quinta-feira, 10 de junho de 2010

Josué Guimarães (A Ferro e Fogo)


O realismo triunfaria de maneira total em A ferro e fogo. A saga da colonização alemã, particularizada na luta pela sobrevivência e na identificação com as condições históricas rio-grandenses por parte da família Schneider, lembra como processo narrativo O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Porém o sopro épico que anima as páginas do escritor de Cruz Alta é substituído por uma preocupação maior com o prosaico, com a mesquinha luta cotidiana, com a tarefa inglória de resistência em meio a uma terra estranha. A grandeza semi-ociosa dos dominadores cede aqui lugar ao ramerrão do trabalho. Aos gestos de intrepidez do capitão Rodrigo Cambará contrapõe-se o buraco onde, por largo tempo, Daniel Abrahão se esconderá; aos papéis de comando militar de Licurgo e do Dr. Rodrigo, a função subalterna do oficial Phillip Schneider; ao agnosticismo dos Cambarás, a religiosidade primitiva que aproxima a família alemã de Jacobina Maurer, futura líder dos Mucker, único ponto comum: a força recôndita das mulheres, já que a imigrante Catarina tem muito de Ana Terra, mais ainda de Bibiana, com seu senso prático e seu desassombro.

A história é virada pelo avesso. As atribulações, as guerras, os confrontos pelo poder descem dos céus sem que os imigrantes possam compreender o significado dos mesmos. Nada de ufanismo ou cantos laudatórios. Quando Phillip Schneider volta para casa, depois de ter lutado na Revolução Farroupilha e na Guerra do Paraguai (em A ferro e fogo - Tempo de Guerra ), ele não ganhou nada e seu único desejo é dormir. Mais uma vez a metáfora da paz e do esquecimento. "Quando Jacob saiu, ele ficou afofando o travesseiro com as mãos, alisando os alvos lençóis e pala sua cabeça desfilaram todos aqueles bons companheiros que haviam ficado para trás. Mas quando assoprou a chama do lampião de bela manga lavrada e afundou a cabeça nos panos macios, dormiu logo, como se fizesse aquilo pela primeira vez na vida." Sempre chamou a atenção o carinho de Josué para com as suas personagens femininas. Você lê A ferro e fogo e descobre uma mulher como aquela Catarina. Pronto. Nunca mais as mulheres que você conhecer serão as mesmas. Mudaram também aquelas que você já conhecia antes de ler sua ficção. Nenhum escritor percebeu tão profundamente a índole da alemã imigrante quanto Josué. Quer dizer, a literatura brasileira deu a um Guimarães a tarefa de desvendar a alma tedesca num exílio optativo - o Brasil.

A narrativa se passa no Rio Grande do Sul ( abrangendo as terra que hoje correspondem ao Chuí, Santa Vitória do Palmar, São Leopoldo, Porto Alegre, Rio Grande e Portão), no tempo do Império, num ambiente hostil, pobre e violento durante e após a guerra da Cisplatina, onde os personagens principais vivem em meio a bugres, negros, castelhanos, gaúchos, soldados e alemães.

Fonte:
CD Digeratti CEC 003

Josué Guimarães (1921 – 1986)



1921
Em 7 de janeiro, nasce em São Jerônimo, JOSUÉ Marques GUIMARÃES, o penúltimo de nove irmãos, filho de José Guimarães, telegrafista de profissão e pastor leigo da Igreja Episcopal Brasileira, e de Georgina Marques Guimarães:

"Josué não tinha bem um ano quando a família mudou-se para Rosário do Sul.
Ele lembrava com detalhes os dez anos que viveu nessa cidade.
Lembrava a praça, a casa, as distâncias, o hotel, o cinema Globo, a igreja, a escola de D. Pepinha com seus castigos, sua palmatória, tudo nas enormes proporções do olhar de um menino.
Toda a sua memória e muitas passagens de seus livros são dessa época. Ele costumava dizer que a sua memória atingia até os dez anos."

1930
A família muda-se para Porto Alegre e Josué passa e estudar no Grupo Escolar Paula Soares.

1934
Inicia o curso secundário no Ginário Cruzeiro do Sul, onde funda Grêmio Literário Humberto de Campos. Escreve de cinco a seis artigos por número no jornal do colégio e é o autor das peças teatrais encenadas a cada fim de ano.

1938
Formado no Ginásio, faz o pré-médico, mas, após as primeiras aulas de anatomia, resolve abandonar o curso.

1939
Vai para o Rio de Janeiro e inicia sua carreira de jornalista na revista O Malho e Vida Ilustrada. É declarada a II Guerra Mundial e Josué retorna a Porto Alegre. Nesse mesmo ano inicia-se no rádio-teatro da Rádio Farroupilha, trabalhando com Estelita, Peri, Capitão Erasmo Nascentes e Walter Ferreira.

1940
Aos dezenove anos casa-se com Zilda Marques.
Desse casamento nascem quatro filhos: Marília, Elaine, Jaime e Sônia.

1942
Lança em Porto Alegre a revista de rádio Ondas Sonoras.

1944
Inicia suas atividades no Diário de Notícias.
Em sua carreira jornalística, exerce as funções de repórter e secretário de redação, diretor, colunista, comentarista, cronista, editorialista, ilustrador, diagramador, analista político e correspondente internacional.

É no Diário de Notícias que mantém a coluna "de alfinetadas políticas" assinada como "D. Xicote", onde ele mesmo faz as ilustrações, desenhos e caricaturas.

Alguns anos depois a coluna "D. Xicote" reaparece no jornal A Hora, de Porto Alegre, explorando modernos recursos gráficos e montagens fotográficas.

1948
Deixa o Diário de Notícias para tornar-se repórter exclusivo e correspondente da revista O Cruzeiro no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina.

1949
Colabora na Revista Quixote 4, fevereiro de 1949, com a crônica "Sangue e Pó de Arroz". Esta publicação de Porto Alegre divulgou por longo período, nomes da literatura rio-grandense.

Lança o jornal D. Xicote: "- Não é um jornal humorístico como poderá parecer à primeira vista, mas também não é um jornal sério."

1951
É eleito vereador em Porto Alegre, pelo PTB, ocupando, na oportunidade, a vice-presidência da câmara. Como vereador batiza o largo próximo à praça da Alfândega de "Largo dos Medeiros", em homenagem aos irmãos proprietários do Café e Confeitaria Central.

1952
Assina a coluna "Ronda dos Jornais no semanário carioca FLAN.

É o primeiro jornalista brasileiro a ingressar na China Continental e URSS como correspondente especial da Ultima Hora do Rio de Janeiro.

Escreve o livro de viagem As muralhas de Jericó que continua inédito.

1954
Assina a coluna "Um dia depois do outro" no Jornal Última Hora do Rio de Janeiro.

Lança coluna política no jornal Folha da Tarde, com pseudônimo de D. Camilo.

Passa a exercer as funções de subsecretário do Jornal A Hora, de Porto Alegre, onde deixa marcante passagem por ter revolucionado a imprensa gaúcha, ao lado do então diagramador Xico Stockinger.

1956
Trabalha como redator na MPM Propaganda.

Assume como diretor-secretário do semanário Clarim Sete Dias em Porto Alegre.

1957
É chamado por Assis Chateaubriand para reformular o vespertino carioca Diário da Noite, órgão dos Diários Associados.

1960
Funda a sua própria agência de propaganda, dissolvida um ano depois para assumir a Direção da Agência Nacional sob o governo João Goulart.

1961
Ocupa a direçao geral da Agência Nacional, hoje Empresa Brasileira de Notícias, até 1964.

Durante o governo João Goulart integra a 1a Comitiva de Jornalistas Brasileiros em viagem à China e União Soviética.

1964
Deposto o presidente João Goulart, refugia-se em Santos, São Paulo, onde passa a viver na clandestinidade sob o nome de Samuel Ortiz.

Nesse período trabalha em dezesseis publicações diferentes e abre uma livraria.

1969
Descoberto, finalmente, pelos órgãos de segurança, responde a inquérito em liberdade e retorna a Porto Alegre.

É premiado no II Concurso de Contos do Estado do Paraná pelo conjunto de três contos - "João do Rosário", "Mãos sujas de terra" e "0 principio e o fim" - que viriam a integrar, posteriormente, o livro Os ladrões.

1970
Publica Os ladrões, coletânea de contos, pela Fórum Editora do Rio de Janeiro. Com esta obra, Josué Guimarães inicia sua produção literária que irá se compor de 24 obras, entre romances, novelas, coletânea de artigos e de contos, literatura infantil, além da participação em várias antologias.

1971
Com o pseudônimo de Philleas Fog mantém a coluna "A Volta ao Mundo", no jornal Zero Hora, fazendo entrevistas imaginárias, de marcante conteúdo crítico, com personalidades internacionais.

Passa a colaborar no jornal Pato Macho de Porto Alegre, com artigos de crítica política.

Mantém a coluna "Seção de Livros" no jornal Zero Hora.

1972
Publica seu primeiro romance: A ferro e fogo - Tempo de Solidão, editado pela Sabiá (José Olympio) do Rio de Janeiro, A obra trata da colonização alemã no Rio Grande do Sul e é a primeira de uma trilogia. O segundo volume é lançado três anos depois, A ferro e fogo - Tempo de Guerra.

1974
É correspondente da Empresa Jornalistica Caldas Júnior até 1976 na Africa e em Portugal, onde acompanha a Revolução dos cravos.

1976
Lança em Lisboa o Jornal CHAIMITE - "o único jornal que venceu antes de sair" (legenda da capa do número I - 26.2,76)

Retorna ao Brasil e implanta no Rio Grande do Sul a sucursal da Folha de São Paulo, que dirigiu e onde atuou como comentar político do sul até seu falecimento.

1977
O romance Tambores silenciosos é agraciado com o 1º Prêmio Érico Veríssimo da Editora Globo que, posteriormente, publica a obra.

1981
Depois de obter o divórcio do primeiro matrimônio, casa-se com Nídia Moojen Machado.

"Não considero o casamento uma instituição falida. Eu institucionalizei o meu após trinta anos de convivência." (Zero Hora, 28 de fevereiro de 1982).

Dessa união nasceram Rodrigo e Adriana.

1986
23 de março: Morre em Porto Alegre o escritor Josué Guimarães.

Publicação de "Amor de perdição" - L&PM Editores.

Sessão solene em sua homenagem prestada pela Câmara Municipal de Porto Alegre, por iniciativa do Vereador Isaac Ainhorn.

1987
Lançamento (maio) de A última bruxa, último livro de Josué dedicado às crianças, L&PM.

A Biblioteca Pública Municipal, do centro Municipal de Cultura de Porto Alegre, passa a denominar-se Biblioteca Pública Municipal Josué Gumarães(julho).

Lançamento da 3' edição do livro de contos O cavalo cego, L&PM Editores (1' edição 1979)

LIVROS
Os ladrões, Contos., 1970
A ferro e fogo, I: tempo de solidão. Romance. 1972
Depois do último trem. Romance, 1973
A ferro e fogo, II: tempo de guerra. Romance, 1975
Lisboa urgente. Coletânea de artigos, 1975
É tarde para saber. Romance, 1977
Os tambores silenciosos. Romance, 1977
Dona Anja. Romance, 1978
Pega pra kapput! Novela c/Moacyr Scliar, Luís Fernando Veríssimo e Edgar Vasques, 1978
Enquanto a noite não chega. Novela, 1978
O cavalo cego. Contos, 1979
A casa das quatro luas. Infantil, 1979
Camilo Mortágua. Romance, 1980
Era uma vez um reino encantado. Infantil, 1980
A onça que perdeu as pintas. Infantil. As incríveis histórias do tio Balduíno., 1981
Doña Angela, Romance. Trad. Stela Mastrangelo, 1981.
Xerloque da Silva em "0 rapto da Dorotéia". Infantil 1982
O gato no escuro. Contos, 1982
Meu primeiro dragão. Infantil, 1983
Xerloque da Silva em "Os ladrões da meia-noite". Infantil, 1983
Um corpo estranho entre nós dois. Teatro - Peça em três atos, 1983
História do agricultor que fazia milagres. Infantil, 1984
O avião que não sabia voar. Infantil, 1984
Amor de perdição. Novela., 1986
A última bruxa. Infantil,. 1987

Fonte:
http://www.paginadogaucho.com.br/escr/jg.htm

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 21


20. Defeitos de estilo (III)

CACOFONIA (cacófato) – Nem mesmo os grandes escritores estão livres de cochilos desse gênero. É famosa, por exemplo, a “alma minha” de Camões, o poeta máximo. O primoroso Bilac desafinou no “só quem ama...” E o genial Vieira deixou escapulir o célebre “busca pão”. Mas não será por isso que vamos abusar. Encontros sonoros “impudicos”, ou simplesmente “engraçados”, podem comprometer a seriedade de um texto. Com a devida moderação (para não cair na cacofatomania), anote alguns que podem muito bem ser evitados:
acerca dela,
álbum da moça,
a lei teria,
amo ela,
a roupa daria,
a rota,
chegou ao auge (ao-au?...),
cinco cada,
começou a cavá-lo,
como a concebo,
confisca gado,
conforme já,
da nação,
ela tinha,
ela trina,
eles o são (ossão?...),
embarca nela,
em busca dela,
escapa nela,
estoca brita,
estraga linha,
fé demais,
fica nisso,
haja manta,
havia dado,
intrínseca validade,
levanta manco,
má madeira,
marca dela,
marca gol,
mas ela,
mesma mão,
nunca ganha,
o café deu,
o time já,
paraninfo da turma,
por cada,
por razões,
prima minha,
reclama mais,
só sobraram,
tarefa fácil,
toca a gansa,
triunfo da equipe,
uma mata,
um barco meu,
vez passada (vespa assada?...),
vi a dona...

PALAVRAS “DIFÍCEIS” (eruditismo, sofomania) – Escrever ou falar “difícil” não significa escrever ou falar bem. Ao contrário, porque o leitor/ouvinte acaba não entendendo coisa alguma. Imagine a reação da moça que recebesse do namorado um bilhete assim: “As tessituras traumáticas dos invólucros cardíacos de minha caixa torácica palpitam por ti”... Vale lembrar o sábio conselho de Paul Valéry: “Entre duas palavras, escolha sempre a mais simples; entre duas palavras simples, escolha a mais curta”.

TERMOS TÉCNICOS (economês, gramatiquês etc.) – O problema é semelhante ao que vimos no item anterior. Claro: de advogado para advogado, de economista para economista, de gramático para gramático, de médico para médico, o emprego de termos técnicos é natural; às vezes é até indispensável. Mas, no relacionamento com o público geral, quanto mais simples o vocabulário, tanto mais eficiente a comunicação. Sempre há de ser possível “trocar em miúdos” os adimplementos, os fluxogramas, as antonomásias, as esplenomegalias... Em vez de oftalmotorrinolaringologia, é muito mais fácil dizer “clínica de olhos, ouvidos, nariz e garganta”. E veja se você entende que coisa é isto: dinâmica estrutural totalizada; flexibilidade logística inusitada; mobilidade opcional balanceada; retroação dimensional sistemática... Numa de suas deliciosas crônicas, Fernando Sabino brinca com essa história de falar difícil. Diz ele, dando uma caprichada receita de como não se deve escrever: “Para direcionar o questionamento dos problemas que afetam determinado segmento da sociedade, acionando o dispositivo de uma logística que atinja os estratos sociais emergentes, faz-se mister equacioná-los em módulos abrangentes, que otimizem a operacionalização, segundo parâmetros impostos pela cooptação da proposta contida no discurso de nossa casuística”.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Moacyr Scliar (A Noite em que os Hotéis estavam Cheios)


O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro.

Não seria fácil, como eles logo descobriram. No primeiro hotel o gerente, homem de maus modos, foi logo dizendo que não havia lugar. No segundo, o encarregado da portaria olhou com desconfiança o casal e resolveu pedir documentos. O homem disse que não tinha, na pressa da viagem esquecera os documentos.

— E como pretende o senhor conseguir um lugar num hotel, se não tem documentos? — disse o encarregado. — Eu nem sei se o senhor vai pagar a conta ou não!

O viajante não disse nada. Tomou a esposa pelo braço e seguiu adiante. No terceiro hotel também não havia vaga. No quarto — que era mais uma modesta hospedaria — havia, mas o dono desconfiou do casal e resolveu dizer que o estabelecimento estava lotado. Contudo, para não ficar mal, resolveu dar uma desculpa:

— O senhor vê, se o governo nos desse incentivos, como dão para os grandes hotéis, eu já teria feito uma reforma aqui. Poderia até receber delegações estrangeiras. Mas até hoje não consegui nada. Se eu conhecesse alguém influente... O senhor não conhece ninguém nas altas esferas?

O viajante hesitou, depois disse que sim, que talvez conhecesse alguém nas altas esferas.

— Pois então — disse o dono da hospedaria — fale para esse seu conhecido da minha hospedaria. Assim, da próxima vez que o senhor vier, talvez já possa lhe dar um quarto de primeira classe, com banho e tudo.

O viajante agradeceu, lamentando apenas que seu problema fosse mais urgente: precisava de um quarto para aquela noite. Foi adiante.

No hotel seguinte, quase tiveram êxito. O gerente estava esperando um casal de conhecidos artistas, que viajavam incógnitos. Quando os viajantes apareceram, pensou que fossem os hóspedes que aguardava e disse que sim, que o quarto já estava pronto. Ainda fez um elogio.

— O disfarce está muito bom. Que disfarce? Perguntou o viajante. Essas roupas velhas que vocês estão usando, disse o gerente. Isso não é disfarce, disse o homem, são as roupas que nós temos. O gerente aí percebeu o engano:

— Sinto muito — desculpou-se. — Eu pensei que tinha um quarto vago, mas parece que já foi ocupado.

O casal foi adiante. No hotel seguinte, também não havia vaga, e o gerente era metido a engraçado. Ali perto havia uma manjedoura, disse, por que não se hospedavam lá? Não seria muito confortável, mas em compensação não pagariam diária. Para surpresa dele, o viajante achou a idéia boa, e até agradeceu. Saíram.

Não demorou muito, apareceram os três Reis Magos, perguntando por um casal de forasteiros. E foi aí que o gerente começou a achar que talvez tivesse perdido os hóspedes mais importantes já chegados a Belém de Nazaré.

Fonte:
Contos para um Natal brasileiro. RJ: Editora Relume: IBASE, 1996.

Ângela Maria Pelizer de Arruda (Humor Contemporâneo: Uma Análise de Contos de Moacyr Scliar)



RESUMO: Há de se reconhecer o vasto mundo que se criou de manifestações que nos fazem rir. Em várias expressões artísticas, há uma procura incessante, tanto por parte de quem produz, quanto por parte de quem as procura, pelo trabalho que envolve a comicidade. Nesse sentido, o presente estudo terá como alvo um breve estudo histórico ligado ao riso, dentro da literatura, focalizando, principalmente, as expressões atuais como representantes de um movimento que ganha forças na contemporaneidade, representado aqui pelo contista Moacyr Scliar.

Segundo Viana Moog, em Heróis da decadência (1964), não há vestígios de textos ou obras literária humorísticas na Antigüidade, haja vista que existem dois elementos próprios da atualidade que não era possível de serem encontrados na antigüidade: “a ânsia doentia de tudo compreender e a dúvida torturada” (MOOG,1964:26). Os antigos, diz o autor, tiveram o privilégio de não se torturarem com a dúvida que assola a contemporaneidade e que é a grande geradora do humor.

O momento inicial provável para o aparecimento do humor na literatura é a época da decadência de Roma. Tempo em que os escritores começaram a destilar seu cepticismo e a se ocupar das coisas em geral, tanto do passado quanto do presente, com um certo ar de enfado, de incredulidade, de zombaria e de irreverência.

Na primeira fase da Idade Média não havia também espaço para o humor, já que a Inquisição condenava à fogueira qualquer manifestação desse tipo. A literatura dessa época gira em torno de duas entidades: os santos e os cavaleiros. Não se poderia fazer humor sobre nenhuma das duas, haja vista que, em ambos os casos,o únicos sentimentos possíveis era o orgulho e a admiração.

Esse tipo de literatura tem seu fim com Orlando Furioso, de Ariosto, permitindo um repontar do humor na literatura. Alguns nomes europeus com Chaucer e Rabelais marcaram essa época como bons humoristas. Porém, é no século XVI que surge na Espanha um humorista insuperável, talvez o maior de todos os tempos: Cervantes. “Com ele o humour se integra em todos os caracteres com que ainda hoje se apresenta. Antes, ninguém foi igual, depois, ninguém o excede”. O autor continua dizendo que Cervantes serve como marco divisório na literatura humorística: “Até então só se conheciam humoristas como os da decadência romana, que riam do mundo, mas como simples espectadores, sem incorporar a própria pessoa ao número de sêres aproveitáveis como matéria prima de humour [...]. no Cervantes, há, porém, mais que isso: há o que Pirandello denomina o sentimento do contrário” (ibid:74).

Ainda num período de transição entre a decadência do trovadorismo e o advento do “Século de Ouro Português” (séculos XIV a XVI), destaca-se o nome do escritor português Gil Vicente, que fez uso do humor através da sátira social em seus Autos. Usando o texto escrito em versos, o escritor fez uso de uma variedade de sugestões e tendências anteriores e/ou contemporâneas do teatro – milagres, mistérios, moralidades, a farsa, entre outros –, retratando o cotidiano português da Alta Idade Média e denunciando as práticas abusivas de grupos sociais como o clero, a nobreza e a justiça. Por isso, Gil Vicente teve sua obra bastante prejudicada pela repressão exercida pelos tribunais da Santa Inquisição.

Na literatura brasileira, os primeiros vestígios da produção humorística talvez estejam na segunda geração dos poetas românticos, também chamada de “cancioneiro alegre” pelas produções que, juntamente com os temas relacionados à solidão, à morte, à melancolia, aos enganos amorosos, também faziam surgir a paródia, a sátira e a pornografia. “Tais poemas formam um conjunto impressionante (...) não só pelo volume, que não é pequeno, mas também e principalmente pela qualidade literária” (FRANCHETTI, 1987:7).

Outro momento importante para o humorismo brasileiro deu-se no período transitório do regime monarquista para o republicano. Dentro da história literária, esse período corresponde ao movimento da Belle Époque, que, concomitantemente com as mudanças políticas e sociais por que passava o país, propunha mudanças no âmbito estético-literário, como forma de igualar o Brasil aos países desenvolvidos através da cultura. Nesse período, os humoristas encontraram um vasto campo de atuação e, ao mesmo tempo, uma intolerância muito grande por parte dos circuitos da cultura culta e da crítica literária.

Inserido num contexto em que emergia a racionalidade política da nação e em que se questionava a respeito do conceito de nacionalismo, o humor encontra nas arestas deixadas tanto pelos políticos quanto pelos literatos, seu corpus de trabalho, contra o qual expressava sua rebeldia, sua sátira e rechaçamento.

Diante desses meios de expansão da comicidade, os humoristas da época provaram sua capacidade de trânsito e de experimentação através de inúmeras formas cômicas, “adaptando-as à rapidez e à variedade dos modos de difusão e, por extensão, às formas peculiares de representação da história brasileira”. A paródia apresentou-se como a mais peculiar de todas e também a mais amplamente utilizada, revelando-se “um mecanismo ou uma técnica de representação da própria realidade brasileira” (SALIBA,2002:96). Seus autores parodiavam os versos parnasianos ou simbolistas, imitando seus formatos, porém de forma a ironizar o regime republicano de uma forma menos polida e mais direta que os seus antecessores.

Estando sempre à margem da literatura oficial e sendo reconhecido num grau menor, o humorista da virada do século mostrou-se competente e hábil para bem representar a realidade brasileira de uma época tão conturbada como essa. Dessa forma, pode-se dizer que, além dessa representação histórica brasileira, o humorismo também deu espaço para que o indivíduo pudesse afirmar-se diante de uma espécie de vazio que pairava sobre todos.

Através desses humoristas anônimos, de certa forma, no que concerne a um reconhecimento da corrente literária vigente, é que, como que num movimento de eco, o riso pôde expandir-se de tal forma que transformou o que era margem em centro: surge o Modernismo. Suas formas de representação – concisão, brevidade, circunstancialidade e subitaneidade – já estavam presentes nas expressões humorísticas de algumas décadas anteriores, apesar de não reconhecidas como literárias.

Então, com a chegada do modernismo, o humor realmente se expandiu nos diversos gêneros literários; o uso da paródia, da sátira, do exagero em suas várias nuances mudaram a cara da literatura séria e sisuda dos séculos anteriores. Muitos são os nomes brasileiros que se engendraram por esse caminho. E muito maior ainda é o número dos que ainda o fazem. O humor literalmente alastrou-se pelo mundo literário.

Surgindo como o movimento da inovação estética, o Modernismo caracterizou-se primeiramente pelo anarquismo e pela atitude desafiadora. Dentro de suas manifestações artísticas está a instauração do “feio” e a suspensão do “belo”. Dessa forma, o cômico e o grotesco foram também incluídos nessa fase, principalmente pelo gênero lírico. Foi através do humor que os modernistas desmistificaram muitos conceitos até então vistos como sérios e intocáveis; trouxeram, no lugar do academicismo sério ou metafísico, a ingenuidade, o culto da infância, o primitivismo, a simplicidade do cotidiano.

Nesse contexto, o humor foi usado, em sua maioria, como repúdio às formas artísticas anteriores e como expressão da consciência crítica acerca dos acontecimentos sociais. Um dos maiores exemplos dessa criticidade é Macunaíma, de Mário de Andrade. É através da figura do anti-herói e suas aventuras que o autor revela sua consciência crítica e seu engajamento no tocante à identidade nacional – tema muito trabalhado nessa época – de forma alegre e bem humorada.

Outro recurso largamente utilizado pelos modernistas, principalmente na poesia, é a paródia, que “aponta um caminho para a poesia criativa e acaba por caracterizar satiricamente o ‘status quo’ literário”. Parodiar para os modernistas era revelar “uma consciência prática a ironizar a linguagem poética anti-funcional” (COSTA, 1982:103). O poema mais parodiado nessa época é “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, revelando elemento de destruição e de reconstrução e como exemplo de um novo jeito de falar num e para um novo tempo.

Trazendo o humor e a irreverência como herança do Modernismo, as várias manifestações artísticas contemporâneas usam e abusam desses recursos em suas obras.Ao contrário, esse fenômeno não se restringe apenas a uma ou outra arte, ou em uma ou outra obra; o humor está impregnado em (quase) tudo, e tudo é passível de se transformar em objeto do riso.

Atentemo-nos para os diversos programas televisivos. Boa parte deles se dedica ao humor: “A praça é nossa” (SBT), “Casseta e Planeta” (GLOBO), “A escolinha do professor Raimundo” (GLOBO), “Os normais” (GLOBO), “Sai de baixo” (GLOBO), “A grande família” (GLOBO), “Pânico” (REDE TV), entre outros. Observemos as piadas, as crônicas e os quadrinhos inseridos em jornais e revistas; muitos filmes no cinema ou na televisão; alguns programas de rádio; a tempestade de charges que surgiram em quase todos os meios de comunicação; a Internet, que está carregada de páginas dedicadas somente ao humor. Notamos, nesse contexto, uma tendência muito forte a satirizar tudo e todos. Não há o que escape das garras da comicidade (nem os seres supremos de antes); desde acontecimentos banais do cotidiano até grandes tragédias, como guerras, desastres, atentados terroristas. É só o momento de passar a comoção do acontecido que já aparecem as piadas, as charges, uma tirada sobre o assunto. Então, o que era trágico passa a ser cômico.

Esse fenômeno já foi descrito por Bergson quando afirma que o riso depende da indiferença do espectador. Afirma ainda que numa “sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas ainda se risse” (BERGSON,2001:3), já que o riso se liga à inteligência pura. É a inquietação do saber e a falta de comoção que gera o riso. Podemos perceber na sociedade contemporânea esses dois aspectos: nunca se descobriu tanto e nunca se importou tão pouco com o próximo. A correria diária e a luta com uma concorrência acirrada por um lugar ao sol levam o homem a se isolar em seu micro-mundo, deixando a coletividade (macro-mundo) e seus problemas, seus dissabores ou suas alegrias para segundo plano. Além disso, há, no nosso tempo, uma genérica descrença em uma solução grandiosa para as diversas agruras que invadem a sociedade. A dúvida é o mal da contemporaneidade. Duvida-se do caráter de uns, do amor de outros. Duvida-se dos políticos, da igreja, dos pais, dos filhos, do professor e do aluno. Para Slavutzky (apud KUPERMANN,2003:15), a contemporaneidade seria caracterizada pelo espectro da derrota do sujeito: “em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência do desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história”.

Diante de todos esses conflitos que se cercam do homem moderno, resta-lhe rir de tudo e de todos, e mais: fazer também os outros rirem. Como se a ordem fosse: “Já que não podemos vencê-los, rimos deles”. A procura pela comicidade em suas várias manifestações aumenta a cada dia, talvez como uma forma de defesa, como já se referiu Freud, no que se refere a não ter soluções para os diversos problemas. Rir para não chorar. Do mesmo modo também afirma Gilles Lipovetsky, em A era do vazio (1989), que vivemos em uma “sociedade humorística”, em que há um desenvolvimento generalizado do código e do estilo humorístico. Esse fenômeno é claramente percebido em campos bastante heterogêneos: na publicidade, nos slogans de manifestações políticas, na moda, na arte, nos meios de comunicação de massa e, sobretudo nas relações interpessoais; o clima de irreverência e espontaneidade passa a ter um valor privilegiado, como se nada devesse ser levado a sério.

Daniel Kupermann, em Ousar rir (2003:15-16) diz que, à medida que uma fase de depressão, de um “mau humor crônico” assola a sociedade contemporânea (acompanhada por decepções nos diversos campos possíveis ao longo de sua história e sem uma aparente esperança também diante do futuro), é bastante natural que se tenha tantas manifestações humorísticas. “Trata-se agora de evitar qualquer litígio, em nome do bem-estar definido por uma cultura na qual a adaptação e o sucesso pessoal são os alvos almejados”. Assim, o humor passa a dominar as várias instâncias da sociedade com a mesma tônica: “ausência de conflitos; impossibilidade de revolta;descrença”; é o humor descontraído que se apresenta, quando ninguém acredita na importância das coisas. Ele se apresenta, de acordo com as idéias de Kupermann (2003:16-17) como um humor acrítico e gratuito, ‘humor de massa’ próprio da sociedade hedonista na qual é o instrumento privilegiado para a promoção de uma proximidade cordial e de uma atmosfera de comunhão liberta de tensões. O humor pós-moderno é, assim, uma espécie de lubrificante social.

Ainda segundo o psicanalista, essa descontração generalizada remete-se e é proporcional “à falência de projetos comuns e ao desinteresse das possibilidades de transformação social” (KUPERMANN,2003:17), ou seja, ele é a prova da descrença pós-moderna perante as mudanças coletivas. Nesse sentido, diz ele, o humor contemporâneo é, acima de tudo, cínico, pois reflete alguém que ri de si mesmo e de suas próprias desgraças; é um riso amarelo, constrangido. É o humor da “descontração e do cinismo desencantado”, em que vigora “a desvitalização e a banalização esterilizante”. Por isso, o homem pós-moderno tem dificuldades em “rebentar de riso”, em sair de si, em sentir-se entusiasmado perante aos acontecimentos. “O humor de massa seria, assim, a pálida atualização da risada entusiasmante que, da Antigüidade ao Renascimento, acompanhou festividades populares, e na qual o Romantismo buscou inspiração para a libertação do espírito” (KUPERMANN,2003:21).

Sob uma outra perspectiva, Luiz Carlos Travaglia (1990:55), aponta o humor contemporâneo como crítico e engajado, usado como uma espécie de arma de denúncia, de instrumento de manutenção do equilíbrio social e psicológico; uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do mundo e das realidades naturais ou culturais que nos cercam e, assim, de desmontar falsos equilíbrios.

Segundo o lingüista, partindo do ponto de vista social e político, o humor desempenha um papel fundamental na sociedade no que concerne ao ataque à censura, ao que é pré-estabelecido, ao controle social e ao estabelecimento de outras possibilidades nesses mesmos âmbitos. Com o intuito de desafiar a autoridade do discurso oficial, através de críticas e de denúncias depreciativas, o humor torna possível o que pela via do sério seria considerado “crime” e desacato.

Mesmo o humor veiculado pelos meios de comunicação de massa não é visto por Travaglia como alienado e “pálido” como afirma Kupermann. Ele é, ao contrário, uma forma criativa, uma arma, um meio utilizado em todas as sociedades para “descobrir (através da análise crítica do homem e da vida) e revelar verdades escondidas e falsificadas, permitindo uma visão especial da vida, uma nova visão do mundo pela transposição de conceitos, uma ampliação dos contatos com nossas realidades.” O mesmo autor ainda coloca o humor como responsável por ser “o senso das proporções e da verdade escondida” e por revelar “a alegria da descoberta” de forma “não-convencional, sinuosa, intuitiva” gerando um compromisso entre humor e riso, e entre esses e a sociedade (TRAVAGLIA,1990:67).

Em meio a essa divergência de idéias a respeito do humor contemporâneo, resta-nos refletir a respeito do conceito de engajamento e de crítica social utilizada pelo movimento Pós-moderno e em que temática o humor dos nossos dias estaria inserido, sem no entanto enquadrá-lo em sistemas e características pré-estabelecidos. Para exemplificar essa reflexão, dois contos do autor Moacyr Scliar foram selecionados. Dessa forma, podemos pensar a questão da criticidade ou passividade de uma forma mais concreta.

O primeiro deles é “Ofertas na Casa Dalila”; conto narrado em primeira pessoa, que relata a inquietação do filho de um comerciante perante o concorrente de seu pai, com uma loja igualmente pequena a sua, desarrumada, mas com uma clientela muito maior. A proprietária da loja é descrita pelo narrador como “uma velha de cabelos oxigenados e olhos pintados que, da porta, me encara desafiadora” (SCLIAR, 1976: 49). A partir desse questionamento, o narrador se propõe a ser, ele mesmo, o investigador para descobrir a causa do grande movimento na loja de sua concorrente.

Entende rapidamente o que se passa: “as notas de compra dão direito à freqüência de certas sessões cinematográficas realizadas nas noites de sexta-feira, no fundo da própria Casa Dalila” (SCLIAR,1976: 50). Com o intuito de resolver esse mistério, o narrador obtém algumas notas e vai disfarçado à sessão da sexta-feira. Já no ambiente improvisado entre as caixas e manequins, vê o título do filme “Aventura de Dalila” e percebe que se trata de um antigo filme pornográfico de terceira categoria, com uma mulher muito bonita.

Quando o filme termina, e todos saem, o filho do comerciante tenta destruir a fita, mas desiste perante um pedido da velha de rever o filme mais uma vez. Enquanto os dois assistem, ela revela ao rapaz que é Dalila e ele percebe que os traços realmente são os mesmos. Ele, rendido aos encantos da velha, mantém uma relação sexual com ela e convence seus pais a venderem a loja para ela. Promete nunca mais voltar ali.

Nesse conto, a presença do cinema é marcante. Primeiramente, não se trata aqui de um lugar específico e até apropriado para uma sessão cinematográfica. Antes, era um ambiente com poucos recursos, em meio a um depósito da loja.

“(...) sou conduzido a uma sala mal iluminada nos fundos da loja. Ali, entre manequins sorridentes e caixotes de mercadoria, estão os espectadores.” (SCLIAR,1976:50).

Outro dado bastante interessante é o preço do ingresso, ou mesmo, como este era conseguido. Em razão da propaganda que a velha Dalila queria fazer de sua loja, numa promoção muito sutil, só entrava no “cinema” quem obtivesse notas de compras do seu estabelecimento. Como a loja era exclusivamente masculina, não foi difícil induzir os espectadores para as sessões da sexta-feira. Esse fato marca no conto o poder da propaganda que é, como dizem: “a alma do negócio”. Foi a partir dela e, conseqüentemente do prêmio concedido através da compra que a proprietária conseguiu vencer seus concorrentes, que até então “era a única loja da zona, com sua fiel clientela de funcionários públicos e pequenos comerciantes” (SCLIAR, 1976: 49).

Quando o narrador-personagem vai à sessão cinematográfica nos fundos da “casa Dalila”, percebe que se trata de um filme pornográfico. Esse tipo de filme era muito comum no final da década de 60, época em que o cinema teve um dos maiores incentivos governamentais. Porém, sua qualidade era muito baixa e se baseava em roteiros pornográficos e pornochanchadas. Este que nos anos 40 e 50 simbolizava uma manifestação de afirmação cultural da burguesia, com a importação do cinema americano, decai consideravelmente por não conseguir acompanhar a tecnologia estrangeira.

Dalila se orgulha de ter sido atriz “pornô”, dizendo já ter feito muito sucesso na Europa. Esse orgulho é comum entre os brasileiros. O sucesso no estrangeiro parece ter mais peso do que a fama nacional, mesmo que seja para ser um artista de filmes de baixa categoria. Ser aceito pelo público internacional representa um respaldo muito grande. Como se fosse uma espécie de aprovação globalizada. Isto é, como se um continente pudesse dar conta da preferência de um grupo muito maior.Como ela mesma diz: “Eu mesma, na Europa fui muito famosa...”

Dizer que foi famosa na Europa, pressupõe sucesso em todos (ou a grande maioria) os países que a compõem. Talvez isso não seja tal verdadeiro quanto aparenta ser. Além disso, a frase pode ter um tom irônico no que se refere à questão da nacionalidade ou brasilidade, já que “fazer sucesso” significa para muitos ser conhecido em outros países.

Além disso, percebemos uma entronização da cultura européia em nosso meio. A existência desse fenômeno muito deve à presença dos meios de comunicação que tornam os espaços menores por seu poder de rapidez e de expansão geográfica.

Afirmar a existência de uma memória internacional-popular é reconhecer que no interior da sociedade de consumo são forjadas referencias culturais mundializadas. Os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, historias em quadrinhos, televisão, cinema constituem-se em substratos desta memória (ORTIZ,1996: 126).

No conto aqui mencionado, percebemos exemplos da cultura mundializada. No primeiro, a atriz que fez sucesso na Europa fazendo filmes pornográficos. Essa globalização não se dá de forma desinteressada pois, quando se importa um produto, importa-se também a cultura nele embutida. Ainda mais em se tratando de bens culturais, muita da ideologia do exportador vem juntamente com o produto importado. Nesses casos, os países desenvolvidos têm uma grande vantagem sobre os subdesenvolvidos, visto que são os provedores da maior parte das importações.

“Ofertas na Casa Dalila” traz um outro aspecto muito importante: o simulacro. Isso porque, se entende simulação por uma reconstrução da realidade. Segundo Jean Baudrillard (1991:9) “trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório (...). O real nunca mais terá oportunidade de se produzir”. Continua dizendo que:

A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão aniquilamento de toda a referência (BAUDRILLARD,1991:13).

De acordo com as idéias acima, os meios de comunicação podem ser vistos com veiculadores do simulacro, pois reinventam a realidade e a transmitem uma versão distorcida da mesma, transformando o mundo em mera imagem, pseudo-eventos e espetáculos (JAMESON, 1996).

No conto aqui analisado, o simulacro se evidencia pela imagem que o narrador-personagem vê na tela.

De fato, a primeira cena já mostra uma cama; e dentre peles e plumas emerge o rosto da devassa: olhos pintados de pretos, boca em coração – linda, a diaba, apesar de tudo (SCLIAR, 1976: 50).

Mais adiante ele se depara com o real e o simulacro frente a frente. Isso acontece quando o filho do comerciante aceita ver o filme novamente, por intermédio da suplica da velha Dalila. Enquanto assistem à tela, a mulher lhe confessa ser ela a bela moça do filme.

Olho-a. De fato, parece-me reconhecer no rosto gordo os traços da mulher da tela.

(...)
Não há dúvida: os mesmos olhos, a mesma boca
” (SCLIAR,1976:52).

Nesse momento, as duas Dalilas (a atual velha e a antiga jovem), se fundem e o espectador se confunde com as duas. Nesse momento, ele se deixa seduzir (ou seduz) por ela e caem no chão, ali mesmo, entre os manequins. O jovem concorrente se entrega à velha comerciante. Cede ao modelo ou ao simulacro ? Isso não é possível saber, pois o rapaz não deixa transparecer se ficará fascinado por uma das duas. Ou seria pelas duas ao mesmo tempo ? O que se pode afirmar que a fascinação somente se deu quando reviu o modelo (a velha), a partir do simulacro (a jovem).

O segundo conto é intitulado “O clube dos suicidas” e narra um programa de entrevistas numa estação pobre de rádio. O objetivo dessas entrevistas era saber o motivo pelo qual as pessoas que ali estavam tentaram suicídio. Assim, o entrevistador passa o programa todo perguntando os detalhes das tentativas de morte e orientando cada participante a não pisar no fio do microfone.

A fragmentação do conto acima é um aspecto bastante interessante e comumente encontrado na ficção contemporânea. No caso de “O clube dos suicidas” esse recorte chega ao extremo de não apresentar narrador, nem uma forma tradicional da prosa ficcional. O que se tem aqui é o próprio programa de rádio. Como se o leitor estivesse ouvindo (lendo) a uma entrevista. A única diferença é que não há a voz do entrevistado. O entrevistador (narrador) fala por ele, relatando as ações os motivos que as desencadearam: “A senhora – o que foi que tomou? Valium. Muitos? (...) Quantos comprimidos de Valium? Doze? (...)” (SCLIAR, 1995:426).

Ainda em relação à estrutura, nota-se que o conto é apresentado num único parágrafo, marcando, além da brevidade da narrativa, o recorte de apenas um instante, assemelhando-se a uma fotografia, como se referiu Julio Cortázar. O enfoque em um único instante transmite a idéia de velocidade do conto (e do programa de rádio). Além disso, em se tratando do programa, a rapidez com que as pessoa são entrevistadas, faz o leitor imaginar que há no estúdio fictício muitos outros à espera do locutor: “O próximo quem é? O senhor? O primeiro homem de hoje, pessoal. Palmas! Mais palmas! (...) Senta ali, meu caro, junto com as mulheres” (SCLIAR,1995:427).

Como já foi dito, as entrevistas são interrompidas com pedidos e orientações do entrevistador para que não pisem no fio. Primeiramente, pode-se observar que se trata de uma estação de rádio muito pobre, como ele mesmo diz: “Cuidado com o microfone. A rádio é pobre, não tem dinheiro para comprar microfone sem fio, então tem que cuidar” (SCLIAR,1995:426).

Esse tipo de rádio existiu ( e ainda existe) num imenso esforço para sobreviver em meio as grandes redes. Para isso, inventa programas absurdos para chamar a atenção do público. Programas sensacionalistas com “artistas” anônimos e suas adversidades. Note-se que nenhum dos entrevistados possui nome, nem mesmo entrevistador, retomando novamente a idéia que Jameson faz do anonimato, ou seja, indivíduos sem nome representando grupos coletivos.

"O grotesco(...) é apresentado como signo excepcional, como um fenômeno desligado da estrutura da sociedade – é visto como o signo do outro. A intenção do comunicador é sempre colocar-se diante de algo que está entre nós, mas que ao mesmo tempo é exótico, logo sensacional”(SODRÉ, 1983:73).

Até o locutor se irrita com a situação precária em que trabalha. E essa irritação se dá de forma gradativa, criando a tensão do conto. Chega a um momento, em que não se sabe se o assunto principal do conto são os suicídios não realizados, ou se é o medo do entrevistador de quebrarem o fio do microfone. No início ele diz:

“Cuidado com o fio, pelo amor de Deus.”
“Cuidado com o fio, minha amiga, cuidado com o fio”
(SCLIAR,1995:426).

Mais adiante, ele continua:

Cuidado com o fio, diabo!”
“Olha o fio merda! Desculpe
” (SCLIAR,1995:427).
(...)
E a senhora tão velhinha? Quis se enforcar? Com o fio de ferro elétrico? (...) e dá? Dá para se enforcar? Mostra para gente. Pode usar o fio do microfone (SCLIAR,1995:427).

Esse objeto tão mencionado pelo entrevistador representa não só a precariedade da rádio, mas também pode ser visto como o fio condutor da narrativa, em que o apresentador vai expondo as histórias dos outros e a sua própria história. Esse fio vai denotando uma tensão muito grande tanto no entrevistador quanto no leitor, marcando uma especificidade do conto: a intensidade.

A tensão vai crescendo, à medida em que o conto (programa) vai se apresentando. Ao fim, as histórias dos entrevistados e a história do entrevistador se fundem. Essa fusão é mais evidente na última frase do conto: “Pode usar o fio do microfone”; quando pede a uma senhora para demonstrar o enforcamento mal-sucedido com o fio do ferro elétrico.

O exótico presente em “O clube dos suicidas” está exatamente na criação de um programa, em que a grande atração são os suicidas em potencial, porém, decepcionados com suas tentativas fracassadas. São as pessoas comuns que estão ali, na expectativa de sair do anonimato através de histórias grotescas.

Por outro lado, vê-se um veículo da comunicação de massa aproveitando-se desse desejo para conseguir o que quer: o consumidor/ouvinte. Esse, por sua vez, tem verdadeiro fascínio por fatos catastróficos, em que as mazelas humanas são colocadas em pauta.

Esse fenômeno de intenções tripartidas resulta em programas de baixa qualidade, onde o que parece ser aos olhos humanos uma atrocidade, passa a significar apenas mais um espetáculo que os mesmos olhos aplaudem num programa de entrevistas.“A reciclagem de matrizes tradicionais como o melodrama, o cômico e o grotesco é o que muitas vezes permite a interação íntima dos produtos midiáticos com o cotidiano das classes populares”(BORELLI, 1994:34).

São histórias relacionadas a problemas comuns entre as pessoas. E essa predileção por programas de sensacionalismo pode ser justificada pelo fato de que o ser humano tem uma tendência a se atrair pelas agruras do outro, talvez para minimizar seu próprio sofrimento.

Nesse caso, o programa vai ao encontro das necessidades das classes menos privilegiadas, pois torna público o drama de muitos: desemprego, violência, etc. Além das formas que cada um encontra para fugir de seus próprios problemas: o suicídio.

A senhora o que tomou mesmo? Valium.
E o que foi que ela tomou? Querosene? Mas que coisa, tão novinha, tão miúda. Ah, tomou porque a senhora batia nela?
O que foi que tomou? Raticida? (...) E por quê? (...) Porque está desempregado.
E essa moça? Se jogou na frente do carro?
E a senhora, tão velhinha? Quis se enforcar? Com o fio do ferro elétrico?

E assim o locutor vai expondo os motivos e as formas das tentativas dos suicídios não bem sucedidos. O melodrama dos detalhes é o que fascina o ouvinte que ele quer atingir. Mesmo que para conseguir os entrevistados a rádio tenha que dar pequenos brindes em troca da divulgação das histórias.

Percebe-se, explicitamente, como as pessoas procuram cada vez mais os veículos comunicativos para conseguir o que não encontram nas instituições mais tradicionais, como a igreja , os sindicatos , a escola. O espectador procura ser ouvido, ser importante, aprender coisas da vida, se informar, ou até encontrar algo (ou alguém) que se assemelhe a ele – em suas aflições, anseios ou alegrias. E isso, encontrará na comunicação massiva, como foi observado por Beatriz Sarlo (1997: 102): “Onde quer que cheguem os meios de massa, não passam incólumes as crenças, os saberes e as lealdades”.

Esse fato é visto claramente no conto, pois o próprio entrevistador revela de forma implícita que o clube dos suicidas é um lugar de desabafo, onde as pessoas se lamentam por não terem conseguido sucesso nas tentativas. Ele próprio lamenta. Talvez porque a morte fosse proporcionar à rádio maior audiência, já que é isso que o público espera ver e ouvir dos meios de comunicação social; o drama passado de forma mais realista e grotesca possível, como são suas vidas na realidade. Eis o fascínio do espectador.

Crítico ou não, o humor está presente nos diversos gêneros e formas de lazer (cinema, teatro, televisão, etc.), e nesse contexto, a literatura também dá sua contribuição; são diversos autores que incluem em suas obras uma pequena parcela de comicidade ou ainda trabalham exclusivamente com ela. Um gênero estreitamente relacionado com o aspecto cômico e que também surgiu com maior ênfase na contemporaneidade é a crônica. Vários são os cronistas e, quase sem exceção, todos usam o humor para se referirem ao aspecto social que objetivam. Temos vários nomes como: Rubem Braga, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Luiz Fernando Veríssimo (que também utiliza o humor em seus contos), Moacyr Scliar, entre outros.

Em outros gêneros, percebemos também algumas passagens ou até obras completas dedicadas ao humorismo. Contistas como Rubem Fonseca, que se caracteriza pelo apelo à violência nua e crua, recorre à ironia como recurso cômico; romancistas como Inácio de Loyola Brandão usam o humor para fazer suas críticas ao sistema social e político vigente; poetas como José Paulo Paes também buscam no humor uma forma de expressar seus pensamentos; enfim são muitos os autores que, através do recurso humorístico, procuram permear suas obras com originalidade e criatividade, convergindo para um movimento que faz do humor uma de suas características básicas.

Fonte:
SOUZA, E.N.F.; TOLLENDAL, E.J.; TRAVAGLIA, Luiz Carlos (orgs.). Literatura: Caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: UFU, 2006.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Trova 152 - Élbea Priscila Souza e Silva (Caçapava/SP)

Jogos Florais AVSPE (Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores) 2010 (Classificação Final)


Hoje, 10 de Junho, dia em que se homenageia a memória de Luíz Vaz de Camões, considerado o Maior Poeta de língua portuguesa e, quiçá, do Mundo, é sob a égide do imortal Poeta, que a AVSPE, cumprindo a data anunciada, dá por encerrados os seus Primeiros Jogos Florais 2010 – Concurso para a modalidade única de Soneto, aberto em 21 de Março último – trazendo ao conhecimento dos seus estimados membros, amigos e leitores, os nomes dos concorrentes e respectivos trabalhos premiados no referido Evento.

O júri foi constituído pelos distintos Patronos desta Academia:

Poetisa Carmo Vasconcelos
Poetisa Gislaine Canales
Poeta Fahed Daher

que fizeram a sua seleção em presença, apenas, dos pseudônimos dos concorrentes, tendo como Assessora ao processo sigiloso das reais identidades, a atual Presidente Interina da AVSPE:
Poetisa Malu Mourão

Antes de passarmos a lista dos premiados, gostaríamos de tecer algumas considerações importantes, que julgamos ora pertinentes e futuramente úteis a todos os poetas que queiram integrar novos concursos de poesia.

Depois da análise apurada aos 43 sonetos apresentados a concurso, constatou o júri, com algum desalento, que grande parte dos concorrentes não leu atentamente o Regulamento, não obstante a sua exaustiva publicação, desde a abertura do concurso até à data limite de entrega dos trabalhos, ou seja: desde 21 de Março até 21 de Abril.

Disso resultou que muitos dos sonetos recebidos não cumpriram as regras indicadas no Regulamento, o que levou o júri a ter de eliminar, à partida, os que não obedeciam aos requisitos minimamente indispensáveis e, vendo-se, posteriormente, na contingência de, entre os melhores, ter de abrir mão de alguns itens menos severos, em favor da qualidade.

Assim, o júri deliberou, por unanimidade, outorgar os seguintes Prêmios, aos Poetas e Títulos abaixo descritos:

1º PRÉMIO
Áurea Miranda – Pseudônimo “Anael do Bem”, com o soneto:
COMO EU, COMO VOCÊ.

2º PRÊMIO
Nelson Fontes de Carvalho – Pseudônimo “Poeta Pateta”, com o soneto:
TRISTE SOLILÓQUIO

3º PRÊMIO
Maria João Brito Sousa – Pseudônimo “Lírio do Campo”, com o soneto:
AOS OLHOS DE DEUS

1ª MENÇÃO HONROSA
Humberto Rodrigues Neto – Pseudônimo “Vaga-Lume”, com o soneto:
MIGALHAS

2ª MENÇÃO HONROSA
Lino Vitti – Pseudônimo “O Príncipe”, com o soneto:
POETA

3ª MENÇÃO HONROSA
Rosa Maria Silva (Azoriana) – Pseudônimo “Luca Bonfim”, com o soneto:
SOLAR DA INSPIRAÇÃO

É com subida honra e grande prazer que a AVSPE oferece aos seus ilustres membros distinguidos neste evento, os presentes DIPLOMAS, como justa retribuição ao valor e competência demonstrados na sublime Arte da Poesia.

1º Prêmio - COMO EU, COMO VOCÊ
Áurea Miranda

Poeta, sim – de olhar feito crachá no peito:
algo como abraçar o todo de um mundano
que, apesar dos espaços fartos de profano,
cheiram sempre a sagrado – o divino é perfeito.

É uma história que vem desde o primeiro arcano,
onde a palavra se outorgou, por seu direito,
semear ao acaso o germe de um sujeito
dos verbos que hão de vir... – a criação do humano.

E crepúsculos brotam versos de elegia,
como em odes crepita uma emoção gloriosa
– quem navega dentro de si rema a poesia.

Na dúvida, também cabe somar-se ao fado:
entre paixão e amor – a paixão amorosa;
entre amor e paixão – o amor apaixonado.

2º Prêmio- TRISTE SOLILÓQUIO
Nelson Fontes de Carvalho

Às vezes, quando só, penso na vida
Escuto a voz do meu sentir, tristonho,
A vida é quase nada; é talvez sonho
Em que a dor sobretudo é mais sentida.

Se em todo meu passado os olhos ponho,
Em vão busco o prazer; hora vivida
Que em mente me ficasse esclarecida;
Um momento sequer, santo, risonho.

E nada ou quase nada. A vida corre
Ligeira e tristemente; é sempre assim
Pra todo o que nasceu e até que morre…

Pensar! Sofrer! Pra quê? Então sorrio
Do próprio pensamento e até de mim.
Que vale o ser-se triste, doentio?!

3º Prêmio- AOS OLHOS DE DEUS
Maria João Brito de Sousa

Sou humilde, sou pobre e, no entanto,
Sou uma filha amada desse Deus
Que a Terra fez surgir do caos dos céus
E semeou a vida em cada canto

Aprendi a sonhar e sei, portanto,
Mais do que hão-de alcançar os olhos meus
Que, sendo apenas olhos, são ateus
E, cegos de paixão, derramam pranto

Eu, assim pobre, humilde, pequenina
E, muito embora humana, sonhadora,
Sei o que é ser feliz desde menina

E nada do que faço é tão excessivo
Que me torne pior, mais pecadora
Do que vós, meus irmãos, com quem convivo …

1ª Menção Honrosa – MIGALHAS
Humberto Rodrigues Neto

Que mais desejas, afinal, que eu faça
pra ter por meu o que de ti não tenho,
se já cansado estou de tanto empenho
de haurir de ti a mais suprema graça?

Há quanto tempo mendigando eu venho
um pouco mais que esta ventura escassa!
Do amor apenas pingos pões-me à taça
que eu sorvo ao jugo de pesado lenho!

Somente a um outro, nas liriais toalhas
da mesa de Eros serves tua paixão,
mesa em que, pródiga, teus bens espalhas!

E ali enjeitado, a farejar o chão,
o meu amor vive a lamber migalhas
que tu lhe atiras qual se fora a um cão!

2ª Menção Honrosa – POETA
Lino Vitti

E quem és tu, senhor Poeta caminhante,
Aos sonhos abraçado, a esse infinito imenso?
E o que queres, meu Deus, e o que buscas constante,
Por que vives inquieto, inquieto e sempre tenso?

É por que teu caminho é sempre longo e arfante,
E parece seguir sob os fumos do incenso?
Muitas vezes suponho e tristemente penso
Que és um pobre, e perdido, e tolo delirante!

Não, porém, pois tu és o excelso mensageiro
Que traz do Céu à Terra a divinal Poesia,
E a entregas com amor, a um mundo louco e triste.

Sem você, meu poeta e sem o teu celeiro,
Não teríamos nunca essa santa magia,
E o mundo indagaria: a Poesia existe?

3ª Menção Honrosa – SOLAR DA INSPIRAÇÃO
Rosa Maria Silva (Azoriana)

Quadras soltas, sementes de grafismo,
Canção do mar, maré de sensações,
Porta da fé, regaço de orações
Que voam num infinito lirismo.

Quadras em par, viveiro de heroísmo,
Doce fulgor, cantinho de ilusões,
Vozes da alma, glória de Camões,
Hinos solenes de patriotismo.

Os versos são um fado de carinho
Somente a dor é tão traiçoeira
Nas horas medonhas do pergaminho.

Há quem ame, por gosto, a poesia
E quem seu fado canta a vida inteira
Guarda no coração doce magia.

A AVSPE congratula-se com a adesão oferecida a este Evento, agradecendo a todos os Poetas a sua participação, e parabeniza os Poetas distinguidos, augurando-lhes as maiores felicidades e meritórios sucessos futuros.

Em, 10 de Junho 2010
O Júri, A Presidente Fundadora da AVSPE
Carmo Vasconcelos Efigénia Coutinho
Gislaine Canales A Organizadora dos Jogos Florais
Fahed Daher Carmo Vasconcelos

Os Sonetos recebidos e seus autores:

Peço permissão para um adendo ao texto de encerramento deste evento Primeiros Jogos Florais 2010 – Concurso para a modalidade única de Soneto, culminando em seu expoente, com 43 participantes,
e fechando nesta data máxima , dia em que se homenageia a memória de Luiz Vaz de Camões.

Desejo pronunciar-me diante destas duas grandes escritoras, Carmo Vasconcelos - Patronesse AVSPE, e Malu Mourão - Presidente Interina AVSPE . Onde não mediram esforços para que este fosse facetado ao mais fino buril desta arte maior - Poesia e seus Poetas.
Meus esfuziantes cumprimentos e agradecimentos para ambas, e aos nossos Jurados do concurso Poetisa Carmo Vasconcelos,Poetisa Gislaine Canales,Poeta Fahed Daher.

Academia Virtual Sala de Poetas e Escritores
Efigênia Coutinho
Presidente Fundadora
www.avspe.eti.br/

Erico Veríssimo (As Mãos de Meu Filho)



Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros.

Beethoven.

Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado.

Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.

Adágio.

O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda.

Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol… A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente.

Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.

Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.

Suggestion Diabolique.

D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos.
– Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.

Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho… Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!

D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo.

D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos… Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos…

De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado… Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. “Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?” Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. “Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!” Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava apara a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia…

De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde… Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. (“Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.)

A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros.

Navarra.

Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.

Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo…

— Inocêncio, quando é que tu crias juízo?

O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma proposta:

— Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras…

— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?

— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.

Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou… No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar.

Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora… E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam… Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos… o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar…

De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: “Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!”

A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.

No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu… Mas não tem direito de se queixar… O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.

Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqüilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam… No fim de contas ele não era nenhum santo.

Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la… adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos… É capaz até de ficar por lá… esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim… E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.

Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre.

No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura:

— Margarida…

A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.

— Chit!

Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugenta-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.

Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:

— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!

Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.

No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda:

— Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:

— Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite… Tudo que sou, devo a ela.

— Não diga isso, Betinho!

D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam.

Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.

Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas… Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado… Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias…

O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.

— Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.

— Linda mesmo.

Pausa curta.

— Não vê que sou o pai do moço do concerto…

— Pai? Do pianista?

O porteiro pára, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:

— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.

Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.

— Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres… Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia… o Betinho tinha seis meses… umas mãozinhas assim deste tamanho… nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas… Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis… Não podia ser o artista que é.

Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a na mão do mulato.

— Para tomar um traguinho — cochicha.

E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.

Fonte:
Érico Veríssimo. Contos. RJ: Editora Globo, 1983.
Imagem = Capa do livro de Veríssimo com o mesmo nome do conto, da Edições Meridiano, de 1942.

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 20


19. Defeitos de estilo (II)

REDUNDÂNCIA (pleonasmo, tautologia, superfluidade) – As pessoas não se contentam em subir: querem subir para cima; não se contentam em repetir: querem repetir de novo... Daí que a lista vai crescendo:
acabamento final,
adiar para data posterior,
boato falso,
cair um tombo,
conclusão final,
continua ainda,
conviver junto,
ele esteve aqui pessoalmente,
elo de ligação (sendo elo, só pode ser de ligação),
encarar de frente,
erário público (erário já significa tesouro público),
estrear novo,
exportar para fora,
exultar de alegria (exultar é manifestar alegria),
foram todos unânimes,
ganhar de graça,
há dois anos atrás (o há dispensa o atrás, e vice-versa),
já não é mais,
manejar [ou manusear] com as mãos,
manter o mesmo,
metades iguais,
minha opinião pessoal,
monopólio exclusivo,
novidade inédita,
outra alternativa (em alter já está expressa a ideia de outra/outro),
pedalar com os pés,
pessoa humana,
prosseguir adiante,
recinto fechado (recinto é espaço fechado),
sentidos pêsames,
sorriso nos lábios,
surpresa inesperada.

REPETIÇÃOQue-que-que-que... um-um-um-uma... meu-meu-minha... seu-seu-sua... Repetições como essas, além de deselegantes, “machucam” o ouvido alheio. Confira:

* Aquela moça, que estuda, que trabalha, que cuida da casa e que ainda tem que fazer tanta coisa de que não gosta, é alguém que a gente tem que admirar.

*Um homem entrou em uma loja e pediu um par de sapatos a uma balconista e uma gravata a um rapaz que atendia em uma outra seção.

* Meu método de administração exige minha presença ao lado dos meus funcionários. Convivendo com os meus gerentes e com toda a minha equipe, comunico meu estilo aos que militam comigo.

* Filisberto Filisbertus, sua esposa e seus filhos comunicam a seus parentes e a seus amigos sua mudança para sua nova residência, construída em sua chácara, onde se colocam à sua disposição e esperam receber sua visita.

* ele chegou, contou uma história, pediu água, ...

* Então ele chegou, então contou uma história, então pediu água, então...

* Ele chegou, sabe?... contou uma história, sabe?... pediu água, sabe?...

* Ele chegou, não é?... contou uma história, não é?... pediu água, não é?...

RIMA (eco, homeoteleuto) – Rima em poesia, tudo bem... (claro, desde que seja boa). Mas em prosa, convenhamos que não dá. Veja como fica:

* Quando eu chegar ao mar, vou me esbaldar, vou nadar, vou deitar e rolar, descansar, sonhar, até enjoar de tanto ar.

* Neste momento, na rua do Livramento, o Zezé Bento está pedindo consentimento para realizar seu casamento na capela do convento.

* Toda a nação, até por uma questão de autoproteção, sente-se na obrigação de buscar solução contra a volta da inflação.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Jorge Amado (Nem a Rosa, nem o Cravo…)


As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u’a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.

Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.

Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo – desde o crepúsculo aos olhos da amada – sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

Fontes:
jornal Folha da Manhã, 1945.

Semana do Escritor e do Livro de Sorocaba está com inscrições abertas


Escritores interessados podem participar gratuitamente

A 6ª Semana do Escritor e do Livro de Sorocaba, que será realizada de 24 a 28 de agosto, já deu início a sua programação e está recebendo inscrições para lançamentos, relançamentos e exposição de obras.

Neste ano, diferente de anos anteriores, os interessados poderão expor e lançar seus livros sem a necessidade de pagar a taxa de inscrição.

As inscrições vão até o fim do mês de julho, os interessados devem solicitar a ficha de inscrição pelo e-mail contato@semanadoescritor.com.br ou entrar em contato com Sonia Orsiolli pelo telefone (15) 3228.6209.

A organização do evento também está recebendo inscrições de palestrantes e grupos artísticos (teatro, música, dança, entre outros) interessados em participar da programação.

O tradicional evento literário que é ponto de encontro para a troca de conhecimento oferecerá livros a preços especiais e ainda a possibilidade dos leitores adquirirem exemplares autografados nas tardes e noites de autógrafos junto aos seus autores preferidos.

A Fundação de Desenvolvimento Cultural – FUNDEC será, como em anos anteriores, palco dessa grande festa literária, com entrada gratuita ao público.

A 6ª Semana do Escritor de Sorocaba conta com o apoio da Prefeitura Municipal por meio da Secretaria da Cultura – Secult, em parceria possibilitada por meio de lei que inclui a Semana do Livro e dos Escritores no calendário oficial do município e também com o apoio da Fundação de Desenvolvimento Cultural – FUNDEC.

Serviço:
6ª Semana do Escritor e do Livro de Sorocaba

Data: 24 a 28 de agosto de 2010

Horário: das 14h às 22h com entrada gratuita

Local: FUNDEC - Rua Brigadeiro Tobias, 73 Sorocaba/SP.

Informações: (15) 3228.6209/(15) 8119.2476