sábado, 8 de maio de 2010

O Romance ou Conto Policial



O Romance Policial (ou conto policial) é um gênero literário que se caracteriza, em termos de sua estrutura narrativa, pela presença do crime, da investigação e da revelação do malfeitor. Neste tipo do gênero literário, o foco remete para o processo de elucidação do mistério, empreitada geralmente a cargo de um detetive, seja ele profissional ou amador.

O romance policial também demonstra que não pode haver crime perfeito, logo, não há lugar para a impunidade, para o crime sem punição. A principal função ideológica na literatura policial é a demonstração da estranheza do crime, já que o criminoso é apresentado como um ser estranho à razão natural da ordem social.

O universo do romance policial é permeado por vários elementos, como medo, mistério, investigação, curiosidade, espanto e inquietação, que são dosados de acordo com os autores e as épocas.

O romance policial clássico busca a mais completa verossimilhança. Muitos detetives, como por exemplo, Sherlock Holmes, adotam métodos científicos em busca da verdade.

Origem

Acredita-se que o gênero literário conhecido como romance policial começou em abril de 1841, nas colunas de um periódico da Filadélfia, o Graham's Magazine, com a publicação de The Murders in the Rue Morgue (Dois Crimes na Rua Morgue), de Edgar Allan Poe.[1] Nos anos seguintes, mais duas histórias policiais do mesmo autor foram publicadas, The Mistery of Marie Roget (1842-1843) e The Purloined Letter (A Carta Roubada) (1845).

Características do romance policial

O herói do romance, o detetive, sempre sairá vencedor, pois se o contrário acontecer, o fato será atribuído à baixa qualidade da história e, portanto, não haverá suspense, uma solução surpreendente ou uma catarse.

No romance policial não pode haver intriga amorosa, para não atrapalhar o processo intelectual do detetive.

O romance deve ter um cadáver, para causar horror e desejo de vingança.

O culpado deve ser um dos personagens comuns, mas gozar de certa importância e não ser um assassino profissional. Ele nunca poderá ser o detetive, e o crime deve ser cometido por razões pessoais.

A solução do mistério deve estar evidente desde o início, para que uma releitura da obra possa mostrar ao leitor o quanto ele foi desatento.

As pistas devem estar todas presentes no livro, de forma a surpreender o leitor no momento da revelação da identidade secreta do assassino.

Principais autores e seus personagens

Agatha Christie – detetives Hercule Poirot, Miss Marple, Tommy e Tuppence Beresford e Mr. Quin.
Arthur Conan Doyle – detetive Sherlock Holmes
Dashiell Hammett – detetive Sam Spade
E. W. Hornung – detetive Arthur J. Raffles, o ladrão cavalheiro
Edgar Allan Poe – detetive C. Auguste Dupin
Fernando Pessoa - detetive Abílio Quaresma
Gaston Leroux – Joseph Rouletabille
Georges Simenon – detetive comissário Jules Maigret
Maurice Leblanc – detetive Arsène Lupin, ladrão-cavalheiro
Mickey Spillane – detetive Mike Hammer
Raymond Chandler – detetive Philip Marlowe
Rex Stout – detetive Nero Wolfe
S.S.Van Dine – detetive Philo Vance

Autores brasileiros e personagens

Jô Soares – delegado Mello Pimenta e detetive Machado Machado
Luís Fernando Verissimo – detetive particular Ed Mort
Luiz Alfredo Garcia-Roza – delegado Espinosa
Rubem Fonseca – advogado Mandrake
Tony Bellotto – investigador Bellini
Mário Prata - agentes federais Ugo Fioravanti Neto e Darwin Matarazzo

Há algumas características que podem nos ajudar a identificar ou até mesmo a produzir um conto, seja ele de temática policial ou não:

- É uma narrativa linear e curta, tanto em extensão quanto no tempo em que se passa.

- A linguagem é simples e direta, não se utiliza de muitas figuras de linguagem ou de expressões com pluralidade de sentidos.

- Todas as ações se encaminham diretamente para o desfecho.

- Envolve poucas personagens, e as que existem se movimentam em torno de uma única ação.

- As ações se passam em um só espaço, constituem um só eixo temático e um só conflito.

Conselhos" para se escrever um ótimo conto.

Prender o interesse do leitor; evitar ser chato

Pense em Aristóteles, para quem a catarse, enquanto experiência vivida pelo espectador ou ouvinte, é condição fundamental para definir a qualidade de uma obra.

Usar, se possível, frases curtas

A clareza vem do cuidado com a estruturação da frase: as intercalações excessivas prejudicam a compreensão da idéia. Pense em Barthes: “A narrativa é uma grande frase, como toda a frase constitutiva é, de certa forma, o esboço de uma pequena narrativa", (Introdução à análise da narrativa).

Capítulos e parágrafos curtos, para o leitor poder respirar

Evitar muitas personagens, descrições longas, rebuscamentos, adjetivações, clichês, repetir palavras.

Trama/enredo/tema ou estilo, original

Pense em Ricardo Piglia: “Pode-se programar a trama, os personagens, as situações, conhecer o desenlace e o começo, mas o tom em que se vai contar a história é obra de inspiração. Nisso consiste o talento de um narrador”, (O laboratório do escritor).

Se possível usar ironia, humor, graça e ser verossímil

Ser verossímil é importante, mas não devemos confundir verossimilhança com verdade; a história não tem de ser obrigatoriamente verdadeira, mas parecer que o é. Mesmo assim sua importância é discutível. Segundo Álvaro Lins, Graciliano Ramos tem como “defeito” justamente a inverossimilhança que, de acordo com o crítico, é mais “visível” em Vidas secas e São Bernardo, dois clássicos insuspeitos. No Vidas secas esse “defeito” estaria no discurso das personagens (discurso indireto livre), pois tal recurso teria provocado um excesso de introspecção das personagens, tão rústicas e primárias (até Baleia, a cadela do romance, tem seu “monólogo interior”). No São Bernardo o “problema” estaria no fato de um homem rústico, como Paulo Honório, construir uma narrativa tão perfeita em termos literários.

Conta-se que uma vez Matisse mostrou a uma senhora um quadro em que havia pintado uma mulher nua; sua visitante retrucou: “Mas uma mulher nua não é assim”. E Matisse: “Não é uma mulher, minha senhora, é uma pintura”. Será que na sua análise em busca do perfeito, Álvaro Lins (que tinha Graciliano em alta conta) não teria percebido que Paulo Honório não é um homem, mas uma pintura?

Ler, de preferência, os clássicos

Não se é escritor sem ser leitor. Pense em Sartre: “Mas a operação de escrever implica a de ler... e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito”. (op. cit.) Pense também em Faulkner: ler, ler, ler, ler, ler...

Em Escritores em ação, Georges de Simenon (1903-1989) dá a “fórmula” para se escrever uma boa prosa: “Corte tudo que for literário demais; adjetivos e advérbios e todas as palavras que estão lá só para causar efeito. Escrever é cortar. Escrever não é uma profissão, mas uma vocação para a infelicidade e essa professora é uma **** vadia!

Fonte:
Wikipedia.

Clelia Simeão Pires (A Tipologia do Romance Policial)



O romance policial tem suas normas; fazer “melhor” do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer “pior”: quem quer “embelezar” o romance policial faz “literatura”, não romance policial.

Tvetan Todorov. As estruturas narrativas.

Em linhas gerais, o romance policial é um tipo de narrativa que expõe uma investigação fictícia, ou seja, a superação metódica de um enigma ou a identificação de um fato ou pessoa misteriosos. Toda a narrativa policial apresenta um crime e alguém disposto a desvendá-lo, porém nem toda a narrativa em que esses elementos estão presentes pode ser considerada policial. Isto porque além da necessidade de um crime, é preciso também uma forma de articular a narrativa, de estabelecer a relação do detetive com o crime e com a narração.

A figura do detetive na narrativa policial deu-se por acaso, numa estória que não tinha esse cunho; trata-se de Zadig, o herói da estória de Voltaire, que, aproveitando-se de seus dons de observação no episódio do desaparecimento da cadela da rainha e do cavalo do rei, é acusado de saber do paradeiro dos animais reais e, escapa do exílio na Sibéria ao apresentar argumentos dotados de raciocínio lógico bastante convincente para provar ao júri que realmente não os vira, mas, apenas seus rastros deixados pela estrada. A lógica perfeita de Zadig foi apontada pelos historiadores do gênero policial, como a avant-première do espírito de deteção, transformando o personagem, no antecessor de uma galeria de detetives de ficção que viria mais tarde resultar na narrativa policial.

Para tratarmos da classificação dos tipos de narrativa no interior do gênero policial, tomaremos como ponto de partida o romance policial clássico ou romance de enigma. A busca de sua solução será o objetivo do agente responsável pelo esclarecimento do enigma, o detetive. Segundo Tvetan Todorov em “Tipologia do Romance Policial”, a clássica narrativa de enigma oferece sempre duas histórias distintas: a do crime – concluída antes do início da outra – e a do inquérito. Nesta, pouca coisa acontece e os personagens encarregados da descoberta do criminoso, apenas observam e examinam os indícios deixados pelo assassino, não realizando nenhum tipo de ação fora dos limites da racionalização lógica. O relato da investigação geralmente fica a cargo de um companheiro do detetive, como, por exemplo, o Dr.Watson que narra as aventuras do mais famoso detetive de ficção Sherlock Holmes, que só apareceria nos fins do século XIX. Nesse tipo de narrativa, o enredo se arma com base em cenas progressivas de suspense que desencadearão, ao final, na descoberta do criminoso. Durante a investigação, porém, nada que ponha em risco a integridade física do detetive poderá acontecer. Esta é uma das regras do gênero que postula a imunidade do detetive. Uma vez que os personagens nesse momento não agem, mas tiram conclusões sobre uma ação passada, a narrativa é elaborada em forma de memória, diminuindo, em princípio, as possibilidades do detetive ser atacado ou morrer no desenrolar da estória. A estrutura básica de todo romance de enigma clássico serão essas características de cada uma das duas estórias, estrutura esta que enfatizará, não o crime da primeira estória, mas a forma de investigação do detetive sobre a ação passada e a forma de condução do inquérito da segunda estória.

A natureza dos romances policiais está igualmente relacionada às funções da literatura de massa e às forças que operam sob a sociedade burguesa. Os problemas humanos e os crimes transformados em “mistérios” que possam ser solucionados representam uma tendência comportamental e ideológica típica do capitalismo.

O romance policial também demonstra que, não pode haver crime perfeito, logo, ilegalismo sem punição. Na ficção romanesca, não haveria lugar para a impunidade, já que a ordem social concebe o delito como uma anomalia, uma violação da lei. A principal função ideológica na literatura policial é a demonstração da estranheza do crime. Caracterizando o criminoso como um ser estranho à razão natural da ordem social, ela faz parte de uma pedagogia do poder que, através da diferenciação dos ilegalismos, define a delinqüência. O criminoso, geralmente, é alguém que não se enquadra na ordem social, sendo por isto necessário identificá-lo e puni-lo. Com efeito, a narrativa policial segue uma ordem de descoberta, tendo como ponto de partida um fato extraordinário.

O romance de enigma tende assim para a arquitetura de uma dedução perfeita: o Cavalheiro August Dupin, criado por Edgar Allan Poe, o precursor da narrativa policial, em Os crimes da Rua Morgue, após visitar o local onde duas mulheres são assassinadas com requintes de brutalidade num quarto pavimento daquela rua, através de um raciocínio lógico, termina por chegar ao assassino. Dupin não era exatamente um detetive, uma vez que não era um policial e também, a denominação de “detetive” só surgiria mais tarde, mas, era antes de tudo, um herói analista. Contudo, disposto a desvendar aquele enigma que parecia indecifrável, faz justamente o contrário do que as autoridades parisienses fariam. Para ele, a polícia era “apenas astuta e nada mais”. Dupin conclui sobre a solução do crime sem recorrer àquela astúcia, mas sim a um método de trabalho.

Edgar Allan Poe aplicou tal técnica de raciocínio à ficção, estabelecendo várias combinações de elementos que desde então passaram a ser as peças determinantes na cartilha de elaboração dos romances policiais que surgiram em seqüência: além da figura do detetive cerebral, o escritor deve pensar no desfecho de cada estória a priori, para que a lógica seja perfeita, para que cada incidente caminhe em direção ao final previsto. Além desta técnica de, antes de iniciar a narrativa elaborar sua conclusão, também é fundamental que o escritor faça uma consideração prévia acerca do efeito que ele deseja extrair do romance em questão: o medo. Este é o propósito primeiro do romance policial e, para tal, lança-se mão do mistério e das cenas de horror.

O universo do romance policial é permeado por esses vários elementos: medo, mistério, investigação, curiosidade, assombro, inquietação, que são dosados de acordo com os autores e as épocas. Através da palavra, o medo se torna uma tortura da imaginação e estabelece uma relação poética entre narrador e leitor; o mundo é, dessa forma, uma fonte de inspiração literária, visto que, mistérios sempre existiram desde os primórdios da história da humanidade. A raiz metafísica deste gênero está na necessidade humana de eliminar a angústia e o sofrimento que nos domina enquanto não atingimos a compreensão de uma determinada situação de mistério. O temor diante do desconhecido e o espanto como resultado da resolução de um enigma são traços pertinentes à própria psicologia humana. Em toda investigação racionalmente conduzida, há , em germe, traços do romance policial. Haja vista a tragédia de “Édipo Rei”.

O romance policial clássico busca a mais completa verossimilhança trabalhando com índices materiais. Muitos detetives, como por exemplo, Sherlock Holmes, adotam métodos científicos para irem em busca da verdade. Em geral, o narrador lança mão de um mistério tão bem elaborado que o leitor não será capaz de desvendar sozinho. É nesse momento que o detetive entra em ação com o objetivo de resgatar a verdade. O leitor, a essa altura, está preso a narrativa na expectativa de um desfecho que o satisfaça. Como o objetivo da investigação sempre será alcançado, o detetive torna-se uma espécie de herói e o público passa a desejar que ele apareça em outras estórias, garantindo assim, a consagração do personagem.

Com estratégias cada vez mais sofisticadas, o romance policial começa a apresentar charadas com o intuito de aumentar o interesse do leitor a partir do momento em que ele sente-se incapaz de desvendar o mistério sozinho. A partir daí, o romance policial começa a ser tratado como uma espécie de jogo.

Em 1928, S.S.Van Dine, o romancista criador do genial detetive Philo Vance, estabelece as regras de uma boa narrativa policial. Estamos nos referindo ao famoso “As vinte regras do Romance Policial”, artigo do The American Magazine, no qual Van Dine conclui que o escritor deve “jogar limpo” com o leitor. Em outras palavras, a luta de intelectualidade deve acontecer em dois níveis: entre o detetive e o criminoso e entre o autor e o leitor. Nessas duas lutas, a identidade do culpado é o mistério para o qual tanto o detetive quanto o leitor devem ser conduzidos através de um sistemático exame de pistas. Seguem algumas das regras: o leitor e o detetive devem ter as mesmas oportunidades de desvendar o mistério, no entanto, o leitor nunca deverá suplantar o autor; o herói do romance, o detetive, sempre sairá vencedor, pois se o contrário acontecer, o fato será atribuído à baixa qualidade da estória e, portanto, não haverá suspense, uma solução surpreendente ou uma catarse. No romance policial não pode haver intriga amorosa para não atrapalhar o processo intelectual do detetive. O romance deve ter um cadáver para causar horror e desejo de vingança. O culpado deve ser um dos personagens comuns, mas gozar de certa importância e não um assassino profissional. O culpado nunca poderá ser o detetive e o crime deve ser cometido por razões pessoais. A solução do mistério deve estar evidente desde o início para que uma releitura possa mostrar ao leitor o quanto ele foi desatento. As pistas devem estar todas presentes e o leitor deve se surpreender ao saber a identidade secreta do assassino. O romance deve ser verossímil, mas não cheio de descrições já que se trata de um jogo.

De acordo com Van Dine, a arte do romance policial de boa qualidade é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos. É claro que sua validade é bastante questionável visto que vários romances policiais clássicos e contemporâneos têm transgredido algumas delas.

Outro gênero no interior do romance policial e, que se opõe ao romance de enigma apresentado anteriormente é o chamado romance negro, que se criou nos Estados Unidos. Nele, as duas estórias se fundem; a narrativa coincide com a ação do crime. Não há narração em forma de memórias, não há mistério a ser desvendado e também não sabemos se o detetive chegará vivo ao final da estória. A arquitetura da narrativa tem dois principais interesses: o de aguçar a curiosidade do leitor garantindo que a estória não seja abandonada no meio do caminho, e o de criar situações de suspense. O crime, o cadáver e certos indícios estarão presentes, mas os motivos pelos quais o assassinato foi praticado será o fio condutor da narrativa que, a partir daí, fará com que o interesse do leitor seja sustentado pela espera do que vai acontecer. Aquela imunidade que garantia a segurança do detetive no romance de enigma não será mais possível; aqui, o detetive se arrisca e tudo pode lhe acontecer.

Já no romance negro moderno, ou “Série Noir”, surgido na década de 20, a narrativa constitui-se em torno dos personagens e de seus temas. Recebem este nome devido ao meio que descrevem. Nele, encontramos a violência no sentido mais brutal, a paixão desenfreada, a imoralidade e o ódio. A segunda estória ocupa lugar central, mas, a omissão da primeira não é um traço obrigatório. Alguns de seus representantes como Dashiell Hammett e Raymond Chandler conservaram o mistério em torno de um crime, embora este não tenha destaque na estória, assumindo uma função secundária. Os detetives dessa época não usavam apenas a cabeça, mas também os punhos. Pela influência da época em que foram criados, durante a tremenda crise financeira gerada pelo crack da Bolsa, e ainda, pela Lei Seca, um novo tipo de detetive surgia num momento propício à exploração da violência. Através da leitura diária dos jornais, o americano tomava conhecimento das “façanhas” dos diversos gangsters, em especial Al Capone e seus asseclas. Com isso, violência conhecida através da leitura dos periódicos, ia se tornado um hábito. Perseguidos sem sucesso pela polícia, essas figuras acabavam sendo transformadas de bandidos em vítimas, ao passo que, as autoridades, ficavam cada vez mais desacreditadas por sua ineficiência. O mesmo público que lia tais notícias nos jornais ansiava por um herói. Este sentimento, talvez, captado pelos criadores da revista Black Mask, conta com a publicação dos primeiros trabalhos de um dos maiores escritores de romances policiais de todos os tempos: Dashiell Hammett. Depois, em 1930, o escritor lança o livro que seria considerado sua obra prima, O Falcão Maltês, um clássico do romance policial. Seu personagem principal é o detetive San Spade, que aparece em várias estórias seguintes. Com ele dois novos elementos são introduzidos na narrativa policial: o sexo e a violência. Antes dele, o que existia essencialmente nas narrativas policiais era o raciocínio puro. Não havia lugar para o amor e muito menos o sexo.

Na mesma linha de San Spade há dois detetives muito diferentes entre si, mas dignos de menção: Phillip Marlowe, de Raymond Chandler, e Mike Hammer, de Mickey Spillane. As estórias de Marlowe têm características bem parecidas com as de Spade. Hammer é a representação do exagero. Em suas estórias a inteligência entra em bem menor proporção se comparada às demonstrações de força bruta e sexual que são levadas ao extremo.

O romance negro tem na coleção “Série Noir”, publicada na revista Black Mask seu ápice e reconhecimento de público. As estórias transgridem algumas regras daquelas postuladas por S.S.Van Dine, como, por exemplo: há freqüentemente mais de um detetive e mais de um criminoso; o criminoso é um profissional e não mata por razões pessoais e é com freqüência um policial. Neste tipo de narrativa, há lugar para o amor, de preferência bestial, e o autor não reserva suas surpresas para o final do último capítulo. Exploram-se situações angustiantes em que o detetive pode se envolver. Não há otimismo, a imoralidade ou amoralidade é admitida. Usa-se a linguagem coloquial admitindo ainda palavras de baixo calão e gírias. O detetive também é falível e nem sempre há mistério. Pode ocorrer até que não haja detetive.

Vale ainda ressaltar que o narrador desse tipo de romance, quer seja o próprio detetive ou não, nunca aborda aspectos psicológicos dos personagens de suas narrativas.

Além das duas formas de romance policial já apresentadas, surge ainda uma terceira que combina as propriedades das anteriores: o romance de suspense. Essa forma de romance policial serviu de transição entre o romance de enigma e o romance negro e se desenvolveu ao mesmo tempo em que este. Desses dois períodos correspondem ainda dois subtipos de romance de suspense: o primeiro, chamado de ‘estória de detetive’, é onde as estórias de Hammett e Chandler também podem se encaixar. Assim como no romance de enigma, este, conserva em seu enredo o mistério e as duas estórias. Como no romance negro, a segunda estória (a do inquérito) assume o lugar central na narrativa. O leitor se interessa por interrogar como se explicam os acontecimentos do passado e o que acontecerá no futuro da narrativa. Aqui, as personagens também arriscam constantemente a vida. O mistério, diferente do romance de enigma, é o ponto de partida. O interesse principal está na narrativa do inquérito, que se desenrola no presente.

Há ainda um segundo tipo de romance de suspense, o chamado “estória do suspeito detetive”, que tenta resgatar o crime pessoal do romance de enigma. Nesse caso, um crime é cometido no início do livro e as suspeitas da polícia recaem sobre o personagem principal. Para se inocentar, a pessoa parte para a investigação pessoal a fim de encontrar o verdadeiro culpado, arriscando a própria vida. Nela, o personagem é ao mesmo tempo o detetive, o culpado (para a polícia) e vítima dos verdadeiros assassinos. Representantes desse gênero são Patrik Quentin, Irish e Charles Williams.

Tratamos da classificação de algumas narrativas policiais e como pudemos perceber, o romance policial tem suas normas e, uma obra, para ser considerada como tal, precisa se adaptar a um mínimo das regras do gênero.

Fonte:
http://www.letras.ufrj.br/

Roberto de Sousa Causo (Pelos Dentes da Baleia)


A breve era das Grandes Navegações de Pindorama foi prefigurada pelo encalhe de uma baleia lactante nos sambaquis da aldeia de Tibirá. Uma baleia gigante como nunca antes vista pelos homens, mulheres e crianças da aldeia, que logo reconheceram os mapas de todas as terras e mares do mundo, de vários mundos, riscados em seus dentes, cada um deles mais largo que o peito de um guerreiro.

O xamã Saraí logo ordenou que as tetas do monstro fossem cortadas de sua carne e o leite espremido pelas mãos das meninas pré-púberes da aldeia. Setenta e oito vasos de cerâmica foram cheios até a boca com o leite rosado de sangue, e lacrados para serem no futuro bebidos com ávara parcimônia, apenas pela boca de mulheres adultas que já haviam parido e aleitado.

Então Saraí ordenou que a aldeia fosse transferida para um local distante um dia inteiro de viagem ao norte, junto ao delta do Grande Rio, enquanto por gerações inteiras a carcaça da baleia-mãe era lentamente devorada por um milhão de gaivotas e quatrocentos e vinte e oito milhões de caranguejos. Ocasionalmente uma onça ou um cão-do-mato mordiscava da carcaça, para enlouquecer lentamente nos grotões mais densos da floresta, e deles a nova aldeia de Tibirá era obrigada a se proteger com paliçadas e patrulhas de guerreiros armados de lanças e tacapes. Mesmo a um dia de distância do cadáver gigante da baleia, a aldeia não deixou de ser também empestada pelo cheiro da carne marinha apodrecida, as entranhas mais insuspeitas reveladas pelo tempo e pelo dentes ou garras dos animais que dele se alimentavam.

Na aldeia, durante todo esse tempo, tupiniquins de audácia estudavam os mapas gravados no esmalte dos dentes, e planejavam. O há muito falecido xamã Saraí profetizara que uma nau de proporções descomunais deveria ser construída a partir dos ossos descarnados da baleia-mãe, e a cada ano uma das mães de maior sabedoria da aldeia bebia uma cuia rasa do leite postumamente ordenhado, e dele extraía a confirmação da profecia e outras e novas dádivas proféticas sobre a vida da aldeia e o futuro de Pindorama.

Então, três gerações após o encalhe da baleia-mãe, Mãe-Daidéa bebeu do seu leite e declarou que o esqueleto estava enfim limpo o bastante para que se iniciassem os trabalhos de construção do grande navio.

A aldeia toda mudou-se para o antigo local, depois que os guerreiros e as mulheres adultas passaram várias fases da lua raspando os ossos, enxaguando-os com a água do mar e revirando a areia para afastar os fantasmas do fedor de decomposição e morte. Levaram os moradores da aldeia os dentes-mapas e os vasos com o leite-sangue e todos reconstruíram em torno da oca sagrada que os guardava as suas novas moradas e refizeram à luz de novas fogueiras os planos para a grande investida sobre o Mar-sem-Fim.

Dos ossos arqueados da cabeça foi feita a proa do navio, revestida da mais forte madeira-de-lei selada com coral e com a lama fóssil das pororocas. Das costelas e vértebras montou-se a quilha abaulada. Dos ossos das nadadeiras subiram mastros e suportes e as velas tecidas por duzentas mulheres, meninos e meninas foram erguidas sobre eles, mas antes tingidas com o vermelho do ibira-puitá e com o pó amarelo do ipê. Todos os trabalhos seguiram em boa velocidade, para o seu término próximo à Grande Conjunção. Mãe-Daidéa batizou o navio de Espírito do Mar, derramando sobre a sua proa todo um vaso do precioso leite mágico.

Os sábios da aldeia, no tempo em que era construída a nau, dedicaram-se a escolher capitão e tripulantes. Foi decidido que nove mães estariam sempre a bordo, para beber do leite mágico da baleia e assim antecipar os percalços da viagem. A primeira delas e a sua tenente seria Pitará. O capitão seria o valente Arivaru, que enfrentara mais correntes do Grande Rio e ondas do Mar-sem-Fim do que qualquer outro guerreiro conhecido dos habitantes da nova Tibirá.

Para a primeira viagem escolheram a ilha que foi chamada Jequiraí. Segundo um dos mapas-dentes, ela não distava muito do litoral de Tibirá, comparada a outras terras assinaladas no esmalte já amarelecido.

Quando as três luas entraram em conjunção formando um cacho de bolas prateadas no céu noturno, embarcaram os tripulantes em alegre obediência às profecias, as nove mães despediram-se dos seus filhos e filhas e em terra ficaram todos a ver partir o que restara da baleia-mãe — e o que prometia o futuro de Pindorama.
*
O Espírito do Mar levantou velas à noite, rapidamente deixando para trás as fogueiras da aldeia e penetrando no duplo-luar que iluminava o caminho, mas não ofuscava o brilho efêmero das estrelas cadentes.

Assim que a terra escorreu por trás do horizonte e os pássaros se cansaram de seguir o Espírito do Mar, a nau deparou-se com um cardume de baleias, que borrifava o ar noturno com sua respiração nebulosa. Grandes baleias-mães e filhotes e uns poucos machos nadando exibidos na borda do bando maior. Nenhuma porém grande como a baleia que há tanto tempo havia encalhado nas praias da primeira Tibirá. Sentindo o cheiro familiar ou a forma como cortava as ondas, vieram ter com o navio e saber que estranha criatura, artefato ou aparição era esta.

Acompanhando a aproximação das baleias a partir do estreito passadiço, Arivaru convocou as mães e mandou que uma cuia do leite-sangue fosse servida. Enquanto bebiam as mulheres, juntou-se ao cardume dezenas de outros, vindos de todos os quadrantes do horizonte sem marcas que a todos circundava. Eram muitas baleias, baleias de muitos tipos, todas expirando água e inspirando ar, tanta água borrifada no ar que as muitas baleias em verdade suspiravam uma chuva entre arcos-íris, que vinha banhar os conveses da nau. O agitar dos muitos corpos das baleias balançava o navio, e as baleias mesmas formaram uma intransponível barreira.

Depois de bebida a última gota do leite, todas as mulheres se calaram, enquanto Arivaru esperava delas que falassem. Mas o valente Arivaru conhecia o valor da paciência, e esperou mais.

Antes porém que a primeira palavra saísse dos lábios ainda manchados do leite rosado, o capitão viu o cerco de baleias abrir-se um tanto, e no centro da grande comunhão de animais marinhos emergiu um monstro nunca visto.

Arivaru subiu no mastro mais alto, para reconhecer todo o seu corpanzil azulado semi-submerso na água, e saber se era mesmo uma baleia, como parecia ser e era. Mas nunca uma baleia deste tamanho…

Quando o capitão desceu do mastro por uma corda de cipó, as mulheres o esperavam no convés principal. Pitará, a primeira mãe e a segundo em comando, disse a ele, de olhos muito abertos:

— Fala o monstro, por minha boca: “Quem são vocês, que nadam sobre as águas, nos ossos de minha mãe?”

Arivaru um tanto demorou, para entender. Poderia ser, que a gigante-baleia fosse cria da Baleia-Mãe que deitara à praia de Pindorama, há tantas estações passadas?

— Ouve o monstro, por seus ouvidos, Pitará? — perguntou o capitão.

— Sim, Arivaru. Mas fale rápido, pois o gigante é impaciente.

— Somos homens e mulheres da terra antiga de Pindorama, da aldeia de Tibirá — explicou o capitão —, onde há muito uma baleia encalhada trouxe ao nosso povo o presente de muitos mapas de terras distantes, cravados em seus dentes. Foi dito que de seus ossos deveríamos fazer um navio capaz de cruzar o grande mar, até uma das terras descritas a riscos, nos dentes da baleia.

— E o leite de minha mãe, que ainda muito haveria de alimentar a mim? — perguntou o monstro, pelos lábios salivosos de Pitará.

— Sim — Arivaru admitiu —, pois o leite é mágico e permitiria a nós encontrar o caminho com maior facilidade.

— Não o seu caminho, porém — o monstro disse. — Sei que desejam o destino da ilha de Jequiraí, mas devem ir ao invés até a mágica terra de Ó-Brasih, terra-irmã de Pindorama e destino verdadeiro de minha mãe. Ela enganou-se, tomando uma pela outra após perder-se de mim em uma tempestade, mas agora cabe ao povo de Pindorama navegando em seus ossos levá-los ao descanso a ela prometido. Seu destino é Ó-Brasih.

Arivaru ponderou. Pela primeira vez, desviou os olhos da bela Pitará e os dirigiu à baleia gigante.

— Preferiria então retornar à nossa terra de Pindorama, se o caminho a Jequiraí proibido está — disse.

O monstro soergueu a metade dianteira do seu corpanzil imenso e o deixou deitar-se novamente contra a água, levantando uma onda que fez correr para o alto e para o baixo outras baleias menores que o circundavam — e que fez gemer as estruturas do Espírito do Mar, atirando tripulantes aos conveses e Pitará aos braços de Arivaru.

— Seu destino é Ó-Brasih — ela cochichou a ele. — E nenhum outro. Nunca mais retornarão a Pindorama, não na mesma nau em que agora viajam, pois os ossos de minha mãe devem repousar, no lugar prometido.

Arivaru endireitou-se e se separou devagar de Pitará.

— Mas que caminho seguir?

— Pelo dente maior da frente — disse o monstro, pela voz da mulher.
*
A gigante-baleia, filho da baleia-mãe, agora já seu cortejo de baleias menores, guiou o Espírito do Mar por várias léguas da jornada, e apontou o caminho, antes de despedir-se novamente falando pela boca espumosa de leite-sangue, de Pitará.

— Deste ponto em diante, o dente os guiará. A mim mesmo as águas de Ó-Brasih e a visão de suas terras são proibidas. Vocês mesmos lá viverão em paz e na prosperidade da terra, se ficarem apenas nas praias e junto aos rios. Nunca entrem na floresta, pois ela é guardada por um jaguar de grande ferocidade, que de vocês faria alimento.

— É injusto de você fazer com que nunca mais vejamos a nossa Pindorama — Arivaru tomou coragem de dizer.

— Vocês viajaram mais longe do que qualquer homem e mulher de antes — disse a baleia. — Contentem-se com isso. Se tentarem o retorno, saibam que todas as baleias do grande mar estão avisadas de dar de vocês o alerta, e eu virei com todas elas, para enviá-los todos às profundezas.

E então ordenou que todo o leite fosse deitado ao mar, no rastro do navio, por todo um dia. À noite os tripulantes ainda ouviam o monstro a nadar e a suspirar como o vento nas árvores, enquanto bebia o gole derradeiro do leite que dizia lhe ter sido roubado.

Pitará, que ainda tinha o líquido mágico em seus intestinos, contava a Arivaru e às mulheres-de-visão que a gigante-baleia sonhava com o espírito da mãe e com terras ainda mais distantes, destinos longínquos prefigurados nos cascos das tartarugas, sugeridos nas correntes mais profundas do Mar-sem-Fim, e que um dia ele ainda iria percorrer em sua vida de centenas de estações.
*
Mas a verdade é que Arivaru mentiu e esperto foi. Enquanto a baleia-monstro embriagava-se de visões, ele escondeu e sonegou um último barril do leite-sangue, por valorizar o seu poder de dar informação, que tão necessário seria, ao chegarem a Ó-Brasih. E como o dente maior da frente afiançara em seu desenho, seguindo a ordem das correntes traçadas e o desfile de recifes apontados, o Espírito do Mar encontrou de velas altas e cheias o caminho, e após muitos dias e noites, conforme o prometido a nau foi de propósito encalhada na praia da terra mágica. Tudo o que era dos homens e mulheres desceu de seus ossos, que ficaram a amarelar ao sol, também conforme o prometido, símbolo de começo e fim para os que neles navegaram.

Nas praias e ao longo dos rios de Ó-Brasih viveram os homens e mulheres, e tiveram filhos, e saudades tiveram da aldeia deixada para trás. Arivaru tomou Pitará por sua, e Pitará o tomou por dela, e os dois fizeram muitos curumins, a quem contaram sua aventura pelo Mar-sem-Fim, por vezes infinitas.

Um dia porém Arivaru cansou-se da fácil vida que o mar e os rios proviam. Foi tomado de curiosidade pelo que havia no coração da floresta que a todos cercava. Aventura, ele queria, pois já também se cansara de viver apenas as aventuras do passado.

Então Arivaru e Pitará beberam os dois o leite oculto, esperando assim antecipar o que haveria em seu caminho. De mãos dadas penetraram os dois na floresta e diante de sua visão tornada mágica pela bebida desfilavam todos os detalhes mágicos testemunhados pelas árvores de muitos mil anos, das pedras de muitos milhões de anos, das criaturas que por ali viviam e para a floresta traziam a sua contribuição de nova magia.

E por isso apenas — por estarem tão somente atentos à visão das muitas eras e das muitas mágicas — não viram a fera-jaguar, que, escura como a noite, sorrateira como um deus, fez dos dois enfim alimento.
*
Comeu muito, o jaguar, e por muitos dias. Devorou a carne, mastigou os ossos e lambeu as vísceras ainda empapadas do leite mágico, que também a ele trouxe visões mágicas. O jaguar contudo nada viu de outras terras e das rotas que a elas levavam. Nada viu de tempos passados ou futuros. Viu apenas do interior do homem e da mulher que havia comido. Viu mais — do interior dos homens e das mulheres que eles dois haviam antes conhecido e amado, pois o amor é como os veios de metal que, sob a terra, mantém-na unida. Viu das coisas que os homens e mulheres de Pindorama tocaram e construíram com amor nas mãos, e delas todas tornou-se amante.

Desses restos que eram maiores do que o todo, o grande jaguar negro soube dos homens e mulheres e crianças a sua linguagem e os seus pensamentos. Devagar, ele caminhou até as margens de Ó-Brasih, ele mesmo noite em busca das margens do alvorecer, e ali falou a todos os que haviam chegado nos ossos da baleia, guiados pelos dentes da baleia, e aos seus filhos.

E a eles ofereceu o coração misterioso de Ó-Brasih.

Eles viveriam e prósperos seriam, sem limites, sem fronteiras. Juntos, o jaguar e o seu povo viveriam todas as aventuras desejadas, ocupariam toda a terra mágica sob o duplo luar, e por todo o tempo vindouro, enquanto os ossos amarelavam nas areias do seu destino.

Fonte:
http://rscauso.tripod.com/id14.html

Gian Danton (As fronteiras da ficção científica)


O livro Os melhores contos brasileiros de ficção científica foi uma das publicações do gênero mais comentadas do ano de 2008. Uma das questões polêmicas foi a inclusão do conto "O imortal", de Machado de Assis, na coletânea. Segundo alguns críticos, o texto estava deslocado, já que não se tratava de FC. A polêmica levou o organizador, Roberto de Souza Causo, a produzir mais uma publicação, focada exatamente em textos que testam as fronteiras do gênero.

A discussão sobre o "O imortal", inclusive, ocupa a maior parte da introdução. "A ousadia não pretendia, porém, afirmar Machado como autor de FC propriamente dita, mas como um escritor que, à parte suas tendências principais, teve contato com ideias, estilos e temas que iam além". Causo contesta também os que argumentaram que o texto de Machado era fantasia, e não FC, denunciando uma espécie de elitismo: "Se 'O Imortal' é um conto fantástico, mantém-se a aura literária de prestígio; porém, se é um conto de ficção científica, supostamente há um enfraquecimento dessa aura".

A discussão sobre a relevância literária da FC parece ultrapassada em vista dos grandes escritores que já se dedicaram ao tema, de Edgar Allan Poe a Ray Bradbury, passando por Monteiro Lobato e Isaac Asimov. Mas a discussão sobre as fronteiras do gênero é rica e pertinente. Causo argumenta que "a ficção científica é ampla o bastante para incorporar características de outros gêneros, sem necessariamente deixar de ser FC".

Os melhores contos brasileiros de ficção científica ― Fronteiras (Devir, 2010, 192 págs.) foi organizado justamente para provar essa tese. São 14 textos tanto de autores tradicionalmente ligados à FC, como Bráulio Tavares, quanto de outros inesperados, como Lima Barreto.

Aliás, Lima Barreto abre o volume, com "A nova Califórnia". No conto, um químico de renome internacional se estabelece na pequena cidade de Tubiacanga e se esmera em conseguir alcançar o objetivo da alquimia: a produção de ouro. Sua pesquisa irá colocar a cidade em polvorosa. Trata-se de uma fábula sobre a ganância humana. Embora não seja uma FC clássica, o conto traz um dos temas prediletos desse gênero: o estudo do impacto da ciência sobre o comportamento das pessoas. Ademais, a prosa deliciosa de Barreto já vale a leitura.

Outra alegoria que se destaca no livro é "A vingança de Mendelejeff", de Berilo Neves, o primeiro escritor brasileiro a se dedicar sistematicamente à FC, com ênfase na sátira social. O conto dialoga com os pulp fiction ao mostrar o vilão como um cientista ensandecido que inventa uma máquina capaz de tirar o oxigênio do ar. Embora tenha um ar "pulp", a história vai além ao fazer referência à corrente determinística segundo a qual somos vítimas de nossos impulsos.

Outro pioneiro da ficção de gênero brasileira que se destaca é Afonso Schmidt, autor de "Delírio". Muito popular em sua época, Schimidt flertava com o espiritismo e a teosofia, uma relação que se reflete no conto escolhido para a coletânea. Em "Delírio", três homens estão morrendo em um hospital. A história, que começa no plano físico, termina no plano espiritual. A prosa poética vai muito além do comum em histórias em ficção científica e parece uma antecipação do estilo Bradbury. Sem dúvida um dos grandes momentos do livro.

Outro clássico da FC nacional, André Carneiro, comparece na coletânea com o conto "O homem que hipnotizava". Por suas características, a ficção científica é perfeita para textos que queiram trabalhar os limites da realidade. Várias obras tratam do assunto, entre elas os filmes da série Matrix. O conto de Carneiro segue essa linha e não decepciona. No final, o leitor se pergunta que realidade é mais concreta: a dos objetos físicos ou a mental, uma questão que já é levantada por cientistas como o chileno Humberto Maturana.

Entre os clássicos, o de maior destaque sem dúvida é Jerônymo Monteiro. Pioneiro da FC no Brasil, Monteiro passou pela radionovela e pela ficção policial. Quando, na década de 1990, a revista Isaac Asimov Magazine resolveu criar um concurso de contos de ficção científica, o nome óbvio para o prêmio foi o de Jerônymo. Só pelas credenciais, esse autor já merecia presença obrigatória no volume, mas o conto "Um braço na quarta dimensão", publicado originalmente no único de livro de contos do autor, Tangentes da realidade, de 1969, é leitura deliciosa e intrigante. Escrito de forma coloquial e sem artificialismos, parece que estamos ouvindo o narrador contar um caso real de um homem dotado de um poder que acaba se revelando uma maldição.

Fugindo do estilo mais característico da FC, Marien Calixte fez um conto poético em "O visitante", que mistura discos voadores com erotismo num resultado interessante. Roberto Causo, na apresentação do autor, aponta que "ele tem uma das prosas mais elegantes dentro os nossos escritores de ficção científica", o que é ratificado por "O visitante".

Jorge Luiz Calife e Bráulio Tavares, dois dos mais badalados autores de FC do Brasil, colaboram com os melhores contos do livro. Em "Uma semana na vida de Fernando Alonso Filho", Calife mostra as atribulações de um brasileiro em Vênus enquanto o planeta é transformado em uma nova Terra, para recebimento de colonos. Adepto da FC hard, o autor usa o conhecimento científico atual para compor o cenário de sua história. O plano de terraformização, inclusive é chamado de Projeto de Sagan, em homenagem ao famoso astrônomo e divulgador científico Carl Sagan. Mas o texto vai além da questão puramente científica, adentrando no impacto psicológico que condições extremas provocam no protagonista.

Braulio Tavares, autor, entre outros livros importantes, do volume Ficção Científica da coleção Primeiros Passos, mostra uma realidade em que o ser humano alcançou o espaço, mas apenas para entrar em uma guerra perpétua com outra raça. O texto "Mestre-de-armas" lembra "O Jogo do exterminador", de Orson Scott Card, na visão crua da guerra.

No geral, os contos da coletânea foram muito bem escolhidos e dão uma visão abrangente da FC nacional em suas várias fronteiras. Um livro que interessa aos fãs e não fãs.

Fonte:
Digestivo Cultural

Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido - Parte 3) Novela em 4 partes


Poucos segundos depois, dava entrada na sala de jantar, uma nova personagem…

- Clara: - Boas noites a todos! Fizeram muito bem em sentarem-se à mesa sem esperar por mim. A culpa do meu atraso foi, a maldita modista. Olá "maridinho", meu querido Nandinho!...Olá "filhinho " querido, luz dos meus olhos! Olá Avôzinho, um beijo muito grande; Vá lá, outro beijinho querido avozinho! Quantos desejos tinha em conhecê-lo, mas finalmente hoje, é o grande momento! O Fernando estava sempre a falar-me de si. Até começava a sentir ciúmes do Avôzinho…
- Avô Guido: - Mas quem é esta menina, Fernando?
- Fernando : - É...é...é... anda querida, apresenta-a tu…
- Margarida: - Eu?!...eeeuuuu?!...
- Augusto: - Ponho outro talher para a "irmã da senhora"?...
- Fernando: - Sim, sim...pois claro... Avô, apresento-te a minha cunhadinha. Vive aqui conosco…
- Margarida: - É minha irmã, a minha irmã Clara! Ela desejava muito conhecer o avô....senta-te, querida, pois, estás muito cansadinha. Trabalhas demasiado...
- Clara: - Não estou a perceber nada disto… O criado só sabe falar por meio de sinais, será que seja mudo?
- Augusto - A menina Clara, por acaso não quer tirar o casaco?...
- Avô Guido: - Tua cunhada, Fernando?! Então ela não tinha morrido de uma pneumonia?....
- Clara: - Não diga isso! Lagarto, lagarto, lagarto! Morrido, eu..., belisquem-me por favor, para ter a certeza de estar vivinha!
- Avô Guido: - Mas lembro-me que tu escreveste a dizer-me que ela tinha morrido, há cerca de três anos. Até me lembro que te enviei, mil e quinhentos euros para pagares o hospital e despesas com o enterro. A carta em que nos descrevias os seus últimos angustiosos momentos fez-nos chorar a mim e ao Augusto. Não é assim, Augusto?
- Augusto: - É verdade, senhor Guido. Mas tratava-se da morte da irmã mais nova da senhora. Esta é a irmã mais "velha"…
- Margarida: - Sim, é isso tudo, a Clarita é a mais velha de todas. Foi a nossa mãezinha, conseguiu livrar-nos da miséria, com o seu trabalho, quando ficámos órfãs. É uma mulher exemplar...
- Fernando: - Um autêntico anjo de bondade…
- Avô Guido: - Tudo isso a honra muito. E em que trabalhas, minha filha?...
- Clara: - Eu?! Eu... sou Corista e Bailarina…
- Avô Guido: - Corista?... Em que coro, minha filha?
- Margarida: - Sabe avô, a Clara tem boa voz (e também dança muito bem), é vocalista do...do...do Coro Universal para Ajudar Pessoas Carenciadas. É isso…
- Avô Guido: - Então, esse meritório trabalho dá-lhe muitas horas de ocupação?
- Clara: - Nem imagina! Todo o dia a cantar e a dançar. Então, hoje, foi demais. Por isso é que cheguei tão atrasada!
- Fernando: - Pobrezinha! Essas danças cansam-te tanto...
- Clara: - Lá isso é verdade...maldito número desta revista…
- Sandro: - Mamã, mamã, espero que "esta"não coma agora os pudins todos!
- Margarida: - Não querido “filho”, bem sabes que a tia Clara, não gosta nem pode comer doces...
- Avô Guido: - Pois estou muito impressionada consigo, Clara. Mas diga-me, em que consiste esse grupo "Universal para Ajudar Pessoas Carenciadas"?
- Clara: - Ah...dão festas...cantam...dançam...
- Fernando: - Em benefício, principalmente, das crianças pobres...
- Avô Guido: - Sinto muito que a minha surdez não me permita apreciar o seu timbre de voz, mas gostava de a ver dançar...
- Clara: - Se tem muito empenho disso, dançarei.
- Sandro : - Dance...dance...Farça a vontade ao « meu » avô !
- Fernando: - Basta, querida, não te canses mais. O avô já apreciou tua arte.
- Sandro: – Continue, continue, "tiazinha", que essa dança é muito gira!
- Margarida: - Não, não. A tia Clara está fatigadíssima e, além disso, é muito tarde para o avô. Não é verdade, Augusto?...
- Augusto: - Tem razão, o senhor já devia de estar a descansar. Precisamos de voltar para o hotel, senhor Gildo...
- Avô Guido: - Estás sempre a enfastiar-me, maçador... Parece que sou um menino irrequieto. Estava agora a divertir-me bastante... em outro dia dançará mais para mim, filhinha. Hás-de ir a Trás-os-Montes, quando os meus pequenos forem. Tive muito prazer em conhecer-te. Continua a trabalhar. Consentes que te entregue um donativozinho para esse Grupo, a que pertences?
- Clara: - Aceito e com muito prazer!
- Avô Guido: - Augusto, dá duzentos euros a esta menina. O Augusto é quem traz sempre a minha carteira, pois, estou muito velho, e perco tudo…
- Augusto: - Tome lá, menina Clara...
- Clara: - Mas estão aqui só cento e cinquenta “amigo”, e o avô disse para me dar duzentos. Caridade é caridade...
- Augusto: - Tem razão, desculpe e tome lá o resto.
- Avô Guido: - Não me vem acompanhar, Márcia?
- Margarida: - Eu?! Sim, sim vou. Preciso certificar-me de que o senhor vai para a sua caminha. Não lhe permito que vá para a pândega, para a farra!
- Avô Guido: - És muito querida, filhinha!
- Fernando: - Fica tu com o Sandro, Clarinha. Voltaremos rapidamente... onde se meteu o avô?
- Margarida: - Ele já vem, espere um pouco.
- Fernando: - Sinto que se incomode, acompanhando-nos. Ou prefere que a desculpe junto ao avô, dizendo que tem de deitar o Sandrito?
- Margarida: - Não, obrigado mas irei com ele até ao hotel. Pobre velhote! Cumprirei até ao fim a minha missão.
- Fernando: - Você é a pessoa mais encantadora que...
- Margarida: - Basta, por favor. Deixe os cumprimentos para quando tiver findado a comédia que, por sorte, só tem um acto. Caso contrário, o desastre seria inevitável. As minhas aptidões dramáticas, não chegariam para mais!

- Fernando: - Neste caso, todo o êxito se deve à primeira actriz...

O ar fresco da noite, aliviou-lhe os nervos, postos rudemente à prova. Suspiraram ambos depois de terem deixado o avô, instalado nos seus aposentos, entregues aos cuidados do Augusto.

- Margarida: - Até que enfim que acabou esta comédia (suspirou profundamente)

As despedidas tinham-se realizado sem contratempo algum, e o ancião contava com a promessa de que iriam visitá-lo nas próximas férias. Até lá. Josué, teria tempo de inventar um pretexto qualquer, isto, no caso da abalada saúde do velho, se manter incólume. Mas, Josué tinha poucas ilusões, pois, a vida do avô Guido, parecia uma chama prestes a apagar-se.

- Fernando: - Margarida, está contente por tudo ter findado?
- Margarida: - Estou. E felizmente com êxito. Mas, quer crer que me comoveu a despedida do avozinho?
- Fernando: - Acredito que sim. Nunca mais voltarei a pôr em dúvida a bondade do seu coraçãozinho. Você é a mais adorável criatura que... Bom, não sei que dizer-lhe... estou completamente desconcertado, além de comovido.
- Margarida: - Porquê?
- Fernando: - Como poderei agradecer-lhe quanto fez por mim?
- Margarida: - Não seja presunçoso...
- Fernando: - Porquê presunçoso?...
- Margarida: - O que eu fiz, foi por causa do avô. Os velhinhos enternecem-me... adoro-os...
- Fernando: - Felizes os que têm a barba branca...mas enfim, seja como for, muito obrigado. Você tirou-me de uma grande dificuldade e, quisera que houvesse algum meio humano de lhe manifestar a minha gratidão. Mas não... não cometerei a tolice de lhe enviar um ramo de flores ou uma caixa de bombons. A única coisa que posso lhe oferecer, é a minha incondicional amizade...
- Margarida: - Bom, aprecio-o pelo que vale. Mas não se mortifique mais. Deixemos de lado as difíceis manifestações de agradecimentos. E agora, adeus e passe muito bem.
- Fernando: - Como?! Não a quer que a leve a casa de carro a casa?
- Margarida: - Não é necessário. Fica perto e, um passeio a pé, aliviar-me á a cabeça ...
-Fernando: - Você é que sabe…
- Margarida: - Por outro lado, o Josué tem os minutos contados, pois, ainda terá que ir a casa vestir o trajo de cerimónia, antes de começar o concerto…
- Fernando: - Você revoluciona todas as minhas anteriores opiniões a respeito das mulheres. Jamais, conheci outra que fosse tão razoável. Mas, de qualquer modo, não julgue que a deixarei ir sozinha. Vá...suba para o meu carro...
- Margarida: - Você, ignora que eu sou a teimosia personalizada. Não perca mais tempo...Adeus, diremos que, foi o fim da Comédia!
- Fernando: - Será capaz de afastar-se sem ao menos me dizer o seu verdadeiro nome?
- Margarida: - Para quê?... Agrada-me isto de desaparecer da sua vida, tal como nela me introduzi: repentinamente!
- Fernando: - Mas é que, não posso permitir…
- Margarida: - O que não é que pode permitir?...
- Fernando: - Disse há pouco que aceitava a minha amizade, e, agora, pretende deixar-me sem a esperança de tornar a vê-la. Não seja assim...
- Margarida: - É melhor assim. Pela terceira vez, adeus, senhor Josué Teixeira. Desejo-lhe um grande êxito esta noite.
- Fernando: - Escute, porque não vem ao meu concerto? …estou certo de que me traria sorte.
- Margarida: - Agradeço-lhe, mas não é possível. Lembre-se de que cheguei de Lisboa ainda há poucas horas. Devo de ir dormir, pois, amanhã espera-me um dia de grandes comoções...
-Fernando: - Que espécie de comoções?
- Margarida: - É assunto privado…
-Fernando: - Perdão, já sei que não tenho o direito de dirigir-lhe perguntas. Bem...apesar de tudo, não lhe digo adeus, mas sim até à vista. Encontrar-nos-emos muito em breve, asseguro-lhe…
- Margarida: - Quem sabe?... A vida é uma surpresa contínua...
- Fernando: - Boas noites, desconhecida "esposa". Que Deus a abençoe pelo bem que me fez...
- Margarida: - Boas noites “esposo". Que as Musas o coroem de louros!...

Ao afastar-se, Margarida começou a trautear, em voz baixa, uma canção e tratou de apagar do pensamento a imagem de Josué Teixeira, como quem passa uma esponja pelo quadro preto de uma sala de aula. Contudo, ao entrar de novo na confortável casa de Isabel, a imagem voltou a sair-lhe ao caminho. Mais precisa e insistente do que nunca...

- Clara: - Já de volta?! Não a ouvi entrar...
- Margarida: - Ah, é você... Não toquei a campainha, porque a Isabel emprestou-me uma chave. Já deixámos o avô no hotel...
- Clara: - E o Josué Teixeira?
- Margarida: - Seguiu a toda a pressa para o seu concerto...
- Clara: - É verdade, já nem me lembrava. Bom, você quer explicar-me o que aconteceu.?!... Suponho que, por ter chegado um pouco tarde, não vai reclamar os quinhentos euros?...
- Margarida: - Os quinhentos euros?...oh, não. Não de preocupe, pois, procedi desinteressadamente...
- Clara: - Agradeço-lhe muito que não peça o dinheiro. Não pode imaginar quanto preciso dele. Trabalho numa companhia de Teatro. Calcule a minha aflição, ao ver que se fazia tarde...
- Margarida: - A sua “entrada”, é que ia estragando tudo!
- Clara: - Compreendo que a minha "entrada"foi bastante inoportuna. Desculpe...
- Margarida: - Não tenha nada a desculpar...
- Clara: - Por sorte, o velho deu-me mais duzentos euros!
- Margarida: - O avô gostou de si.
- Clara: - Esse pobre avô é uma calamidade! sentia pena ao enganá-lo. Porque fará Josué Teixeira, isso ao velhote, será por causa da herança?
- Margarida: - Por causa da herança?... Não! Bem, lamento deixá-la sozinha, mas vou deitar-me, pois, tenho de me levantar cedo.
- Clara: - Ouça, ouça, não se vá ainda...que vamos fazer com o "demônio”?
- Margarida: - Com o "Demônio"?
- Clara: - Sim, esse endemoninhado rapaz...
- Margarida: - O Paulo (ou o Sandro)?... É verdade. Tinha-me esquecido dele. Onde é que ele está?
- Clara: - Na cozinha. Estragou o aparelho da televisão, e, agora procura fazer o mesmo ao frigorífico. Não consigo que ele me obedeça…
- Margarida: - Vamos ver o que o "demônio", como você diz, está a fazer?...
- Sandro: - Já chegou?... Que há?... Não olhe assim para mim que me põe nervoso…
- Margarida: - Nada...larga já esses bolos, e, Também não me olhes com essa cara!
- Sandro: - Que tem a minha cara, que é tão lindinha? Além disso não tenho outra.
- Margarida: - O que é uma pena…
- Sandro: - Que rica "mamã", que você me saiu!
- Margarida: - Manchaste-me a bata. Está cheia de nódoas. És um verdadeiro"demónio"!
- Sandro: - Melhor para mim, eu até me considero um “demônio”!
- Margarida: - Parece-me que vou dar-te uma bofetada…
- Sandro: - Se me bater, mordo-te toda...Toda… Toda… Todinha!
- Margarida: - Você, Clara, devia levá-lo a casa. É filho da empregada do Josué…
- Clara: - E aonde mora o Josué Teixeira?
- Margarida: - Não sei!
- Clara: - Também não sei. Onde moras tu, Paulo?
- Sandro: - Não te digo. Não vou sair daqui sem ordem do senhor Josué…
- Margarida: - O senhor Josué, não virá esta noite…
- Sandro: - Nesse caso, ficarei aqui até ele aparecer. Ainda há muitos doces!
- Margarida: - Desinteresso-me deste assunto. Você é que ganhou o dinheiro, portanto, tome conta deste "anjinho". Boas noites.
- Clara: - Está bem, deixe-o comigo. Esta noite não tenho espetáculo. Se este "demônio"se tornar demasiadamente intratável, meto-o no frigorífico, ou mesmo na arca frigorífica!
- Margarida: - E guarde-me o que restar da minha bata!

Ao entrar no quarto que a sua amiga lhe tinha emprestado, Margarida, lembrou-se que se encontrava na cidade de Leiria, não em viagem de recreio, mas sim com uma missão da agência de que era funcionária.

A sua missão era acompanhar um casal de americanos, que desejavam passar férias na Rota do Sol. Ligou então para o Hotel do Parque, e de lá lhe disseram que o avião em que viajava o casal americano, ainda não tinha aterrado em Monte Real.

Ainda tinha umas horas de descanso, que as ia aproveitar…

Foi quando a campainha do telefone tocou, e, do outro lado do fio, apareceu-lhe a voz aflita do Augusto, o criado do avô Guido...
- Augusto: - Ah, é a menina, ainda bem. O menino Josué, por acaso por está aí?
- Margarida: - Não, não está, Augusto. O senhor Josué Teixeira, ainda deve de estar no Conserto. Mas o que se passa, Augusto?... Passa-se alguma coisa com o avô Guido?
- Augusto: - Pois é, o senhor Guido quer regressar a esta hora, a casa em Trás-os-Montes. Já tentei telefonar para o teatro, onde está a actuar o menino Josué, mas ninguém atende o telefone...Se a menina pudesse vir cá ter connosco…
- Margarida: - Mas o avô, a mim, não deve atender. Sabe...
- Augusto: - Por aquilo que conheço do senhor Guido, estou convencido que a ia atender muito bem, pois, pois ele gostou muito, mas muito da menina.
- Margarida: - Então, vou tentar ir para aí...o mais rápido possível...
- Augusto: - Muito obrigado...!!!... Sabia que podia contar consigo...

Voltou a vestir-se, lançando um triste olhar para a cama...

Guardou, precipitadamente as suas coisas, e, fechou a mala de viagem. Na cozinha encontrou o Sandro (o terrível Paulo) a dormir de bruços sobre a mesa, enquanto a Clara saboreava, entusiasmada, o resto dos bolos. Esbugalhou os grandes olhos pintados, e...

- Clara: - Vai-se já embora?!
- Margarida: - Não tenho outro remédio. Acabam de avisar-me pelo telefone, que o avô Guido não está a passar muito bem…
- Clara: - Mas...mas vai deixar-me aqui sozinha com esta "fera"?
- Margarida: - Mas que posso eu fazer? Procure não o contrariar. Se ele voltar a portar-se mal, telefone para o senhor Josué Teixeira, para o teatro. Ele dar-lhe-á instruções. Eu vou a São Pedro de Moel, ter com o avô Guido. Boa Noite!

Sem esperar pelo ascensorista, desceu a dois a dois os degraus da escada. Viu-se outra vez junto do portão, e, daí chamou um táxi.

- Margarida: - Hotel São Pedro de Moel…
- Margarida: - Como?... Mas o avô não está doente?
- Avô Guido: - Olá, minha querida filha, que faz você aqui a estas horas?... Augusto, estão a tocar novamente à campainha, vai abrir…
- Augusto: - É o menino Fernando!
- Fernando: - O avô, Augusto?... Que se passa, Augusto?!...
- Avô Guido: - Tu também vieste, meu filho?!
- Fernando: - Naturalmente que vim logo que pude, logo que terminei o Conserto. O Augusto telefonou-me, a dizer que…
- Margarida: - A mim também me telefonou a dizer que o avô estava doente…
- Avô Guido: - Com que então, doente?! Isto é tudo obra deste desmiolado Augusto, que está sempre com as suas manias... Eu, doente?... Lá por eu ter adormecido numa cadeira, já imaginava que tinha perdido os sentidos. Não velho impertinente, ainda não te darei o prazer de morrer, pois, tu hás-de morrer primeiro. És capaz de alarmar toda a gente, sem o menor motivo. Mas, eu não estou doente…
- Augusto: - Acalme-se, senhor Guido, não se excite.
- Avô Guido: - Estou nervoso, porque não posso dormir nesta maldita cama de hotel. Dei mil voltas e, tive que me levantar, cheio de dores nos rins. Porque motivo hei-de ser obrigado a passar a noite em claro, em vez de ir para casa, dormir na minha cama?!
- Fernando: - Mas é só esta noite, avô. Amanhã já vai para sua casa.
- Avô Guido: - Há mais de quinze anos seguidos, que durmo na mesma cama, e, não posso descansar noutra. Vou, vou agora mesmo para a minha casa, e está tudo dito!
- Fernando: - Mas, avô, não podemos permitir que vás por essas estradas fora, a estas horas da noite!
- Avô Guido: - Permitir-me?! Julgas que vou te pedir autorização para voltar para minha casa?... Já sou de maioridade e, posso dispor de mim, como melhor me parecer!
- Margarida: - Mas isso seria um verdadeiro disparate. Daqui até a Trás-os-Montes, são mais de três horas de caminho...
- Avô Guido: - E isso que tem?... Se ficar aqui, não passarei apenas um par de horas mal, mas muitas mais. Augusto, vai buscar o automóvel a fim de partirmos.
- Fernando: - Se persistes em te ires nessa louca aventura, acompanhar-te-ei. Não ficarei tranquilo de outra maneira.
- Avô Guido: - Não é preciso que te incomodes, meu filho. As estradas estão boas e, o Augusto conduz muito bem. É das poucas coisas que ele sabe fazer (mais ou menos) bem…
- Fernando: - É inútil teimares, avô. Irei contigo.
- Avô Guido: - Muito bem, faz como quiseres. E tu vens também, Márcia?
- Margarida: - Não…Não me é possível acompanhar o avô...Sabe, tenho que ficar com o Sandrito…
- Fernando: - Levá-la-ei a casa em cinco minutos e, voltarei para te acompanhar, avô. Espera-me, está bem?...
- Avô Guido: - está bem, está bem... tu já viste o que fizeste, Augusto? Hás-de ser sempre um mexeriqueiro. Que necessidade tinhas tu de incomodá-los a estas horas?!... Adeus, Márcia, gostei muito de ti; hás-de ir visitar-me, o mais breve possível, sim? Muito em breve, não te esqueças!
- Margarida: - Assim que for possível, irei logo ter com o avô. Não me esquecerei, não.
- Avô Guido: - Não te demores, Fernando... Estou ansioso de me ver na minha cama, com os meus três colchões e almofadas de penas. Vão indo, vão indo...o Augusto acompanhar-vos-á à porta...vão indo...
- Margarida: - Que estranho o avô querer ir a estas hora da noite para Trás-os-Montes!
- Fernando: - Caprichos de velho. Acompanhá-la-ei até à casa da Georgina... Mas, olhe quem está aqui?!... Que fazes tu aqui Paulo (Sandro) à porta do hotel, não me dizes?...
- Margarida: - Como é que viste para São Pedro de Moel?
- Sandro: - Olá,"mamã"!...Olá,"papá"! Estou aqui!... Esperava-os ansiosamente.
- Fernando: - E quem te autorizou a vires aqui!
- Sandro. - A “querida tia Teresa” trouxe-me de táxi e, depois foi-se embora…
- Fernando: - Foi-se embora?! Isso não, não é possível!
- Margarida: - E olha lá Sandro, o que é que tu lhe fizeste, para ela se zangar tanto contigo?
- Sandro: - Ela excedeu-se, e eu tive que me defender!
- Margarida: - Vamos, Paulo (Sandro), conta toda a verdade: que lhe fizeste?
- Sandro: - Não lhe fiz nada de especial. Foi ela que me bateu...e eu...então mordi-lhe num braço…
- Fernando: - E o que lhe fizeste para ela te bater?
- Sandro: - Nada... Ela é uma estúpida…
- Fernando: - Que maneira é essa de falares da tua "tia"? Parece-te bem o que fizeste ao mordê-la?
- Margarida: - Com que então "mordeste"à tia Clara e, ela foi-se embora. Bonito rapaz.
- Sandro: - Pois mordi! Ela ficou tão furiosa que, até disse que nem por outros quinhentos euros, me aturaria nem mais um minuto sequer.
- Fernando: - E porque não foste para tua casa? A tua mãe está à tua espera.
- Sandro: - Porque me dói muito a barriga. Os doces fizeram-me muito mal.
- Margarida: - Eu bem te avisei…
- Sandro: - E a "tia"Clara, ia fazer queixa à minha mãe…
- Margarida: - O que seria muito bem feito!
- Sandro: - Além disso, o "papá" ainda não deu cá ao "filhinho",o dinheiro que prometeu. Não se esqueceu, pois não?...
- Margarida: - Pobre pequeno, na verdade, e bem no fundo, até é engraçado...
- Fernando: - Sim, é muito divertido, mas este diabo está sempre a arranjar-me sarilhos.
- Sandro: - Que vamos fazer agora? Para onde vamos?...

(continua...)

Fonte:
Colaboração do autor.

Arlene Lima (Mãe que foi filha, filha que é mãe)

Pintura de Renoir
Toda mãe é filha. Este entrelaçamento é mágico, eterno!
Chegava o aniversário de minha mãe; queria expressar-lhe o meu amor, através de um cartão.
O que escrever?! Pensei muito e o enviei assim: Minha querida mãe... Sua filha é avó, continua sendo seu neném.
Com muito amor.
Passaram meses; dia do meu aniversário, retribuiu-me o cartão escrevendo “Minha querida filha... você,
na maior parte das vezes é minha mãe! Com muito amor.”
Ao mesmo tempo sou-lhe filha e mãe; isso é incrível, divino!
Tocou-me muito esta poesia de autor anônimo:
Aquelas rosas brancas e puras
Dê-mas hoje, meu filho, enquanto é dia,
Não sentirei o seu odor suave
Se as puser na minha tumba fria.
Quero cheirosas pétalas macias
Das flores, e a beleza fresca e pura.
Mas os espinhos que me dá agora
Guarde-os para minha sepultura.
Quero dar rosas à minha mãe e recebe-las dos meus filhos. Espinhos não! Eles ferem! Guarde-os para a sepultura...
Mãe e filha ideais, terão oportunidades de mostrar carinho e afeto de muitas maneiras. Providenciando não só o
alimento, roupa, educação, solidariedade, exemplo, confiança mútua, carinho, doação, lutando para um mundo
de amor, ternura e vida.
- Que fazes, meu filho? - perguntou a mãe, curiosa.
- Não vês, mamãe? Estou seguindo as suas pegadas.
Estou seguindo as suas pegadas, é uma frase que nos deve fazer parar e pensar muito. Aonde vão as suas pegadas?
Será que podemos ocultá-las?
A mãe é a mestra que ensina aos filhos as regras da vida, pois o exemplo vale mil sermões.
Existem mães cujos filhos são bem cuidados, ralhados e castigados, mas nunca estimulados. Na vida dos filhos é
inegável a grande influência da mãe. A mãe os quer felizes. Precisa ter:
- inteligência, muita dedicação;
- trabalho e boa-vontade;
- encanto e sensibilidade;
- segredo de saber esconder as lágrimas com belo sorriso;
- encanto e ternura;
- espírito generoso;
- gênio meigo;
- um coração terno;
- perseverança, dinamismo e justiça;
- compreensão, garra e seriedade;
-enfim, precisa ser "mãe-coragem"!
Faça tudo o que estiver a seu alcance para que a vida da sua mãe seja feliz conosco. Em cada segundo sua vida seja florida e bela.
Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra”, {Ex.20:12}.

Fonte:
Colaboração da Autora

sexta-feira, 7 de maio de 2010

José Feldman (Último Adeus)


ao Fluffy (falecido hoje, 7 de maio de 2010)

Meu amigo!
Você se vai e
nem bem nos despedimos
eu já sinto saudades de você,
Dez anos juntos,
e preenchestes
um espaço em meu coração.
Hoje destes seu ultimo suspiro
e sinto meu coração se desmanchando
A sua amizade incondicional
que sempre me devotou
E que eu só muito tarde
aprendi a retribuir.
Tantas vezes ralhei contigo
e alterei a voz
mas mesmo assim
tinhas sempre um olhar
amigo e de gratidão.
A sua voz era uma alegria
e hoje, só consigo ouvir o silencio.
Nunca tinha percebido que a noite
é tão escura
e tão quieta
e tão triste.
Quando destes seu último suspiro
é que percebi o que você é:
Um novo amanhecer!
Vencestes bravamente a parvovirose,
Sofrestes nestas últimas semanas
mas eras um guerreiro,
e mesmo a morte lhe levando,
és o grande vencedor.
Para mim é e sempre será
Eterno e imortal, meu amigo.
E, além de meu amor por você,
só me resta pedir seu perdão
por ser “tão” humano,
e do fundo de meu coração
“muito obrigado pela sua amizade”.

Erorci Santana (Enterro de Cão)


Soava o badalo do sino
quando notei a cachorra inerte.
Chamei-a. Estava surda, vítima
de enfarte, sem um ganido audível.
Pousei nela uma mão de afago, trêmula,
acendi uma vela tardia, tomei um trago.
“Para tão grande amiga,
vida tão pouca”, murmurei
com voz rouca. Era de noite...

Fiz para ela uma mortalha de trapos,
nesgas de cânhamo, fiapos de lã.
Fazia frio e tingiu-se de cinza a manhã.
Desenterrei do quintal um osso antigo
e completei seu féretro de trastes
ouvindo além da névoa os ecos
do seu ladrido, lembrando
os orgulhosos gestos de sua ética vigília.
O pulso do dia adstringia já
os nervos de seu estômago convulso,
a língua presa entre os dentes
compondo a cena trágica, quase risível.
Num terreno baldio, improvisei
um epitáfio entre ratos,
sacos plásticos, frascos de vidro.
Cavei cinco palmos de buraco
(dois nacos de orvalho caindo da face).
Nesse cenário kitsch,
dei por dizer frases de Nietzsche,
rematei com um verso de Salomão.
Baixei na cova o meu cão:
fardo triste, inflável balão.

Fonte:
http://www.blocosonline.com.br/

Antonio Gedeão (Poema do Cão ao Entardecer)


Um cão no areal corria presto.
Presto correria o cão no areal deserto.

Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.

Corria em linha reta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha reta,
corria presto, o cão.

Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha reta
pela orla do mar.

Sem princípio nem fim, em linha reta,
pela orla do mar.

Era ao entardecer,
na hora espessa, peganhenta e úmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha reta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha reta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as retas que se dizem paralelas.

Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.

Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha reta mais suposta
que o areal e o mar
Mas presto, presto, sempre presto, presto,
ia correndo o cão no areal deserto.

Fonte:
http://www.blocosonline.com.br/sites_pessoais/sites/lm/cao/lmcpo30.htm

Carlos Neto (A Morte do Cão)


Chamavam-no Gillet. Soberbo cão de raça
que um caçador famoso, um doido pela caça,
mandara vir de fora, a peso de dinheiro.
Era um ídolo o cão. E aos carinhos tão doces
dos agrados gentis, o cão acostumou-se
a consagrar, também, a vida ao companheiro.

Na época melhor das ótimas caçadas,
os dois partiam sós, à luz das alvoradas,
buscando o coração misterioso das matas.
E voltavam, depois, alegres e contentes,
despertando em redor os íncolas dormentes,
ao compassado som de estranhas serenatas.

Mas, depois de algum tempo, o cão envelhecido,
desdentado, sem forças, exausto, entorpecido,
já bem dificilmente acompanhava o dono.
Era um cão sem valor, inútil companhia,
que preciso se fazia, de dia para dia,
ir deixando ficar em mísero abandono.

A fortuna também girou, rapidamente,
e o velho caçador, tão rico, de repente
sentiu minguar-lhe o pão. Sentiu faltar-lhe o ouro.
A morte lhe roubara a esposa muito amada
e ele viu sua casa escura e abandonada,
tendo um filho só por último tesouro!

II

Um dia, disfarçando o peso da desgraça
que, aos poucos, lhe esmagava o triste coração,
ele partiu, cantando as emoções da caça.
Mas quis partir sozinho. E acorrentou o cão.

Do mísero cativo as pérolas do pranto
desceram. Mas, ao ver o caçador contente,
o pobre cão lá foi, resignado, a um canto
deitar-se, carregando o peso da corrente.

A noite que descia em silêncio e trevas
envolvia a casa. E eis que, repentinamente,
farejando a amplidão, faminto, um lobo avança...

(E lá no berço a criancinha dorme,
como dorme num berço uma criança.)

Escancarada a porta encontrava-se então.

O lobo se aproxima...
Nesse momento,
No turvo olhar do cão lucila um pensamento.
E eis que, grunhindo, uivando, o cão forceja, torce
retorce
e quebra, num ímpeto de amor,
os elos da corrente.

Travou-se, então, uma horrorosa luta,
no silêncio da noite, indiferente e bruta.

Surdo ranger de dente, ossos a estrelejar.
Mil contrações de dor. O sangue a borbulhar,
a relva machucada... o fogo do cansaço...
e baques pelo chão... Tudo espalha no espaço
em ímpeto fremente, um acre odor de guerra!
Depois... o baquear de um corpo em cheio em terra
Depois... um abafado e último gemido.
Um preito ao vencedor, por parte do vencido.

.x-.x-.x-

Depois daquele horror... depois... Depois mais nada.
Era a tragédia finda e a noite sossegada.

Mais tarde, ao despertar da fresca madrugada,
o caçador voltava.
Vendo a porta aberta,
a casa palmilhada
e toda salpicada, com o sangue do cão,
corre para o berço do filhinho.
Anseia, estua, pára...
ao vê-lo ensangüentado
e vazio.

Tonto de amor paterno, cego de vingança,
afaga junto ao peito o cabo de um punhal
e, vendo aos pés a festejar-lhe o cão,
atira um golpe rijo ao peito do animal
que, exânime, resvala em último suspiro.

Mas, nisso, ouve uma voz que chama o caçador.
"Papá, papá, papá!" Alucinado, incerto...
era a voz do filhinho - o filho estava perto -
correu desesperado... e - atônito, absorto -
o foi achar, contente e sossegado,
junto à casa do cão... e, ali bem perto, ao lado,
um lobo enorme, mas ensangüentado e morto!.

Fonte:
Jornal de Poesia

quinta-feira, 6 de maio de 2010

José Feldman (Quero tirar meu livro da gaveta e publica-lo. Que fazer?)


Este é o novo artigo publicado na coluna de José Feldman no site http://www.escritoresdosul.com.br/

Os artigos anteriores são:

* Curiosidades sobre o Trovadorismo no Brasil - (Parte II)

* O Trovadorismo no Brasil e no mundo (origens)

* A menina e o general

* Afinal o que é uma Academia de Letras e para que serve?
.
* A História Viva de Nossa Literatura Esquecida em Curitiba

Visite o site do escritor Leandro Rodrigues.
Colunistas, biografias, entrevistas, resenhas, etc.
http://www.escritoresdosul.com.br/

Rita Maria Félix da Silva (O Menino no Lago)


O Lago Sombrio

Algumas histórias sobreviveram à memória dos dias antigos – carregadas de um lado para o outro pela brisa que, vez por outra, toca o espírito de mulheres e homens, relembrando uma época de feitos assombrosos, eventos estranhos, magia, maravilhas e horrores. Esta é uma delas:

Dizem que havia um menino de quem os pais foram levados muito cedo, por uma das mais estúpidas guerras que os adultos já fizeram. De algum modo, ele sobreviveu e vagou por uma vida solitária até que encontrou um homem chamado Orlando.

Os outros adultos desprezavam Orlando, que tinha uma índole ruim e não merecia confiança, porém – embora aquele homem alega-se detestar crianças e maltrate-se o menino sempre que estava irritado ou entediado –- eles se tornaram companheiros de viagem nesse mundo, afinal nada tinham, exceto a companhia um do outro, e a solidão costuma permitir as alianças mais improváveis. E o tempo foi vagarosamente passando, enquanto tudo era exatamente assim.

Todavia, no começo de uma manhã, coberta de neblina –- enquanto o dia avançava junto com as reclamações e grosserias de Orlando -– eles chegaram a um lago sombrio, um lugar assombrado pelas memórias de horrores antigos.

Sentada em uma das margens, havia uma mulher perto de uma fogueira quase apagada, na qual as poucas brasas que ainda persistiam lançavam mais fumaça do que calor na carne assada de algum pássaro. Ela vestia trapos, seus cabelos eram de um amarelo muito suave, a brancura da pele imitava a palidez, o corpo era magro e, embora parecesse jovem, ninguém poderia, com certeza, determinar sua idade. Com a mão, ela remexia nas águas escuras do lago enquanto cantarolava uma música estranha.

Ao vê-los chegar, a mulher parou sua canção, afastou-se da água e os convidou para que se sentassem e comessem. Orlando, em seu orgulho de adulto, não admitiu, mas havia algo de assustador nela, o bastante para que alguns ossos daquele homem começassem a doer.

O menino – pois as crianças são mais sinceras – ficou assustado e quis recusar o convite. O homem recriminou seu companheiro de viagem, afinal estavam ambos com fome, e arrastou-o para compartilharem o café da manhã com aquela estranha.

A mulher – após os três comerem – se apresentou como Safira e perguntou-lhes seus nomes. Orlando indagou como ela havia conseguido capturar a refeição –- afinal os deuses daquela terra pareciam não ter piedade dos famintos, pois os animais dali eram difíceis demais de ser pegos.

Ela riu – o som era seco e estranho – e apenas disse:

– Magia.
– Magia? – ele questionou, pois nunca havia encontrado qualquer coisa mágica em sua vida.
– Sim, – ela respondeu – eu sou uma bruxa.

O menino, tomado por aquela sabedoria que é própria das crianças, quis fugir e implorou que eles fossem embora. Orlando gritou com ele, criticou-lhe por ser tão covarde e explicou:

– Ora, ela pode ser uma bruxa, mas tem comida para nos dar.

A bruxa sorriu da tolice do homem e os três ficaram juntos.

Os dias se passaram. Orlando e Safira apreciavam a companhia um do outro - afinal ela fora solitária por toda uma longa vida e ele recebia dela todo o alimento de que precisava. O homem, porém, não gostava que o menino ficasse por perto, por isso exigia que este se afastasse o tempo todo ("Vá brincar em algum canto, mas nos deixe em paz!" – gritava ele) e a criança, meio por tristeza por não receber qualquer atenção, meio por temer a fúria do adulto, ia para longe e ficava caminhando e inventando brincadeiras até a hora da próxima refeição.

Para Orlando também era agradável está com Safira, pois nunca uma mulher tão bonita havia lhe dado atenção. Em certo momento, ele questionou sobre a beleza dela e a feiticeira respondeu:

– Você ouviu sobre as bruxas serem más e feias, mas os contadores de histórias não sabem tanto quanto imaginam e somente uma bruxa muito tola seria feia.

Ele meditou por um instante, tentando forçar sua mente a abrigar aquele novo conceito, e depois perguntou: – Mas e sobre vocês serem más?

Ela sorriu novamente –- um sorriso de profunda malícia e que pareceu belo para aquele homem:
– Ora, meu querido, as histórias não estão inteiramente erradas, embora fiquem muito longe da verdade... E, seja sincero, quem é você para falar de maldade?

Pelo resto daquele dia e também por toda a noite que se seguiu, Orlando evitou falar com os outros, ponderando sobre as estranhas palavras de Safira, porém, quando o sol nasceu novamente, ele despertou e esqueceu-se desta questão.

Naquela manhã, Safira fez a proposta a ele.

Ela lhe explicou que já era uma bruxa por mais tempo do que ele poderia imaginar e disse que desejava se tornar apenas uma mulher humana, como todas as outras.

Orlando pensou em como a magia facilitava a vida e questionou por que Safira pensava em abrir mão de algo assim. Ela gargalhou, – com um tom de zombaria que quase fez o homem atirasse furioso sobre ela – recriminou-o por ele ser tolo o bastante para julgar coisas que não seria capaz de entender e acrescentou:

– Antes de abandonar a magia, eu providenciarei uma grande fortuna, o bastante para uma vida confortável até o meu último fôlego... Mas não só para mim: eu gostei de você, Orlando. Há uns cinco dias de viagem fica uma vila, por trás daquelas montanhas, uma terra de gente simples, tola e interesseira, que existe à sombra das ruínas de um grande e antigo castelo -– onde, quando teu tataravô ainda não tinha nascido, eu transformei em pedra a princesa daquele lugar e me diverti observando o príncipe vagar pelo mundo, inutilmente procurando uma forma de curá-la, até que o frio, a fome, a loucura e a velhice tomaram a vida dele... Quero que venha comigo e que fiquemos juntos até que a morte escolha levar um de nós -– e ela contemplou-o com o sorriso mais encantador que aquele homem já vira.

Orlando ficou exultante, pois Safira era bela e a perspectiva de uma vida próspera, longe da miséria e da fome, ia além do que seus sonhos lhe permitiam ver.

A bruxa estava satisfeita com a resposta dele, porém o riso sumiu da face da mulher quando ela disse:

– Há, porém, uma última coisa que preciso realizar, um feito de extrema malignidade, antes de deixar de ser uma bruxa: um ato que devo induzir alguém a fazer. E será você, Orlando.

Ela tirou de suas coisas uma bolsa feita do couro de algum animal já extinto, dentro da qual estavam uma corda não maior que o braço de um adulto, tecida nas fibras de um arbusto que não mais existe neste mundo, e uma adaga de fabricação rude, na qual estavam gravados símbolos esquecidos pela humanidade. Safira pôs os objetos no chão e falou – num tom que parecia tão sombrio quanto o lago... Não, mais ainda sombrio – o que Orlando teria de fazer...

O homem teve vontade de gritar, mas não conseguiu. Tremia e colocou as mãos sobre a face, escondendo seu choro. Safira continuava falando – sobre a riqueza que teriam, sobre a vida ao lado dela – ele desejou que ela se calasse, mas a ambição e o desejo fizeram-no continuar escutando... Antes de aquela manhã chegar ao fim, Orlando enxugou as lágrimas e disse que faria como a bruxa lhe tinha dito.

– Ótimo - disse Safira, e seu rosto pareceu-lhe demoníaco – Então, chame o menino.
A bruxa guardou aqueles objetos terríveis e Orlando obedeceu-a.

O menino voltou para perto do homem, tão inocente quanto qualquer criança, e estranhou a mudança em Orlando: nunca antes aquele adulto havia sido tão gentil, nunca tinha lhe dado tanta atenção quanto naquele momento. Como é próprio dos pequenos, o menino ignorou suas estranhezas e aproveitou aqueles instantes, os mais felizes que já tivera. Contudo, por mais que ele se esforçasse, não podia deixar de prestar atenção no fato de Orlando tremer em meio aos sorrisos e na forma severa com a qual Safira olhava para o homem, como se estivesse cobrando algo... E isso fazia Orlando tremer ainda mais, até que havia lágrimas escorrendo pelo rosto dele.

O menino perguntou o que estava acontecendo, mas o homem escolheu mentir e disse que não havia nada. A tarde se aproximava do final, quando Safira disse algo para Orlando, que pareceu a coisa mais estranha que o menino já escutara:

– Meu querido, logo a noite chegará, você terá falhado... E eu precisarei procurar um outro homem que possa me ajudar e que mereça minhas dádivas.

Ao escutar isto, Orlando estremeceu mais uma vez, parou de fingir e começou a chorar de uma forma que o menino nunca vira. O garoto abraçou-o tentando consolá-lo. Com a visão quase encoberta pelas lágrimas, Orlando olhou para a bruxa, que estava segurando aqueles dois objetos sangrentos, oferecendo-os a ele.

Como havia prometido a Safira, ele usou a corda para estrangular o menino e, quando não havia mais vida no corpo da criança, Orlando cortou-o em vários pedaços e atirou todos no lago.

Então, suas roupas cobertas por uma mistura de lágrimas e sangue, o homem murmurou uma maldição para si mesmo e olhou para Safira. Ela havia mudado. Ainda era bonita, porém aquela beleza mágica, que tanto o havia encantado, fora embora para sempre, deixando no lugar uma mulher como qualquer outra.

Ela apontou para um saco, feito de um tecido velho e sujo, que parecia ter acabado de surgir naquele lugar. Cheio de cobiça, Orlando abriu-o e enfiou as mãos, apenas para puxá-las de volta com moedas se derramando entre os dedos... Ouro, mais ouro do que ele poderia sonhar.

Ele esqueceu-se do menino e olhou satisfeito para a mulher. Com selvageria, rasgou as roupas dela e depois as suas próprias. Eles fizeram amor na margem daquele lago, por todo aquele tenebroso crepúsculo e por toda a maligna noite que se seguiu.

Pela manhã, felizes com sua cumplicidade, eles partiram para a vila próxima, deixando o lago sozinho, meditando sobre mais um de seus segredos sombrios.

Fonte:
Revista João do Rio. Ano 7 - Número 42. Abril / Maio de 2010

Abílio Pacheco (Aquarela de Poesias)


NO PRELO

Se a minha palavra é a minha busca
de uma vida inteira, em todo mundo
e ela dorme encantada à sombra
de um livro raro, quiçá
encontrá-la-ei num alfarrábio,
num sebo, numa biblioteca pública...
Quem sabe minha resposta ainda
esteja no prelo.

ESCRITURA

A Eliton Moreira e Ademir Braz

Tecer versos é, por força, fazer sulcos em penedos,
Singrar as pedras todas do mar de si ao avesso,
Derramar suores em gotas no fero vigor do remo.

É ferir, à quilha da fragata, as artérias espumosas
Das altas internas vagas. É navegar por entre as rochas
E extrair exangues lascas — vergões por dentro e por fora.

É talhar a cerrados pulsos as pedras finas, mas duras.
E lapidar relevos pulcros em fendas pouco profundas.
É um árduo trabalho infruto, que só lega palmas sujas.

Mas é preciso fazê-lo! Alguém deve abrir as ostras
Abismadas em seu peito para juntá-las a outras
Iguais na casca e no meio, mesmo que estejam ocas.

Por fim: crer que vale a pena mineralizar as lavras
Como fulcros ao poema e inertes todas deixá-las
Inativas pelas fendas — palavras amortalhadas.

Para que tu, só tu possas sugar o cerne dos versos
Acumulados em poças pelos teus olhares tétricos
Que desmineram as horas e se desmentem eternos.

TESSITURA NOTURNA
A João Cabral de Melo Neto

Um latido apenas
não protege a rua
ele precisará sempre
que os cães o apanhem
e o lancem a outros cães
e a outros latidos
tal que somados todos
(latidos e cães) na noite
formem (no arca-
bouço da matilha)
uma redoma protetora
em torno da rua.

RETRATO II
A Cecília Meireles

Eu também não tinha este rosto
assim tenso, assim denso, assim calvo,
nem olheiras e rugas
nem cabelos alvos.

Eu não tinha estes olhos de agora
tão rubros, tão turvos, tão vagos,
nem esta mão incerta,
nem dedos fracos.

Mal venho notando esta mudança
que lenta, constante e suave
do espelho vem desbotando
a minha face.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
(ou Pinóquio pós-moderno)

Minha fada cor de céu,
Por mil pares de anos
Repito-te o mesmo pedido:
Faze comigo o que fizeste
com o filho de Gepeto.

Mas, acima de nossas cabeças
Toda nova era glacial passou
E com ela os filhos de Japeto.

Por mil pares de anos te peço...
Para que me transformes no que sempre fui,
Sem que nunca tenha sido de verdade.

LUZES DA CIDADE
A Charles Chaplin

Deambulo em trapos pelas ruas...
E vejo você, serena e cega, alva e bela,
com uma cesta plena de flores claras.

Súbito amo-te! como uma criança a outra.
Simples como a rosa branca
que recebo e ponho na lapela.

Faço de tudo para que
— mesmo vendo-me trapalhão —
você contemple as luzes da cidade.

Fonte:
Revista João do Rio. Ano 7 - Número 42. Abril / Maio de 2010

Abilio Pacheco



Cursou Licenciatura Plena em Letras na UFPA-Marabá (durante a qual foi bolsista de Monitoria e de Iniciação Científica), duas especializações na área e Mestrado em Estudos Literários pela UFPA-Belém (Dissertação: Por pesar de você a manhã se tornou outro dia: cidade, utopia e distopia em Benjamim, de Chico Buarque). Lecionou na ETRB e no CEFET-PA (hoje IFPa), onde atuou ajudou a implantar o curso de Letras e atuou no Ensino a Distância e na Especialização em Educação para as Relações Étnico Raciais. Atualmente é professor da UFPA-Bragança e líder do Grupo de Pesquisa Narrativas de Resistência - Narrares.

Abilio Pacheco, nasceu em Juazeiro (BA), viveu a primeira infância em Coroatá (MA), dos 07 aos 27 morou em Marabá, e hoje reside em Belém (PA).

Aos 17 anos obteve o primeiro destaque em certames literários com o poema “Elegia de Maria”. Publicou Poemia (poesia – semiartesanal) em 1998; Mosaico Primevo (poesia) em 2008; e Riscos no Barro: ensaios literários (2009).

É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá) e um dos organizadores da Antologia Literária Cidade.

Lecionou por cinco anos no CEFET-PA (hoje IFPa). Atualmente é professor da UFPA - Bragança.

É um dos organizadores da Antologia Literária Cidade.

Fonte:
Revista João do Rio. Ano 7 - Número 42. Abril / Maio de 2010