. Ambas tiveram uma ampla recepção de público e consagraram-se como uma forte tendência de mercado.

Entretanto, dois anos antes de Carandiru, em 1997, nosso Mundo das Letras já havia sido surpreendido pela publicação de uma obra de ficção que, em pouco tempo, se tornaria um dos maiores best sellers brasileiros dos últimos tempos. Falo de Cidade de Deus, de Paulo Lins, hoje com 18 edições e traduzido em inúmeros países.

Paulo Lins nos surpreendeu com uma variável totalmente imprevista nos nossos círculos literários: o pobre tem voz e pode até escrever; e mais ainda: escrever um livro de sucesso de público e de crítica. Vou começar pelo começo. Paulo Lins, morador do conjunto habitacional Cidade de Deus, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro e local conhecidamente violento da cidade, formou-se na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhou como professor de ensino médio, época na qual, começou a escrever seus primeiros poemas.

Em certo momento, começa a trabalhar como assistente de pesquisa, fazendo etnografias sobre a comunidade de Cidade de Deus para a Professora Alba Zaluar, que realizava um trabalho sobre a violência urbana. Como Paulo mostrava grande dificuldade em organizar a redação de seus relatórios, Alba Zaluar sugere que ele faça uma redação literária de seus resultados de pesquisa. E assim foi feito. Certa ocasião, Alba mostra os textos de Paulo Lins para o Professor Roberto Schwarz que, imediatamente, identifica naqueles relatórios, seu potencial literário. Sugere então que Paulo faça um romance com aquele material e o apresenta à Cia das Letras, uma das grandes e mais prestigiosas editoras nacionais. Paulo se entusiasma com o retorno de Schwarz, mas percebe imediatamente a importância inaugural desta empreitada e entra, literalmente, em pânico. Foi com enorme esforço e com a ajuda de Crime e Castigo, seu modelo maior, que conseguiu terminá-lo.

Pela primeira vez, e a partir da convivência estreita com as comunidades de periferia, incluindo-se aí bandidos e traficantes, temos uma detalhada anatomia do cotidiano da miséria e do crime no Brasil, agora com as cores da experiência vivida. Já não se trata mais da favela idealizada e separada do asfalto, mas da violência aberta e do inconformismo existentes nos novos conjuntos habitacionais, ou neofavelas, como as identifica o autor. (A senzala e o quilombo).

Com o sucesso definitivo de Cidade de Deus, ficou claro que alguma coisa irreversível havia afetado a criação e o mercado literário. Talvez até um novo cânone (tradição) estivesse em processo de gestação.

Em 2000, surge um novo livro de igual importância ainda que de repercussão distinta da de Cidade de Deus. Trata-se de Capão Pecado de Ferréz (nome de guerra de Reginaldo Ferreira da Silva). Capão Pecado traz um tão refinado quanto impactante retrato de Capão Redondo, um dos bairros de maior índice de violência, tráfico de drogas e criminalidade de São Paulo, onde Ferréz cresceu e mora até hoje. Seus mais de 200.000 moradores não contam com redes de esgoto, nem hospitais, nem assistência de nenhuma espécie. Capão registra a marca sangrenta de 86.39 assassinatos a cada grupo de 100.00 habitantes, muito mais que a média nacional que já é estratosférica para os padrões europeus.

Este livro mostra uma integração bem maior com o universo hip hop do que seu antecessor, Cidade de Deus. Mesmo que não contasse com uma estrutura rítmica e musical organizada como a que encontram os rappers, Ferréz tomou como referência, as letras dos raps, com seu misto de crônica do gheto e convocação dos manos para a ação. Pelo menos, um ponto de partida diverso do cânone letrado. No livro, temos a presença de Mano Brown (líder do grupo de rap Racionais MCs, também residente de Capão Redondo) que comanda as epígrafes de cada capítulo do livro. Os dois juntos tornaram-se, daí em diante, grandes líderes comunitários e fortes referências para jovens sem perspectiva.

O segundo livro de Ferréz, Manual Prático do Ódio, mais agressivo do que o primeiro, descreve o impasse de uma geração que “não mede conseqüências para buscar o que não teve” (sic) Uma geração marcada pelas seqüelas deixadas pelo Estado e pela intensidade do impacto da mídia.

O que surpreende nos livros de Ferréz é, sobretudo, a inversão do lugar da violência. Em vez de ser tema da narrativa, a violência é apenas o entorno, a condição de vida de personagens comuns que, como nós, têm emoções, prezam a família, amam, têm ciúmes, fazem sexo e sonham com um futuro mais tranqüilo. Isso é um choque para o leitor que não vive nos cenários do crime e termina promovendo uma forma de identificação ou, pelo menos, entendimento, do personagem agressor, ainda não conhecida na nossa literatura

Em Ferréz, torna-se mais clara uma característica já presente em Cidade de Deus. O autor narrativamente comprometido com o local de sua fala que se torna porosa e, portanto, excessivamente receptiva da dicção local. Como se o autor dividisse a autoria da obra com o território da ação. Muitas vezes temos a sensação de que Capão Redondo fala através do autor de seu relato. É um caso bem novo e interessante de autoria que por se querer hiperlocalizada traz em sua construção mesma uma das estratégias mais usadas pelas culturas locais em tempos de globalização. O verbo glocalize já entrou para o léxico do mercado cultural destes últimos anos. É importante ainda observar que o eu-coletivo sempre foi uma alternativa eficaz de empoderamento das dicções literárias das minorias de gênero e etnia. Mas não penso ser este o caso de Paulo Lins ou de Ferréz. Mesmo que tragam consigo esta tradição narrativa, no caso dos dois autores claramente a opção é mais para a marcação do local como espaço territorial do que como vozes coletivas como é o caso da literatura de mulheres ou negros.

Com o sucesso, Ferréz recebeu convite de bolsa para estudar literatura numa universidade americana. Não vai. Esta recusa se estende para a oferta de um produtor norte-americano que tenta comprar os direitos de Capão Pecado para o cinema. Ferréz, em entrevista para os jornais, esclarece: “Escrevo para ser lido pela minha comunidade. Meu lugar é aqui. Minha guerra é essa”.

Comprometido com sua comunidade, Ferréz cria, ainda com Mano Brown, o movimento 1 DASUL, uma usina cultural que, entre outras atividades, tem um selo musical próprio e uma grife de moda chamada Irmandade (um conceito fundamental da cultura hip hop) que hoje já ocupa um galpão de 200 m. e outras duas oficinas apenas de costureiras, produzindo uma média de 300 peças por dia. A grife, que se caracteriza por ilustrações que denunciam o sistema, tem uma loja no centro de SP, sua produção é distribuída para sete estados brasileiros, além de deter os direitos de distribuição das marcas de 6 grupos de rap. A grife Irmandade confecciona também cartilhas mensais para um programa contra drogas e pretende abrir uma clínica para tratamento de dependentes. No mesmo embalo, Ferréz organizou dois números especiais da Revista Caros Amigos chamados “Literatura Marginal” com que reúnem e divulgam escritores da periferia, abrindo espaço para nos talentos locais.

Por marginal, Ferréz entende a busca de um lugar na série literária para aqueles que vem da margem. E explica melhor: Literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço. Mas adverte: “Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, não quer dizer que a vamos sossegar. Temos é que organizar o nosso ódio, direcioná-lo para quem está nos prejudicando. Tudo o que o sistema não dá, temos que tomar”.

Participando, em 2004, de uma mesa no Seminário Cultura e Desenvolvimento, o Ferréz, indignado, disse: ainda que eu escreva prioritariamente para minha comunidade, não quero minha literatura no gheto. Quero entrar para o cânone, para a história da literatura como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direto de ter acesso ao Flaubert. Esta afirmação de Ferréz traz consigo a chave do principal subtexto dos novos projetos culturais vindos da periferia: ou seja a grande mudança se faz na realidade através de uma concreta democratização de expectativas. Pela primeira vez na História, em alto e bom som, o pobre afirma seu desejo e direito ao consumo dos mesmos bens materiais e simbólicos, historicamente usufruídos apenas pelas classes médias e altas. Ele quer o tênis Nike de última geração tecnológica, assim como quer o acesso à informação especializada e à alta cultura. Para essa “democratização de expectativas” talvez nós, intelectuais e artistas de classe média, ainda não estejamos preparados. Na nossa fantasia perversa aceitamos que o pobre sonhe com um Nike, mas não com Flaubert.

Um último livro que vou comentar rapidamente é o Cabeça de Porco que foi lançado esse ano e que tem a autoria de Luiz Eduardo Soares, Celso Athayde e MV Bill. Um sociólogo, uma liderança comunitária, presidente da CUFA (Central Única de Favelas) e um rapper politicamente engajado. Bill e Celso Athayde estavam já há algum tempo fazendo uma pesquisa, com gravações em vídeo, sobre as causas da violência e adesão ao tráfico de drogas entre jovens das favelas e uniram-se a Luiz Eduardo Soares que, além de sociólogo, já tinha sido Secretário de Segurança no governo Garotinho e Secretário Geral de Segurança Pública no governo Lula, portanto com experiência e informações bastante concretas na área da criminalidade. Os três propuseram então escrever um livro a 3 mãos. É verdade que as partes escritas por cada um são assinadas não produzindo, portanto, um tipo de autoria coletiva mais colaborativa. O livro não desafina na passagem de um autor para outro que aparecem intercalados na estrutura narrativa do livro. Um caso de saber compartilhado com igual peso para cada uma das partes, cada autor oferecendo sua dicção e sua competência específicas em pé de igualdade, onde a autoria é menos importante do que o conjunto polifônico do trabalho, que é precisamente onde esta obra tira sua maior força e valor. A leitura de Cabeça de Porco - cujo sentido na favela é o de uma situação da qual você percebe “sem saída” – é uma leitura de um só fôlego. Sem piedade, e levado por um texto profundamente afetivo, o leitor é mergulhado num universo de violência e miséria cuja experiência emocional é totalmente desconhecida das classes média e alta. É interessante lembrar da reação da platéia essencialmente elitizada da última FLIP, à apresentação deste livro com as presenças de Luiz Eduardo e MVBill. Palmas ininterruptas, assobios, gemidos. Que reação teria sido essa? De uma “revelação quase religiosa”? De encantamento com pop stars? Ou o quê? Neste caso em vez querer escolher uma dessas respostas à minha pergunta, prefiro ficar com o grau de intensidade e não ortodoxia dessa manifestação e de sua recepção pelo público. Escolhi comentar esses três livros muito diferentes entre si para pensar um pouco o papel do intelectual contemporâneo.

Antes disso, me permito um exemplo pessoal, bastante recente, e que demonstra minha falta de jogo de cintura para lidar com esses fenômenos: Há dois meses atrás, coordenei pelo meu Programa na UFRJ, uma exposição no Centro Cultural dos Correios chamada Estética da Periferia . Essa exposição foi montada pelo Gringo Cardia que tem dois projetos exemplares: O Kabum e a Fábrica de espetáculos que são laboratórios super equipados com tecnologia de ponta e que forma marceneiros de teatro, iluminadores, cenógrafos, figurinistas, videomakers, fotógrafos e designers. O objetivo desses laboratórios é a formação e a qualificação profissional de adolescentes e jovens das comunidades de baixa renda. A idéia da exposição foi a de que esses jovens escolheriam as peças da exposição, portanto tinham um poder curatorial, e serviriam como assistentes do Gringo na idealização e produção da montagem cenográfica do evento. Bem, não sei se alguém aqui viu a exposição, mas confesso que eu, uma típica intelectual dos anos 60, com todos os ônus que isso representa, fiquei altamente incomodada e surpresa com o resultado. O que eu vi foi uma exposição que passava longe do que eu considero cultura ou a estética da periferia. Era tudo muito colorido, meio fashion, claramente estetizado. Para uma contemporânea do Cinema Novo isso soou desconfortável. Mas, todas as sextas feiras, fizemos uma visita não diria guiada, mas meio em forma de painel de discussões com diferentes segmentos da periferia. Surpresa. Todos se reconheciam e aplaudiam o resultado alegando que esta era a primeira mostra na qual se respeitava a auto estima da periferia. Que trazia o lado positivo desta cultura e espelhava o que há de melhor nas favelas e nos conjuntos habitacionais. Ouvindo isso, tive certeza de que estamos vivendo um momento bastante especial de acesso real e inédito aos sentimentos, ethos e demandas das classes de alto nível de pobreza. Percebi também como é precário nosso poder de tradução cultural entre classes e etnias.

Alguns pontos merecem serem revisitados para um aprofundamento de questões: Em primeiríssimo lugar a questão dos novos papéis do intermediário. Acho que nesse momento estamos aprendendo que em vez de interpretar demandas e traduzir diretamente culturas devemos exercer o papel de negociadores que possam relativizar nossos espaços de fala, – até hoje um patrimônio digamos tombado pela tradição e pela academia -, para outras vozes que começam a surgir com uma saudável agressividade e alto poder de interpelação. Outro ponto seria o de procurar repensar, com alguma radicalidade, as distinções tão estabelecidas entre o que seria uma cultura “alta” e uma cultura “baixa” seja ela uma cultura de massa ou popular. Mais um ponto seria o de ficarmos atentos à tão inevitável quanto interessante mistura, e muitas vezes hibridização mesmo, de gêneros artísticos, mídias e suportes. Em último lugar recomendo uma especial atenção à questão da autoria e da autenticidade tal como a conhecemos, formatada pelo período moderno. Nesse momento de samplers, remixes e pirataria criativa, é fundamental pensar a noção de saber compartilhado e ficar disponível para as novas formas de autoria colaborativa que estão surgindo e que vão sem dúvida forçar uma mudança razoavelmente séria no nosso papel como intelectuais, artistas e formuladores de políticas públicas. E, finalmente, gostaria de passar para vocês o entusiasmo que estou vivendo com esse momento meio assustador, mas certamente atraente. O intelectual não está afinal necessariamente desempregado nesse século XXI. O que ele deve fazer para garantir sua sobrevivência com algum sentido e positividade é, antes de mais nada, uma bela e urgente autocrítica. E, em seguida, testar novas formas de participação e engajamento.

Fonte:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Lucy Nazaro (Caderno de Poesias)



PEDRAS BRINCAM DE FAZER AMOR
(À Rishikesh)

Pedras se lavam na intrepidez de águas geladas que fluem
Escutando o cantar suave que escorre tranqüilamente com elas.
Enquanto brincam de fazer amor, misturam fluídos mágicos e riem
Incitando nossas almas a se abraçar mansamente e voar em sonho.

Um grão aqui, outro grão ali, juntam-se em abraços infinitos
Moldando um colchão para pés cansados e corpos inflamados
Que erguem-se das águas e deitam-se infinitamente unidos
Em lânguidos olhares e beijos ocultos pelos que se sentem amados.

O verde se exibe no horizonte da mãe bondosa
Espalhando esparsas folhas que se jogam de galhos vistosos
Querendo fazer parte da paisagem-cama que se faz briosa
Embalando sonhos e sons de amantes desejosos.

O suave encanto do momento marca corações
Que se abraçam timidamente, escondendo as próprias mãos
Um desvencilhar-se não querendo, um correr que busca ficar
E um enorme desejo de amor se escondendo.

As águas verdes com sua calma espumada seguem trilhas tortuosas
Agora testemunhas de um encontro fatal, pleno de medos
Que se enfileirarão também em vales distantes
Aguardando o momento do encontro em que se tornarão amantes.
–––––––

PÉROLA DO UNIVERSO

Uma curva desvia o que era destino,
Uma força, um vento, um siroco menino
Um grão perdido no sideral espaço
Cria a pérola solitária do universo.

Um róseo coração saltita pelos ares
Navega em barco a vela pelos mares
Voa inquieto, solitário burbulhando amor
Enfeitando jardins verdes de colorida flor.

Há um sonho que insiste se mostrar amarelo,
O quero azul, verde ou vermelho, mas sincero
Exibindo a nave do cósmico voante que o leva
E me busca e em dreams suaves nos enleva.

Mais um risco de um vento no universo... e um grão se fará pérola...
–––––––––––––––––––

ASAS PARA O AMOR

Asas me levam no horizonte sem fronteiras
Onde água, terra, ar e fogo se abraçam
Lambendo meu corpo flutuante em corredeiras
De mares e rios que passam.

Passo neles, com eles, como cisco imperceptível
Perdido num sopro de vento que me tirou da estrada
Boiando à toa, em tom descoberto, navego incrível
Sem leme, sem rumo, vento, bússola, sem nada.

Sou nada que se esvai no esquecimento da vinda,
Vida escolhida, magia indecifrável de meu caos tão vasto
Perambulando, sozinho, vejo luzes que pupulam risonhas, ainda.
Enquanto escorrego pelas sombras. Não vivo... me arrasto.

Lá no fundo da estrada, onde terra, céu e mar se abraçam
Tem luz, tem ar, tem fogo, tem eu esperando por mim
E, na iluminura de um quadro amarelo, um sorriso, enfim
Entrevejo, você, que me olha, me chama e diz que me ama

Asas me levam, ultrapasso a fronteira, não sou mais cisco, sou pedreira
.
_______

Antonio Brás Constante (A Morte Vai Acabar Me Matando)


Para algumas pessoas a morte dá pena, para outras o que se dá é a pena de morte. A morte é imparcial, não escolhe ou dá preferência entre novos ou velhos, bons ou maus, ricos ou pobres, o único critério exigido é que se esteja vivo (favor excetuar desta afirmação todos os zumbis, vampiros e afins que apesar de estarem tecnicamente mortos, também acabam morrendo, como já demonstrado exaustivamente em inúmeros filmes lançados através dos tempos).

O temor da morte causa contradições em nossas percepções, por exemplo, você sabe o que faz uma pessoa pensar que os anjos olham por ela? Sua fé cega. Viver é trocar a eternidade da inexistência por um pouco de essência. Aliás, viver é um ato de rebeldia, de loucura, que se cura com a morte. Como já dizia o humorista Rafinha Bastos, o homem nunca está satisfeito com sua vida, quando está solteiro quer casar, quando está casado quer morrer, e por aí vai.

Um fato interessante é que quanto mais vivos nós tentamos nos sentir, mais perto da morte ficamos, é o que acontece com quem pratica esportes radicais, onde a sede por adrenalina, por querer sentir-se vivo, faz com que estes indivíduos fiquem com suas vidas por um fio, muito próximas do fio afiado da navalha mortal da própria mortalidade.

Pensar na morte é algo que nos faz matar o tempo. Então percebemos que o tempo não morre, nós é que morremos dentro dele. Matamos o nosso tempo, bem como matamos o tempo dos outros através de nossas ações. Quando ficamos horas em uma fila porque o atendente acha que está fazendo um favor trabalhando ali, ele mata não somente o tempo dele, mas de todos que ficam prisioneiros na fila a espera de sua vez de ser atendidos.

Quando algum apressado no trânsito faz alguma manobra irresponsável causando um acidente e isso gera um engarrafamento quilométrico, ele pode até não ter matado diretamente ninguém, mas indiretamente está matando um pouco do tempo de cada um, um tempo que se somado pode equivaler a uma vida inteira.

Enfim, podemos dizer que a vida é uma história com infinitos enredos, TODOS com o mesmo final: A MORTE DO ATOR PRINCIPAL.

Fonte:
Colaboração do Autor

Vicência Jaguaribe (O Piano)


Para a dona Edite Moreira Barreto,
único piano que minha terra ouviu.

Os ouvidos do agrônomo, que estava ali a trabalho, surpreenderam-se ao distinguir, executados por mãos hábeis e sensíveis (algo inconfundível), acordes do Concerto para Piano e Orquestra Nº 21, de Mozart. Eram onze e quarenta de uma manhã de setembro, e ele, caminhando pelas ruas mal calçadas e pouco arborizadas, amaldiçoava o chefe que o fizera aventurar-se por aquele fim de mundo.

O som do piano o fez parar. Não! Aquele som era um delírio provocado pelo indescritível calor e pela sensação de sufocamento. Já ia retomando a caminhada em direção ao hotel, quando ouviu, agora mais fortemente, um som inequívoco – For Elise, de Beethoven. Não havia dúvida: aquela cidadezinha acanhada, a ante-sala do inferno, escondia em algum lugar, protegidos por quatro paredes, um piano e um pianista. E, pelo que estava ouvindo, não era uma atividade só para inglês ver, não. Havia ali um artista excepcional, cujas execuções se distinguiam pela sensibilidade das interpretações e pelas inovações aos arranjos tradicionais.

Quem tocava com tanta competência em uma terra de pés rachados? Quem, ali, tinha a sensibilidade de introjetar o sentimentalismo quase excessivo de For Elise, ou a sensualidade quase impertinente da Habanera, da Carmem, de Bizet? Algo deve ter havido ali para prender, em uma cidadezinha como aquela, a (não podia deixar de ser mulher e jovem) pianista excepcional que o estava deleitando. Uma grande decepção? Uma grande mágoa? Um grande amor? Um casamento medíocre? Uma ninhada de filhos para criar?

Apurou os ouvidos. Os acordes vinham de uma casa grande e antiga, construída do lado direito da igreja. Ele tentou orientar-se pelos sons do piano, que naquele momento iniciava a delicada Canção de Ninar, de Brahms. Ele parou na calçada do casarão, o qual conservava fechadas até a metade as portas interiores das duas varandas. Não teve coragem de tentar vislumbrar, mesmo por alguns segundos, o interior da residência, os mistérios da casa do piano. Recolheu-se intimamente e assim ficou, parado, até que a criança de Brahms finalmente adormecesse. É! Como lhe sentencia um grande amigo, professor de piano, não se ouve Brahms impunemente.

Um sentimento de respeito pela pianista (sim, era uma mulher, só podia ser!) que entregava seu talento de graça, a quem passasse pelas imediações do casarão; uma sensação de encantamento por aquelas peças artísticas que de vez em quando nos abriam as portas do paraíso; e uma veneração extrema pelos artistas que transformam em harmonia o caos dos sons que se perdem no nosso dia-a-dia... foram essas as emoções que envolveram o agrônomo durante as duas horas que ainda teve de esperar para ver de novo o transporte que o levaria para longe do piano. Que o levaria para o conforto burguês de seu apartamento e para longe do piano. Que o reaproximaria da mulher e dos três filhos, afastando-o do piano. Que o faria perder para sempre o piano.

Na hora em que o agrônomo resolveu voltar ao hotel, esquivando-se de bisbilhotar o segredo do piano, uma cuidadora de avental branco, e touca azul protegendo os cabelos, entrou na sala do piano, onde a pianista (era realmente uma mulher) ia iniciar a valsa de Strauss, Sangue de Viena. Mas o virar a página da partitura foi interrompido – chegara a hora do repouso recomendado pelo médico. A pianista, uma mulher que já ultrapassara os noventa anos, fez cara feia para a cuidadora, mas levantou-se e não opôs nenhuma resistência.

A cuidadora quis apoiá-la pelos braços, mas ela negou-se a aceitar a ajuda.

E, enquanto caminhava para o quarto, regia uma orquestra invisível, executando uma sinfonia que não constava em nenhuma partitura e que nem os ouvidos mais sensíveis poderiam captar – a sua 1ª Sinfonia, ou... A Sinfonia do Fim.

Fonte:
Colaboração da Autora.
Imagem = papel de parede do Baixaki

Márcia Carrano (Vento Leve)


Poemas soltos, destacáveis, pequena amostra de produção poética ainda inédita. O livro tem formato e concepção originais. A professora e doutora Rosa Gens, do Departamento de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresenta-o, com propriedade, em seu Palavras no vento, de Márcia Carrano.

Essência de poesia. Com esse centro o leitor irá se deparar ao iniciar a leitura da obra Vento Leve, de Márcia Carrano. Pois a autora articula a linguagem com sombras, nuances e jeitos que ultrapassam a superfície e atingem espaços inusitados do pensar. As palavras flutuam, movem-se, redemoinham e nunca se aquietam. São palavras que pairam, seduzem, inquietam. Oferecem o sumo do poético, através de uma dicção precisa, delineada já no poema de abertura (“tudo é letra e livro / em minha alma // até este caco de vida / no chão da sala.”).

No desvendar das páginas, o leitor passa os olhos e a mente se detém nos instantes poéticos, breves na apresentação e duradouros pela reflexão. A brevidade aponta para uma condensação de sentido, em que estão presentes notas do cotidiano, apontamentos de vida, em dias que passam limpos, e são ajeitados; em que a morte passa noturna; em que aparecem o IPTU e moedas. Imagens semeadas no vento, que se formam com o deslocamento do concreto e o abstrato, o cotidiano e o além de. Trata-se de concretudes que encaminham a outros sentidos, habilmente potencializados.

A proposta da autora é direta; no entanto, deixa entrever outras paragens, e nos sentimos impulsionados pelo vento que nos leva a diferentes indagações. Os temas são muitos, reunidos na vida e pelos truques de palavras. No entanto, há motivos recorrentes, que se transformam em eixo do poetar. Como exemplo, a busca de um saber, que pode ser apontada em vários dos textos. Outro dos temas é a articulação da escrita sobre a escrita, deixando pulsar a consciência, no discurso lúdico e lógico sobre a poesia. E a transformação do cotidiano em matéria poética, como nos versos “como pego no ar/o salto alto da emoção/disfarçada em rotina banal?”(p.25), que condensam o programa estético da autora no que diz respeito ao corte de uma sentimentalização piegas.

A forma como o livro é apresentado surpreende e encanta. A autora propõe uma leitura desautomatizada, que não caminhe do início ao fim no valor das páginas. Além dessa leitura individualizada, cada um dos poemas pode ser destacado pelo leitor e enviado a quem ele desejar. Trata-se de um leitor que tem a possibilidade de escolher, que se torna, ele também, doador de sentido, e que, provavelmente, irá sobrepor ao poema, cartão endereçado, a sua própria escrita. Pela intenção da autora, os poemas ficarão com o leitor, na memória, ausentes do livro, mas presentes em outras paisagens de doação de sentido.

Porque a poesia é tudo e está em tudo. Como a autora aponta, em sua dedicatória, à maneira de Adélia Prado, pode estar escondida nos recortes do cotidiano que não sabemos (ou podemos) por vezes valorizar. E que têm seu pouso neste Vento leve, de Márcia Carrano, poesia que não se dissolve ao vento, que se torna ventania dos sentidos, vendaval de significados.

Rosa Gens

Fonte:
Márcia Carrano

Márcia Carrano (Poemas Escolhidos)


POEMA 1 - VENTO LEVE

tudo é letra e livro
em minha alma

até este caco de vida
no chão da sala.
_______________

POEMA 2 - VENTO LEVE

o dia passando limpo
atravessando apenas
casual
banal
usual.

e de repente
esborracha uma verdade
bem no meio da vida
— e vira noite sem querer.
____________________

POEMA 3 - VENTO LEVE

intelectual lentidão bovina
lengalengando sonolenta
no triquetrique nervoso
da segunda-feira ruidosa.
____________________

POEMA 4 - VENTO LEVE

e aí?

como pego no ar
o salto alto da emoção
disfarçada em rotina banal?
____________________

POEMA 5 - VENTO LEVE

minha cabeça
amanhece zil textos.

mas o iptu
vence hoje?

e se desfazem
em mil moedas anoitecidadas
em podres carteiras mofadas.
______________________

POEMA 6 - VENTO LEVE

amor é
truque

trunca os corpos
por que passaram olhos
e coração
no corpo único
do agora amoroso.
_____________________

TEMPO NOVO
Para Litinha.

não desprezar o tempo
que se desmanchou enfumaçado
pra celebrar como herói o que vier.

fincar os pés no chão
reunir pedaços do que foi vivido
ligando-os com a lágrima inevitável
colorindo-os com a alegria certa
esculpindo-os com o sentimento puro
pra deixar vencer a paz.

pés no chão ancestral
umedecido pela água triste
o coração
juntando risos
rememorando sorrisos
afastando a tristeza inútil
— agora sim! — vai cantar
o tempo que vier
com o olhar lavado de quem vê
pela primeira vez.
------------------

Márcia Carrano (Primeiro dia)


Primeiro dia de aula. Pastinha na mão, laço de fita no cabelo e a vontade de descobrir o mundo. O que havia lá fora? O mesmo aconchego da casa de mãe, pai e irmãos? Lá fora... muita gente e ela sozinha ou muita gente e ela também?

Partiu como um novo cabral. Menininhas engomadinhas rezando e rezando uma vida inteira para o Deus que ninguém via.

Perto da capela, um bebedouro engraçado. A gente aperta e a água espirra. Água gloriosa se elevando a alturas desconhecidas. Maravilha! Mundo interessante este da escola. com água dançando no ar e na boca.

— Onde já se viu! Hora de rezar...

Primeiro dia de promessas desfeitas. A menina saía da capela e a puxavam de volta. Nada de água dançando, espirrando, numa deliciosa festa de descoberta.

— Mamãe, nunca mais vou à escola.

— Por quê, filha?

— Não deixam a gente beber água.

E não voltou mesmo, a não ser muitos anos depois, com lágrimas nos olhos — água que aprendera a fabricar.
–––––––––––––
Fonte:
CARRANO, Márcia. Porção de Tintas. Juiz de Fora, MG: FUNALFA Edições, 2003.

Márcia Carrano



Márcia Carrano Castro é natural de Cataguases (MG). Mora em Juiz de Fora desde 1984. Possui Licenciatura Plena em Letras, bacharel em Direito.

Professora efetiva da rede de ensino estadual, ensina Português, Redação e Literatura no Criarte, curso criado por ela em 1980.

Em 1977, lançou seu primeiro livro de poemas, "Zero Versus", Editora Esdeva - Juiz de Fora. Possui trabalhos publicados em diversos jornais e suplementos literários do país e sítios da Internet.

Em 2001, a Secretaria de Cultura de Cataguases (MG) deu o nome de Márcia Carrano a uma das bibliotecas naquela cidade.

Seu livro de contos "Porção de tintas", premiado pela FUNALFA em 2003, foi lançado no dia 24 de abril de 2003, em Juiz de Fora (MG).

- Vento leve (poemas). Juiz de Fora: Editar, 2007

Fonte:
Márcia Carrano

Livraria Cultura (Programação)

SÃO PAULO
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20 de fevereiro, sábado
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14h30
Tema A Ficção Científica
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping São Paulo

Quem nunca imaginou cenários fantásticos com carros voadores, armas lasers, viagens interplanetárias? Quem no planeta não conhece a respiração de Darth Vader ou as orelhas pontudas do Sr. Spock? Sejam as maravilhas encantadoras de desenhos como ‘Os Jacksons’, filmes e séries que passavam nos tempos de nossos avós ou bisavós, como ‘Flash Gordon’ nos cinemas, com sua ingenuidade sobre o futuro da humanidade, até o preconceito e a xenofobia de ‘Distrito 9’, a ficção sempre esteve à frente da ciência e nos trouxe calorosas discussões. Um mundo maravilhoso onde a humanidade trabalha em conjunto como a de Star Trek, ou uma caótica com problemas ambientais de Blade Runner, a verdade é única: a ficção cientifica é muito mais do que uma simples ficção. Nesse sábado, o assunto debatido na Livraria Cultura será ' Ficção cientifica'. Venha bater um papo com autores e editores, que falarão sobre o mercado nacional de ficção, e assistir a alguns episódios de seriados que fazem ou fizeram época.

Sobre os palestrantes:
Alan Uemura - editor do Aumanack.
Renato Azevedo - autor de De Roswell a Varginha, da Tarja Editorial.
Cristina Lasaitis - autora de Fábulas do Tempo e da Eternidade, Tarja Editorial.
Gianpaollo Celli - editor da Tarja Editorial.
Adriano Piazzi - editor da Aleph.
Rodrigo Coube - editor da Idea Editora.
Marcus Vinicius - Presidente da Comunidade 007 Brasil.

22 de fevereiro, segunda-feira

19h30
Tema Sucesso profissional com equilíbrio de vida
Local Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos

O sucesso profissional necessariamente vem acompanhado de muito trabalho, estresse e falta de tempo para o lazer e a família? A Livraria Cultura, em parceria com a Alliance Coaching, convida empresários, executivos em cargos de direção e gestores de RH a discutirem este tema. Na palestra, serão discutidos os fatores que envolvem a qualidade de vida no trabalho e fora dele. Um tema complexo tratado de forma simples e inspiradora.

Sobre os palestrantes:

Alexandre Rangel - Experiência como executivo da Arthur Andersen e da Alcoa durante mais de 20 anos. Formação acadêmica em Economia, Psicologia e Ciências Contábeis. Colunista do programa 'Executivos por Excelência', da Rádio Bandeirantes. Autor de vários livros, entre eles o best seller 'O que podemos aprender com os gansos', publicado também em Portugal e na Coreia do Sul.

Pablo Aversa - Formado em Administração de Empresas pela UERJ, com MBA Executivo pela BSP, acumula mais de 20 anos de experiência como responsável direto pela construção e liderança de operações estratégicas em multinacionais dos segmentos de alimentos e varejo (Empresas da Fortune 100). Autor do blog 'There's Always Room 4 Development!' (Sempre Há Espaço para Desenvolvimento!).

Silvio Celestino - Formado em Administração de Empresas e Pós-Graduado em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas – SP. Possui 20 anos de experiência executiva no setor de Tecnologia da Informação e é Coach desde 2002, atuando em grandes grupos empresariais no Brasil, nos Estados Unidos, Angola e Suíça. Colunista sobre carreira e Profissões no site do Jornal O Globo. Autor dos Livros: 'Conversa de Elevador – Uma fórmula de sucesso para sua carreira' e 'Diversity in Coaching – Working with gender, age, culture and race', escrito com Jonathan Passmore na Inglaterra

23 de fevereiro, terça-feira

19h00
Livro TERAPOÉTICA
Autor Alessandro Uccello
Local Livraria Cultura Market Place Shopping Center

'Terapoética' é o quarto livro de poesias de Alessandro Uccello, o primeiro depois que ele soube ser portador de Esclerose Lateral Amiotrófica. O título do livro reflete o modo como o autor enfrenta essa doença neurodegenerativa, buscando inspiração no dia a dia, nos relacionamentos amorosos e no humor cáustico para transformar seus problemas em poemas.

23 de fevereiro, terça-feira

19h00
Livro HISTÓRIA DO BRASIL EM QUADRINHOS
Autor Edson Rossatto
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

No livro 'História do Brasil em Quadrinhos - Proclamação da República', fatos como o Primeiro e o Segundo Reinado, a Guerra do Paraguai e a Abolição da Escravatura são reconstituídos pela personagem do professor Daguerre a três crianças durante um passeio pelas ruas do Centro de São Paulo. Os autores basearam-se em obras de arte sobre este período da História do Brasil como forma de remeter a adaptação para os quadrinhos aos livros da educação formal nas escolas.

24 de fevereiro, quarta-feira

18h30
Livro TENHA CALMA!
Autor Vera Martins
Local Livraria Cultura Conjunto Nacional

Nesta quarta-feira, a autora Vera Martins realizará uma sessão de autógrafos de seu mais novo livro Tenha calma!, que traz uma reflexão sobre a raiva, uma emoção tão natural no ser humano, mas pouco compreendida no ambiente de trabalho. Além disso, mostra como entender seu processo, seus 'gatilhos' e seus impactos na saúde mental, emocional, física e comportamental das pessoas.

A proposta é oferecer ao leitor ferramentas para a promoção de seu autoconhecimento e de um modelo mental fortalecido o suficiente para a aquisição de uma maturidade emocional sólida, possibilitando que a raiva seja administrada de forma eficaz e garantindo a felicidade no trabalho.

* Este evento será realizado no piso térreo da loja principal.

Sobre o autor:

Vera Martins é mestre em Comunicação e Mercado e especialista em Medicina Comportamental. Durante vinte anos foi executiva na área de gestão de pessoas em diversas empresas. No momento, atua como professora universitária, palestrante, design de programas em educação corporativa e facilitadora de grupos, por meio da condução de seminários e workshops que buscam o desenvolvimento de competências humanas nas organizações. É autora do livro Seja assertivo!, publicado também pela Campus/Elsevier.

Porto Alegre

28 de fevereiro, domingo

18h00
Teatro Como dizia o poeta
Texto e direção - Clênio Viégas
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country

Depois de cinco anos afastados - cinco anos, dois meses e dezesseis dias, pra ser mais exato - Lucas e Julia estão prestes a se reencontrar. Os dois, que tiveram um relacionamento repleto de altos e baixos, aproveitam enquanto o momento não chega para descrever ao público suas impressões um sobre o outro, seus diferentes pontos de vista em relação a sua história de amor e sobre relacionamentos em geral.

* Entrada: 1Kg de alimento não perecível.
** Duração: 70 min.

20 de fevereiro de 2010 (sábado)

14h00 às 16h00
Tema Oficina de Quadrinhos
Docente Jerri Dias e Mateus Santolouco
Local Livraria Cultura Bourbon Shopping Country - Av. Tulio de Rose, 80 - Porto Alegre

A Oficina de Quadrinhos – Projeto Dionísio é parte integrante da criação e publicação da graphic novel Dionísio, com roteiro de Jerri Dias e arte de Mateus Santolouco. Este projeto recebeu financiamento do FUMPROARTE – SMC - Prefeitura Municipal de Porto Alegre. A oficina será ministrada gratuitamente pelo roteirista Jerri Dias e pelo ilustrador Mateus Santolouco com 10 aulas com duração de 2 horas/aula, num total de 20 horas.

* Vagas limitadas - 15 alunos - por ordem de inscrição.
** Inscrições - projetodionisio@hotmail.com
*** Materiais: caderno de anotações, caderno ou folhas para desenho, lápis, borracha e caneta.
**** Faixa etária - a partir de 13 anos.
***** Local: auditório.

Fonte:
Colaboração da Livraria Cultura

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Trova 115 - Francisco Neves Macedo (Natal/RN)

Héron Patrício (Baú de Trovas)


Eu me recuso, tristeza,
a conviver com teu mundo:
- Vida que tem correnteza
não cria lodo no fundo!

Antes um "não " que amargura:
antes um "não" que maltrata,
do que a terrível tortura
do teu silêncio - que mata!

Mesmo sem assinatura,
o bilhete me revela
tanta meiguice e ternura
que eu sei que o bilhete é dela!

Ao criar seu falso drama
o pessimista parece
aranha que tece a trama
e se enreda no que tece!

Fim de amor, sonhos extintos...
Mas a saudade é radar
que atravessa labirintos
e consegue me encontrar!

Se contra tudo ele existe,
entre segredos e esperas,
nosso romance persiste
na volúpia das Quimeras!...

Quando passas ao meu lado,
te acompanha o meu desejo...
- Se a volúpia for pecado,
eu peco quando te vejo!

Nos caminhos do Universo,
eu sou catador de estrelas
e jogo o laço do verso
na esperança de prendê-las.

Trovador, longe da infância,
contando as horas da idade,
rima tempo com distância
e distância com saudade!

Meu salário teve, agora,
um aumento "cavalar"...
já me botaram espora
e aprendi a relinchar!

Uma lágrima, nascendo,
tem a trágica beleza
de gota de luz contendo
toda a essência da tristeza.

Infiéis os meus cabelos!
saudoso o careca chora...
"Dei carinho... tive zelos
mas foram todos embora!"

Ligo o rádio ... Enquanto o sono
entorpece os meu sentidos,
em carícias de abandono
vibra a Rádio em meus ouvidos

A tristeza é uma senhora,
minha velha conhecida,
que me rouba a luz da aurora
e põe noite em minha vida!

Somente para agradar-te
e não ficares sozinha,
a minha alma se reparte
e é mais tua do que minha!

Nó na vida?... - Não me abalo,
desfazê-lo não me cansa,
pois consigo desatá-lo
com dois dedos de esperança!

Uma estrela, no infinito,
é recado que os ateus
recebem, com luz escrito,
sobre a existência de Deus!

Tempo é moinho rangendo
aos ventos da eternidade,
trigais de sonhos moendo
para o meu pão de saudade!

Pela ofensa que machuca,
por mais que me queime e doa,
se meu sangue diz - "Retruca!",
a minha alma diz "Perdoa..."

Com remorsos na bagagem
ou rancor no coração,
briga de amor é viagem
rumo ao Cais da Solidão!

Ao sentir que a solidão
vai comigo, em meu caminho,
tenho a estranha sensação
de que nunca estou sozinho!

Quando a folhagem fenece,
cobrindo o verde de luto,
o outono, em troca, oferece
a recompensa do fruto.

No jardim, junto ao meu quarto,
o silêncio é tão profundo
que se pode ouvir o parto
das rosas chegando ao mundo!

O poeta é um ser aflito,
um eterno insatisfeito,
por ter um mundo infinito
no exíguo espaço do peito!

A neblina, em dias frescos,
descendo em vales sombrios,
aos poucos tece arabescos,
nas brancas margens dos rios...

Fim de amor, sonhos extintos,
mas a saudade é radar
que atravessa labirintos
e consegue me encontrar!

Eu não contei tuas idas
nem minhas voltas confesso..
O que marcou nossas vidas
foi nosso eterno regresso !

Nossos momentos de amor
temos, os dois, que guardá-los;
- No teu palco sou ator
somente nos intervalos...

Fim de chuva.. e a lua cheia,
que no espaço azul flutua
põe diamantes na bateia
da poça d'água da rua!"

Quando eu partir... quem me dera,
rompendo o infinito afora,
encontrar em outra esfera
meu Pouso Alegre de outrora.
---------------
Fonte:
UBT/Juiz de Fora

Héron Patrício (1931)



Héron Patrício, este festejado e extraordinário Trovador, nasceu em Ouro Fino, nas Minas Gerais, a 17 de junho de 1931, filho de Salvador Santos Patrício e Dona Genoveva Cadan Patricio. Era uma criança muito saudável, porém magrinha.; um amigo vaticinou: vai crescer forte, inteligente, e até se tomará gordinho e Poeta - (Mas que trem de mineiro adivínhão, sô!').

O comboio ia correndo entre Ouro Fino e Pouso Alegre... Estávamos na década de 30. A locomotiva espalhafatosa bufava, chiava, apitava nas curvas. E aquele garoto, deslumbrado com a viagem, e com o rosto colado à vidraça do vagão, não compreendia porque naquela terra os postes da energia elétrica, as bananeiras e todas as árvores que margeavam a linha férrea "corriam" em sentido contrário ao do trem... Mas ele "via" que corriam! E para trás foi ficando seu doce chão onde veio ao mundo, seu mundo de brincadeira e de folguedos inocentes... A máquina bufou, chiou, deu um vasto suspiro de alívio, frenou e "solavanqueou" os passageiros. O clã do nosso amigo estava chegando à cidade que escolhera para nova residência. E Pouso Alegre foi mesmo um "pouso alegre" para todos. Foi logo providenciada a escola para o menino, que viria a tomar-se ótimo aluno. Foi nessa linda cidade que Héron começou a participar do movimento poético.

Em 1964 mudou-se para São Paulo, mas sempre dividiu, emocionalmente, sua residência entre a capital paulista e a cidade de Pouso Alegre.

Casado com a Trovadora Yedda Ramos Maia Patricio. Nasceu-lhes a filha Patrícia que já lhes deu os netos Raphael e Daníel.

Funcionário público aposentado, é Contabilista, Professor e Advogado, exercendo, atualmente, a nobre "profissão" de Poeta/trovador.

Além de ter seus trabalhos publicados em Jomais e Revistas do país, particípou de "MEUS IRMÃOS, OS TROVADORES" (Luiz Otávio), CIGARRAS EM DESFILE" (trovas), "GARIMPEIROS DE SONHOS" (Arcádia de Pouso Alegre), "EM PROSA E VERSO" (Academia Pouso Alegrense de Letras, "I Antologia de Trovas" (Livro Arte - SP) etc.

Pertenceu à Arcádia de Pouso Alegre e é membro-fundador da Academia Pousoalegrense de Letras. Desde 1994 é integrante da União Brasileira de Trovadores, Seção de São Paulo, onde ocupa uma více-presidência.

Ocupa a cadeira número 17 da Academia Pousoalegrense de Letras.

Fonte:
UBT/ Juiz de Fora

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Edival Perrini (Poemas Escolhidos)


BATISMO

Fazer-se ao mar
como quem se joga num abraço
e respira.

MAR ABERTO

Por frestas,
toco a luz que se escancara
para além dessas treliças.

Por farpas,
tenho gotas de oceano
e sede, e sede,
e sede.

O SURFISTA

Olhos de águia
olham
sobre o hálito do mar
estrelas que só eles veem.

O corpo abre um talho na água.

Entre vagalhões,
a prancha
é lança e é guerreira.

Soberano,
o surfista
põe-se de pé
e costura a onda
tantas e tantas vezes
que o fio
interminável
é o da linha do horizonte.

Na areia
uma vestal sorri,
e molha-se também.

À MARGEM

havia uma grossa casca,
abacaxi turvo,
sem qualquer possibilidade de fruto

havia palmeiras,
olhares ao mar,
o sol que vinha e que se punha,
e uma trava
sem nenhuma fresta
para ser rompida

MARULHOS

Um sonho feito balão
pressente o rumo do mar,
que chão de mar é molhado
e liso e fofo e alado
como carece ser chão
pra empinar sonho e gente.

Escafandrista de sonho
não diz que mar não dá pé.
Mergulha os olhos na água,
não dá bola pra marola,
ignora sombra e lama,
olha e vê, como vê!

Vê que gaivota é um peixe
que pulou fora do mar.
Daí que olhar seus avanços,
balanços e acrobacias,
traz um ar de nostalgia.
Saudades do vasto mar?

Vê a vida o mareante,
cavalga as algas e areias,
descasca o fruto-mar.
Aí se acendem estrelas,
conchas, polvos e arraias:
há um mar dentro do mar.

Apalpar estas entranhas,
alquimia de sereias,
é reencontrar o menino
que outro dia viu o mar,
e se pôs a perguntar
se o verbo dos princípios
não seria o verbo almar?

DOMICÍLIO

estar na hora exata
como o anzol e o peixe
e alguma brisa

depois
fugir das iscas
e fundar domicílio
num pensamento de mar

PASSAGEM

O alvoroço dos pássaros
diz do bom tempo que se vai.

Dentro de sua sombra
invisível
perece o azul,
último alecrim antes da chuvarada.

VÉSPERAS

No princípio é a luz do verbo.

Dentro da luz,
botão de flor das vésperas,
o verbo.

Dentro do verbo em luz,
a madrugada das palavras.

No princípio é a luz do verbo.

Se me toca,
falo.

VÉRTICE

Homem em pé sobre a canoa
pesca a manhã de cada dia,
noventa graus de poesia.

PROA

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Que venham as tormentas, que venha o que vier,
tenho o sonho comigo, o sonho é meu pastor.

O mundo da aparência não me engolirá.
Conheço bem suas manhas, meu ofício é interior:
girassol que é girassol tem proa pro amanhecer.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Com ele eu teço o mundo, reinvento a via-láctea.
Mistérios são bem-vindos, o sonho é meu pastor.

Ou eu busco a verdade ou ela não me achará.
Minha verdade, o sonho, é pomar e é brasão.
Seu universo, os versos, fio do sim e do não.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Encontro nele a luz, meu alimento e cor.
Que escorra a ampulheta, o sonho é meu pastor.
---------

Fontes:
PERRINI, Edival Antonio Lessnau. O Olho das Águas. Curitiba: Ed. Do Autor,
2009.
__________. Armazém de Ecos e Achados, Curitiba: Ed. do Autor, 2001
__________. Pomar de Águas. Curitiba: Kugler Artes Gráficas, 1993.

Bia Zolnier (Livro de Poesias)


TEUS CAMINHOS

Teus caminhos
São tão estranhos...
Inúmeros em quantidade e tamanhos
Me perco nas alamedas estreitas
Tropeço em troncos caídos
Ainda acabo me ferindo nos espinhos
Tão bem escondidos
Das flores com que me enfeitas
Entre sorrisos e carinhos

Teus caminhos
Se perdem em frases feitas
Quando finalmente encontro
O portão de saída

Mas acabo por me deter
Junto aos escombros
Do que foi tua vida
Sutis assombros...

E começo a refazer
O caminho de volta

Algumas coisas escolhemos
Outras...nos escolhem
Teus caminhos
Agora mapeados
Me acolhem...
Compreendo!

O JARDIM DAS FADAS

Vem
Já é madrugada
A cidade mergulha em silêncio sonolento
Barulho só do vento

Vem
Vamos passear no jardim das fadas
Que fica em qualquer lugar
Entre o querer e o acreditar

Vem
Ninguém nos verá flutuar
Entre as roseiras floridas
E por um breve momento
Cairá o véu de seda colorida
Que envolve o coração
Fazendo brilhar
No rosto a paixão

Vem
Sem medo
Vamos descer as escadas
Que levam à fonte
Dos segredos
Vamos atravessar a ponte
Deste improvável paraíso

Vem
Dançar com as fadas
Não se assuste com o riso
São cúmplices silenciosas
Das almas muito amadas
E nos presenteiam com o perfume das rosas

SONHOS

Um dia
Voamos
Nas asas do mesmo sonho
Sem querer
Nos quebramos
Sem querer
Sonhamos
Sem querer
Ainda queremos...

MAPAS DO ACASO

Nossos destinos
São desertos
Separados pelo mar...

Evoluímos
Do nada ao tudo
Num tempo muito rápido
Num desejo ávido
E nos tornamos navegantes incertos
Com medo absurdo
De se afogar

Perdemos a noção da rota marcada
Que revele
O mapa do acaso
Que a vida riscou em nossa pele
Voltamos ao nada
Buscando um tesouro
Escondido em algum lugar
...entre o presente
E o passado

Não é prata nem ouro
É diferente...
Nem sei se ainda pode ser encontrado
No acaso dos mapas
...separados.

PESSOAS-EMBRULHO

Embrulhados em papel-gente
Pouco
Ou muito presente
As pessoas carregam consigo
(Parece louco??)
Um pacote de qualidades
Defeitos
Desejos
Sentidos
...
Alguns tão grandes
Mas tão ausentes
Outros tão escondidos
Sempre
Em lugares indevidos
...
Somos pessoas-embrulho
Empacotadas
Com ou sem barulho
(São as interrogações
Reticências e exclamações
Que se enroscam a todo momento)
Ao menor movimento
Não dá para perceber no mundo real
E no virtual,
Todos os pacotes são pardos!

--

Vânia Moreira Diniz (Hoje é Domingo)


Hoje é domingo e sem querer imagino como foi sempre importante para mim. Acordava ao som de Vinicius de Morais e Jobim que meu pai adorava.Domingo recorda-me o sol de Copacabana, praia, amigos reunidos e alegres bate-papos em minha adolescência.Com era bom acordar tarde, vestir o biquíni correndo, apenas uma pequena toalha em volta da cintura e encontrar a turma na praia e a sedução das águas que sempre amei. Depois de uma conversa animada ficar deitada bem perto do mar e sentir a água fria e estimulante a cobrir o corpo.

Já tarde voltávamos queimados e aquecidos e ouvindo as admoestações de minha mãe sobre horários tardios. Mas não esperávamos muito e já era hora do cinema na Avenida Copacabana e depois a reunião na lanchonete cirandinha cheia de conversas animadas, muitos risadas, o olhar brilhando e franco, os namorados a se beijarem tranqüilos, e os planos animados e sonhos esperançosos.

Hoje é Domingo e vejo a noite estrelada, televisão ligada, movimento da casa inteira, meus irmãos e eu a brigarmos ou brincarmos e a casa cheia e animada. Ah, os Domingos como eram queridos e vertiginosos.

Mais tarde os serões familiares, as histórias fascinantes, todos querendo dar um aparte e os risos das crianças. Meu pai que era kardecista militante sempre ao fim da noite nos reunia para sortear entre os papéis dobrados alguma boa ação que devíamos cumprir durante a semana.

Isso já se passou. Foi há muitos anos passados. Outros domingos tiveram significação diferente dependendo da fase que eu estava vivendo. Mas sempre foram marcantes.

Hoje os Domingos tem outro sentido. E fazendo minhas reflexões, vejo a distância de idéias e sonhos que existe entre aquele tempo e os dias atuais.

Mas ainda ouço o som matutino de Vinicius de Morais e tenho uma nostalgia imensa de minhas águas verdes do mar de Copacabana. Hoje é domingo…

Fonte:
http://www.vaniadiniz.pro.br/
Foto de Marcos Aurélio Alves de Oliveira